O Problema do Ideal na Filosofia

Evald Vasilievich Ilienkov

1963


Fonte: El Problema de la Ideal en la Filosofía. O texto que segue foi traduzido a partir do manuscrito publicado no livro Arte e o Ideal Comunista (Moscou, 1984, p. 106-184). Este tema é uma das constantes na obra de E. V. Ilienkov. Veja o artigo Ideal, na Enciclopédia Filosófica (Vol. 2, 1962, p. 195-199), bem como os dois artigos intitulados O Problema do Ideal na Filosofia I e II (Problemas da Filosofia, 1962, n. 10 e 1963, n. 2). Para esta edição foram usados os capítulos pertinentes do livro Sobre Ídolos e Ideais (Moscou, 1968, p. 44-152), onde o tema foi desenvolvido em toda a sua extensão. Disponível no Lendo Ilienkov (Читая Ильенкова) [http://caute.ru/ilyenkov/].
Tradução do espanhol: Marcelo José de Souza e Silva(1)
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

O problema do ideal é complexo e multifacetado. Em primeiro lugar, naturalmente, surge a pergunta sobre o lugar que ocupa o conceito de “ideal” na teoria do reflexo: como aquele pode ser interpretado a partir do ponto de vista desta teoria. Em todo caso, a teoria do reflexo nos ensina que é correto e verdadeiro somente aquele conhecimento que reflita o que existe na realidade. E, idealmente, não se expressa o que é, e o que deve ser ou o que as pessoas querem ver. Pode-se, por acaso, interpretar o desejado ou o adequado, desde as posições da teoria do reflexo? Em outras palavras, pode-se, por acaso, ser “verdadeiro” o ideal?

A filosofia há muito tempo vê aqui uma dificuldade e também há muito tempo que trata de resolvê-la. Os materialistas de épocas passadas insistiram sobre este problema ao longo de sua luta contra as doutrinas idealistas da igreja, contra o ideal religioso, e pretenderam resolvê-lo de acordo, por um lado, com a teoria do reflexo e, por outro, com as exigências da vida real. Porém, realizar isso, só puderam Karl Marx e Friedrich Engels, e precisamente porque eles não eram somente materialistas, mas sim materialistas dialéticos. Vejamos como isso ocorreu.

“Deus criou o homem a sua imagem e semelhança” – foi dito em um conhecido livro –, e o homem, a razão dele, pagou a Deus com uma ingratidão – com uma ironia venenosa, complementou o autor de outro livro. E, se desejamos colocar de lado as piadas e os contos de fadas – desenvolveu a mesma ideia um terceiro autor –, então é necessário dizer direta e claramente que o homem criou um Deus exatamente tal e como criou livros e estátuas, cabanas e templos, pão e vinho, ciência e técnica; assim, a confusa questão sobre quem criou quem e com qual imagem o criou se resolve com uma verdade simples e clara: o homem criou a si mesmo e depois criou seu próprio autorretrato, chamando-o “Deus”. Assim, na forma de "Deus", o homem conheceu e amou apenas a si mesmo, pensando que conhecia um ente diferente de si; a religião, em suma, sempre foi apenas um espelho que reflete ao homem a sua própria fisionomia.

Porém, neste caso – se prende a esta explicação um quarto pensador – o autor da Bíblia tinha, em essência, total clareza; só que expressou a mesma ideia em relação às ilusões de seu século; sim, o homem realmente foi criado para ser representado no ícone, mas o ícone é somente um retrato do homem, criado pelo próprio homem. E se é assim, então não há nada de mal em que o homem pretenda imitar em tudo uma personagem desenhada no retrato. E o pintor, desenhando seu próprio retrato, cuidadosamente copiava nele somente as vantagens, somente os méritos do homem vivo, pecaminoso; e na forma de “Deus” o homem é representado exclusivamente a partir de suas melhores partes. “Deus” é somente um pseudônimo do Homem Ideal, o modelo poético-ideal do homem perfeito. O ideal que de si mesmo criou o Homem, o Objetivo Supremo do auto aperfeiçoamento humano... E todos os traços humanos ruins, os traços malévolos e sujeitos a superação, foram também retratados pelo pintor em outro autorretrato, chamado “Diabo”.

Assim, “Deus” não é a representação naturalizante do Homem terrestre pecaminoso e real, o qual é tanto “Deus” como o “Diabo” em uma mesma cara, em uma liga. “Deus” é o homem tal como deve ser ou converter-se, como resultado de seu próprio auto aperfeiçoamento; o “Diabo” é o mesmo homem tal como não deve ser, tal como deve deixar de ser, como resultado do mesmo processo de autoeducação, nomeadamente, o modelo humano da imperfeição e do mal.

Em outras palavras, “Deus” e “Diabo” são categorias, com a ajuda das quais o homem procura separar e diferenciar em si mesmo o bem e o mal, as verdadeiras perfeiçoes humanas dos atavismo de procedência puramente animal. Por isso é que, contemplando a imagem de “Deus”, o homem pode julgar sobre quais, precisamente, os traços reais de sua natureza ele valoriza e exalta (“deifica”), e quais odeia e deprecia como “diabólicos”, procurando superá-los em si mesmo.

Assim, embora o homem criou tanto o “Deus” como o “Diabo” e não ao contrário, não foi “Deus” quem criou e o “Diabo” quem corrompeu o homem – a lenda da criação e do pecado original do homem é uma obra artística de grande sentido poético, em cuja forma o homem fez a primeira tentativa de autoconhecimento, de diferenciar em si mesmo o bem e o mal, a razão e a insensatez, o humano e o inumano. De modo que não se deve simplificar a religião, com suas representações sobre o “divino” e o “pecaminoso”, sendo que basta reavaliar os contos de fadas antigos (não crendo neles ao pé da letra) em categorias morais humanas. É necessário compreender que, adorando a “Deus”, o homem adora o menor de si mesmo, que a religião criou na forma de Deus a imagem Ideal do perfeccionismo humano superior e no cristianismo o homem encontrou o Ideal humano superior, entendido por todos e por todos aceito. E os ateus procurando demonstrar que não há qualquer Deus, nem Diabo, resulta que prestam ao homem um mal serviço, o privando de critérios de discernimento entre o bem e o mal, entre o permitido e o proibido.

Pare! – responderam os ateus. Embora o resultado seja bastante lógico, não o é totalmente. Realmente, o homem projeta sobre a tela azul do céu somente suas próprias representações de si mesmo, sobre o bem e o mal, divinizando (quer dizer, relacionando-os com “Deus”) somente seus traços reais e julgando (quer dizer, declarando “alucinações diabólicas”) os demais. Em todo caso, o homem se viu obrigado, desde o início, a contrapor a si mesmo suas próprias forças ativas e suas capacidades, representando-as como forças e capacidades de algum outro ser, para vê-las como um “objeto” fora de si e valorizá-las criticamente, a fim de, adiante, apropriar-se somente daquelas que conduzam ao mal. Foi obrigado a isso, precisamente, porque outro espelho, fora da abóboda celestial, não existia ainda; e sem espelho, contemplar a si mesmo, evidentemente, é impossível.

Porém, não está de todo claro porquê e para que no sucessivo realizar do “autoconhecimento do homem”, baixou a forma do “conhecimento de Deus”. Para que olhar no espelho do céu quando já foram criados espelhos muito mais perfeitos e claros, que reflitam ao homem todos os detalhes de sua própria imagem? Claro, a religião somente é um espelho, porém um espelho primitivo e, portanto, muito opaco e, além disso, bastante curvo, cuja superfície, assim como a “abóboda celeste”, apresenta uma curva perversa. Este aumenta, aumentando-o até dimensões cósmicas, tudo que se reflita nele, e, como espelhos esféricos, inverte de cabeça para baixo o homem que nele se vê... este reflete de forma aumentada, de forma hipertrófica, tudo que diante dele se encontra e, até certo ponto, é parecido com um microscópio, que permite ver o que não é visível ao olho nu. Porém, o que é que entesoura o homem no cristal de microscópio tão original? O que é precisamente que vê na ocular?

O bem e o mal real em si mesmo, no homem real?

Se é esse o caso, então não havia que buscar melhor espelho que a abóboda celeste azul. O mal disso reside em que o refrator dos céus religiosos reflita não o bem e o mal real, somente as representações do próprio homem sobre o que é o bem e o que é o mal. E já isso não é nem remotamente a mesma coisa. O homem é capaz, por desgraça, de se equivocar tragicamente sobre isso. Então, o cristal de aumento da religião somente amplia as dimensões de seu erro.

A semente inadvertida e modesta do mal, tomada por seu embrião parecido do bem, cresce diante de seus olhos em montes inteiros de flores aromáticas. E, ao contrário, o gérmen débil e imaturo da felicidade humana, tomado equivocadamente por gérmen da erva daninha, se converte em grande cardo espinhoso, que destila o veneno do pecado e a perdição e – o mais trágico de tudo – o homem verá rosas paradisíacas ali onde afloram sólidos espinhos, e fugirá do aroma das verdadeiras rosas, convencido de que os sentidos o enganam, de que na verdade são somente alucinações diabólicas, tentações.

Não é isso que aconteceu com o cristianismo? Por acaso não rezaram os homens séculos inteiros diante da cruz – esse cadafalso bárbaro, onde crucificaram o homem, o “filho do homem”? Por acaso não choraram de comoção, vendo o semblante do “Salvador” emagrecido e coberto de suor crucificado, para alegria dos fariseus? Por acaso não viram eles neste quadro a imagem da suprema felicidade e honra divina? Viram e rezaram. A igreja cristã por séculos inteiros se esforçou em convencer as pessoas que o objetivo superior e a predestinação do homem implica na preparação para a vida depois da morte, até a vida eterna, para além do túmulo. O real está na sepultura. Para alcançar uma vida eterna de forma mais rápida e segura é necessário se comportar de acordo as formas e modos. Se está dado o objetivo do movimento, então haverá que escolher os caminhos a ele adequados: maceração da carne e suas tentações, renúncia à felicidade do “aqui”, submissão ao destino e ao poder dos possuidores, oração e jejum – o caminho mais seguro para a sepultura. Assim, o “melhor homem” foi ser o monge asceta em farrapos deploráveis, amarrados com uma corda, e a representação do “melhor homem”, poetizada pela fantasia, olhou aos homens desde todos os ícones com os tristes olhos do “Salvador” crucificado. O caminho até ele é o caminho até o Calvário, até o sofrimento redentor, até a autodestruição, a autoflagelação, até a liberação da sujeita e vilania da existência terrestre.

E nos longos séculos da Idade Média feudal o homem adotou o ideal cristão e as vias de sua realização, como a única imagem exata e possível da essência superior do mundo e da vida.

Porquê? Simplesmente porque a espécie sagrada do “Salvador” foi o espelho exato que refletia ao homem sua própria figura, exausta e coberta de suor pelo medo e sofrimento, a figura do “redimido” porque, tal como é o homem real, assim será seu Deus. Muito simples.

Sendo assim, os céus da religião refletem ao homem não como “deve ser”, mas como na realidade é. Com todos seus mais e seus menos. Porém, os menos se refletem em tal espelho não como menos, mas sim como mais, e vice-versa. Além disso, de modo algum aqui se escolhem os caminhos dependente do objetivo escolhido, mas, pelo contrário, o próprio objetivo se delineia em correspondência com os caminhos que tomou o homem: sua direção simplesmente abre caminho na fantasia até o final, até o ponto de alcance da visão.

Pelo ícone pode-se determinar com bastante exatidão como é o homem real e porque vias ele marcha em sua vida, até aonde vai. Se é necessário ou não ir nessa direção, o ícone não saberá. O ícone inclusive proíbe haver tal questionamento, pois é um ícone.

Ele servilmente reflete ao homem seu próprio rosto, se apresenta tal como é na realidade, porém – e aqui está sua astúcia – encerra seu reflexo na moldura dourada do respeito e da adoração. Por isso, os ícones e ideais da religião simples e simplesmente são uma forma da convivência estética-moral do homem consigo mesmo, quer dizer, com seus próprios modos de existência e visão atuais: são a secularização na consciência, na fantasia, na representação poética, do “ser presente” do Homem. Em forma de ícone, o ser atual e a consciência do homem se convertem em ídolo ao qual é preciso rezar e adorar, e se o ícone se converte ao olhos do crente em ideal, na imagem de um melhor devir, então o ideal, imperceptível para ele mesmo, se transforma em ídolo.

Tal é o mecanismo da “autoconsciência” religiosa, sua essência de modo algum resultado de erros e equívocos. Afinal, o mecanismo está montado com o cálculo de que o homem se veja a si mesmo como a um ser diferente, esquecendo-se de que vê somente a si mesmo.

Precisamente, nisso se encerra a “diferença específica” da forma religiosa de “autoconsciência” com respeito a quaisquer outras: na ausência de consciência sobre o feito de que, sob a forma de Deus, o homem vê sua própria imagem. Se a “especificidade” (a ausência de tal consciência) desaparece, então, no lugar da religião teremos diante de nós outra forma de “autoconsciência”, bastante parecida com aquela: a arte.

A arte também é um espelho. Até hoje o homem, por exemplo no teatro, representando-se na cena a si mesmo, comodamente sentado na plateia, se esforça em ver sua própria representação, algo assim como do outro lado, como objeto da conscientização e valorização. Conscientizando tudo que acontece na cena, ou na tela, toma consciência só de si mesmo e, tanto mais claro e melhor, quanto mais claro e melhor a tela lhe reflete seu próprio rosto.

Porém, diferente do espelho religioso, o espelho artístico não cria, pelo contrário, dissipa a ilusão fatídica. Este pressupõe diretamente que o homem se veja nele a si e somente a si mesmo. Por isso, a religião se enoja sempre com a verdadeira arte, com o espelho no qual se vê somente aquilo que realmente quer ver e conscientizar a si mesmo, e não suas fantasias.

Se o homem vai olhar o espelho, compreendendo que diante dele não há nada mais que um espelho, então concluirá: nenhum Deus, somente meu Eu vê aqui a mim mesmo através de um cristal transparente no quadro. E se não gosto da fisionomia do que vejo, significa então que Eu, em definitivo, não sou tal, nem como me tenho acreditado até agora, nem como quisera ver-me. Por isso, não acuse o espelho de inclinação traiçoeira para a falsificação, mas tente fazê-lo da maneira como queira ver. Assim, tanto no espelho da arte como no espelho da ciência, você se verá assim. Não antes.

E como você quer se ver?

Está aqui a dificuldade; isso não poderá lhe dizer um espelho verídico e sincero. Aqui se exige outro espelho, o qual apresentará o desejado por real, refletirá em sua superfície não a situação real das coisas, e sim os sonhos, e desenhará não um homem real, e sim seu ideal, um perfeito homem ideal, um homem, tal e como deve ser, de acordo com suas próprias representações de si mesmo.

Porém, por acaso, não havia pretendido fazer isso qualquer religião? Por acaso o homem do renascimento não encontrou precisamente nos deuses da Grécia, esculpidos no mármore, os traços dos “homens perfeitos”?

Ou pode ser que o ideal cristão foi só uma perda temporal, consequência de um erro trágico, o qual se pode retificar e daqui em diante não será repetido? Pode ser que os homens na forma de Jesus crucificado, deificaram em si mesmo não o que correspondia deificar? Pode ser que seja necessário desenhar um novo ícone, dar a si mesmo em forma figurada um novo ideal (protótipo do Homem perfeito) e imitar em tudo um novo Deus?

Muito mais se tais deuses (os traços belos, fortes, talentosos, autênticos do aperfeiçoamento humano) já foram criados alguma vez pela poderosa fantasia humana e traduzidos no mármore das antigas estátuas... As mesmas estátuas que o homem, começando a adorar um “Salvador” crucificado, tomou como representação dos traços preconceituosos e das tentações pecaminosas das bruxas. As estátuas que com braços quebrados e narizes quebrados, e até mesmo descabeçadas, eram humanamente belas. Poderia ser que o homem se empenhou em comparar em sua vida o que é belo, sábio e poderoso?

E, ao final do século XV e início do XVI, surgiu um novo ideal: o ideal do renascimento da beleza antiga, da força e da inteligência do homem. Nos deuses gregos os homens encontraram seu modelo, em Zeus e Prometeu, em Afrodite e Nice de Samotrácia. Significa então que no próprio homem se confundem as representações sobre o bem e o mal: em si mesmo o homem começou a tomar por belo o que antes se tomava como deformidade luxuriosa: por inteligência, o que até o momento se tratou como loucura pagã e deixou de tomar a debilidade por força e vice-versa.

Chocaram dois ideais (duas imagens, duas caracterizações, dois “modelos” do homem perfeito). Pela imagem de qual deles corresponde criar, ou mais exatamente, recriar o homem real, pecador?

Porém, em tal caso se pergunta: a que e a quem perturba a assinatura “David” no pedestal da estátua de Arcanjo Miguel, que apresenta o jovem belo, forte e sagaz? Aqui não ficaria da religião somente nomes e denominações? E então, que diferença há? Em que se diferencia neste caso – por sua tarefa real e suas funções – um reflexo de tal arte de um ícone? Ao fim e ao cabo, por acaso não pendurou a Madonna Sistina(2) por séculos inteiros no altar da velha igrejinha, antes de mudar sua moradia para uma mais clara e cômoda? Mudou algo nela quando abandonou o serviço em uma instituição religiosa, para trabalhar em um museu de pintura?

O principal, raciocinaram os pensadores, não são os nomes nem as denominações, gravados nos moldes dos ícones. O principal é a compreensão ou não de que nos ícones está representado o Homem, o próprio Homem e de nenhum modo um ser existente fora ou antes sob o nome de Deus. O principal é compreender que Deus é somente um sinônimo e um pseudônimo do Homem com maiúscula, do homem ideal, por cuja imagem corresponde adiante formar a dos homens.

Em resumo, se compreendermos corretamente a religião, quer dizer, não como meio de conhecimento de Deus, mas sim como meio de autoconhecimento do Homem, então tudo se situa em seu lugar. Para que, então, hão de lutar a arte e a ciência contra a religião? Faz falta simplesmente dividir de forma racional as obrigações: a ciência e a arte sobriamente irão refletir o que há, e a religião e a arte orientada aqui à mesma área refletirão o que deve ser, quer dizer, criar ao Homem um ideal de seu próprio auto aperfeiçoamento.

Que diferença existe entre batizar esse ideal com um nome tomado emprestado da bíblia, dos santos ortodoxos ou de um calendário sem santos? O importante é que o ideal foi desenhado em essência corretamente para dar ao Homem uma direção exata nos caminhos do auto aperfeiçoamento moral, físico e intelectual e não o condenar (como no passado o cristianismo) à degradação voluntária, à decadência física e intelectual. Chamá-lo divino ou não, é indiferente do todo.

Pareceria que tal raciocínio poderia satisfazer totalmente à religião: a ela seria atribuído um papel do todo honorável e respeitável na divisão do trabalho. Porém, a colaboração – não se sabe porque – não ocorreu. A religião, com indignação, rechaçou a nova explicação de seu papel e se negou a cumprir a responsabilidade proposta a ela. Porquê? O que precisamente não lhe satisfazia do raciocínio alegado e de suas conclusões? Por acaso ela na prática não julgava, até o momento, em papel indicado, independentemente de suas próprias ilusões? Ou não será que esta explicação não abarca, quanto aos mecanismos da autoconsciência religiosa, algo muito importante e principal, sem o qual não haveria religião?

Certamente, alguma coisa não estava abarcada. E a religião, se negando aos papéis e as funções propostas por gente benévola, estava certa. Ela se entendia a si mesma melhor que seus intérpretes. O segredo consistia somente em que a religião nunca julgou nem podia julgar aquele papel que a atribuía gente tão benévola. Ela julgava precisamente um papel contrário, e para o desempenho deste último foram adaptados todos os mecanismos de seu sistema reflexo.

E é, precisamente, isto: todo o sistema de imagens religiosas em nenhum momento desenhou ao Homem tal e como “devia ser” ou “devia transformar-se”, como resultado do auto aperfeiçoamento. Ao contrário, ela – a religião – o desenhava tal como era e como devia manter-se. Ela sempre dava o “ser atual” do Homem por ideal, mas além dos limites máximos de qualquer aperfeiçoamento possível, no qual o Homem não deve e não pode entrar. Representando o Homem, a religião o representava não como Homem, mas sim como Deus, como um “ser supremo” fora do Homem, antes do Homem e sobre o Homem, ditando ao Homem precisamente aquele modo de existência que ele até o momento havia praticado.

Do ponto de vista da religião, o Homem com maiúscula não pode e não deve se ocupar de nenhum tipo de “auto aperfeiçoamento”. Auto aperfeiçoar podem e estão obrigados a fazê-lo, somente os “homens” em separado. Estes estão obrigado a se esforçar em parecer como a imagem do Homem, que aqui se dá – sob o nome de Deus – um ideal eterno, imaculado e que não dá lugar a dúvidas, a um padrão de perfeição. E o padrão, de acordo com seu próprio conceito, não se deve caminhar neste sentido, o padrão cristão de perfeição é parecido com aquela régua de platina(3), conservada em Paris, que se chamou “metro”.

A religião sempre se opôs – como a uma heresia mais terrível – à tese de que Deus foi criado pelo Homem a sua imagem e semelhança. Já que em tal caso o Homem, se transformou por si mesmo, se se compreendeu melhor (mais exatamente: quando antes encontrou a medida de sua própria perfeição), estaria no direito de “definir” também seu padrão. Então, estaria no direito de recriar Deus, no direito, inclusive, de trocá-lo por um mais conveniente, de escolher Deus pelo seu tamanho, construir um novo modelo de perfeição.

Por isso, como forma de ideal religioso, ao Homem se propõe a imagem de seu próprio passado. A religião sempre relacionou o “Século de Ouro” com o passado. Em outras palavras, os mecanismos da consciência religiosa, em essência, estão adaptados para representar o dia de ontem como o exemplo, e o de hoje como o “passado corrompido”, como resultado da “queda” do homem de Deus.

