"O Presidente está simplesmente servindo ou recitando uma diretriz do consenso de Washington"
[entrevista ao jornal da Universidade de Campinas]

Octavio Ianni

20 de julho de 2003


Primeira Edição: entrevista dada ao jornal da Universidade de Campinas, conduzida por Clayton Levy, Ianni mantem-se fiel aos seus princípios de sempre: falar claramente e com franqueza. O governo social-democrata de Lula sai chamuscado da entrevista. - O original encontra-se em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2003/ju220pg06.html

Fonte: http://resistir.info

HTML: Fernando Araújo.


Jornal da Unicamp – A esquerda brasileira está inquieta e parte dela se sente desconfortável com o momento político, como se estivesse sendo inculpada das desigualdades sociais. Como o senhor analisa esse quadro?

Octavio Ianni – Não há dúvida de que a sociedade brasileira está atravessada por injustiças sociais. E não há dúvida de que esse quadro de desigualdades deve ser superado aos poucos ou rapidamente. Há que reconhecer, especialmente se se trata de um presidente da República, essa realidade e lidar com ela de maneira objetiva. Em absoluto não cabe ao presidente satanizar categorias sociais sem enfrentar a preliminar de como encaminhar uma solução objetiva para os problemas da sociedade. Concretamente, a preliminar de todas as preliminares é como criar emprego para a grande maioria da população que se encontra subempregada ou simplesmente desempregada. É inegável que algumas corporações dispõem de vantagens escandalosas. Mas é importante reconhecer que os professores do sistema público de ensino de primeiro, segundo e terceiro graus têm sido gravemente prejudicados pelas políticas governamentais desde a ditadura militar, continuando com os governos civis e com o governo atual, que se entregou gostosamente ao modelo neoliberal. Portanto, quando o presidente está dizendo o que disse, ele está simplesmente servindo ou recitando uma diretriz do consenso de Washington. E não está em absoluto revelando uma visão de estadista sobre os problemas nacionais. Aliás, ele não pode ser um estadista porque o governo atual não dispõe de um projeto nacional. Ao contrário, esse governo instalou-se para resolver topicamente, ao acaso das emergências, os problemas que vão surgindo.

JU – O que o senhor quer dizer com “satanizar”?

Ianni– Acho que tem de ser passada para o público uma visão de conjunto para não ficar nessa artimanha dos argumentos governamentais. Um governo que vem a partir de movimentos sociais está se dedicando muito apressadamente a satanizar a atividade intelectual na universidade pública. Portanto está contribuindo para favorecer a privatização e o economicismo no primeiro, segundo e terceiro graus, que é um item do ideário de Washington, ou mais concretamente uma exigência do Banco Mundial.

JU – Em sua opinião, quais seriam as conseqüências dessa postura para o ensino superior público?

Ianni – Os governos militares e os governos civis estão totalmente atrelados às diretrizes do Banco Mundial, que desde os anos 60 e 70 começou a estabelecer favores financeiros e tecnológicos mas, simultaneamente, passou a impor exigências. É o Banco Mundial que estabeleceu as exigências que estão sendo implementadas no ensino público, como o economicismo e a pesquisa e desenvolvimento. Desenvolvimento do quê? Da nação, do povo? Não, é do mercado, das corporações, da economia capitalista. O que os governos militares iniciaram os governos civis deram continuidade e este governo, para decepção de grande parte do eleitorado que votou no PT e no Lula, está jogando a última pá de cal no projeto nacional e no estado de bem-estar social que se havia criado nas décadas anteriores à ditadura militar.

JU – Mas o que o governo diz é justamente o oposto: que tem um projeto nacional que outros nunca ousaram ter.

Ianni – Todos estamos vendo que os americanos estão jogando com a hipótese de que o Brasil é o seu aliado preferencial na América do Sul, e com isso ganhando a cumplicidade do governo brasileiro e das elites brasileiras, no sentido de fazer o jogo da Alca, com a hipótese de que o Brasil poderia obter algumas vantagens em detrimento das outras nações. A rigor, o que os americanos propõem com a Alca na verdade é uma redefinição da geopolítica norte-americana na América Latina, e portanto um realinhamento das nações latino-americanas com a cumplicidade das elites brasileiras. Há tempos que há uma cumplicidade das elites militares, empresariais e alguns setores intelectuais com esse jogo malicioso do governo americano, que faz de conta que o Brasil é o aliado preferencial na América Latina.

JU – Em sua opinião, o que teria levado o governo a adotar uma postura inversa do que vinha pregando enquanto corrente ideológica?

Ianni – Acho que isso é comum a vários partidos no Brasil. Eles não têm análise do que está realmente acontecendo no país. Na minha interpretação, desde 1964, com a ditadura militar, e depois com os governos civis, está sendo desmontado um projeto nacional que era vigoroso. Embora não fosse o projeto dos meus sonhos, porque era um projeto de capitalismo nacional. Os militares, em função do jogo americano da Guerra Fria, e depois os governos civis em função das imposições do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, trabalharam ativamente o Consenso de Washington no sentido de desmontar o projeto nacional. Pouco a pouco o Brasil se transformou numa província do globalismo. Nos séculos 16, 17 e 18, o Brasil era uma província do mercantilismo. Agora, no século 21, passou a ser uma província do globalismo. E o presidente pensa que é presidente de um estado nação. Na verdade é o administrador de uma província do globalismo. Mas ele não tem essa análise. Eles estão jogando com a hipótese de que, se o Brasil desmontar o seu projeto nacional entrará no primeiro mundo. Isso é totalmente enganoso. O exemplo do que ocorreu na Argentina, que fez tudo isso um pouco antes do Brasil, é suficientemente claro. É um desastre.

JU – A que o senhor atribui essa súbita atração pelo globalismo?

Ianni – Vou dar uma resposta que não é acadêmica. O sensualismo do poder é irresistível. O fascínio do poder e, claro, a ilusão de que vai governar um estado nação, induz os membros do governo a crer que estão realizando uma tarefa meritória. Na verdade estão contribuindo para que o país se mantenha nesse estado, podendo até piorar. Aliás, as corporações transnacionais, não só norte-americanas, mas também asiáticas e européias, escolheram o Brasil como base principal de suas operações na América do Sul. E esta é uma escolha à revelia do governo e do povo. E uma escolha que decorre da força que estas corporações têm no cenário mundial.

JU – Até que ponto isso representa uma ameaça à soberania nacional?

Ianni – A soberania nacional acabou. Antes, a soberania nacional era problemática. Hoje, é uma figura abstrata. Qual a imagem mais evidente do presidente, seja do passado (FHC) ou deste (Lula)? São fotografias em salas de visita em várias partes do mundo. Isso cria na opinião pública uma ilusão de que existe uma nação. Na verdade eles atendem os interesses das corporações transnacionais, das organizações multilaterais e da geopolítica do governo norte-americano no mundo.

JU – O senhor acha que existe o risco de a sociedade cair numa grande decepção?

Ianni – Já caiu. Mas o problema é que a sociedade está tendo condições muito limitadas de manifestação porque a grande mídia está orquestrada com o neoliberalismo. A grande mídia é diversionista. Está havendo um processo de popularização da imagem do Lula. A discussão sobre a Previdência é conduzida satanizando os aposentados. De repente, as pessoas que estão aposentadas nos diferentes setores da sociedade são consideradas como peso morto. Isso é uma loucura, uma barbárie. Governantes dedicados a satanizar uma categoria social porque já cumpriu suas tarefas. É o reino da barbárie. Essa atitude da mídia cria um estado de incerteza e de medo.

JU – Há riscos sociais nesse processo?

Ianni – A população brasileira tem sido frustrada continuamente por reversões causadas pelos jogos do poder que são um desastre para a população. Em 1945 havia um processo de democratização que implicava numa reconstrução do país depois da ditadura do Estado Novo. Esse processo foi frustrado por um golpe de estado. Em 1964, quando o país estava numa tremenda ascensão democrática, com conquistas sociais notáveis nos governos de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, as elites militares associadas com o imperialismo deram o golpe de estado. Depois, com a volta dos governos civis, na chamada Nova República, há também uma sucessão de frustrações. E a maior de todas é esta, porque o atual governo nasceu das lutas contra a ditadura militar e as injustiças sociais. Então essa conjuntura é altamente frustrante, com características diferentes, mas semelhantes ao que ocorreu durante o golpe de 64 e o golpe de 45.