Por isso, se inclina ao temperamento religioso aquela gente que – a força de umas ou outras causas – os toca viver dia após dia cada vez pior e pior, precisamente aquela gente, a qual o “progresso” não lhe traz qualquer coisa, que não seja infelicidade. E têm razão: para eles ontem era melhor que hoje e sonham em ter um futuro parecido com o passado. Sua justiça reflete precisamente a religião, e o ideal religioso é somente o dia de ontem idealizado.

“Idealizado” significa aqui representado unicamente a partir dos “mais” e meticulosamente desprovido de todos os “menos”, sem os quais os “mais” – sim! – não puderam nem podem existir. A força das particularidades do ideal religioso, este sempre engana terrivelmente os homens. O intento de formar o futuro segundo a imagem de um passado idealizado leva a que, junto com os desejados “mais”, o Homem – queira ou não queria – reproduz os “menos” em uníssono e inseparavelmente unidos a aqueles...

Assim ocorre, inclusive, quando na qualidade de ideal se tomam imagens realmente belas e humanamente enganadoras do passado, por exemplo, os deuses antigos. Esboços ideais da beleza humana, da força e da sabedoria. Os homens do renascimento não compreenderam bem aquela circunstância infeliz, de que “reviver” os antigos deuses, quer dizer, formar uma imagem do contemporâneo à imagem e semelhança de Zeus e Prometeu, Afrodite e Nice, é impossível sem reproduzir também todas aquelas condições, cujo solo estes deuses puderam respirar e viver: em particular, sem estabelecer o escravismo, a massa de “instrumentos falantes”, em virtude dos quais viveram e criaram suas obras os verdadeiros artífices das estátuas de Zeus e Prometeu, aqueles homens que criaram os deuses antigos a sua imagem e semelhança. Quer dizer, sem reproduzir aquelas mesmas condições, as quais, criando os deuses, ao mesmo tempo os matava e crucificava na cruz da nova fé.

E o homem teve de pagar caro pelo conhecimento cuja conclusão era uma simples e clara verdade: se quer marchar adiante, separa de ti todas as ilusões do ideal religioso, não importa quão enganoso e maravilhoso foi. Não busque o ideal no passado, inclusive no mais belo. O resultado é mais trágico quanto mais belo parece ser. Estudar o passado não somente do lado dos “mais”, mas também do lado de seus inseparáveis “menos”, quer dizer, não idealizar o passado; investiga-lo objetivamente.

E o ideal, quer dizer, essa imagem em correspondência com a qual você quer conformar o futuro, dito de outra forma, em correspondência com a qual você deve atuar hoje, busca-lo por outra via; por qual?

Não vamos fantasiar. Podemos revisar a experiência que o homem já acumulou. Revisemos a história do ideal do renascimento, sua evolução na consciência dos povos da Europa. Ela é, a propósito, muito instrutiva.

Quando sobre a Europa, despertando do meio milênio repleto de pesadelos medievais, brilhou o maravilhoso sol do Renascimento, começou a se ver muito de outra forma, diante dos olhos das pessoas. A ordem terrena da sociedade feudal, assim como seu reflexo nos céus da religião, deixaram de parecer aos homens como algo que por si só se sobreintendia. E os ânimos antifeudais se expressaram sobretudo na crítica da religião.

Sob a luz do claro sol matutino, os homens perceberam de forma completamente diferente a reprodução em cera do “Salvador”, crucificado sobre uma construção de madeira, cheirando a pó e incenso. “O Salvador”, mas agora não na cruz do Calvário, e sim nos braços atentos e sensíveis de sua mãe, na imagem de um lactante roliço e saudável, que não suspeita os sofrimentos que lhe espera no futuro. Na forma de um lactante do qual muito bem pode crescer tanto Héracles quando David, ou um novo Prometeu...

Seus olhos de novo viram o mármore lavado do Panteão, a beleza eternamente jovem de Afrodite e Apolo, de Héracles e do Discóbolo, de Diana a Caçadora e do poderoso Ferreiro Vulcano. O homem de novo começou a disparar as flechas de seu sonho para voar até o sol nascente, para reinar sobre as ondas azuis do mar Mediterrâneo, respirar ar puro, para se deleitar com o poderio de seu pensamento, de suas mãos, de seu corpo saudável não arruinado pelo jejum e pela oração.

O jovem e inspirado século do renascimento transmitiu o bastão do sonho ao século de Descartes e Espinoza, de Rousseau e Voltaire, ao século da fundamentação estrita do sonho maravilhoso e este formulou teses exatas em relação ao futuro e os ideais humanos.

Contra o ideal espiritualista medieval – do espírito imaterial – ele avançou seu terreno ideal e pletórico: não há Deus, não há Paraíso, não há Inferno! É o Homem, filho da natureza e é a natureza. Depois da sepultura, depois da morte, para o Homem não há qualquer coisa. Por isso, o ideal deve ser traduzido aqui, na Terra.

Os pensadores mais consequentes formularam assim: a vitalidade pletórica, terrena, de cada homem vivo. Que cada qual faça o que está capacitado pela natureza e se deleite com os frutos de seus atos. A mãe-natureza é a única legisladora e a única autoridade para o Homem, seu filho querido; em seu nome anuncia ao homem as leis da vida; somente a Ciência, o Pensamento autoconsciente, que não reconhece qualquer outra autoridade, que descobre as leis da natureza, não a Revelação, que prega desde os púlpitos e desde as páginas das Sagradas Escrituras.

E se o ideal não é um sonho inútil, não é um desejo impotente, então ele deve expressar algo real, sensível e terreno. O que? Os desejos e necessidades naturais, quer dizer, próprios de cada homem ao nascer, de um corpo saudável e normal: a “natureza humana”.

O ideal expressa as necessidades naturais da “natureza humana” e, por isso, tem ao seu lado todas as potentes forças da Mãe-Natureza. Estudem a natureza, estudem o Homem e vocês obterão o conhecimento do que ela quer e onde tende, quer dizer, desenhem o verdadeiro Ideal, o ideal do Homem e daquele regime social que ele corresponde.
Com essa resposta se satisfizeram os pensadores mais consequentemente, os materialistas do século XVIII: La Mettrie, Helvecio, Holbach, Diderot. E a resposta por eles oferecida se mostrou clara para cada um de seus contemporâneos, sobrecarregados pelo peso “não natural” do Estado feudal e da Igreja: por satisfazer precisamente o júbilo deformado e antinatural da corte monárquica e do bando clerical burocrático, na maioria das nações se suprimiram os mais naturais direitos e valores: tanto o pão, como a liberdade de se valer de suas próprias mãos e sua própria cabeça, como a liberdade de falar o que pensa e considera correto. Se somente os direitos naturais fossem pisoteados pelo rei, a burocracia e a Igreja! Que tipo de paraíso poderia ter sido estabelecido no benéfico solo da França!

E então se fundou um novo ideal, em uma fórmula enérgica e por todos compreendida, em um lema de combate: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade!”.

Que cada homem faça o que queira e possa, ao que foi definido a natureza, somente que não leve a desgraça de seu irmão do gênero humano, que não prejudique o direito de outro a ter o mesmo! Se isso não existe, pois deve existir!

E ocorreu o milagre. Caíram estrepitosamente sobre a terra da França os potentes trovões de La Marseillaise; os golpes devastadores dos tiros de canhão derrubaram as paredes das inumeráveis Bastilhas; se dispersou por todos os lados a manada de pontífices e burocratas e o povo elevou ao céu a bandeira tricolor da liberdade, igualdade e fraternidade.

O ideal – deveria! – foi mais forte que “o existente”, apesar de que o “existente” estava protegido por todo o poder do Estado e da Igreja, pelos bastiões das fortalezas e os cárceres, pelas baionetas dos soldados e as plumas dos acadêmicos científicos, apesar de que estava firmemente acorrentado pelas correntes de costumes e tradições milenares, santificado pela moral religiosa, pela arte e o direito, estabelecidos em nome de Deus.

Porém, rapidamente se descobriu que o ideal se realiza na Terra de forma não tão simples nem tão rápida, como pensaram seus autores. Os acontecimentos começaram a tomar um giro inesperado.

Não estava reparando os muitos movimentos ruins. Porque o ideal do homem livre de toda corrente artificial, que toma consciência de si mesmo como igual em direito entre irmãos de gênero, tão claro e compreensível a cada um, não se alcança de qualquer forma realizado até o final entre os homens de carne e osso? Porque o ideal, tão humano e maravilhoso, marcha pela Terra entre montanhas de cadáveres, cobertos de pólvora? E porque os correligionários e irmãos passados do ideal se convertem rapidamente em inimigos de morte e se enviam uns aos outras para a guilhotina?

Para muitos poderia satisfazer esta resposta: é demasiado forte a resistência do velho mundo, demasiado profunda a perversão dos homens por milênios de escravidão corporal e espiritual, demasiado forte o poder passado sobre suas consciências. Se corromperam e contagiaram, inclusive aqueles que pareciam a eles mesmos e aos demais heróis cristalinamente limpos da liberdade, igualdade e fraternidade – inclusive Dantón, Robespierre, inclusive Saint-Just, o “Apóstolo da Virtude”!

E os acontecimentos se tornaram cada vez mais maleáveis e trágicos.

“Os reis, aristocratas e tiranos, independentemente da nação a que pertençam, são escravos que se revoltam contra o soberano da Terra, isto é, a humanidade, e contra o legislador do universo, a natureza!”(4) exclamou Robespierre.

“Cortem a cabeça do terrível tirano Robespierre, inimigo e monstro do gênero humano!” – continuaram a vociferar sua oposição, e a cabeça rolou para a cesta ensanguentada.

A bandeira tricolor do ideal escapou de suas mãos para o conselho, o que também foi débil para sustenta-la levantada. Então, a apanhou o oficial de artilharia Napoleão Bonaparte. Ele elevou ao alto a ondulante bandeira e conduziu o povo atrás dela com o estrondo e a fumaça das batalhas... E, uma bela manhã, os homens viram com assombro que sob a capa do oficial revolucionário se escondia um velho conhecido – o monarca. Viram que, andando meio mundo sob o rufar dos tambores, retornaram ao lugar de onde saíram em 1789, viram que de novo, como antes, rodeavam a corte do imperador Napoleão I rapazes burocratas, funcionários, pontífices mentirosos e damas libertinas aos que, de novo, haveria de entregar o último centavo, o último pedaço de pão, o último filho.

O povo trabalhador da França se sentiu duplamente enganado. De ano em ano engordava e se tornava mais voraz o novo dono da vida – o especulador, o banqueiro, o burguês industrial. Este recebeu da revolução e da contrarrevolução tudo que necessitava: completa liberdade de ação. E soube utilizá-la para refazer a vida do país segundo o molde de seu ideal, de seu Deus – o ouro, o dinheiro permanente e sonoro – adquirido às custas de outros.
O que havia acontecido? Por acaso o maravilhoso ideal da Ilustração foi somente uma miragem, um conto de fadas, um sonho irrealizável na Terra? Por acaso a vida, a prática, a realidade, o “existente” do novo foi mais forte que o ideal? Aparentemente foi assim.

E sobre o solo desta decepção, sobre o solo do sentimento de total impotência dos homens diante do mundo criado por eles mesmos, de novo como ano passado, floresceram as flores venenosas da religião, de novo gargalharam os pontífices sobre a banalidade das esperanças da felicidade terrena.

Para alguns se alcançava então a valentia moral e intelectual para não cair em arrependimento ao pé da cruz, conservar a fidelidade dos ideais da Ilustração. Salpicados pelas provocações desdenhosas dos bem alimentados oportunistas, escravos sensatos do “existente”, viveram e pensaram nestes anos Henri de Saint-Simon e Charles Fourier. Mantendo-se fiéis aos princípios fundamentais do pensamento dos ilustradores, estes homens teimosos e impacientes pretenderam encontrar e apontar para a humanidade as vias do futuro maravilhoso.

A conclusão, a qual chegaram eles – herdeiros da filosofia avançada da França –, como resultado da análise da situação criada, coincidia com a solução do inglês prático e sóbrio Robert Owen. Se eles estão no caminho da razão e da ciência, e se a liberdade e a igualdade não são palavras vazias, então, a única salvação da humanidade da degradação espiritual, moral e física que a ameaça era o socialismo.

A humanidade foi colocada pela história diante de uma alternativa áspera e inexorável: ou o homem se conforma com o serviço escravizador da propriedade privada, este novo e desalmado Deus, e então estará condenado a uma selvageria ainda mais horrível que a medieval, ou usa a inteligência e organiza a vida sobre princípios radicalmente novos, realmente, e não em palavras, se organiza em um coletivo humano amigável. A liberdade, a igualdade e a fraternidade são reais somente em combinação com o trabalho racionalmente organizado. A organização do trabalho, a organização da indústria – e aqui está a chave para todos os problemas da vida.

“Os filósofos do século XIX deveriam se unir para demonstrar multilateral e totalmente que sob o estado atual de conhecimentos e civilização somente os princípios industriais e científicos podem servir de fundamento para a organização social [...]” – proclamou Saint-Simon.

Em que consiste, afinal, essa “natureza humana”, de acordo com a qual corresponde reorganizar o presente e organizar o futuro? Ora, no raciocínio de Saint-Simon aparece um novo fundamento em relação a seus predecessores ilustrados: a “natureza humana” em nenhum momento é algo invariável, dado de uma vez e para sempre pela Mãe-Natureza. Ela constantemente se desenvolve, mais exatamente, sua essência consiste no desenvolvimento permanente, na troca daquilo que foi dado ao homem pela natureza.

Para onde, em que direção? Para o “aperfeiçoamento superior das forças físicas e morais, para o que está capacitada somente a organização humana” – tal é a fórmula de Saint-Simon. Este não é um raciocínio filosófico abstrato, é simplesmente um feito do qual pode dar conta a observação da vida, tanto de um homem em separado como de povos inteiros.

Acontece que é necessário olhar para a sociedade sobretudo como um sistema de condições externas, dentro das quais ocorre o “aperfeiçoamento” de todas as forças intelectuais, morais e físicas. As capacidades ativas do indivíduo humano. O sistema social será mais perfeito na medida que garanta de modo mais íntegro o florescimento de todas as forças humanas individuais, o desenvolvimento de todas as possibilidades contidas no homem e enquanto abra às massas cada vez mais amplas o vasto espaço para tal desenvolvimento autenticamente humano.

O próprio homem, o indivíduo humano vivo, é a única medida pela qual se pode e se deve medir tudo o mais. Ao homem, afinal, não se deve agregar qualquer outra medida “exterior” em relação a ele, por mais bela e exata que pareça, afinal ela sempre será extraída do passado.

“Até o momento os homens caminharam pela via da civilização, retrocedendo para o futuro: sua visão era normalmente dirigida ao passado, e ao futuro eles lançavam somente olhadas raras e superficiais”. A genialidade de tal giro de pensamento consistia em que o tom agora se colocava não sobre as condições da atividade do homem acabado e formado, e sim sobre as condições de seu desenvolvimento, de seu devir, de seu futuro, ao qual sempre, em cada momento dado, estava por vir. Por isso é que o ideal não se pode dar ao homem como um desenho acabado, como um ícone, e os padrões terão que ser medidos pela medida do aperfeiçoamento do homem vivo, que desenvolve permanentemente suas possibilidades.

Esta ideia genialmente simples cortava pela raiz os princípios mais vitais do “ideal” religioso, não importa com que roupagem se enfeitava, ao que para nada molestava a circunstância de que tanto Saint-Simon como Fourier e Robert Owen não tinham qualquer coisa contra o flerte, de tempos em tempos, com termos tais como “Deus”, “Religião”, “Paraíso” e outros parecidos. Assim tão simplesmente não se pode enganar a religião.

Saint-Simon e Fourier desinteressadamente propagaram seu ideal, apelando para a “razão” e ao sentimento de “justiça” de seus contemporâneos. Porém, suas ideias geniais apenas se arrastaram naquela época. Aos ouvidos do povo suas vozes não chegavam, e no “ilustrado” e bem alimento público suas ideias despertavam somente irritação e provocações. O zumbido dos órgãos e orquestras de cobre, adorando os deuses celestiais e terrestres, se ouvia cada vez mais alto. A tragédia dos socialistas utópicos foi uma típica tragédia de heróis que chegaram muito cedo ao mundo. E, não casualmente, os ideais de Saint-Simon e Fourier nas mentes de seus discípulos e seguidores rapidamente adotaram uma forma caricaturesca, começaram a lembrar com muita força os ideais do cristianismo (tanto queriam os discípulos realizar estes ideais compreensíveis e exequíveis para um povo educado do Evangelho!), e as organizações de saint-simonianos e fourierianos pareciam por sua vez seitas religiosas... A ideia essencialmente nova – a ideia do socialismo – para ser compreensível preferiu aparecer diante dos homens nos trapos remendados de um “novo cristianismo”.

Parecia que se afogava mais uma nobre iniciativa. E o ideal da Ilustração de novo se convertia em ícone, um ídolo crucificado.

Porém, a vida do ideal do Renascimento e da Ilustração não havia acabado. A verdade é que teve por algum tempo que se mudar do solo da França ao céu sombrio da filosofia alemã, para, aspirando o ar das alturas especulativas, de novo regressar à Terra já com outro semblante.

Observando com seus próprios olhos as desventuras terrenas do belo ideal, os homens não podiam compreender exatamente as raízes terrenas destas trágicas desventuras. E sem compreende-las, de novo começaram a busca-las atrás das nuvens. A lição não foi suficientemente instrutiva e foram necessárias novas desventuras e novos esforços do pensamento para que as raízes terrenas das desvantagens terrenas fossem ao fim assimiladas.

Enquanto os franceses faziam seu trabalho, os alemães atentamente observam por trás deles e filosofavam. O ideal dos franceses foi adotado por eles, imediatamente e sem restrições, de todo coração: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. O que pode ser mais desejado e melhor? O objetivo era maravilhoso e cativante. Porém, há aqui os meios... Os alemães não gostavam dos recursos utilizados em Paris e não se atreviam a imitar os franceses. A guilhotina, os tiros de canhão contra homens vivos, o fratricídio, as matanças sangrentas eram para eles pouco sedutoras.

Na velha Universidade de Köninsberg, vivendo sua ordenada e virtuosa vida, obstinadamente refletida sobre a situação criou um dos cérebros mais sensatos da Europa de então: o filósofo Immanuel Kant. Ele também se emocionou com o ideal francês: os sonhos sobre a comunidade unida de homens inteligentes, bondosos e justos uns com os outros, que respeitam a dignidade humana em cada próximo, sob o reino da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Porém, Kant viu bem que o belo ideal na vida real de cada ser vivo e de povos inteiros se choca com as forças associadas do egoísmo, do interesse particular, da vaidade, dos preconceitos, da estupidez e avareza, dos fechados interesses individuais e corporativos, das paixões e temores, das tradições e costumes, quer dizer, com toda a força retrógrada da "realidade empírica”, do “existente”. E na Alemanha de então, que não era mais que uma grande província da Europa – mais exatamente, um monte de províncias, carentes de uma única capital, de leis únicas, de ideais e estados de ânimos únicos –, a correlação de forças entre o “ideal” e o “existente” estava muito longe de favorecer o ideal. O ideal de liberdade, igualdade e fraternidade aqui não tinha naquele momento qualquer esperança de vencer em luta aberta.

E a seus partidários lhes restava somente refletir, pensar, comparar, analisar e fazer tudo para que rapidamente crescessem as forças capazes de submeter o “existente”.

E assim ocorreu que, adotando todas as premissas gerais da Ilustração francesa, os alemães procuraram teoricamente, no papel, confrontá-las com as forças do “existente”, quer dizer, repetir na teoria tudo o que os franceses procuraram realizar nas ruas com as armas em mãos, para ver o que passava, quais armadilhas e ratoeiras prepara para o ideal o terrível “Existente”. Eles sonharam fazer o ideal mais sábio e perspicaz que na França. “Tal ordem eu acho plenamente razoável” – disse mais tarde Heinrich Heine. As cabeças que a filosofia utilizou para o pensamento podem ser cortadas depois pela revolução – continuava ele; porém, a filosofia de nenhum pode poderia utilizar para seus objetivos cabeças que foram cortadas por uma revolução precedente.

Kant se preocupou principalmente em definir a composição do próprio ideal, delinear mais exata e concretamente aquela “natureza humana” secreta, cujos interesses o ideal representava.

Os filósofos da Ilustração francesa estavam absolutamente determinados, quando começaram a ver o Homem como “finalidade suprema”, como “fim em si mesmo”, e rejeitaram a visão que o considerava “meio” de realização de tantos objetivos “externos” e “forasteiros”, não importa quão elevados e nobres fossem. Ao Homem não se pode ver como um joguete, como um instrumento, como uma marionete nas mãos de alguém situado fora de si – seja do papa, do rei, do dono do poder, dos bens, do ouro ou dos conhecimentos. Incluindo também o Deus-Pai “externo”, sentado no trono celestial. Kant foi suficientemente ilustrado e clarividente para notar de qual foi o protótipo real na Terra da qual foi modelada a imagem do caprichoso e obstinado Deus bíblico.

Porém, os ilustradores materialistas, continuava Kant em sua análise, raciocinaram igualmente mal, quando no lugar da inquestionável autoridade do Deus-Pai colocaram a também inquestionável autoridade da Mãe-Natureza: um mundo “exterior” ao qual, como partícula sua, pertence o corpo do próprio homem, à custa da fome e do frio, impotente diante de seus próprios desejos e sofrimentos: por isso, em princípio, é egoísta e interesseiro. Assim, se deduzimos o ideal das necessidades naturais do corpo humano, então o homem de novo seria somente um escravo, somente um joguete ao serviço de “circunstâncias externas”, da força de sua pressão, somente um grão de pó no redemoinho da cega espontaneidade... Em tal caso, nada de falar de “liberdade” do homem. O homem foi somente um “meio falante” de suas necessidades orgânicas e suas paixões, somente um ponto onde recaem as forças da necessidade cega, que não é melhor e não é mais digno que aquele que é escravo de Deus. A diferença em tal caso foi somente na denominação, no nome do “senhor externo”. Não é por acaso que se chama Deus ou Natureza!

Tanto nesse como em outro caso o homem termina como escravo de forças externas a ele e diretamente escravo e instrumento (“meio”) de outro homem, daquele que se dá o direito de intervir em nome e por indicação destas forças, e intervém como “intermediário” entre Deus ou a Natureza e o homem.

Assim, o ideal, quer dizer, a representação sobre o objetivo supremo e a predestinação do homem na Terra, é impossível deduzi-lo do estudo da natureza, das suas cegas ligações causa-efeito. Afinal, o mais correto seria simplesmente se subordinar à pressão das “circunstâncias externas” e necessidades orgânicas de seu corpo, amarrado como uma ligação à cadeia e ao circuito das circunstâncias. O físico, o matemático, o anatomista e o fisiologista, no melhor dos casos, podem recompilar em seus termos o homem tal qual é, porém, não podem mostrar-lhe como deve ser e a que imagem deve procurar parecer... Precisamente por isso é absurdo, no lugar da autoridade do Papa romano, procurar a autoridade de Newton, La Mettrie ou Holbach. Sobre como “deve ser” o homem, a diferença de como “é”, o melhor naturalista pode dizer tão pouca coisa como qualquer sacerdote provincial. Da matemática, da física, da fisiologia, da química, é impossível deduzir qualquer representação sobre a finalidade da existência do homem no mundo, sobre a predestinação do homem.

O homem, continua Kant, é livre se age e vive em correspondência com o objetivo que ele mesmo traçou, eleito em um ato de “livre autodeterminação” e não com o objetivo que alguém lhe impõe de fora. Somente então ele será Homem e não um instrumento passivo de outro homem ou da pressão de circunstâncias “externas”. O que é, então, a liberdade? A ação em correspondência com um objeto, quer dizer, apesar da pressão das circunstâncias “externas”, as quais pertencem também as necessidades “egoístas” da própria carne, partículas da natureza.

De outra forma o homem não se diferenciaria em nada de qualquer animal. O animal, obedecendo as necessidades orgânicas de seu corpo, se preocupa somente com sua satisfação, pela auto conservação, por si mesmo e por seus filhotes. Não se preocupa com nenhum “interesse geral da espécie”. Os “interesses da espécie” se realizam aqui como um produto colateral completamente imprevisto e inesperado, como a “necessidade cega”, como um resultado mediatizado da luta de todos contra todos pela sua existência individual, pelos seus objetivos egoístas.

E o homem se destaca do mundo animal somente por perseguir os “interesses da espécie” (“do gênero humano”) plenamente consciente, convertendo em seu objetivo seu próprio “gênero”, os interesses do Homem com maiúscula, e não os interesses de sua pessoa: de Fritz, John ou Jean Adam Adamovich.

Acontece que a liberdade coincide com a consciência correta do fim da espécie como uma auto finalidade. Em cada homem em separado a consciência deste fim aparece por si com a própria consciência, com a conscientização de qualquer outro homem é também um Homem.

Por isso, cada homem em separado atua como Homem somente quando e somente aí, quando e onde ele conscientemente, quer dizer, livremente, aperfeiçoa sua própria espécie. Pois nesse objetivo ele está sujeito permanentemente, a cada passo, a reprimir em si os motivos “egoístas”, animais, as necessidades particulares de seu Eu e, inclusive, a atuar diretamente contra os interesses do próprio “Eu empírico”. Assim atuaram, por exemplo, Sócrates, Giordano Bruno e outros heróis parecidos, os quais voluntariamente escolheram a morte, a destruição de seu Eu individual como única via e modo de conservar e reafirmar na consciência de todos os demais homens seu “melhor eu”, aquelas verdades que eles descobriram não para eles pessoalmente, e sim para a humanidade...

Aqui diretamente se esclarece o ideal da ética kantiana: o auto aperfeiçoamento moral e intelectual de cada homem, quer dizer, a conversão de cada homem em um abnegado, desinteressado e bondoso companheiro e colaborador de todos os demais homens, aos quais verão não como meios para a satisfação de fins egoístas, mas sim como finalidade de suas ações individuais. Neste plano moral, Kant reconsiderou o Ideal da Ilustração. Quando cada homem sobre a Terra (em princípio, embora fora da Alemanha) compreenda que o homem é irmão do homem, igual a ele em relação aos seus direitos e deveres, relacionados com a “livre expressão da vontade”, então o ideal dos franceses triunfará no mundo e sem ajuda de tiros e guilhotinas, de conselhos de salvação social e outros meios parecidos. E não antes, como se para a realização do ideal se tomam homens que não sabem reprimir em si o egoísmo, o interesse, a vaidade e motivos semelhantes de ações em nome do dever perante a humanidade, considera Kant, então nada de bom se obterá.

É impossível negar a Kant a nobreza de seu pensamento e a lógica de seus raciocínios. E muito mais. O decorrer dos acontecimentos na França confirmava, ao que parece, todos seus mais tristes temores...

Auto aperfeiçoamento moral? Se esse foi o que pregou por milênios inteiros a Igreja, aquela mesma Igreja que na prática propiciou a corrupção moral dos homens, convertendo cada homem em uma besta submissa aos deuses celestiais e terrestres, em escravo de príncipes seculares e eclesiásticos! Exatamente, raciocinou Kant. Porém, isso significa somente uma coisa: que a própria Igreja “desfigurou” o verdadeiro sentido moral de sua doutrina. Por isso é necessário restituí-la, reformar a fé, continuar e aprofundar a reforma de Lutero. Então, a própria Igreja proclamará aos homens desde seus púlpitos o ideal de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Porém, não na forma francesa de expressão (afinal, tal forma, que Deus não quer, pode ser tomada como um chamado de assalto contra o “existente”, a imediata realização do ideal pela via da revolução, pela via de uma violência sangrenta sobre o próximo!), mas sim como princípio superior da moral humana universal, como postulado ético, coincidente com aquele que se pode (se assim quiser, naturalmente) ler na Bíblia. Na Bíblia está dito: “Assim, todas as coisas que quiseres que os homens façam com vocês, assim também faça com eles; porque isso é a lei e os profetas” (Mateus).

Assim nasceu o mundialmente conhecido “imperativo categórico”:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal”(5).

Em essência, se trata aqui do princípio fundamental da legislação revolucionária francesa, formulada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, expresso em alemão:

“A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”(6).

Essa mesma forma de expressão se parece, sobretudo, à pregação evangélica. E tal forma, por um lado, permitiu abertamente propagar o ideal democrático nas condições do domínio pleno da Igreja e a censura principesca sobre as mentes dos homens e, por outro, ensinou os homens a olhar a legislação como algo derivado da moral, da vergonha, do cumprimento voluntário do dever, e não como a causa principal das desgraças, a qual é necessário trocar primeiro.

Com este triste pensamento, Kant também “agrupou” o ideal da Ilustração com o ideal do cristianismo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com o Sermão da Montanha, Robespierre com Cristo... Como resultado, no princípio “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” foi recortada sua aresta abertamente política e o lema combativo que levou os parisienses ao assalto da Bastilha foi corrigido de tal forma que se converteu em um chamado ao auto aperfeiçoamento moral, em um bom desejo, no princípio da “boa vontade”...

E de todas as formas o ideal da Ilustração, despojando-se da toga ensanguentada do assassino – tirano – republicano da antiga Roma e vestido com um casaco limpo de professor moralista da escola, estava vivo. Por isso, todas as mentes avançadas da Alemanha de então viram na Crítica da Razão Prática o evangelho da nova fé: a fé no homem sábio, bom e orgulhoso como o único Deus da Terra. Assim entenderam Kant todos os seus brilhantes contemporâneos: tanto Fichte, como Beethoven, Schiller, Hegel, Schelling e Goethe.

Porém, os discípulos foram logo além do professor. O kantiano Fichte admitiu, na qualidade de meio “legal”, também a violência – não convém esperar que o ideal da ética kantiana alcance o último príncipe e sacerdote. É suficiente que se apodere da maioria da nação e aos teimosos ortodoxos da velha fé se pode e se deve – para seu próprio bem e para o bem geral – submeter pela força a subordinação de suas exigências. Schelling e Hegel tampouco rechaçaram a violência – somente sem os “extremismos” jacobinos, sem o terror sangrento, sem a guilhotina e outros brinquedos suaves. A encarnação terrestre do ideal para Hegel se fez em Napoleão, comandante Chefe do exército da Revolução, herói da Terceira Sinfonia de Beethoven:

Eu vi o Imperador – esta alma universal – cavalgando pela cidade para um reconhecimento. É realmente uma maravilhosa sensação ver tal indivíduo, que, concentrado aqui em um único ponto, montado em seu cavalo, alcança e domina todo o mundo(7).

O ideal estava traçado, o fim claro e o pensamento se concentrava agora com mais frequência na busca dos modos de sua realização. Para muitos lhes parecia que a questão agora consistia não tanto na investigação da verdade, como na propaganda e divulgação dos princípios já formulados definitivamente por Kant. Uns depositavam suas esperanças na força da arte, outros no pathos do exemplo moral pessoal. A fria racionalidade, como aço, dos julgamentos kantianos parecia já ultrapassada. Os poetas e pensadores caiam cada vez com mais frequência em um tom profeticamente inspirado.

Um dos poucos que conservou o respeito pela precisão matemática das construções kantianas foi Hegel. Em seus primeiros trabalhos, coroados com a famosa Fenomenologia do Espírito, se esforçou em ordenar logicamente as imagens dos acontecimentos histórico-universais, desenhar seus esquemas fundamentais, separar a essência do assunto da pele heterogênea dos detalhes, para compreender aquelas vias pelas quais a humanidade realiza seus ideais e pensamento, realiza sua “predestinação”.

Porém, a história dos acontecimentos do passado e do presente demonstrava com suficiente claridade que na balança dos destinos do mundo a “bela alma”, na que confiava Kant, pesa muito pouco, incomparavelmente menos que as “paixões e a força das circunstâncias, a educação, dos exemplos dos governos [...]”, depositados no outro prato. A pregação moral ainda não sabia fazer nada bom, se ele antes não havia sido bom.

Andavam mal os assuntos do ideal se a única arma em sua luta moral com as terríveis forças do “existente” eram somente as frases generosas e as exortações. Muito tempo havia que esperar a vitória e não seria o ideal kantiano de um lado, como o ideal da Igreja? Não perderá ele a cabeça como Robespierre?

Em Kant e Fichte foi assim, inclusive teoricamente; a grosso modo, suas esperanças se reduziam a que na alma de cada homem, inclusive do mais perdido, arde um fogo débil da “humanidade”, existe um gérmen do “melhor Eu” que lhe faz conhecer a voz da vergonha e que cada homem, embora vagamente, sinta a atração para a verdade.

O “melhor Eu” (segundo a original e complicada terminologia de Kant e Fichte: o “eu transcendental”) é perfeitamente igual, absolutamente idêntico em cada homem vivo (no “eu empírico”); este é o mesmo Eu, só que multiplicado, repetido sem troca alguma, algo assim como um conjunto infinito de pegadas idênticas, feitas pelo mesmo padrão. Cada cópia pode ser mais clara ou mais escura, mais precisa ou mais difusa que a outra, porém, de todas as formas se trata do mesmo padrão, só que multiplicado.

Porém, onde, então, em que salão particular de medidas e pesos se conserva o primeiro padrão, com o qual diante de uma necessidade, se possa comparar qualquer cópia em separado? Tal salão de medidas e pesos não existe no lado do mundo “exterior”, contestam Kant e Fichte. Nem na Terra pecadora, nem nos céus da religião. O retrato padrão do “melhor Eu” não existe à margem de suas próprias cópias, como uma primeira imagem particular, situada fora delas. Ele existe nelas e através delas, em suas cópias, gravadas “dentro” de cada ser vivo, em sua “alma”.

E a gente pode só reconstruir o padrão em sua imaginação com aqueles “recursos gerais”, que estão presentes na composição de cada “Eu empírico”, compondo seu “melhor Eu”, enlameado e desfigurado por qualquer outra circunstância, pela “incondicionalidade” daquele material no qual está gravado.

Por outro lado, todos aqueles recursos que diferenciam um ser vivo de outro, precisamente por isso é que não entram na composição do “melhor Eu”. Eles resultam precisamente da desfiguração, dependem dos desvios da condição daquele “material empírico” em que foi feita a cópia.

Tal retrato-padrão do “melhor Eu” – reconstruído na imaginação – é precisamente aquele que chamam ideal. De outra forma, fora da imaginação, ele não existe. Porém, existindo somente na imaginação, o ideal “possui força prática”, serve de modelo regulador da conduta real do homem...

O ideal, nesse caso, serve de protótipo para a determinação completa da cópia – raciocina Kant na Crítica da Razão Pura – e não temos outra medida das nossas ações que não seja o comportamento deste homem divino em nós, com o qual nos comparamos, nos julgamos e assim nos aperfeiçoamos, embora nunca o possamos alcançar(8).

Conquanto não queiramos atribuir realidade objetiva (existência) a estes ideais, nem por isso devemos considerá-los quiméricos, porque concedem uma norma imprescindível à razão, que necessita do conceito do que é inteiramente perfeito na sua espécie para por ele avaliar e medir o grau e os defeitos do que é imperfeito(9).

De outra forma – diante da ausência na imaginação do padrão ideal da “conduta verdadeiramente humana” – o homem é para sempre escravo do “existente”, só se mantem como ponto naquele que recaem as forças exteriores, somente como estilhaço, que lançam daqui para lá as ondas do mar mundano... Mantém amarrado às correntes de ferro das “causas externas”, como escravo das condições do lugar e tempo.

Daqui se emanava também uma recomendação prática: sempre culpar a voz do dever e em nenhum caso a pressão de circunstâncias “externas” (com relação ao dever). Sempre e em todos os casos empreender contra a tendência da vida “empírica”, quer dizer, real, dirigida contra o dever. Agir assim não é nada fácil, afinal é necessário não somente saber escutar a voz do dever, abafada pelos rugidos das batalhas, dos gritos dos chefes, pelos gemidos de fome e de dor, o grito de amor próprio ofendido, da vaidade e o interesse feridos, dos gemidos do desespero e o medo, sem também ter ainda valentia de seguir essa voz, superando em si mesmos ao escravo de todos os motivos enumerados e de muitos outros mais.

Ao final teremos que todo o mundo empírico – tanto “fora” como “dentro” do próprio homem – é inimigo do ideal e nunca, sob qualquer circunstância, pode ser seu aliado. Na vida empírica o ideal nunca, por sua própria essência, pode ser realizado.

Se o ideal possui uma semelhança com algo, seria por acaso com o maço de feno diante do focinho do burro, amarrado a uma vara colocada em seu pescoço. Sempre está adiante, não importa quão rápido se move o burro. Segundo Kant e Fichte, o ideal é absolutamente parecido à linha do horizonte, à linha imaginária de contato da Terra pecadora com os céus da verdade, a qual se distancia exatamente na medida em que se aproximam dela.

Na verdade, tal linha não existe (“não se pode pressupor a realidade objetiva – a existência – dos ideais”). Porém, como ilusão da imaginação é preciso tê-la; de outra forma não há critério sobre a direção correta dos caminhos do auto aperfeiçoamento; portanto, não há tampouco “liberdade”, sendo que há somente uma escravidão prisioneira das “circunstâncias externas, das condições de lugar e tempo”.

Exatamente por isso, não se pode representar o ideal sob a forma de resultado acabado, de produto de atitudes e ações, sob a forma de imagem de aperfeiçoamento “teórico” ou “prático” (quer dizer, moral). O homem sob a forma de ideal pode ter somente a tendência para a verdade, porém nunca a própria verdade. E o próprio ideal pode ser criado não em forma de “modelo de perfeição” sensório-contemplativo, somente em forma de tendência para a perfeição, em forma de “princípio regulador das ações”, e não em forma de perfil do resultado das ações, perfil do produto acabado.

Porém, não será muito parecido o raciocínio de nosso filósofo com a “ortodoxia”, a “idolatria” religiosa, aquela forma de serviço ao “melhor Eu”, que se realiza nas procissões católicas? Serão tal grande a diferença – “se reunir com Deus” na contemplação de ícones e estátuas, acompanhando todas as atividades com movimentos corporais correspondentes sob a música do órgão, ou na contemplação “pura”? Na vida real, o ideal de Kant e Fichte é irrealizável, pertence tão à sepultura como o ideal da Igreja católica. Tanto lá como aqui, ao fim e ao cabo, tudo se reduz ao procedimento martirizante de aplacar todos os desejos, inclinações e necessidades “terrenas”, a um severo ascetismo. Seduzirás com tal ideal a um ser vivo, que tens atividade para uma vida agitada aqui, na Terra? Um ser vivo considera justamente que mais vale um pássaro na mão que centenas voando.

E no que se sustenta o otimismo de Fichte, deste herói consequentíssimo do “imperativo categórico”? Apoiando-se na força vitoriosa do ideal, em seu inspirado discurso Sobre a Dignidade do Homem, exclama:

“Obstruí! Frustrai seus planos! Poderíeis demorá-los; mas, o que são miles e miles de anos nos anais da humanidade? Apenas um sonho tênue no despertar matinal”(10).

Nos anais da humanidade? Completamente possível. Porém, enquanto a humanidade se deleita com este rápido sonho matutino, milhões e milhares de seres vivos são cobertos pelo sonho da morte, da qual, por desgraça, já não se desperta. Para o homem (e não para a humanidade) a diferença entre o sonho matutino e o sonho da morte é um mal essencial, e aqui joga seu papel não um “milênio”, mas acima de tudo uma década e de novo outra década...

Então, se para a “humanidade” a filosofia de Kant e Fichte é consoladora, para o homem vivo não é de qualquer modo. Por isso, o homem de carne e osso está propenso, uma vez conhecida essa filosofia, a retornar de novo ao seio da velha “ortodoxia”, a qual lhe promete pessoalmente pelo menos alguma recompensa pelos sofrimentos que suportou na Terra pecadora. E, como resultado, o homem rechaça a orgulhosa tese de Kant e Fichte, segundo a qual o próprio homem é o único Deus na Terra, e prefere pensar que foi criado a sua imagem e semelhança por um sábio, bom e justo senhor, criador, fundador e prefeito, situado fora dele.

Se o “Deus interno” – o “melhor Eu”, o “Eu transcendental” – é na realidade tão indefeso que diariamente qualquer príncipe, qualquer vendedor, qualquer suboficial lhe pisoteia, zombando o “melhor Eu” em outros homens e em si mesmo, ele preferirá a fé no “Deus exterior”. O Deus católico-ortodoxo promete recompensar o bem e castigar o mal, embora seja depois da morte, enquanto que o Deus de Kant e Fichte nem sequer isso promete. Martirize-se, sofra, resista e supere em ti o desejo de felicidade e alegria e alcançará a felicidade superior, “transcendental”. Você desfrutará com a consciência de sua própria bondade. Você alcançará a paz em você mesmo, pensará e agirá de acordo com a voz da vergonha, e todos os outros motivos perdem o poder sobre você.

Quando semelhante superação total e incondicional de seu “Eu empírico” for alcançada por todos os homens sobre a Terra, e quando cada homem em separado aprenda a pensar e a agir tal e como lhe disse seu “melhor Eu” (e este é o mesmo em cada um), então desaparecerão da Terra as discórdias, divergências, brigas e contradições. O estado de “guerra de todos contra todos”(11) dará lugar à “paz eterna”, reinará o total acordo, a total unidade, a plena identidade de todos os Eu. Todos os Eu isolados como se se fundissem no sentido do mesmo grande Eu humano, em uma “grande unidade do espírito puro”, como se expressa Fichte.

A verdade é que Fichte aqui mesmo complementa:

“A unidade do espírito puro é para mim um ideal inatingível; fim último que jamais se realiza”(12).

Imaginar o sensível, o concreto, o objetal, o bruto, o visível do estado paradisíaco da “grande unidade” é impossível. Isso é somente um “princípio regulador” abstrato, teórico-especulativo do auto aperfeiçoamento de cada Eu isolado, de cada indivíduo humano em separado. A identidade total, o absoluto “um e o mesmo”, em cujo éter transparente se eliminam todas as diferenças entre os homens, entre as propriedades e profissões, entre as nações e os povos, é precisamente o homem em geral, a humanidade como tal.

Terra e céu, e tempo e espaço, e todos os pavores da sensibilidade desaparecem para mim neste pensamento; não devia desaparecer para mim também o indivíduo? - Eu não vos conduzo de volta para ele(13).

Se obtenho algo muito parecido com a antiga filosofia dos sábios índios, os quais conseguiram mais ou menos o mesmo estado – a perda total da auto perfeição do próprio Eu – no nirvana, no não-ser, no nada, na morte absoluta, onde definham todas as cores, todos os sofrimentos, tudo. É suficiente somente mergulhar na contemplação abnegada de seu próprio umbigo: julga e olha para ele por horas, enquanto não definha a luz de seus olhos.

E se a realização do “ideal inalcançável” de Fichte de todos os modo procura-se representar visualmente, então se verá assim: todos os restantes Eu que compõem a humanidade perdem suas coisas terrestres e mergulham na contemplação de seu “melhor Eu”. Sentem e olham a profundida de seu Eu, deleitando-se com o próprio ato da contemplação do absoluto, infinito, incolor e silencioso vazio, no qual se apagam todas as diferenças empíricas, onde não há nem céu, nem Terra, nem indivíduo e somente há a “grande unidade única”.

Se entende que neste Eu não há qualquer diferença (consequentemente, nem divergências, nem lutas), precisamente porque o próprio conceito de “Eu em geral”, “Eu como tal”, “Eu-Eu” foi obtido por via da abstração de todas as diferenças entre os “Eu empíricos”, reais. Queríamos obter o conceito do “verdadeiro Eu” e obtivemos... O vazio como limite e o ideal como última finalidade do auto aperfeiçoamento de cada Eu isolado.

Tal conclusão é inevitável se se adota antecipadamente aquela lógica, com ajuda da qual se obteve: toda construção de Kant e Fichte estende suas raízes ao grosso da Crítica da Razão Pura, ao sistema de regras lógicas do pensamento ali expostas.

A senhora gorda “dos frutos da Ilustração” exclamava: “E como se pode negar o sobrenatural? Dizem: em desacordo com a razão. Porém, se a razão pode ser tola, e depois?”.

Em Kant, com sua “razão pura”, ocorre algo parecido, embora dificilmente pode-se chama-la “tola”. A “razão pura” não se atreve a emitir um juízo definitivo acerca do “sobrenatural” (existe ou não existe?) precisamente porque ela é suficientemente sábia e conhecia muito bem suas próprias possibilidades, as avalia autocriticamente.

A Crítica da Razão Pura circunstancialmente expõe a lógica científica sobre o pensamento – desenvolve o sistema de regras, de esquemas do pensamento correto. Kant quer previamente aperfeiçoar o instrumento, e depois com sua ajuda resolver de uma vez, utilizando-o minuciosa e cuidadosamente, todas as malditas questões as quais a “infeliz” humanidade se bate por milênios.

Em primeiro lugar, Kant pretendeu fazer o balanço de tudo o que havia sido feito na ciência lógica antes dele, para ressaltar em sua bagagem teórica somente o indiscutível, somente o que definitivamente foi e depurar a ciência de todos os postulados duvidosos. Ele decidiu decantar na lógica aquele seu núcleo incorruptível, o qual se manteria intocável perante qualquer discussão das que ocorriam no intervalo de dois milênios; somente o indiscutível, somente o absolutamente evidente para todos, para qualquer homem, para dali em diante seguir construindo sobre um fundamento absolutamente indestrutível. Tal fundamento, segundo o pensamento de Kant, deve ser totalmente independente de qualquer divergência parcial entre os filósofos no que tange a outras questões: a questão da natureza e da origem do “pensamento”, sobre a relação do pensamento para as coisas, sentidos e estados de ânimo do homem, suas simpatias e antipatias etc.

Separando da história da lógica o desejado “resíduo”, Kant se convenceu de que não era tanto: uma série de regras perfeitamente gerais, formuladas já por Aristóteles e seus comentadores. Daí sua conclusão de que a lógica como ciência, desde a época de Aristóteles, não ter dado um passo atrás, a não ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a abolição da algumas subtilezas desnecessárias ou a determinação mais nítida do seu conteúdo, coisa que mais diz respeito à elegância que à certeza da ciência. Também é digno de nota que não tenha até hoje progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita [...](14).

Na própria abordagem do assunto visivelmente se manifestava a pretensão muito característica em Kant, de estar “sobre a luta”, de estar “por cima de todos os partidos”, de ressaltar aquilo em que todos estavam de acordo, independentemente das divergências, brigas e contradições de todo gênero, de ressaltar em seus pontos de vista somente o “idêntico” e desejar todas as “diferenças”.

Claro, se a verdade se alcançará tão fácil, então, uma melhor lógica não se pode esperar...

Kant agrupa o conjunto de tais postulados lógicos “comuns” na “lógica geral”: os limites da lógica estão rigorosamente determinados por se tratar de uma ciência que apenas expõe minuciosamente e demonstra rigorosamente as regras formais de todo o pensamento [...](15).

“De forma única as formais” significa aqui as absolutamente universais, absolutamente incondicionais, perfeitamente independentes de em que pensa uma pessoa, de qual é o “conteúdo” preciso de seu pensamento, de que conceitos, representações, imagens e condições nele figuram precisamente.

Para a lógica é importante uma coisa: que o pensamento expresso em palavras, em condições encadeadas em uma fileira tão larga como se queira, não se contradiga consigo mesmo, que seja correspondente consigo mesmo. Tudo o mais não interessa à lógica e não pode interessa-la.

Traçando os limites da “lógica geral”, Kant investiga minuciosamente suas possibilidades de princípio. Sua concorrência chegou muito perto. A força da indicada “formalidade”, quer dizer, da indiferença fundamental para os conhecimentos “do conteúdo”, esta lógica se manteve neutra não somente na discussão de Berkeley com Espinoza, mas também na discussão de quaisquer dos pensadores com qualquer estúpido que havia colocado na cabeça o absurdo mais cômico. Ela está obrigada também a ditar ao absurdo uma sanção lógica, se isso não se contradiz a si mesmo. Assim que uma autocomplacente estupidez em correspondência consigo mesma, aos olhos de tal lógica, não se diferencia da mais profunda verdade. E como pode ser de outra forma? Afinal, “a lógica geral não contém nem pode conter quaisquer preceitos para a faculdade de julgar”, “a capacidade de subsumir a regras, isto é, de discernir se algo se encontra subordinado a dada regra ou não”(16).

Significa que se necessita outra lógica ou até mesmo um novo parágrafo.  Aqui já não é possível ignorar a diferença entre os conhecimento de seu conteúdo (questão que está obrigada a ignorar a lógica geral, puramente formal). E, se a “lógica geral” formula as mais gerais e abstratas “regras de aplicação do entendimento em geral”, então, o novo parágrafo deve expor particularmente as regras de aplicação do entendimento da assimilação da experiência real dos homens, quer dizer, sua aplicação científica. E aqui o assunto se torna significativamente mais complexo.

A ciência se constrói a partir de generalizações, em relação com as quais ela pode apresentar garantias mais sérias que a simples referência à experiência realizada. Pelo contrário, suas generalizações não teriam mais valor que o tristemente célebre juízo “todos os cisnes são brancos”: o primeiro fato ameaça derrubá-las como um castelo de cartas. E confiar em tal ciência foi bastante inseguro.

Um pouco mais tarde um engenhoso filósofo imaginou uma alegoria engraçada, que ilustra o pensamento de Kant. Em uma avícola vive uma galinha; cada manhã aparece o dono e lhe traz grãos para bicar. A galinha, indubitavelmente, faz uma generalização: o aparecimento do dono está ligado ao aparecimento do grão. Porém, em um maravilhoso dia, o dono não aparece com grãos e sim com uma faca, com o qual demonstrou à galinha que não seria demais ter uma ideia mais séria sobre as vias da generalização.

Os juízos de origem e conteúdo puramente empíricos são exatos somente com relação àquela experiência da qual foram tirados. Em nenhum momento é conveniente estendê-los às coisas que não passaram por essa experiência. Eles são exatos somente com esta cláusula: todos os cisnes que, até o momento, tenham passado pelo campo de nossa vista, são brancos.

Os julgamentos teórico-científicos devem ser justos sem essa cláusula. Assim, o problema: é possível (e se for, então, porquê) a “experiência” passada (consequentemente, de uma parte da experiência) tomar uma generalização que planeje uma significação também com relação à experiência futura? Porque estamos convencidos de que o juízo “todos os corpos da natureza têm extensão” não pode ser refutado pela experiência posterior, não importa quando alongou, ou quão largo ela ficou?

A única resposta que Kant encontra consiste no seguinte. O aparato de nossa percepção (a visão, o tato etc.) está construído de tal forma que todas as coisas do “mundo exterior” as representa perante nossa consciência como extensas, como determinadas no espaço. Por isso, em nossa “experiência” a coisa pode ser incluída somente na qualidade de “extensa”.

E se na natureza existem coisas “sem extensão” (e se existem ou não, o desconhecemos), as percebemos como “vastas”. Ou simplesmente não as percebemos.

Por exemplo, se supomos que nossa vida está estruturada de tal forma que não percebemos qualquer outra cor que não seja o azul, então o juízo “todos os cisnes são azuis” seria tomado por “universal e necessário”, por estar correto em relação a qualquer experiência futura possível.

Assim, Kant chega à conclusão de que deve existir uma lógica, à margem da geral, que trate particularmente das regras de aplicação teórica (“apriorística”, em sua terminologia) do intelecto. Ela deve proporcionar um conjunto de esquemas, atuando em correspondência com os quais formamos julgamentos teóricos, generalizações, com pretensões a um caráter “universal e necessário” (nos limites de qualquer experiência possível e imaginável).

Essa parte da lógica já pode e deve servir de cânone (se não de organon) do conhecimento científico-teórico. Kant lhe outorga a denominação de “lógica da verdade” ou “lógica transcendental”.

As formas (esquemas) lógicas verdadeiramente primitivas da atividade do pensamento agora já não serão mais a lei da identidade e a proibição da contradição, e sim os esquemas universais da unificação, mescla de diferentes representações, extraídas da “experiência” pelo indivíduo.

Kant encontrou o defeito radical da lógica anterior no fato dela em nenhum caso procurou examinar e analisar estes esquemas fundamentais de trabalho do nosso pensamento, do ato de produção de juízos:

Nunca me pude contentar com a explicação que os lógicos dão de um juízo em geral; é, segundo dizem, a representação de uma relação entre dois conceitos. [...] aí se não determina em que consiste essa relação(17).

Se não se inclina a semelhante questão, não é necessário uma grande sagacidade para notar que a relação que interessa à Kant é sempre uma categoria. As categorias, quer dizer, “os momentos lógicos de todos os juízos são outros tantos modos possíveis de unir representações numa consciência – escreve nos Prolegômenos a Toda Metafísica Futura – [...] são conceitos da união necessária dessas representações numa consciência, por consequência, princípios de juízos objectivamente válidos”(18). Por exemplo, a cópula “é” em um juízo, expressando uma relação, “visa distinguir a unidade objetiva de representações dadas da unidade subjetiva”(19).

As categorias são justa e essencialmente aqueles esquemas primitivos de trabalho do pensamento, graças aos quais em geral se torna possível uma experiência coerente: “e como a experiência é um conhecimento mediante percepções ligadas entre si, as categorias são condições da possibilidade da experiência e têm pois também validade a priori em relação a todos os objetos da experiência”(20), “só por intermédio [das categorias] em geral é possível pensar qualquer objeto da experiência”(21).

Por tudo isso, a lógica, se quer ser ciência sobre o pensamento, não pode ser outra coisa que um sistema (“tabela”) coerente de categorias. Precisamente, as categorias compõem as formas (esquemas) da produção de conceitos, esquemas para a extração de conclusões gerais da experiência pessoal, quer dizer, juízos universais e necessários, o conjunto dos quais compõem a ciência [...].

Porém, aqui chegamos ao ponto mais curioso da teoria lógica de Kant.

As categorias permitem ao homem tomar de sua experiência pessoal algumas verdades universais e a “lógica transcendental” o ensina a agir corretamente diante disso.

Porém, diante do homem se levanta ainda outra tarefa, cuja solução não podem ajuda-lo nem a “lógica geral” nem a “lógica transcendental da verdade”: a tarefa (ou o problema) da síntese teórica total, a unificação de todas as generalizações teóricas isoladas em uma única teoria. Se trata aqui não da unidade dos dados sensoriais da experiência na composição de um conceito, nem das formas (esquemas) de unificação de fenômenos sensoriais e contempláveis no entendimento, e sim a unidade do próprio “entendimento” e os produtos de sua atividade generalizadora.

E na lógica de Kant surge ainda um chão, um tipo de “metodologia da verdade”, colocando sob seu controle já não os atos isolados da “generalização da experiência”, e sim todo o processo de generalizações da Experiência com maiúscula. Não funções isoladas do pensamento, e sim todo o pensamento em geral.

A tendência da criação de uma teoria única, completa em relação a qualquer objeto é natural e enraizada. O pensamento não pode se contentar com o simples amontoado de generalizações isoladas, embora cada uma delas tenha “caráter universal e necessário”. O pensamento sempre trata de enlaça-los em uma teoria acabada, desenvolvida a partir de um princípio único.

A capacidade que garante a solução desta tarefa se chamada em Kant “razão” (a diferença do “entendimento”, como capacidade de produzir conclusões isoladas, “particulares”, a partir da experiência). A “razão”, como função sintetizadora (unificadora) superior do intelecto (nele reside sua tarefa particular), “tende a alcançar uma unidade sintética, a qual se pensa em categorias, até o absolutamente incondicional”.

A questão reside em que somente dentro de tal “síntese” completa cada generalização isolada e “particular” da experiência se converte em totalmente justa no sentido da universalidade e necessidade.

Afinal, somente dentro de cada síntese se podem estipular todas as condições sob as quais uma generalização pode considerar-se indiscutivelmente justa. E é somente então que a generalização adquire garantias diante da ameaça de ser refutada por uma nova experiência, por generalizações novas e igualmente corretas...

Por isso, se a generalização teórico-científica (“apriorística”, segundo a terminologia de Kant) deve delimitar com precisão aquelas condições sob as quais é exata, e se o inventário completo de “definições” (“predicados”) do conceito pressupõe, correspondentemente, o inventário completo das condições de sua veracidade, então a “razão” é necessária não somente lá onde se trata de conduzir “todos” os conceitos concebidos a um sistema único, e sim também no ato de cada generalização isolada, no procedimento da definição de cada conceito.

Porém, é aqui onde precisamente se esconde a astúcia do tema. Perante a intenção de realizar a síntese “completa” (das definições do conceito e as condições de sua veracidade) o pensamento, com a inevitabilidade contida em sua natureza, cai em contradições (antinomias) sem saída, basicamente insolúveis com ajuda da lógica (tanto da geral, como da transcendental).

O “entendimento”, quer dizer, o pensamento que observa precisa e invariavelmente todas as regras da lógica, cai no trágico estado do antinômico não somente porque a “experiência” seja sempre inconclusiva, não porque se baseando em uma “parte da experiência” procure fazer uma generalização, justa em relação a toda a “experiência em geral”. Este foi somente a metade do mal. A desgraça é que, junto com a experiência transcorrida, se vamos toma-la em seu conjunto, também será inevitavelmente antinômica. Afinal, o próprio “entendimento”, se investigamos sua – digamos assim – antinomia, contém não só categorias “diferentes”, mas também diretamente contraditórias, de modo algum compatíveis uma com a outra sem contradição.

Assim, no instrumental do entendimento teremos não só a categoria “identidade”, mas também seu polo oposto, a categoria “diferença”. Junto com o conceito de “necessidade”, no arsenal de esquemas dos “juízos objetivos” (quer dizer, na tabela de categorias) teremos também o conceito “casualidade”. E assim sucessivamente. Ou melhor, cada categoria é tão justa quanto sua contrária, e a esfera de sua aplicabilidade é tão ampla como a própria “experiência”.

E qualquer fenômeno observado por nós no espaço e tempo, em princípio pode ser assimilado tanto em uma como em outra categoria. Eu posso investigar qualquer objeto (e qualquer conjunto de tais objetos, quão amplamente se queira) tanto sob o ponto de vista da “quantidade”, como a partir do ponto de vista da “qualidade”. Eu posso vê-lo como “causa” (de todos os acontecimentos que lhe sucedem), porém com o mesmo direito posso considera-la também “efeito” (de todos os acontecimentos precedentes). Nem em um nem em outra caso vou violar qualquer das regras “lógicas”. E, como resultado, qualquer fenômeno – em dependência de com qual categoria precisamente eu o penso – pode servir de base para ações lógicas diametralmente contraditórias, qualquer fenômeno oferece na expressão lógica dos juízos igualmente corretos, tanto a partir do ponto de vista da lógica, como a partir do ponto de vista da “experiência”, e, com tudo, mutuamente excludentes.

Assim, em relação com qualquer objeto no universo podem ser expressos dois pontos de vista igualmente justificados e, não obstante, mutuamente excludentes. E, finalmente, obteremos duas teorias, cada uma das quais é criada com absoluto rigor, de acordo tanto com as regras da lógica, como com todo o conjunto dos dados empíricos. Por isso, o “mundo pensado”, ou o mundo tal e como o pensamos, é sempre “dialético”, desdobrado em si, logicamente contraditório, o qual se dá a conhecer quando pretendemos criar uma teoria que inclua como seus princípios todas as “sínteses” particulares, todas as generalizações particulares.

A inevitável antinomidade, enraizada na própria natureza do pensamento, poderia ser eliminada somente por uma via. E é precisamente essa: tirando da cabeça, do “instrumento do entendimento”, justamente a metade de todas as categorias. Declarando uma das categorias polares como legítima e proibindo de utilizar a outra como legítima, desde hoje e séculos após séculos.

Porém, fazer isso é impossível, sem privar de sentido, a uma só voz, também aquela categoria, a qual – para alguns – decidimos conservar. Inclusive como decidir qual delas deixar e qual proibir? Indicar a todos os seres pensantes completar daqui em diante todos os atos da experiência somente a partir do ponto de vista de sua “identidade”, de sua “igualdade” e proibir registrar os sentidos da “diferença”? E porque não ao contrário?

Não obstante, toda a “metafísica dogmática” anterior procurou proceder precisamente assim. Ela compreendia que caso contrário era realmente impossível se livrar das antinomias dentro da compreensão científica. E declarou, por exemplo, a “causalidade” um conceito puramente subjetivo, uma simples denominação para aqueles fenômenos cujas “causas” até agora não conhecemos e, desta forma, se converteu a “necessidade” na única categoria objetiva. Exatamente igual procedeu com a “qualidade”, considerando-a pura ilusão de nossa sensorialidade, ao mesmo tempo que elevou a “quantidade” a classificação de única característica objetiva da “coisa em si” etc. e etc.

(Por isso mesmo Hegel chamava o referido método de pensamento “metafísico”. E é realmente característico para a “metafísica” pré-kantiana, que procurava se desprender das contradições devido a simples ignorância da metade das categorias estabelecidas – “dos princípios de juízo com significação objetiva” – as declarando princípios de juízo de conteúdo “puramente subjetivo”... de juízos não científicos).

O próprio Kant, encontrando a raiz da antinomidade do pensamento na presença de categorias diametralmente contrapostas, com toda justiça considerava que a filosofia não tem qualquer fundamento para preferir uma das categorias polares em detrimento de outra. Porém, como então sair de tal beco sem saída?

A única saída que encontra Kant é o reconhecimento da eterna antinomidade da “razão”. A antinomidade (contraditoriedade lógica) em essência é o castigo ao “entendimento” por ele ter procurado ultrapassar seus direitos legítimos, pela busca de realizar a “síntese absolutamente total” de todos os conceitos, quer dizer, expressar um juízo sobre como é a coisa em si mesma, e não somente “em qualquer experiência possível”.

Procurando expressar um juízo tal, o “entendimento” voa para aqueles domínios onde são impotentes todas suas leis e prescrições. Comete um crime contra as fronteiras de seu próprio uso, voa mais além dos limites de “qualquer experiência possível”. Por isso será castigado com a contradição toda vez que o teórico se ufane, pensando que já construiu uma teoria, que abraça com seus conceitos toda a infinita diversidade do material empírico em sua esfera e, com ele, abraçou a “coisa em si” tal e como é, independentemente e antes de sua refração através do prisma de nossa sensorialidade e entendimento... O aparecimento da contradição lógica é avaliada por Kant como um indicador da eterna incompletude da “experiência” e, consequentemente, também da teoria nela baseada.

A inevitável antinomidade do “entendimento”, que procura realizar a “síntese incondicional”, quer dizer, resolver a tarefa da “razão”, foi nomeada por Kant “estado natural da razão” – por analogia com a tese de Hobbes sobre a “guerra de todos contra todos”, como estado natural do gênero humano. No “estado natural” o entendimento se pensa como se fosse capaz, recorrendo à “experiência” limitada no “tempo e espaço”, de elaborar conceitos e teorias que tenham incondicionalmente caráter universal.

A conclusão de Kant é essa: uma análise suficientemente rigorosa de qualquer teoria, que declare a pretensão de uma síntese absolutamente total, a uma significação “incondicional” de suas afirmações, sempre descobrirá em sua composição antinomias mais ou menos habilmente mascaradas.

O entendimento, ilustrado com a compreensão crítica desta circunstância, consciente de seu direitos legítimos e sem pretender voar à esferas “transcendentais” (mais além de seus limites para ele), sempre tenderá a uma “síntese total”, porém, nunca se permitirá afirmar que já tenha alcançado essa síntese. Será mais modesta.

E, compreendendo que em relação com qualquer “coisa em si” sempre são possíveis, em última instância, duas teorias igualmente corretas (tanto a partir do ponto de vista dos atos), o entendimento já não vai tender a uma vitória completa e definitiva de uma delas e a derrota definitiva da outra. Os teóricos contrários, em lugar de travar uma guerra permanente um com o outro, deveriam instituir entre si algo como uma coexistência pacífica, reconhecendo mutuamente os direitos de um e outro à verdade relativa, a uma “síntese particular”.

Eles devem, por fim, compreender que em relação com a “coisa em si” será sempre como “x” eterna, que permite interpretações diametralmente contrapostas. Porém, estando igualmente errado em relação com a “coisa em si”, eles estão igualmente certos em outra relação: no sentido de que o “entendimento em geral” (quer dizer, a “razão”) tem dentro de si interesses contrapostos, igualmente válidos e justos.

Assim, uma teoria se ocupa da busca dos traços “idênticos” (digamos, do homem e do animal, do homem e da máquina), e a outra, precisamente o contrário, lhe interessam as “diferenças” entre um e outro. Cada uma delas perseguir um interesse particular da “razão” e englobar suas contradições em uma teoria não contraditória é impossível porque a “identidade” não é a “diferença”, é a “não-diferença”, e vice-versa. E nenhuma delas descobre o quadro objetivo da coisa, tomado “em si”, independentemente de sua refração através do prisma de categorias logicamente contraditórias.

O que no primeiro caso põe termo às querelas é uma vitória de que se vangloriam ambas as partes e à qual segue, a maioria das vezes, uma paz mal assegurada, imposta pela intervenção de uma autoridade superior; no segundo caso, porém, a sentença, porque toca agora a fonte das discussões, deve conduzir a uma paz eterna.(22)

Assim, em função do supremo postulado “apriorístico” e da lei do “pensamento correto”, intervém aqui a conhecida “proibição da contradição lógica”, um tipo de “imperativo categórico”, só que não no campo da moral, e sim no campo da lógica. Na forma desse imperativo lógico Kant impõe ao pensamento teórico um ideal, o qual consiste na completa e absoluta “identidade” das representações científicas de todos os homens sobre o mundo e sobre si mesmos.

Porém, o próprio Kant demonstra que o procurado estado de bem-estar é realmente inalcançável, que este será por séculos somente um “ideal inalcançável” do conhecimento científico, que a “não-contraditoriedade do conhecimento” é algo assim como um pássaro azul, que deixa de ser azul no momento em que o homem tem a sorte de captura-lo...

Daqui Kant tira uma conclusão: pelos meios da ciência (por força da “razão teórica”) a questão sobre a “essência do homem”, e mais ainda sobre o “ideal”, não se pode resolver. A “razão teórica” aqui inevitavelmente sofre um fracasso, confundindo-se em contradições insolúveis.

É precisamente por isso que o “ideal” da ética kantiana não se pode demonstrar pela via lógico-científica. Aqui há que fazer reverência perante a “razão prática” e, por objetivos puramente práticos, tomar como verdadeiro que, à parte do “mundo dos fenômenos”, inteligíveis para a ciência, existe também Deus, a imortalidade da alma, a livre vontade, quer dizer, todas aquelas “coisas” que a “razão teórica” não é capaz nem de demonstrar, nem de refutar...

Claro que a Kant lhe interessavam não os contos religiosos em si. Tanto Deus como a imortalidade da alma lhe preocupavam primeiro de tudo como modo de fundamentação do conceito de liberdade, este princípio da organização da vida humana.

A questão é que a Ciência e a Lógica, como as entendia Kant, são absolutamente incompatíveis com o conceito de liberdade. No “mundo dos fenômenos”, o qual é investigado pela ciência, reina absolutamente a necessidade, vinculada a uma infinita e variada cadeia de causas e efeitos. Se vamos contemplar ao homem com os olhos da ciência, como pequena partícula do “mundos dos fenômenos” no espaço e no tempo, então não há esperança para a “liberdade” – mais exatamente, para a “libertação” – do homem das correntes de ferro da necessidade. Pelo contrário, cada novo êxito da ciência forjará somente um novo elo da infinita corrente, demonstrará somente uma nova gota pela qual o “mundo dos fenômenos” tira de cada homem como marionete em um teatro de fantoches, determinando (embora o próprio homem não saiba) cada um de seus atos, cada um de seus desejos, cada um de seus pensamento. E se a ciência que esclarece todas as condições e causas dos acontecimentos “subjetivos” está correta, então aos conceitos de liberdade e ideal corresponde coloca-los na cabeça, como quimeras vazias, como ilusões ingênuas, atrás das quais se esconde simplesmente a ainda desconhecida necessidade: ao homem lhe parece “livre” aquela ação ou intenção sua, cuja “causa” não conhece, não esclareceu, não explicou e não expressou em uma fórmula...

E quanto mais ampla se torna a esfera da necessidade, descoberta pela ciência, mais estreita se torna a esfera da “liberdade” imaginária. Quanto mais longe chegar o homem pela via do conhecimento teórico-científico, mais completa e claramente se convence de que cada um de seus atos e cada um de seus pensamento é somente consequência da ação causal do “mundo dos fenômenos” sobre ele.

Como resultado, temos que tanto o “mundo dos fenômenos” como a lógica que assegura seu conhecimento teórico-científico, como a ciência que fala em nome do “mundo dos fenômenos”, são em princípio inimigos da liberdade, inclusive do próprio conceito de liberdade, e não só da liberdade real. Se o “mundo dos fenômenos” registrado pela ciência é esse único mundo real na qual vive o homem, então não só agora não há “liberdade”, e sim que não pode havê-la nunca nem em qualquer lugar.

A ciência afirma: o mundo é tal qual é, e é precisamente tal como deveria ser na qualidade de efeito necessário de todos seus estados precedentes. E cada homem em separado também é precisamente tal como deveria transformar-se (e ser) nas condições do mundo existente. Toda essa conduta pode explicar-se até o final (e mais ainda “justificar”) a partir do ponto de vista das leis da ciência: a mecânica, a física, a óptica, a química, a fisiologia etc. Afinal, as “leis” universais e necessárias formuladas pela ciência não são “violadas”, como é entendida por si só, nem pelo caprichoso príncipe despótico, nem pelo funcionário tirano, nem pelo lacaio vilão, nem pelo assassino saqueador, nem pelo último atrevido. Todos eles agem no marco daquelas “leis”. Daquelas limitações, que a ciência coloca no “mundo dos fenômenos”, no “existente”.

Todos eles agem – queiram eles ou não – de acordo com todas as “leis da ciência”. E se a ciência é o conhecimento terminado (em princípio, se subentende; e não precisamente hoje) do mundo, então o homem não está no direito de se indignar com o existente, e sim está obrigado a se submeter a ele e reconhecer que tudo no mundo está disposto precisamente como deve ser. O que é, é o que devia tornar-se tal como é, é o que “deve ser”.

E o “ideal”, “a representação sobre o fim supremo da autoperfeição do homem”, “o imperativo categórico”, “a liberdade, a igualdade e a fraternidade” em tal caso são somente quimeras da imaginação, somente sonhos vazios e fantasias anticientíficas, somente poesia e belas palavras, incompatíveis com o quadro científico do mundo... A ciência inculca no homem: seja escravo do “existente”.

Como é que se livra Kant de tão delicada situação? Através da demonstração de que a ciência (a “razão teórica”) em nenhum caso oferece e, o principal, em princípio não pode oferecer ao homem um conhecimento definitivo. Na realidade, o mundo não é tal como o pinta a ciência, ela pode oferecer somente uma descrição matemática dos “fenômenos”, quer dizer, daqueles “efeitos” que o mundo real oferece conhecer através dos órgãos dos sentidos do homem, em sua “contemplação”, em sua “consciência”, dentro de seu próprio Eu. Nada mais.

Aquele quadro, que o “mundo real” (o mundo das “coisas em si”) desperta em nossa imaginação e visão, “dentro do nosso Eu”, em essência, depende como está estrutura este Eu, e inclusive de como está “eliminado” da mente. Sem rodeios, se ele está “disposto para o bem”, então também os olhos ativamente escolheram no circundante “mundo dos fenômenos” só aquelas coisas, circunstâncias e condições que são importantes a partir do ponto de vista do bem, e os olhos do malandro também ativa e orientadamente escolheram e advertiram, “notaram” ao seu redor, só condições e pretextos para comer uma nova malandragem...

Porém, o homem de todas as formas pode reestruturar seu próprio Eu, conduzindo-o pouco a pouco até uma correspondência com seu “melhor Eu”, com a voz da consciência. Por isso, em dependência de sua “disposição moral” o homem também percebe e educa “teoricamente” o mundo circundante de diversas formas.

Consequentemente, perante tal interpretação subjetiva do “mundo dos fenômenos” a orientação moral pode, e inclusive bastante decisivamente, influir sobre o processo do “conhecimento” teórico, científico, lógico e matemático, porém não a cada passo (afinal, “duas vezes dois são quatro” é igualmente correto sob qualquer orientação moral), e sim somente nos pontos fatais do “raciocínio teórico-matemático”, onde a “razão teórica” se cala, só ali onde é necessário escolher entre dois argumentos do pensamento teórico igualmente corretos e ao mesmo tempo mutuamente excludentes.

O “entendimento teórico” (quer dizer, o pensamento que segue com exatidão todas as regras da lógica), como o demonstra Kant, cai inevitável e sistematicamente em tal situação. Uma e outra vez cai na situação do cavaleiro na encruzilhada, na bifurcação de dois caminhos. Mais exatamente, permanentemente ele leva ao homem a tal bifurcação e aqui se cala. Ele propõe ao homem duas soluções logicamente impecáveis por igual, e igualmente justificadas a partir do ponto de vista de toda experiência transcorrida. Para onde virar em tal situação, para a direita ou para a esquerda? Onde encontrar a subsequente cadeia de raciocínio logicamente impecável?

O pensamento teórico, tomado em si mesmo, não é capaz de proporcionar aqui nem mesmo uma mínima insinuação. O homem cai na desagradável situação do asno de Buridan(23), parado entre dois montes iguais de feno, sem poder se decidir por um deles. Os “a favor” são tantos em ambas as partes como os “do contra”; e a balança do raciocínio lógico se congela no estado de equilíbrio.

Observe que inclinar a balança a uma ou outra parte é possível inclusive com um microscópico grão de areia. Tal grão de areia é a “voz da consciência”, a evidência da “razão prática”, a autoridade da “alma bela”... Quão baixo não fala esta voz, quão pouco não pese a “bela alma” sobre os pratos dos destinos do mundo, precisamente eles foram decisivos.

Assim salva Kant os conceitos de “liberdade” e de “ideal”: através da demonstração da incapacidade do pensamento teórico (da ciência) para dar ao homem uma representação logicamente não contraditória do “mundo dos fenômenos”. A ciência é em princípio incapaz de realizar o próprio objetivo que ela mesma se dá: fazer uma “síntese” sem contradições lógicas de todos os juízos da “experiência”.

Logo, à ciência não se pode confiar a solução da questão sobre os mais importantes assuntos da humanidade.

Logo, é preciso nos pontos mais importantes ceder a palavra não à ciência, e sim à fé. Somente a fé, somente os postulados da “razão prática” (de acordo com a qual existe tanto Deus como a imortalidade da alma, como a liberdade sobre as correntes de ferro das relações causa-efeito) podem ao fim e ao cabo assegurar a compreensão “não contraditória” tanto do mundo, como do homem, como do lugar do homem no mundo. Somente ela pode também salvar os homens da “Dialética”, do desdobramento do Eu, da luta dos critérios, concepções e teorias contrapostas, da eterna discussão do homem consigo mesmo...

Ao final teremos que o homem deve em seguida confiar tanto na ciência como na fé.

Na ciência ele deve observar a “proibição da contradição”, buscar a “identidade absoluta” de todas as inteligências isoladas, quer dizer, a completa e absoluta correspondência de todos os Eu em relação com todas as questões importantes, compreendendo, entretanto, que tal acordo (ou “identidade”) é somente um ideal inalcançável, o qual na ciência, nunca nem em nenhuma parte, se realizará.

E se, no entanto, ele quer uma “paz eterna” tanto na ciência como na vida, então deve se inclinar diante da fé e adotar, partindo de razões puramente “práticas”, tanto a Deus como a imortalidade da alma, como a livre vontade.

E essa conclusão é absolutamente inevitável, se entendemos a ciência tal como a entendia Kant. Tal ciência na verdade exige – como seu completamente e contrapeso – a fé teoricamente indemonstrável nos eternos e sagrados (“transcendentais”) princípios da moral, da consciência, do dever diante a humanidade. Princípios que por si mesmos não têm qualquer relação com a ciência e não podem ser nem refutados nem demonstrados por ela.

A autoridade do cientista (representante da “razão teórica”), consequentemente, deve limitar-se e dar lugar à autoridade do papa da nova religião, reformada a maneira moral, protestante. No caso do surgimento de uma discussão entre dois cientistas de igual autoridade (ou entre escolas da ciência), que argumentam com igual lógica suas posições opostas, a solução da questão sobre de qual deles está certo, deve ser transmitida ao tribunal da nova religião. E o papa da moral, o papa moralista, vai decidir qual dos dois critérios igualmente lógicos leva ao bem e qual ao mal. E vai decidir, se subentende, não sobre a base da lógica (aqui é impossível resolver, aqui está a eterna “dialética”), e sim no terreno da moral, no terreno da fé, no terreno da “razão prática”.

O papa moralizante se converte, assim, na instância superior na solução de discussões científicas, se converte em árbitro, em representante da verdade suprema. Ele é o único redentor do pesadelo da “dialética”, a que chega o homem conduzido pela lógica.

Consequentemente, no conhecimento devem agir permanentemente dois critérios supremos. De uma parte, o “lógico”: a “proibição da contradição”, ou expresso de outra forma, “a lei de identidade”; e de outra, a “moral”: o “imperativo categórico”.

Siga os princípios da lógica, garanta a “não-contraditoriedade” da teoria, e crê nos princípios supremos da moral, seja escrupuloso, bom e bondoso para os homens, para o gênero humano, e tudo o mais se dará por adição. Tal é a posição de Kant.

Muitos ainda hoje pensam exatamente assim. Todos os que pensam que a não-contraditoriedade formal da construção teórica é precisamente o ideal do conhecimento teórico, o “objetivo supremo”, para o qual a ciência todo o tempo deve tender, porém, nunca obtendo sucesso.

Se vamos adotar semelhante ideal da ciência, então, com férrea inevitabilidade surge a necessidade do “regulador moral” do pensamento. Surge uma outra variedade de uma moral religiosamente nuançada.  Surge uma ilusão de que o “abuso” da ciência e seus frutos se pode prevenir com pregações morais. Embora a amarga experiência há tempo confirmou que a mais alta moralidade dos homens de ciência é impotente para prevenir suas aplicações desumanas, é impotente para fechar o caminho ao pesadelo tecnicamente seguro de Hiroshima e Auschwitz, sem falar dos pesadelos menores.

A real impotência da solução kantiana foi compreendida vivamente por Hegel.

Sim, a lógica construída sobre o fundamento da “lei de identidade” e “a proibição da contradição lógica” (que é propriamente uma e a mesma coisa, só que expressa uma vez de forma positiva e outra de forma negativa) inevitavelmente conduz à “dialética” – ao desdobramento e choque de duas teses, ideias, teorias e posições igualmente “lógicas” e de todas as formas incompatíveis, à eterna discussão do homem consigo mesmo. E, toda vez que a lógica, com todos seus princípios, não está apta para livre o homem da “dialética”, então surge a necessidade de algum árbitro superior, de um novo Deus, de um novo salvador. O salvador é o Deus moralmente interpretado. Deus como “princípio transcendental” da moral e consciência. Porém, que tipo de Deus é este, se ele é tão impotente? E será verdadeira uma lógica que faz de tal Deus seu complemento necessário?

E que a lei verdadeira, quer dizer, a forma (esquema) geral do desenvolvimento do pensamento, da ciência, da teoria, foi, é e será a contradição. Aquela mesma contradição que Kant proclama “ilusão dialética”.

Assim, porque – pergunta Hegel – estamos obrigados a venerar o irrealizável, o devido, como “lei suprema e inquestionável do pensamento”, enquanto que a forma (esquema) real do pensamento em desenvolvimento – a presença da contradição exige solução – a vemos como uma ilusão, como uma ficção, embora seja necessária? Não é mais razoável proceder ao contrário? Não é melhor chamar as coisas por seu nome? A lei real do desenvolvimento do intelecto e moralidade, quer dizer, a contradição dialética, chama-la lei do pensamento e a inalcançável ficção, a proibição da contradição, chamar ilusão e ficção? Afinal, tomando uma ficção pelo “fundamento superior do entendimento em geral”, pelo critério apriorístico-formal superior da verdade, Kant repete na lógica o mesmo pecado que na ética, na doutrina da razão prática.

Assim, Hegel destruiu os dois postulados superiores da filosofia kantiana – o “imperativo categórico” e a “proibição da contradição lógica” – com argumentos da história do conhecimento e moralidade. (A moralidade aqui se entende em sentido amplo. Em Hegel está inclusa em todas as relações que englobam a família, a sociedade civil e o Estado). A história demonstra claramente que nem a “proibição da constrição”, nem o “imperativo categórico” foram aqueles ideais na busca dos quais os homens construíram o edifício da civilização e da cultura. Justamente o contrário, a cultura se desenvolveu graças às contradições internas, que surgem entre as teses científicas, entre os homens, através da luta. A contradição dialética na própria essência do assunto, dentro deste, e não o “ideal” que se encontra em algum lugar eternamente a frente e fora da atividade, é essa força da atividade, é essa força ativa de que nasce o progresso do gênero humano.

A contradição dialética (o choque de duas teses, que se pressupõe mutuamente e, ao mesmo tempo, mutuamente se encontram uma a outra) é, segundo Hegel, a lei superior, real do desenvolvimento do pensamento criador da cultura. E a permanência desta lei é a “correção” superior do pensamento. Consequentemente, a via “correta” do desenvolvimento da esfera moral é também a contradição e a luta do homem contra o homem. Outra coisa, opinava Hegel, é que as formas de luta século após século se tornam cada vez mais humanas e que a luta não está obrigada em absoluto a se converter em uma matança sangrenta...

E, assim, o ideal que se somava nos resultados da Fenomenologia do Espírito, teria já outro aspecto em comparação com o kantiano. O ideal já se entende não como imagem daquele “estado do mundo” que poderão ser alcançados somente no progresso infinito. O ideal é o próprio movimento para adiante, contemplado a partir do ponto de vista de seus ambientes e leis gerais, os quais pouco a pouco, de século em século, se desenham através de uma caótica trama de acontecimentos e opiniões, da eterna renovação do mundo espiritual, “anulando” cada estado alcançado por ele.

O ideal não pode consistir em uma identidade plácida absoluta ou unidade de consciência e vontade de todos os inúmeros indivíduos, privado de quaisquer contradições. Tal ideal é a morte do espírito e não seu corpo vivo. Em cada estado alcançado do conhecimento e da moralidade, o pensamento descobre a contradição, a leva até o extremo antinômico e a resolve através do estabelecimento de um novo, subsequente e mais alto estado do espírito e seu mundo. Por isso, qualquer estado determinado é uma etapa de realização do ideal supremo, do ideal universal do gênero humano. O ideal é real aqui, na Terra, na atividade dos homens.

Hegel desta forma ajudou a filosofia a romper com a representação do ideal como uma ilusão, a qual seduz o homem com sua beleza, porém o engana eternamente, sendo um antípoda irreconciliável dos “existente” em geral. O ideal, quer dizer, a imagem do aperfeiçoamento superior, é totalmente inalcançável para o homem. Porém, onde e como?

No pensamento, responde Hegel. Na compreensão teórico-filosófica da “essência do assunto” e, em definitivo, na lógica, na quintessência de tal compreensão. Nos cumes da lógica dialética o homem se iguala a Deus, a esse “espírito universal absoluto”, o qual ao princípio se realizava espontânea e penosamente na forma da razão coletiva de milhões de homens criando a história. O segredo do ideal consiste na ideia, cujo retrato absolutamente exato se desenha na lógica, no pensamento sobre o pensamento. O ideal é precisamente a ideia em sua tradução “externa”, visível e palpável, em seu ser sensório-objetal. Nas colisões dialéticas do processo de “tradução externa” da ideia, Hegel se esforça também para resolver o problema do ideal. E eis aqui o que se obtém.

O pensamento teórico, cuja imagem ideal Hegel desenhou em A Ciência da Lógica, sempre é dialético. Como ele se relaciona com tudo que se afirmou mais acima. Somente o pensamento puro sempre está cheio de inquietude interna, da tendência para frente e para cima, nela uma e outra vez amadurecem e fervem por uma solução imanentes contradições.

Entretanto, o pensamento puro existe somente em A Ciência da Lógica, somente na abstração do filósofo teórico, em sua atividade profissional. E é à parte da lógica filosófica que o “espírito absoluto” cria também a história universal. E aqui ao espírito pensante se contrapõe a matéria estagnada, imóvel e rígida, com a qual o espírito pensante e criador está obrigado a contar se não quer ficar como caprichoso impotente ou um charlatão ingênuo...

Trabalhador incansável, o espírito cria a história universal, utilizando o homem como instrumento de sua própria tradução no material natural exterior. Essa criação, na representação de Hegel, é muito parecida ao trabalho do escultor, que molda com barro seu próprio retrato. Fazendo tal trabalho, o artista se convence de que o que se queria foi alcançado só em parte, e que a “representação externa” em algo lhe parece, e em algo não. Comparando o produto terminado de sua atividade consigo mesmo, o escultor vê que no decorrer da criação a transformação se tornou mais perfeita do que era até esse momento e o retrato, por isso, necessita de um aperfeiçoamento posterior, necessita de arranjos. E então ele de novo se lança ao trabalho, limitando-se às vezes a correções particulares, às vezes derrubando sem compaixão o já feito para fazer com os pedaços algo melhor. Assim também o espírito criador (o espírito absoluto, “universal”) faz de época em época sua representação externa mais e mais parecida a si mesmo, conduz a ciência e a moralidade até uma maior correspondência com as exigências do pensamento puro, com a lógica da razão.

Porém, desgraçadamente, por mais que o espírito pensante se esforce, por mais alto que se eleve sua maestria, a matéria segue sendo matéria. Por isso mesmo, o “autorretrato do espírito” do escultor, realizado em um material corpóreo natural, em foram de estado, de arte, de sistema de ciências particulares, em forma de indústria etc., nunca poderá ser um parecido absoluto a seu criador. O ideal (quer dizer, o pensamento puramente dialético) em sua expressão em um material natural sempre se deforma em correspondência com as exigências do material, e o produto da atividade criadora do espírito sempre resulta em algum compromisso do ideal com a matéria morta.

A partir de tal ponto de vista, toda a cultura criada pelos séculos se apresenta como “ideal traduzido” ou como ideal corrigido pelas propriedades naturais (e, portanto, integrantes) daquele material em que ele está traduzido. Por exemplo, como a única forma possível nas condições humano-terrenas de expressão jurídico-moral do ideal, Hegel legitimou a estrutura econômica a ele contemporânea da sociedade “civil” (leia-se: burguesa) e, consequentemente, sua correspondente superestrutura jurídica e política: a monarquia constitucional da Grã Bretanha e o Império Napoleônico. A também monárquica Prússia foi interpretada por ele como o prolongamento natural da ideia, através das particulares nacionais do espírito alemão, também como ideal...

Tal virada do pensamento não foi resultado da infidelidade pessoal do filósofo aos princípios revolucionário da dialética. Essa foi a conclusão naturalíssima do idealismo dialético. Outro resultado não podia dar a dialética sem romper com a representação de que a história universal é criada pela razão pura, que desenvolve suas imagens a força das contradições que amadurecem nela de forma imanente.

O mais alto modo de tradução sensorial-objetal da ideia, Hegel considerava a arte, e, por isso, o problema do ideal no sentido estrito o ligava precisamente à estética. A arte, segundo Hegel, tinha contra todos os outros meios de tradução externa da ideia a vantagem de que é livre na hora de escolher aquele material no qual o pensamento absoluto anseia realizar seu autorretrato. Na vida real, na atividade econômica, política e jurídica, o homem está relacionado com condições que lhe dita o caráter material de sua atividade. Outra coisa é a arte. Se o homem sente que não alcançará traduzir seu projeto ideal no granito, afasta o granito e começa a trabalhar o mármore; lhe resulta que o mármore é insuficientemente suave, larga o formão e toma o pincel e a pintura; se somem as possibilidades da pintura, abandona as formas espaciais de expressão da ideia e entre na espontaneidade do som, no reino da música e poesia. Assim é em seus contornos gerais o quadro hegeliano de evolução das formas e tipos de arte.

O sentido do esquema descrito é transparente ao extremo. O homem, procurando traduzir a ideia em um material sensório-natural, passa a tipos de materiais cada vez mais suaves e plásticos, busca aquela “matéria” na qual o espírito se traduza completamente e com maior facilidade. Primeiro o granito, ao final o ar oscilante em ressonância com os movimentos belos da “alma”, do “espírito”...

Depois que o espírito se reflita no espelho da arte em toda sua diversidade poética, ele pode atentamente, utilizando os olhos e o cérebro do filósofo-lógico, contemplar-se a si mesmo em sua expressão “externa” e ver o esqueleto lógico, o esquema lógico de sua própria imagem, “alienada” na música, na poesia etc. A totalidade do aspecto humano em um nível de autoconhecimento alcançado já não interessa ao pensamento lógico do espírito absoluto e o homem de carne e osso é visto por ele da mesma forma em que, utilizando uma analogia contemporânea, este se apresenta na tela de uma máquina de raios X. Os raios rígidos da reflexão, do conhecimento racional, destroem a carne viva do ideal, descobrem que ele era, antes de tudo, o envoltório “externo” maligno da ideia absoluta, quer dizer, o pensamento puro. Assim seja a época – não sem tristeza adverte Hegel –, assim será o estado atual de desenvolvimento do espírito para o autoconhecimento... O homem deve compreender que o espírito absoluto já utilizou seu corpo, seu sangue, seu cérebro e suas mãos para “reificar-se” em forma de história universal. E agora tem uma tarefa: contemplar essa imagem alienada puramente de forma teórica, enxergando nela os contornos abstratos da ideia absoluta, do esquema dialético das categorias lógicas.

A época atual em geral não é favorável para a arte, para o florescimento da “magnífica individualidade” – mais de uma vez repete Hegel. O artista, como todos os homens, está contagiado por uma voz que fortemente se ouve ao seu redor, a voz da reflexão do pensamento que raciocina, e para a visão imediata do mundo está incapacitado, como está incapacitado o adulto para ver o mundo com os olhos ingênuos de uma criança. A feliz infância da humanidade – o antigo reino da magnífica individualidade – já foi superada e nunca mais voltaremos a ela. E aquele que os homens chamam ideal, de modo algum é o futuro, e sim precisamente o contrário, o irreversível passado da humanidade.

O homem contemporâneo pode sentir a emoção do estado ingenuamente belo de seu desenvolvimento espiritual somente nas salas dos museus, somente no dia de descanso designado a ele para se livrar do penoso e infeliz serviço ao espírito absoluto. Na vida real ele deve ser já professor de lógica, já sapateiro, já prefeito, já empresário e docilmente cumprir com a função designada a ele pela ideia absoluta. A individualidade multilateral e harmonicamente desenvolvida no mundo atual com sua minuciosa divisão do trabalho, uma pena, é impossível. Em seu ser sensório-objetal, prático, cada homem daqui em diante deve ser um cretino profissionalmente limitado. E somente na leitura de tratados de lógica dialética e na contemplação das obras de arte ele pode alcançar as alturas do espírito absoluto, ser e se sentir igual a uma deidade...

Dessa forma, o problema do ideal é lançado por Hegel completa e totalmente à estética, à filosofia da “arte elegante”, afinal, de acordo com sua teoria, somente na arte se pode realizar e ver o ideal, porém, nunca na vida, no ser sensório-objetal do homem de carne e osso. A realidade é prosaica e inimiga da beleza poética do ideal, uma vez que – como bem compreendeu o filósofo – o ideal é inseparável, por sua vez, do desenvolvimento livre, harmônico da individualidade humana, o que é incompatível com a prosa e o cinismo do regime burguês de vida. Hegel não via uma saída mais além dos marcos desse regime, apesar de toda sua grande acuidade e a sagacidade de sua inteligência. Claro que tal saída em seu tempo não existia ainda na realidade, e o filósofo experimentava uma profunda e justificada confiança nas utopias de qualquer gênero.

Assim, as condições que garantissem o desenvolvimento harmônico e multilateral da personalidade na forma contemporânea (e mais ainda no futuro) do mundo, de acordo com a concepção de Hegel, já são impossíveis. Essas eram concebíveis somente no estado infantil da cultura do mundo (nos marcos do antigo regime democrático da cidade-estado) e nunca mais voltarão nem renascerão. Sonhar com elas significa cair no “romantismo reacionário”, significa entorpecer o “progresso”. Afinal, uma comunidade de homens democraticamente organizada é já impossível devido a força dos “enormes espaços” dos estados contemporâneos e das enormes escalas temporais de sua existência. A democracia, garantia do completo florescimento de cada personalidade, é possível somente em um espaço pequeno e em um pequeno recorte temporal. Assim foi em Atenas. E com ela caiu em esquecimento o século dourado da arte. Na contemporaneidade, de acordo com a lógica hegeliana, o regime “ideal” é somente a estrutura hierárquica-burocrática do Estado, apoiada – como em sua base “natural” – no sistema de relações econômicas da sociedade “civil”, quer dizer, em uma economia organizada de forma capitalista. Tal é o único regime que corresponde ao “ideal superior de moralidade”.

Resumindo, o resultado final da “revolução” hegeliana na compreensão do ideal se reduz à idealização e divinização de toda o lixo empírico, à escravidão sob a forma do serviço ao ideal.

Porém a história da “tradução terrestre” do ideal não foi, felizmente, terminada aqui.

O uniforme do professor da Universidade de Berlim, embora fosse mais largo nos ombros que o casaco pastoral de Kant, no entanto era apertado no ajuste para o ideal. E não por casualidade. Afinal, ele foi feito naqueles mesmos fios (os fios brancos do idealismo) e, portanto, ameaçava rasgar no primeiro movimento repentino no tumulto na rua da história. Para ditar palestras sobre a natureza do ideal ele ainda de nada servia para batalhar pelo ideal. Aqui fez falta buscar roupa mais consistente.

E, enquanto o mundo de novo começou a levantar a cabeça da sociedade democrática-revolucionária, enquanto os acontecimentos chamaram a dialética, escondida até o momento nas salas sombrias das aulas universitárias, a vida, a luta, as barricadas, as páginas dos jornais e revistas políticas, o ideal cobrou nova vida.

Da atmosfera rarefeita das alturas montanhosas da especulação havia que baixar o ideal à Terra.

Apenas os golpes subterrâneos ensurdecedores da nova revolução que se aproximava começaram de novo a estremecer as abóbadas góticas das monarquias europeias, e nas paredes das construções teórico-filosóficas erguidas, aparentemente, com base na experiência de gerações anteriores, de novo se descobriram rachaduras, se abriram os buracos dos novos problemas. Através das rachaduras e dos buracos, as aulas e corredores das universidades estatais (depósito da sabedoria oficialmente reconhecida e canonizada) começou a penetrar com mais frequência o vento fresco da rua, entrelaçando no monótono discurso dos professores os ecos das fervorosas discussões partidárias, as repercussões das melodias ouvidas e estados de ânimos da revolução de 1789, suas consignas, esperanças e ideais heroicos e otimistas.

Quem não tinha qualquer coisa para respirar na atmosfera viciada da “moralidade” cristã-burocrática, no ar carregado dos quarteis e oficinas russas ou prussianas, aspirou esse vento com ansiedade. Cada qual, em quem não morreu a sede de atividade, sentiu agudamente a necessidade de mudanças radicais, esperou os verdadeiros salvadores, cujos relâmpagos já resplandeciam no horizonte.

Irrompia o vento fresco também nos tranquilos apartamentos da ideia hegeliana, relembrando aos homens que à parte do cérebro – do templo do conceito – eles tinham também os pulmões que o ar carregado das alturas especulativas não pode levar, e coração, capaz de bater e alimentar o cérebro com sangue quente, e mãos que estão em disposição de fazer muito. “[...] O homem, por isso, deve no presente traçar outro ideal. Nosso ideal não é uma substância abstrata, castrada, privada de corporeidade, nosso ideal é o homem integral, real, multilateral, perfeito, culto” – proclamava Ludwig Feuerbach. O homem em lugar do deus, do absoluto, do conceito: está aqui o princípio da filosofia do futuro, o princípio do futuro voltado tanto à esfera da política, à esfera da moralidade, como à esfera da lógica e da arte! “O entusiasmo foi geral – e momentaneamente todos nós nos transformamos em “feuerbachianos” – recordava muitos anos depois Friedrich Engels. Com que entusiasmo Marx saudou a nova concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela – apesar de todas as suas reservas críticas – pode ser visto em A Sagrada Família(24).

A ideia de Feuerbach era simples. Não são nem o senhor Deus, nem o Conceito Absoluto, nem o Estado, nem a Igreja os que criam o Homem (como parece para a consciência filosófica religiosa), e sim que é o Homem quem criou, cria, com a força de seu cérebro e suas mãos, tanto os deuses (terrenos e celestiais), como a hierarquia religiosa-burocrática, e a subordinação entre conceitos e ideias, assim como o pão e as estátuas, as fábricas e as universidades – um feito que é necessário reconhecer direta e claramente e tirar dele as conclusões pertinentes. E precisamente: não é necessário criar ídolos de suas próprias criações. É necessário conscientizar exatamente a relação real do Homem para com o mundo ao seu redor. E então, entendendo corretamente a realidade, chegaremos ao verdadeiro ideal.

Porém, como é a própria realidade? Por acaso é aquilo que vemos imediatamente a nossa volta? Opinar assim, depois de Hegel, só poderia um homem ingênuo e filosoficamente inculto. Afinal, na vida, os homens simplesmente adoram ídolos de toda classe, e não só adoram, mas sim lhes servem servilmente, lhes sacrificam a felicidade e inclusive a vida – a própria e a de seus seres queridos. Um se benze e serve ao ouro, outro à capa do monarca ou ao uniforme do burocrata, um terceiro ao conceito absoluto, um quarto ao antiquíssimo Jeová ou Alá, um quinto simplesmente a um pedaço de tronco, adornado com plumas e conchas. Acontece que o Homem primeiro cria o Estado e o Conceito e depois – não se sabe porque – começa a reverenciá-los como Deus todo-poderoso, como um ser existente fora do Homem, alheio a ele e inclusive hostil. Tal fenômeno adotou na filosofia a denominação de “alienação”. Contando com isso, Feuerbach decidiu que o “existente” (em contraposição ao “ideal”, ao “devido”) é produto da estupidez humana, produto da incultura filosófica. Apenas soprando ilusões de semelhante gênero para que o “existente” se dissipe como fumaça. O Homem se sentirá um orgulhoso czar da natureza, dono da Terra e deixará de reverenciar os ídolos inventados. Basta que os filósofos elaborem os detalhes e minucias dos sistemas teóricos, faz falta passar à propaganda de uma compreensão clara, já descoberta pela filosofia, da “essência real do homem” e a uma crítica perspicaz do existente. É necessário medir o “existente” com a medida da “essência humana”, demonstrando o absurdo do “existente”. Em outras palavras, Feuerbach fundamentalmente repetiu o que disseram os materialistas franceses do século XVIII. Daqui partiu o jovem Marx. Por algum tempo a ele também pareceu que a filosofia já havia feito tudo, que havia criado dentro de si um quadro completo da “realidade racional, verdadeira”, em contraposição ao “existente”, e que a contradição de um ou outro atua no mundo como a contraposição da razão da filosofia à absurda realidade empírica. À filosofia falta somente sair do “reino das sombras” e se dirigir contra a realidade existente fora dela, para obrigar a esta última a corresponder com o plano que amadureceu nos cérebros dos filósofos. É necessário transportar a filosofia para a realidade, e a realidade fazê-la filosófica. No grande ato da “morte da filosofia” o jovem Marx viu também, no início, a essência e o sentido da revolução que se aproximava.

Porém, não estaria acontecendo com ele um simples retorno à concepção kantiana, já destruída pelos argumentos de Hegel? Não. Aqui havia uma série de momentos novos em princípio, que levaram em conta as demolidoras observações hegelianas. Marx, de acordo com Hegel, compreendia a “moralidade” de uma forma mais ampla. Com ela, como vimos, se relacionam não somente, e inclusive não tanto, os fenômenos da psique individual, como todo o conjunto de condições que realmente determinam as relações do homem com o homem, incluída a organização político-jurídica da sociedade (quer dizer, o Estado) e também a organização da vida doméstica (econômica) dos homens: a estrutura da “sociedade civil”. Por isso, ao jovem Marx o divórcio da “essência humana” com a “existência” dos homens isolados já desde o mesmo início não se apresentava somente como a divergência (a não correspondência) do conceito abstrato geral com a policromia da diversidade sensorial. Somente se podia falar de um divórcio dentro da realidade, dentro da diversidade, sensorialmente dada, embora a realidade se interpretava ainda como produto do “pensamento” (verdade é que não de homens em separado, e sim de todas as gerações precedentes em sua totalidade, “reificados” em forma de regras existentes de suas representações sobre si mesmo e sobre o mundo). Por “essência do homem” se compreendia a cultura humana geral em toda a diversidade concreta de suas formas. Consequentemente, a contradição entre a “essência do homem” (expressa pela filosofia) e a “existência” foi assimilada pelo jovem Marx não como uma contradição entre o conceito do “homem em geral” e a situação real do assunto, mas sim como uma contradição da própria realidade, contradição entre o conjunto da cultura humana geral e sua expressão em homens isolados.

Estava claro, e a filosofia podia considera-lo como um feito evidente, que toda a riqueza da cultura material e espiritual é criação do próprio homem, seu patrimônio e “propriedade” (e não de Deus nem do “conceito”). Porém, daqui se emanava que para o Homem com maiúscula (quer dizer, para a humanidade) o problema da “alienação e reapropriação” simplesmente nunca existiu. Na verdade, a humanidade não entregava a qualquer ser supremo sua riqueza, pela razão de que tal ser no mundo nem existiu nem existe. Se os homens havia suposto que o verdadeiro criador e dono da cultura humana é não o Homem, e sim algum outro ser, então semelhante feito da imaginação se eliminava com uma simples volta na consciência, com um ato puramente teórico.

De outra forma, entretanto, se plantava a questão em relação ao homem com minúscula, quer dizer, a cada indivíduo humano em separado. Afinal, ele domina somente uma parte microscopicamente pequena dos instrumentos socioculturais humanos, verifica-se em si somente uma migalha lamentável de sua própria “essência”. E quando a medida tal da “essência do homem” se aplica a qualquer indivíduo em separado, então resulta que este é extremamente miserável, pobre e nu. Ao mesmo tempo, cada um é pobre a sua maneira: um, em relação ao dinheiro; outro, em relação aos conhecimentos; um terceiro, em relação a força física e saúde; um quarto, em relação aos direitos políticos etc., etc.

Assim, o problema filosófico abstrato do divórcio da “essência” e a “existência” do homem, visto de perto, se converte no problema da divisão da riqueza material e espiritual entre os homens, e ainda mais: no problema da divisão da atividade entre eles, e, por fim, no problema da divisão da propriedade dentro da sociedade. “Além do mais, divisão do trabalho e a propriedade privada – escreveu Marx – são expressões idênticas – numa é dito com relação à propriedade privada aquilo que, noutra, é dito com relação ao produto da atividade”(25). Porém, quanto mais rápido o problema do divórcio entre homem e homem era compreendido precisamente assim, para sua solução era necessário livrar os ombros da penosa carga dos preconceitos idealistas, fazer uma volta de cento e oitenta graus para o materialismo na compreensão da atividade humana, quer dizer, na compreensão da história da sociedade. Por outro lado, a solução do problema exigia também renunciar à compreensão da propriedade privada como única forma natural, racional e inquestionável da apropriação pessoal das riquezas materiais e espirituais, como a forma de relação do homem com a cultura humana universal. Mais precisamente, o desenvolvimento posterior do pensamento científico seria impossível sem passar às posições do materialismo na filosofia e às posições do comunismo na esfera social, afinal, somente sobre sua base se podiam resolver os insuportáveis e dialeticamente enredados problemas da atualidade, tanto teóricos como político-práticos.

Aqui se descobriu a via para a compreensão realmente científica não somente das “peripécias terrestres do belo ideal”, mas sim – o que era muito mais importante e necessário aos homens – para a compreensão das raízes terrenas destas trágicas peripécias.

Marx dirigiu diretamente seu olhar sóbrio para a Terra e viu claramente que os homens absolutamente não corriam atrás dos pássaros azuis do ideal, mas sim que estavam definidos, embora isto soava muito grosseiramente aos ouvidos dos sonhadores, a levar uma penosa luta diária pelo pão, por um teto, pelo direito de respirar ar puro. Ele viu que não são os “ideais” o que tanto faltam aos homens, e sim as mais elementares condições humanas de vida, trabalho e educação. E os acontecimentos reais da história como são rapidamente reafirmaram que ele estava certo. O levante dos tecelões famintos da Silésia, aceso praticamente ao mesmo tempo que se acendia na mente do jovem Marx a verdade, iluminada brilhantemente com seu resplendor as raízes terrenas, as condições terrenas de todas as revoluções terrenas.

E o pensamento de Marx se fez revolucionário, uma vez que se constituiu na ideia da revolução. Da revolução, não em nome de ideais ilusórios, e sim em nome das mesmíssimas e como nenhuma outra condição terrena – material – em seu desenvolvimento, educação e atividade vital para todos os homens e para cada homem sobre a Terra.

Em nome do comunismo. Em nome da grande tarefa que conjuga em si o verdadeiro humanismo com o verdadeiro materialismo, alheia a qualquer Ídolo, inclusive a um Ídolo sob a máscara de um belo ideal. Inclusive sob a máscara da “construção de Deus”, quer dizer, da ideia, segundo a qual é necessário contemplar ao próprio homem como Deus, deificando e rezando para ele como um ícone.

O caminho do desenvolvimento de Marx até o comunismo não tem qualquer coisa em comum com aquela lenda que sobre ele mais tarde difundiram os neokantianos e que ainda hoje passeia pelo mundo. Segundo essa lenda, Marx já no início da juventude, antes de qualquer exame teórico independente da realidade, adotou de bom coração o belo, porém, por desgraça, utopicamente irrealizável, sonho da felicidade universal para todos os homens e depois começou a contemplar o mundo “teoricamente”, através do prisma rosado do ideal adotado aprioristicamente, procurando encontrar forças e meios apropriados para sua realização. E porque “segundo o que buscas, isso encontrarás”, ele dirigiu a atenção ao proletariado, depositando sobre ele a esperança de ser uma força capaz de se fascinar com aquela mesma ilusão, com aquele ideal apriorístico, porém irrealizável. Marx se fez comunista supostamente somente porque os ideais dos utópicos, divulgados entre o proletariado inglês e francês, melhor que outros se juntaram com seus ideais pessoais.

Entretanto, a verdadeira história da transformação de Marx de democrata-revolucionário em comunista, em teórico do movimento proletário, de idealista hegeliano em materialista, não foi, de forma alguma, assim. Desde o primeiro momento Marx investigou as contradições reais da vida, procurando observar como a própria realidade busca resolver suas mesmas contradições em seu movimento. Por si só, é claro que semelhante via em nenhum caso pode ser puramente teórica, fechada em seu próprio movimento: Marx sempre se encontrou no mesmo sedimento da vida, no mesmo centro dos processos socioeconômicos e políticos da contemporaneidade. O choque da assimilação teórica da realidade, tomada em seus melhores exemplos, com a própria realidade: tal é o método de Marx para a solução de todas as colisões da vida social. Não casualmente os mais importantes marcos de sua evolução teórica eram por sua vez marcos da atividade política prática, da luta revolucionária do pensador. As discussões no Clube dos Doutores [Докторском клубе] que reunia os partidários mais esquerdistas da filosofia hegeliana; o trabalho na Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), onde pela primeira vez Marx se chocou com as necessidades materiais, com os interesses das distintas camadas sociais; o conhecimento da atividade revolucionária do proletariado alemão e francês, o que lhe permitiu o descobrimento de seus ânimos revolucionários e de seu semblante espiritual; a participação no movimento revolucionário da classe operária influíram diretamente nos mais importantes descobrimentos teóricos do fundador da cosmovisão comunista. Somente assim é que Marx pôde detectar quais eram os ideais que amadureceram no desenvolvimento da própria vida, quais os ideais existentes expressavam corretamente as necessidades do progresso social humano e quais deles pertenciam ao gênero das utopias irrealizáveis, por não corresponder a qualquer necessidade real. E, embora no início de seu desenvolvimento teórico ele compreendia a realidade ainda hegelianamente (pensava que as verdadeiras necessidades humanas gerais como amadureceram na esfera do pensamento, na esfera da cultura teórico-espiritual da humanidade), em sua totalidade o ponto de vista de Marx, inclusive então, não tinha qualquer coisa em comum com o que procuram hoje inventar os neokantianos.

Marx advertiu muito cedo sobre as ideias utópicas e se relacionou criticamente com elas.

“A Gazeta Renana, que não reconhece inclusive a realidade teórica por trás das ideias comunistas em sua forma atual e, consequentemente, pode assim menos ainda desejar sua realização prática ou, pelo menos considera-la possível – a Gazeta Renana submeterá essas ideias a uma crítica fundamentada” –, declarou ele em nome da redação da Gazeta Renana.

Entretanto, antes de que tal crítica se realizasse, na consciência de Marx se destruíram os mesmos critérios e princípios, sobre cujo fundamento ele se preparava para emitir um juízo sobre as ideias e ideais comunistas. Resultou que estes, em geral, não estavam sujeitos à jurisdição das leis, editadas em nome do espírito universal, afinal, tinham sua jurisdição nos obstinados. Resultou que o próprio espírito universal foi sujeito a juízo crítico por parte das leis da realidade e cobrada por não desejar tê-las em conta, enquanto o comunismo em tal juízo se justificou, apesar de toda sua imaturidade juvenil, de toda sua ingenuidade lógico-teórica...

Precisamente, as ideias comunistas, difundidas nesse tempo no meio operário, aguçaram a atenção do jovem Marx para o problema do papel dos interesses materiais no desenvolvimento do processo histórico. Elas exigiram atenção para si pelo fato de que a classe operária nos próximos acontecimentos prometia intervir com qualidade em um dos destacamentos mais númerosos e aguerridos do exército democrata revolucionário e o democrata revolucionário temia que esse destacamento, se procurar realizar na disputa seus “sonhos utópicos” sobre a socialização da propriedade, destruirá com suas ações a unidade das forças do progresso e, assim, jogar somente nas mãos da reação.

O comunismo levou o problema da propriedade, o problema da divisão dos bens da civilização entre os indivíduos, ao primeiro plano, enquanto considerou o programa de transformações políticas e jurídicas somente como meio de troca nas relações de propriedade, como questão colateral e derivada. Dessa forma os esquemas utilizados viraram de pernas para cima.

Aqui está o ponto crucial no desenvolvimento do pensamento de Marx. Detenhamo-nos nele mais detalhadamente.
Primeiramente, ainda em 1842, sendo Marx democrata revolucionário, intervém como representante e defensor do princípio da “propriedade privada”, a qual se liga em seus olhos com o princípio da total e incondicional “liberdade de iniciativa privada” em qualquer esfera da vida, seja ela na produção material ou na espiritual.

E ele rechaça o comunismo como doutrina teórica, a qual lhe parece não mais que uma política reacionária já obsoleta, tentativa de galvanizar o ideal já há tempo rechaçado pela história, o “princípio corporativo”, o sonho de Platão. Semelhante ideia é inaceitável para Marx porque este pressupõe o direito do Estado – como certo monstro impessoal – de indicar a cada indivíduo porquê e como fazer isso, sem contar com seus desejos, com a razão e a consciência. Porque praticamente o direito de manipular os indivíduos é monopolizado por uma casta de funcionários burocratas, que impõem sua pouca vontade inteligente a toda a sociedade e que tomam sua limitada inteligência pela Razão, pela tradução da razão “geral” (coletiva).

Entretanto, o fato da ampla difusão das ideias comunistas Marx vê como sintoma e forma teórica ingênua de expressão de certa colisão completamente real, que amadurece no interior do organismo social dos países avançados da Europa. E reavalia o comunismo como “uma questão atual e séria no mais alto grau na França e Inglaterra”. E a existência dessa colisão lhe atesta sem lugar a dúvidas o fato de que a Gazeta Geral de Augsburg, por exemplo, utiliza a palavra “comunismo” como palavra ofensiva, como um espantalho.

A posição do periódico é caracterizada assim por Marx:

Ela se lança à corrida diante dos enredados acontecimentos contemporâneos e pensa que a poeira levantada, igual às palavras ofensivas que ela, correndo, com seu medo murmura, entre os dentes, ofuscam e privam de sentido tanto ao incômodo fenômeno contemporâneo como ao complacente leitor.

Os seguintes reconhecimentos são extraordinariamente característicos da posição de Marx:

Nós estamos firmemente convencidos de que, na verdade, perigosas não são as experiências práticas, e sim a fundamentação teórica das ideias comunistas; afinal, as experiências práticas, se são massivas, podem responder com canhões, enquanto se tornem perigosas; são as ideias as que se apoderam de nosso pensamento, as que subordinam assim nossos convencimentos e as quais é impossível livrar-se, sem dilacerar o próprio coração, são demônios que o homem pode vencer somente subordinando-se a eles.

Não se podem reprimir as ideias com tiros, nem com um turbilhão de palavras ofensivas. Por outro lado, as “experiências práticas” na realização da ideia ainda não são argumentos contra a própria ideia. Se você não gosta de algumas ideias, então, para refutá-las você não deve vociferar contra elas, e sim pensar muito cuidadosamente: esclarecer aquele solo real sobre o qual surgem e se difundem. Em outras palavras, é necessário encontrar a solução teórica (e, consequentemente, prática) daquela colisão real, daquele conflito real, dentro do qual elas nascem. Demonstrar, embora seja sobre o papel, por quais vias se pode satisfazer aquela necessidade social que tira da massa, a qual se expressa a si mesmo em forma de tais ou quais ideias. Então, e não antes, desaparecerão também as ideias antipáticas para você... E ao contrário, simpatia e liberação recebem somente aquelas ideias que se correspondem com as necessidades sociais reais, amadurecidas com independências das ideias em categorias populacionais mais ou menos amplas. No caso contrário, a mais bela e enganosa ideia não encontra acesso à consciência das massas, estas permanecem surdas à ideia por mais que façamos propaganda dela.

Tal é a essência da posição do jovem Marx. Ele, compreendido por si mesmo, não é ainda um comunista consequente, e sim simplesmente um teórico inteligente e honrado.

E, em 1842, Marx se encaminha não a uma análise formal das ideias comunistas contemporâneas a ele (elas em si eram demasiado ingênuas para poder refutá-las logicamente) e tampouco a uma crítica das experiências práticas de sua realização (estas eram demasiado impotentes e pouco exitosas), e sim a uma análise teórica daquela colisão no interior do organismo social, a qual fazia nascer essas ideias.

Exatamente por isso a crítica das ideias comunistas, por ter sido concebida teoricamente, se converteu naturalmente em análise crítica daquelas condições reais de vida, sobre cujo solo surgiram e se difundiram as ideias que nos interessam. O feito da difusão das ideias comunistas na França e Inglaterra é reavaliada por Marx como sintoma da colisão real no seio do organismo social, precisamente naqueles países onde a propriedade privada adquiriu a liberdade máxima de desenvolvimento, onde lhe foram retiradas as limitações externas (jurídicas). A crítica da propriedade privada, da “base terrena” de tão “incômodo fenômeno” como é o comunismo.

Tal plano de análise crítica se converte para Marx em algo central, torna-se o tema fundamental de seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Aqui ele chega à conclusão de que aquelas condições empíricas fatídicas, sobre cujo solo crescem as ideias comunistas, representam em si não um fenômeno anglo-francês estritamente nacional, e sim o resultado necessário do movimento da “propriedade privada” como princípio internacional e universal de organização de toda a vida social. O comunismo, desta forma, é a consequência necessário do desenvolvimento da propriedade privada. Consequentemente, seu desenvolvimento posterior, sua extensão a novas esferas de atividade e a novos países pode levar somente ao aumento das dimensões e acuidade das colisões, e com isso a ampliação da “base empírica do comunismo”, ao aumento da massa de homens capazes de se animar com as ideias comunistas e de ver nelas a única saída possível das obscuras antinomias da propriedade privada.

O jovem Marx “aceita” o comunismo utópico, ainda imaturo, como uma corrente ideológica nascida naturalmente do movimento da propriedade privada, apesar de que seu “programa positivo” segue sendo inaceitável para ele. O “programa positivo” está muito fortemente contagiado ainda pelos preconceitos daquele mesmo mundo, “negação” dele tal qual era.

Nascendo do movimento da propriedade privada na qualidade de sua antítese direta, inicialmente espontâneo, “tosco”, como o chama Marx, o comunismo não pode ser outra coisa que não aquela mesma propriedade privada, só que ao contrário, com sinal contrário, com sinal de negação. E somente chega até o final, até a conclusão subsequente, todas as tendências necessárias do mundo da propriedade privada. E no comunismo “tosco” Marx vê antes de tudo um tipo de espelho de aumento, que devolve ao mundo da propriedade privada sua verdadeira imagem, levada a sua expressão extrema: “O comunismo é [...] só uma generalização e aperfeiçoamento da [propriedade privada universal] em sua primeira figura”(26).

Apesar de tudo, levando em conta o caráter “grosseiro e irracional” da forma primitiva do comunismo, a extrema abstração de seu programa positivo, Marx já o contempla aqui como o único possível primeiro passo na direção da superação da “alienação”, criada pelo movimento da propriedade privada, como única saída da situação criada por esse movimento.

A conclusão de Marx é essa: embora o comunismo “tosco” como tal não é o objetivo do desenvolvimento humano, não é a forma da sociedade humana, com tudo e isso precisamente é comunismo, e somente o comunismo, representa “o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico. O comunismo é a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo.”(27)

Porém, em tal caso se exige uma fundamentação rigorosamente lógica e o desenvolvimento da ideia do comunismo. Em sua ajuda, naturalmente, deve vir a lógica hegeliana e eis que aqui, valendo-se dela, não é difícil demonstrar que o comunismo, como “negação da propriedade privada”, é tão “racional” como o princípio da propriedade privada. A demonstração lógico-filosófica da “racionalidade” do comunismo o fez o hegeliano Moses Hess. Ele “tirou”, “deduziu” o comunismo a partir de todas as regras da lógica dialética hegeliana, o interpretou como negação dialética do princípio da propriedade privada. O deduziu tão logicamente como outros deduziram a racionalidade da propriedade privada.

Em tal situação, Marx foi forçado a dirigir sua atenção para aqueles pontos da doutrina de Hegel que haviam ficado obscuros, uma vez que pareciam algo totalmente fora de discussão, algo em que duvidar seria absurdo. E, indiscutivelmente, aparecia antes de tudo a concepção hegeliana sobre a relação do espírito com a realidade empírica, do pensamento com a prática.

O problema da propriedade, que o comunismo levou ao primeiro plano como o problema mais agudo da atualidade, era um princípio insolúvel a partir das posições da visão hegeliana ortodoxa do papel do espírito na história. Mais exatamente, aqui se obtinham duas soluções igualmente lógicas e ao mesmo tempo mutuamente excludentes... A concepção hegeliana da relação do “pensamento” com a “realidade” se enlaçava e se combinava igualmente bem tanto com o comunismo como com o anticomunismo. Tal é o problema real, e ao se chocar com ele Marx se viu obrigado a proceder a um “ajuste de contas com a dialética hegeliana”. Precisamente, o problema do comunismo, recordava Marx posteriormente, o fez colocar de novo a questão da relação entre o desenvolvimento espiritual (= teórico-moral) da humanidade e o desenvolvimento de sua base material, das relações técnico-materiais e de propriedade entre os homens.

As investigações correspondentes abriram à Marx a porta para um campo novo em princípio, abriram uma nova fase do desenvolvimento na ciência mundial. “Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de ‘sociedade civil’; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política”(28) – recordava Marx posteriormente.

Este era o materialismo na compreensão do processo histórico. Precisamente, por via de uma análise criteriosamente científica, objetiva, do estado das coisas na esfera da sociedade “civil”, Marx chegou à conclusão de que sob a forma de “utopias” comunistas na consciência dos homens se expressava uma necessidade real, madura, dentro da sociedade “civil” e se convenceu de que tinha lugar não uma cruzada ordinária de uma seita de cavaleiros do ideal, embriagados com sonhos sobre a felicidade universal, e sim um movimento real de massas, convocado pelas condições do desenvolvimento da indústria maquinaria.

“O comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual”(29).

Os ideais do socialismo e do comunismo utópico foram, deste modo, não simplesmente refutados, e sim criticamente reavaliados e assimilados em seu conteúdo racional e, por isso, entraram para a história como uma das fontes teóricas do comunismo científico.

Graças a Hegel, o jovem Marx desde o início teve uma criteriosa desconfiança para qualquer ideal que não se submetera à crítica a partir do ponto de vista da lógica (quer dizer, a partir do ponto de vista da realidade, afinal a lógica aqui se compreendia como seu retrato absolutamente exato). Ele imediatamente passou à análise das contradições reais do desenvolvimento social a ele contemporâneo. Verdade é que tais contradições serão expressas em Marx inicialmente através das categorias da Fenomenologia do Espírito de Hegel e de A Essência do Cristianismo de Feuerbach, através dos conceitos de “alienação” e “reapropriação”, “essência do homem” e “forças essenciais”, “objetivação” e “desobjetivação” etc. Entretanto, os termos complicados não eram em absoluto (como às vezes ainda pensam) mero jogo de palavras. Neles estava o balanço da experiência secular, de longe o melhor, na investigação do problema e, portanto, os feitos reais, sendo expressos através deles, imediatamente irromperam em um contexto histórico e teórico geral, se voltaram, com tais arestas e facetas que, se não fosse assim, cairiam nas sombras, na névoa dos preconceitos, ocultos para o simples sentido comum. O enfoque filosófico deu à Marx a possibilidade de abarcar e distinguir, antes de tudo, os contornos universais, importantes em princípio, da realidade implantada através de suas contradições internas, e, assim, a partir do ponto de vista correto, olhar as particularidades e detalhes que ocultam o verdadeiro quadro ao olho filosoficamente desarmado que lhe impedem ver o bosque atrás da árvores. Sem as categorias da dialética hegeliana, materialmente avaliadas, teria sido impossível a transformação do comunismo de utopia em ciência.

E, na realidade, precisamente a filosofia ajudou Marx a formular claramente o feito de que o homem é o único “sujeito” do processo histórico, e de que o trabalho dos homens (quer dizer, a atividade sensorial objetal, que transforma a natureza de acordo com suas necessidades) é a única “substância” de todos os “modos”, de todas as imagens “particulares” da cultura humana. E, então, se tornou evidente que a chamada “essência humana”, que intervém para um indivíduo isolado como ideal, como medida de sua perfeição ou imperfeição, representa em si um produto da atividade laboral conjunta, coletiva, de muitas gerações. “Essa soma de forças de produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real [reale] daquilo que os filósofos representam como ‘substância’ e ‘essência do homem’, aquilo que eles apoteosaram e combateram”(30) – lemos em A Ideologia Alemã. E nas Teses sobre Feuerbach, Marx escreveu:

“[...] a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”(31).

Desta forma, a expressão filosófica do divórcio entre a “essência humana” e a “existência” dos homens isolados acusava de forma geral a contradição no sistema estabelecido de divisão do trabalho entre os homens, dentro do “conjunto de todas as relações sociais”. E quando com a famosa “essência humana” foi rasgado o manto religioso e filosófico-especulativo, então, diante do pensamento se levantou em toda sua grandeza um problema: analisa-lo em toda sua nudeza descoberta, livre de qualquer tipo de ilusões. Porém, com ele, o problema do ideal se apresentava em um plano totalmente novo: no plano da análise da divisão da atividade entre os indivíduos no processo da produção social humana em conjunto com sua vida material e espiritual.

A filosofia, como vimos, registrou com acuidade em suas categorias que o sistema historicamente estabelecido de divisão do trabalho (e, portanto, da propriedade) entre os homens (a “essência humana”) necessariamente transforma a cada indivíduo isolado em um ser profissionalmente limitado, em um “homem parcial”. Como resultado, cada homem cria com seu trabalho somente um pedacinho minúsculo, um fragmento da cultura humana e somente isso possui. Todo o resto da riqueza da civilização se mantém e se contrapõe a ele como uma força alheia (e, sob determinadas condições, também hostil). O homem cria as mais extravagantes representações sobre a verdadeira natureza desta força, cuja pressão sente constantemente: umas vezes a chama “Deus”, outras “Absoluto”, “ordem moral” e “destino”.

Junto a isso – um feito que paralelamente com a filosofia estabeleceu a Economia Política – a divisão do trabalho se torna cada vez mais fracionada, cada vez uma cota menor de riqueza cultura corresponde a cada homem em separado, mais indefeso ele é diante das forças coletivas da humanidade. Significa que a força espontânea coletiva dos homens cresce devido às forças ativas do indivíduo. Ou, expressando-se na linguagem filosófica, a medida da “alienação” do homem cresce junto com o crescimento daquele mundo de riqueza que ele mesmo produz e reproduz com seu próprio trabalho, que cria fora de si e contra si...

Hegel, tomando consciência de tal perspectiva do desenvolvimento da sociedade “civil”, inclinou diante dela a cabeça como diante de uma necessidade ditada pelas leis do espírito universal, uma lógica do universo. A favor de tal conclusão atestava supostamente toda a história precedente da cultura. E, enquanto a filosofia propagava a compreensão idealista da história, não se podia opor qualquer coisa a Hegel. O espírito universal se cortava pela medida da cultura real da humanidade, embora a tomou como sua própria criação, e, portanto, racional.

De outra forma, sobre o solo do idealismo, não se podia nem plantar, nem resolver a questão.

A mesma questão se plantava de forma diferente no terreno do materialismo. Aqui a tese da “alienação” se converteu em fórmula que expressava a presença de uma contradição cada vez mais exacerbada da sociedade “civil” consigo mesma. Nela, algebricamente generalizada, se expressava o feito de que as condições nas quais cada “indivíduo parcial” se encontra em permanente estado de “guerra de todos contra todos” são condições dilaceradas, rasgadas nas esferas da divisão social do trabalho hostis entre si e, com tudo, enlaçadas fortemente por uma corda, por um destino. Tal sociedade “civil” não possui qualquer meio de resistência contra a situação criada e, por isso, a tensão da contradição entre o caráter privado e o caráter coletivo humano da atividade de cada indivíduo isolado cresce sem obstáculos. Daqui se deriva a conclusão de que um belo dia a tensão alcançará o ponto crítico e acontecerá uma revolução relâmpago. Precisamente essa conclusão foi a que chegou Marx.

Aquela divisão do trabalho, que provocava essa contraditória situação antagônica, não é eterna. Ela tem seu limite e voará a partir de dentro. Afinal, aqui com invencível força atua, totalmente independente da razão e da moral, o mecanismo das relações econômicas. Por isso, nem as limitações morais, nem as imaginações mais racionais, nem as medidas burocrático-policiais podem evitar o processo de autodestruição da “sociedade civil”. A única coisa que pode fazer o “espírito” em semelhante situação é ajudar o homem, apanhado nas redes da contradição, a achar a saída menos dolorosa, mais rápida e racional de tal situação, uma saída mais além dos limites da forma de divisão do trabalho (de propriedade), “natural” para a sociedade dada. E eis aqui que precisamente no proletariado, na classe de operários assalariados, Marx viu os homens que mais fortemente que outros sofriam as mordaças da “alienação”: o polo da contradição no qual se concentra implacavelmente a carga da energia revolucionária, enquanto que nas ideias dos utópicos descobriu o despertar da autoconsciência do proletariado, ainda ingênua e formulada logicamente com pouca rigorosidade, porém em transformação profundamente certeira em seus contornos fundamentais, coincidente no principal com o rumo objetivo das coisas. A solução de todas as colisões resultava unicamente possível somente sobre a base do comunismo.

Entretanto, o próprio comunismo necessitava ainda ser devidamente fundamentado na teoria, se fazer científico em todo o sentido da palavra. A via para a solução da tarefa resplandeceu de novo a filosofia. Na qualidade de conclusão final, ela demonstrava que a resposta à questão de onde e como transcorre o desenvolvimento das relações sociais havia que ser buscada na economia política. Somente uma análise político-econômica podia esclarecer como seriam aqueles contornos do futuro que foram absolutamente, digamos, invariáveis, independentes de quaisquer ideais. E Marx se somou às investigações político-econômicas, deixando de lado temporariamente os problemas especificamente filosóficos. Afinal, na forma abstrata geral estes estavam já claros, e a solução completa dos mesmos, concretamente desenvolvida, podia ser obtida somente depois de uma análise político-econômica, e somente sobre sua base.

Analisando a anarquia na organização da produção social da vida material e espiritual dos homens baseada na propriedade privada, Marx estabeleceu que a esta corresponde também um tipo determinado de personalidade do homem. Seu traço dominante inevitavelmente é o cretinismo profissional. E eis aqui porque.

Por um lado, a divisão mercantil-capitalista das esferas da atividade (da propriedade) tem a tendência a uma divisão cada vez mais minuciosa do trabalho e correspondentemente das capacidades ativas dos homens (as quais foram chamadas alguma vez pela filosofia “forças essenciais do homem”). E a questão, de forma alguma, não se limita a diferenciação da sociedade em duas classes fundamentais: burguesia e proletariado. A divisão da atividade e suas capacidades correspondentes vai mais além, profundamente e extensamente, clivando o coletivo humano em novas e novas fissuras: já não somente o trabalho intelectual se separa do físico, e sim que cada esfera do trabalho físico e intelectual, tornando-se cada vez mais estreita, mais especializada, se separa da outra, se fecha dentro de si.

Por outro lado, o sistema de divisão do trabalho em sua totalidade se conduz, com relação a cada homem isolado, como um mecanismo monstruosamente gigante, que desprende de si o máximo de energia ativa, sugando vorazmente o trabalho e convertendo-o em trabalho “morto” em “corpo” da civilização. A riqueza de “coisas”, de objetos, age aqui como objetivo de todo o processo, enquanto o homem vivo (o “sujeito” do trabalho), só é o “instrumento”, um “pré-fabricado” singular e um “meio” da produção e reprodução da riqueza. Assim é que está organizado este sistema de produção, assim se formou, de modo que todos seus órgãos e mecanismos estão adaptados a uma exploração “efetiva” ao máximo do ser humano, de suas capacidades ativas. Um dos mecanismos mais poderosos para tal exploração é a famosa “competência”, a qual foi alguma vez chamada pela filosofia “guerra de todos contra todos”.

Assim, a “grande máquina” da produção capitalista adapta o homem vivo as suas exigências, o converte em uma “peça particular de uma máquina particular”, em “parafuso”, e depois o obriga a trabalhar até o desgaste, até o desfalecimento. Como se fosse pouco, a máquina gigante da produção organizada ao modo capitalista em cada nó seu isolado é racional ao extremo. Suas peças isoladas estão feitas da melhor forma e, com exatidão, encaixam com algumas das peças vizinhas. Entretanto, somente com as vizinhas. Em seu conjunto, as peças, os nós, a roda e as molas da “grande máquina” estão unidos uns com os outros de forma muito ruim, muito aproximadamente e, ao final, de forma não “racional”. Afinal, sua construção geral não é o resultado de uma atividade conscientemente dirigida, fundamentada no conhecimento, e sim que se apresenta como o produto da ação das forças cegas e espontâneas do mercado. Todas as peças independentes da “grande máquina” estão enlaçadas por cordas e fios muito débeis, e, muito misticamente emaranhados, das relações monetário-mercantis.

Como resultado, uma parte significativa de toda a riqueza, obtida às custas da exploração extenuante do homem de carne e osso, voa com o vento, é somente uma multa que o mercado cobra dos homens por não poder organizar sobre a base de uma plano razoável do trabalho do mecanismo produtivo em seu conjunto. A colossal dilapidação da atividade humana passa também pela crise e a estagnação, e por guerras, e pela criação de coisas não somente desnecessárias ao homem, mas sim também diretamente hostis a ele; através da criação de metralhadoras e bombas atômicas, histórias em quadrinhos e câmaras de gás, pinturas abstratas e narcóticos, que corrompem tanto a alma como o corpo, tanto a razão como a vontade do homem vivo, que sem compaixão degradam sua vida.

Os dois lados da realidade burguesa – a conversão dos homens em “parafusos” profissionalmente limitados e o trabalho extremamente ineficaz de toda a máquina produtiva – são inseparáveis. É impossível eliminar um deles sem eliminar o outro. Não se pode montar um novo esquema racional simplesmente utilizando as peças velhas, afinal todas elas, incluindo também os “parafusos vivos”, estão adaptados construtivamente só ao funcionamento dentro da “grande máquina” capitalista. Aqui se exige refazer também os próprios homens.

A exploração comum da produção – ressaltava Engels no ano de 1847 – não pode ser levada a cabo por homens como os de hoje, que estão subordinados, acorrentados, a um único ramo da produção, que são por ele explorados, homens que desenvolveram apenas uma das suas aptidões em detrimento de todas as outras, que conhecem apenas um ramo ou apenas um ramo de um ramo da produção total. Já a indústria actual precisa cada vez menos destes homens. A indústria explorada em comum, e em conformidade com um plano, por toda a sociedade pressupõe inteiramente homens cujas aptidões estejam integralmente desenvolvidas e que estejam em condições de abarcar todo o sistema da produção. [...] A educação permitirá aos jovens passar rapidamente por todo o sistema de produção; colocá-los-á em condições de passar sucessivamente de um ramo de produção para outro, conforme o proporcionem as necessidades da sociedade ou as suas próprias inclinações. Retirar-lhes-á, portanto, o carácter unilateral que a actual divisão do trabalho impõe a cada um deles. Deste modo, a sociedade organizada numa base comunista dará aos seus membros oportunidade de porem em acção, integralmente, as suas aptidões integralmente desenvolvidas.”(32).

Se o mecanismo da organização mercantil-capitalista da produção da vida material e espiritual não pode assegurar o funcionamento racional das forças produtivas, então, evidentemente, é necessário substituí-lo por outro. Este novo mecanismo pode ser somente a produção comunista, que trabalha por planos racionalmente estabelecidos, rítmica e produtivamente. Porém, então, outras exigências se levantam para o homem. No novo sistema de produção não se pode continuar sendo simplesmente “partícula”. A transformação comunista das relações sociais, consequentemente, é inconcebível sem uma transformação decisiva do velho modo de divisão do trabalho entre os homens, do velho modo de visão entre eles das capacidades ativas, dos papéis e funções no processo da produção social, tanto material como espiritual.

Na realidade, o cretinismo profissional é, por sua vez, consequência e condição do modo mercantil-capitalista da divisão do trabalho, da divisão da propriedade. O palhaço, que diverte o público no circo, é obrigado a ser palhaço por dias inteiros, sem conhecer o descanso, do contrário ele não resistirá à concorrência com outros palhaços mais aplicados e cairá a um nível inferior, vestirá o uniforme de varredor em lugar do gorro com sinos de palhaço. E, por isso, ele será sempre e em toda parte somente um palhaço. Exatamente igual faz a sociedade burguesa com o banqueiro, com o lacaio altamente retribuído, com o engenheiro, com o matemático. O modo capitalista de divisão do trabalho não conhece e não tolera exceções. Por isso, o cretinismo profissional se converte aqui não somente em feito, mas sim em virtude, em norma, inclusive em um ideal peculiar, no princípio de formação da personalidade, com o qual cada um se esforça em corresponder para não afundar para o fundo da sociedade, para não se converter em uma simples força de trabalho desqualificada. Porém, o proletariado nesta sociedade não tem nada a perder, além de suas correntes. Por isso, ele intervém como a fundamental força social da transformação nas relações de propriedade, no sistema de divisão do trabalho. Libertando a si mesmo (e a toda a sociedade!) das correntes do modo de divisão do trabalho baseado na propriedade privada, o proletariado inevitavelmente destrói também toda a pirâmide de relações entre os homens erguida pelo capitalismo. O cretinismo profissional é a propriedade privada sobre determinadas capacidades. Como variedade da propriedade privada sobre a riqueza social humana ele deve morrer e morrerá junto a esta.

Porém, o que é que se cria no lugar do destruído? Uma personalidade multilateral e harmonicamente desenvolvida. Primeiro, antes da transformação revolucionária, como novo ideal, como ideal comunista; depois, ao longo da construção do comunismo, como um fato. E isso não porque o cretino profissional seja estética e moralmente um espetáculo abominável. Se a questão for essa, o desenvolvimento harmônico e multilateral do homem poderia se dar somente em sonhos, como o ideal estético-moral no sentido de Kant e Fichte, a qual – sim! – se contrapõe o fator econômico da “ganância” e “efetividade” que implica a concentração de todas as forças e capacidades do indivíduo em uma estreita parcela. Entretanto, absolutamente a questão aqui não é de estética nem de moral. A questão está em que a comunidade de homens profissionalmente limitados é organicamente incapaz de resolver aquela tarefa que com força planta a economia perante a humanidade: a tarefa de pôr em marcha uma direção centralmente planejada, diretamente social das forças produtivas em grandes dimensões. A economia obriga a cada homem a destruir a partir de dentro a concha de sua profissão particular e se introduzir ativamente antes de tudo naquela esfera de atividade que na divisão burguesa do trabalho também era “propriedade privada”, quer dizer, na profissão de um círculo reduzido de pessoas: a política.

O primeiro sinal para tal inclusão já dá a revolução socialista, levada a cabo pelas massas para as massas. A liberação das correntes da propriedade privada é resultado da criação histórica consciente de milhões de trabalhadores e não pode ser de outra forma. No processo de construção do socialismo e comunismo os homens se transformam a si mesmos na medida em que eles transformem as circunstâncias que os rodeiam. E a transformação começa a partir do momento em que as massas, deixadas até agora à margem da política, se convertam em sujeitos diretos da política, e tanto mais quanto mais avance o processo.

Ao que foi dito se acrescenta ainda outra circunstância importante. A transformação das forças produtivas em propriedade social (de todo o povo) não é absolutamente um ato jurídico formal, afinal a “propriedade” não é somente uma categoria jurídica. A socialização da propriedade sobre os meios de produção é, antes de tudo, a socialização da atividade, a socialização do trabalho de planejamento e direção das forças produtivas. A produção socialista socializada nas dimensões e envergadura contemporânea em um “objeto”, “matéria”, a qual em toda sua concretude não pode abarcar um homem isolado com seu cérebro individual, mesmo sendo ele o mais genial, e inclusive uma instituição isolada, embora esteja armada de aperfeiçoados computadores eletrônicos. Eis aqui porque Marx, Engels e Lenin insistiam em que, depois da virada socialista, à direção da produção deveriam ser arrastados todos. A dirigir o Estado deverá aprender cada cozinheira – com este aforismo expressou Vladimir Ilitch estas necessidades –, despertando sorrisos irônicos dos senhores burgueses, daqueles mesmos cretinos profissionais que consideravam que a política era uma esfera inacessível ao povo, que exigia talentos “inatos” e qualidades semelhantes. Apesar de tudo, foi precisamente Lenin quem mostrou a única saída.

Fica entendido que o comunismo chama a cada cozinheira à direção do estado não para que esta faça como em casa, com base naqueles hábitos em que foi educada entre panelas. A cozinheira, realmente, e não uma participante formal na direção dos assuntos sociais do país, deixa de ser cozinheira. Eis aqui em que consiste toda a questão.
E se no mesmo início da revolução socialista a política deixa de ser “profissão”, convertendo-se em assunto de cada membro ativo da sociedade, mais tarde tal processo abarca as esferas de atividade cada vez mais amplas. Na política este processo não se pode deter, afinal a política econômica está enlaçada com a economia política, exigindo conhecimentos e compreensão da literatura teórica social, incluindo O Capital de Marx e os trabalhos teóricos de Lenin, o que por sua vez é inconcebível se no homem não há uma cultura geral, incluído o cultivo matemático e lógico-filosófico do pensamento. Afinal, “não se pode compreender plenamente O Capital de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel(33). E tentar entender Hegel sem possuir uma formação histórica geral, um conhecimento da literatura, da arte, da história da cultura! Nada se alcançará. Aqui há só uma corrente. Ou o homem puxa tudo, até o final, ou escapa de suas mãos também tudo, até o final. Em uma extremo da corrente está a política; no outro, a matemática, a ciência em geral, a filosofia, a arte. E somente o homem que a domine se converte em senhor do real e não senhor nominal sobre as forças produtivas contemporâneas.

A partir daqui que parte o ideal comunista do homem: de modo algum de considerações ética ou estéticas. Ou o indivíduo se converte em dono de toda a cultura criada pela humanidade, ou continuará sendo seu escravo, acorrentado à carreira de sua estreita profissão. Sem solucionar tal tarefa, os homens não podem resolver tampouco a tarefa da organização de um planejamento e controle racional sobre o desenvolvimento da produção e da sociedade em geral. Estas são duas faces de um mesmo problema.

Sua completa solução, de forma alguma, pressupõe, como às vezes apresentam os inimigos do comunismo e do marxismo, a conversão de cada indivíduo em algo assim como um gênio universal, ocupado de tudo um pouco e de nada em particular. De modo algum é assim.

Por si só é evidente que cada indivíduo não pode dominar toda a massa infinita de “profissões particulares”: ser simultaneamente político, matemático, químico, violinista, bailarina, cosmonauta, tenor, lógico e enxadrista. Tal compreensão do “desenvolvimento multilateral” é, evidentemente, irrealizável e utópica. A questão não é a confluência em um indivíduo de “todos” os tipos particulares de atividade e suas capacidades profissionais correspondentes. A questão reside em que cada homem vivo pode e deve estar desenvolvido até o nível contemporâneo em relação com aquelas capacidades gerais (“universais”), as quais o fazem Homem (e não químico ou torneiro), quer dizer, em relação ao pensamento, à moral e à saúde. A personalidade multilateralmente desenvolvida pressupõe a criação, para todos os homens sem exceção, de condições reais para o desenvolvimento de suas capacidades em qualquer direção. Daquelas condições, dentro das quais cada um possa sem obstáculos elevar-se no processo de sua formação geral aos primeiros planos da cultura humana, ao limite do já feito e ainda por fazer, do já conhecido e o ainda por conhecer; e depois livremente escolher em que parcela da frente de luta com a natureza concentrará seus esforços pessoais: na física ou na técnica, na composição poética ou na medicina.

Eis aqui o que tinha em conta Marx quando dizia que a sociedade comunista em nenhum caso fará do homem um pintor ou um sapateiro, e sim, antes de tudo, um homem ocupado – admitimos que inclusive prioritariamente – da pintura ou do problema da confecção do calçado, dependendo do que goste mais.

E se um ou outro indivíduo excederá o alcançado, isso já é outra questão. Evidentemente, todos os tipos particulares de atividade não chegará a fazer. Porém, estará desenvolvido de tal forma que – por necessidade ou por desejo – ele possa, sem um esforço especial nem tragédias, passar de um tipo de atividade a outro, assimilando facilmente a técnica do tipo “particular” de atividade. Isso de forma alguma é uma utopia. É necessário dominar os fundamentos gerais e principais da cultura contemporânea. Então, as “particularidades”, a “técnica”, se assimilam sem esforços extraordinários.

No caso contrário, o indivíduo não está em condições de assimilar como é devido nem uma nem outra coisa.

Como vemos, a “concentração” de forças e capacidades da personalidade em uma determinada direção se mantem também no comunismo. Porém, aqui em qualquer pedaço estreito concentra suas forças um homem multilateralmente desenvolvido, que compreende o seu vizinho da esquerda, e que compartilha conscientemente com ele seus esforços; enquanto que no capitalismo o faz o profissional mutilado, de pensamento unilateral, que vê a realidade somente através da grade estreita de seus assuntos, que tem como vizinhos à direita e à esquerda especialistas tão cegos como ele.

Não é difícil compreender qual comunidade avança com mais sucesso em um mesmo período de tempo. Se aquela que grava a conversa de um músico cego com um pintor surdo sobre música ou pintura, ou se aquela, onde os interlocutores vem e escutam igualmente bem, embora um deles se ocupa mais da música que da pintura e o outro dedica mais tempo à pintura que à musicalização... Dois homens como estes se entenderam e se enriqueceram magnificamente um ao outro na conversa.

Uma sociedade composta, digamos, por um músico “cego”, um pintor “surdo” e um matemático “cego e surdo” inevitavelmente exige um mediador: um tradutor que, sem compreender nada nem de música, nem de pintura, nem de matemática, irá, contudo, “mediar” suas relações mútuas, cooperar com seus esforços em torno dos problemas gerais, nos quais cada um deles se desempenha debilmente. Aqui se obtém algo assim como um simples modelo do sistema mercantil capitalista espontaneamente estabelecido de divisão do trabalho (das capacidades) entre os homens. No papel de “intermediário”, que monopolisticamente representa neste sistema os “interesses gerais”, atua o político profissional situado acima do povo, aparentemente o amo de todo a comunidade, e que na realidade é tão cego escravo do mercado como todos os demais. Naturalmente, se exige aqui também um operário, que alimente e vista os outros quatro...

Ao contrário, um modelo simplíssimo de comunidade organizada ao modo comunista pode-se construir somente de indivíduos multilateralmente desenvolvidos, quer dizer, de homens, cada um dos quais compreende bem tanto a tarefa geral como também seu papel particular em sua solução, para coordenar seus esforços com os esforços do vizinho, do companheiro na tarefa comum.

As relações comuns, quer dizer, mútuas, entram em acordo e se conciliam aqui pelos próprios homens que conjuntamente levam a cabo a mesma causa comum compreensível a cada um deles. Eles mesmos distribuem entre si, sobre a base do acordo voluntário e da discussão democrática, aquelas tarefas e obrigações particulares resultantes dos interesses gerais corretamente compreendidos.

As pessoas – os indivíduos vivos – se dirigem aqui a si mesmos. E também às máquinas de qualquer tipo. Afinal, se vamos formular a mais profunda, mais essencial contraposição de organização comunista da sociedade em relação a qualquer outra, então esta consistiria precisamente em que o único objetivo da atividade humana é aqui o próprio homem, e tudo o mais, sem exceção, se converte em meio, que por si mesmo não tem qualquer significado.

Por isso, o comunismo intervém hoje como a única doutrina teórica que contempla a liquidação da famosa “alienação”. Significa que o objetivo final do movimento comunista era, é e será a eliminação incondicional de todas as formas “externas” (em relação ao homem, ao indivíduo real, vivo) e meios de regulamentação de sua atividade vital, de todos os mediadores “externos” entre homem e homem, os quais, em uma sociedade classista-antagônica se transformam de servidores intermediários em caprichosos deuses déspotas, em ídolos.

Aqui está o que diferencia um “homem parcial” (termo de Marx) do “indivíduo totalmente desenvolvido” (termo também de Marx). O “homem parcial” é uma imagem formada necessariamente pelo sistema mercantil-capitalista de divisão do trabalho, que limita cada indivíduo desde sua infância à apertada jaula de uma estreita profissão. O indivíduo totalmente (quer dizer, multilateral, universalmente) desenvolvido é uma imagem ditada pelas condições de uma sociedade organizada (e que organiza) de forma comunista; não uma imagem enganosa de um futuro distante, e sim, antes de tudo, o princípio de formação atual do homem.

O desenvolvimento total de cada indivíduo não é apenas uma consequência, mas também condição da possibilidade de organização comunista das relações do homem com o homem. E este não é um ideal no sentido de Kant e de Fichte, e sim o princípio de solução das contradições atuais: o comunismo se converte em realidade exatamente na medida em que cada indivíduo se converte em uma “personalidade totalmente desenvolvida”. E a “realização” do ideal comunista em nenhum caso se pode deixara “para amanhã”. É necessário realiza-lo hoje, agora. A realização do ideal comunista abarca muitas facetas da vida social. E por toda parte os princípios gerais acima expostos têm a mais ampla utilidade.


Notas de rodapé:

(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)

(2) [Pintura de 1512, óleo em tela, do artista italiano Rafael (1483 – 1520) – M.S.] (retornar ao texto)

(3) [Duas linhas marcadas em uma régua de platina-irídio, a 0º C, são utilizadas como medida padrão do metro, no Sistema Internacional – M.S.] (retornar ao texto)

(4) [Declarou em 24 de abril de 1793 o advogado Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794). Ele foi guilhotinado em 28 de julho de 1794. – M.S.] (retornar ao texto)

(5) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Brasil Editora, 1959, p. 26. (retornar ao texto)

(6) Assembleia Nacional Constituinte Francesa. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 1789. Artigo 4º. (retornar ao texto)

(7) HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Carta a Niethammer, 13 de outubro de 1806. (retornar ao texto)

(8) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A569/B597. (retornar ao texto)

(9) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A570/B598. (retornar ao texto)

(10) Fichte, Johann Gottlieb. Sobre a Dignidade do Ser Humano. Revista Princípios, Natal, v.6, n.7, 1999, p. 148. (retornar ao texto)

(11) HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 110. (retornar ao texto)

(12) Fichte, Johann Gottlieb. Sobre a Dignidade do Ser Humano. Revista Princípios, Natal, v.6, n.7, 1999, p. 149, nota 3. (retornar ao texto)

(13) Fichte, Johann Gottlieb. Sobre a Dignidade do Ser Humano. Revista Princípios, Natal, v.6, n.7, 1999, p. 149. (retornar ao texto)

(14) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. BVIII. (retornar ao texto)

(15) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. BIX. (retornar ao texto)

(16) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A133/B172. (retornar ao texto)

(17) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. B141. (retornar ao texto)

(18) KANT, Immanuel. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 79. (retornar ao texto)

(19) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. B142. (retornar ao texto)

(20) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A121 (retornar ao texto)

(21) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. B126 (retornar ao texto)

(22) KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. A752/B780. (retornar ao texto)

(23) [Refere-se a uma situação hipotética em que um asno é colocado à mesma distância de um fardo de palha e um recipiente com água. Uma vez que o paradoxo assume que o asno irá sempre para o que estiver mais perto, ele irá morrer de sede e de fome, uma vez que não pode tomar nenhuma decisão racional sobre a escolha de uma ou de outra hipótese. – M.S.] (retornar ao texto)

(24) Engels, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. Brasília: Centelha Cultural, 2010, p. 22. (retornar ao texto)

(25) MARX, Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirne, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007, p. 37. (retornar ao texto)

(26) MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, pp. 103-104. (retornar ao texto)

(27) MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 114. (retornar ao texto)

(28) MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 4-5. (retornar ao texto)

(29) MARX, Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirne, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007, p. 38, nota a. (retornar ao texto)

(30) MARX, Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirne, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007, p. 43. (retornar ao texto)

(31) MARX, Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirne, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007, p. 534. (retornar ao texto)

(32) Engels, Friedrich. Princípios Básicos do Comunismo. Moscou: Editorial Avante, 1982. (retornar ao texto)

(33) LENIN, Vladimir Ilitch. Cadernos Sobre a Dialética de Hegel. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011, p. 157. (retornar ao texto)

Inclusão 07/12/2013
Última alteração 30/04/2014