JU – Como o senhor analisa o discurso do presidente, quando ele diz, por exemplo, que tem “quatro anos para provar que um torneiro mecânico pode governar esse país com muito mais sabedoria do que ele já foi governado”?

Ianni – Ele tem muitos motivos para fazer essa afirmação porque ele também foi satanizado devido à sua trajetória política. Mas ele foi satanizado por ser um símbolo das classes subalternas. É importante lembrar que o PT e a liderança do Lula nasceram da luta contra a ditadura militar e como uma reivindicação das classes subalternas. Na medida em que se desenvolveu o processo político, ele foi se ajustando, negociando, acomodando. Não há dúvida de que qualquer liderança política precisa negociar. Mas o estado de espírito de muitos que votaram no Lula é de uma profunda decepção, porque nesse percurso o partido e o próprio Lula largaram na estrada muitos compromissos. O comprometimento crescente do governo com o neoliberalismo significa o abandono de qualquer compromisso social, salvo na retórica. Fala-se no Fome Zero, mas isso é uma retórica vazia, porque o problema do país não é dar um prato de comida para o faminto, e sim dar emprego para as pessoas não perderem a sua dignidade. Para que um governante saiba o que é a dignidade dos humilhados e ofendidos, dos desempregados, daqueles que vão receber um prato de comida, é preciso ter uma visão de conjunto que implica em ter um sentido de nação, que não está se revelando no governo atual.

JU – Mas a imagem do presidente, principalmente no exterior, é muito positiva.

Ianni – Essa imagem altamente colorida e sonora tem a ver com a orquestração do neoliberalismo. As corporações da mídia são transnacionais. Por outro lado, há setores da opinião pública mundial que não estão bem-informados sobre o que realmente está acontecendo. Estive na Argentina recentemente e pude ver isso. Eles ainda estão galvanizados pela imagem que se criou no passado sobre o PT e o Lula. Eles ainda não tomaram conhecimento de que a prática desse governo não tem nada a ver com a sua história. Estão apegados a uma imagem passada, que já ficou anacrônica.

JU – O senhor acredita que essa lua-de-mel continuará por muito tempo?

Ianni – Acho que vai durar pouco. Aliás, o discurso que o Lula fez no Rio Grande do Sul (Pelotas), foi um discurso de alguém que já está assustado com o terremoto no qual está metido. Como já tive oportunidade de ouvi-lo em muitas situações ao vivo nos tempos do ABC, percebi que esse discurso feito no Sul revelava não só aflição, mas também alguns indícios de desespero. E a reação é péssima, porque satanizar essa ou aquela categoria social, culpar aqueles que levantam objeções e tentar desmoralizar aqueles que fazem alguma reflexão crítica, é o pior caminho. O Genoíno (José Genoíno, presidente do PT) está equivocado quando diz que as críticas que a esquerda faz ao governo atual são o mesmo que jogar água no moinho da direita. Essa declaração é maldosa, porque na verdade esse governo já foi para a direita. Esse governo não é mais um governo de esquerda. Foi uma promessa da esquerda, mas não é mais de esquerda. Uma promessa que não se cumpriu.

JU – Como a esquerda brasileira vai elaborar essa nova situação?

Ianni – A esquerda está demorando para fazer uma análise objetiva sobre o que aconteceu no mundo. Hoje o capitalismo entrou em um novo ciclo de expansão em escala mundial. As nações estão transformadas em províncias do globalismo. Desde que se faça uma análise objetiva sobre as forças sociais que estão atuando em escala nacional e transnacional será possível formular uma nova política de esquerda. Caso contrário, será uma política de nostalgia, sobre idéias que eram muito bonitas e válidas no passado, mas que já dançaram. O grande problema é como caminhar para um diagnóstico objetivo sobre a realidade contemporânea e como desenvolver propostas. As classes sociais dominantes no mundo estão altamente organizadas. A Conferência de Davos, o G7, a OCDE, o FMI, o Banco Mundial, são expressões de que as classes dominantes estão orquestradas. E as classes subalternas estão demorando a entender que esse quadro é novo.


Inclusão: