O Conceito de Ideal

Evald Vasilyevich Ilyenkov

1977


Fonte: Artigo publicado no livro Filosofia na URSS: Problemas do Materialismo Dialético (Moscou, 1977). É uma versão parcial e editada (pelo tradutor para o inglês) da obra A Dialética do Ideal (só publicada em 2009 em russo e 2012 em inglês). Disponível publicamente em inglês no Marxists Internet Archive [http://www.marxists.org/]..
Tradução: Marcelo José de Souza e Silva.(1)
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Antes de discutir o próprio conceito, precisamos primeiro considerar os termos “ideal” e “idealidade”, isso quer dizer, precisamos primeiro definir o alcance dos fenômenos nos quais esses termos podem ser aplicados, sem analisar, neste ponto, a essência desses fenômenos.

Até mesmo isso não é uma tarefa fácil, pois o uso em geral, e o uso científico em particular, é sempre algo derivativo daquele próprio “entendimento da essência da questão” cuja exposição nossa definição se destina a servir. A dificuldade não é, de forma alguma, peculiar a este caso dado. Ela surge sempre que discutimos questões bastante complexas em relação a se não existe uma interpretação geralmente aceita e, consequentemente, se não existe uma definição clara dos limites do objeto em discussão. Em tais casos, a discussão sobre o ponto em questão se torna um argumento sobre o “significado do termo”, os limites da designação particular e, por isso, sobre os atributos formais dos fenômenos que precisam ser levados em consideração no exame teórico da essência da questão.

Retornando ao assunto do “ideal”, precisa ser reconhecido que a palavra “ideal” é usada atualmente principalmente como um sinônimo para “imaginável”, como o nome para os fenômenos que são “imanentes da consciência”, fenômenos que são representados, imaginados ou pensados. Se nós aceitamos essa conotação bastante estável, segue que não existe razão para falar sobre qualquer “idealidade” de fenômenos existindo fora da consciência humana. Dada esta definição, tudo que existe “fora da consciência” e é percebido como existindo fora dela é um objeto material e somente material.

À primeira vista, este uso do termo parece ser o único sensato. Mas isso é somente à primeira vista.

Naturalmente, seria absurdo e bastante inadmissível a partir da perspectiva de qualquer tipo de materialismo falar sobre qualquer coisa “ideal”, onde nenhum sujeito pensante (“pensante” no sentido de “mental” ou atividade “cerebral”) está envolvido. “Idealidade” é uma categoria vinculada inseparavelmente da representação da cultura humana, atividade da vida humana é intencional e, portanto, inclui a atividade do cérebro humano, consciência e vontade. Isso é axiomático e Marx, quando contrastando sua posição em relação ao “ideal” à visão de Hegel, escreve que o ideal

“não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem”(2).

Não segue disso, entretanto, que na linguagem do materialismo moderno o termo “ideal” é igual a “existindo na consciência”, que é o nome reservado para os fenômenos localizados na cabeça, no tecido cerebral, onde, de acordo com as ideias da ciência moderna, a “consciência” é realizada.

Em O Capital, Marx define a forma do valor em geral como “puramente ideal” não com base de que existe somente “na consciência”, somente na cabeça do proprietário de mercadoria, mas em bases bastante contrárias. O preço ou a forma dinheiro do valor, como qualquer forma do valor em geral, é IDEAL porque é totalmente distinta da forma corpórea, palpável da mercadoria na qual é apresentada, lemos no capítulo sobre “Dinheiro”(3).

Em outras palavras, a forma do valor é IDEAL, embora ela exista fora da consciência humana e independentemente dela.

Este uso do termo pode confundir o leitor que está acostumado à terminologia dos ensaios populares sobre o materialismo e a relação do material e do “ideal”. O ideal que existe fora das cabeças e consciências das pessoas, como algo completamente objetivo, uma realidade de um tipo especial que é independente de sua consciência e vontade, invisível, impalpável e sensorialmente imperceptível, pode parecer a eles algo que é somente “imaginado”, somente “suprasensório”.

O leitor mais sofisticado pode, talvez, suspeitar de Marx, de um flerte desnecessário com a terminologia hegeliana, com a “tradição semântica” associada com os nomes de Platão, Schelling e Hegel, representantes típicos do “idealismo objetivo”, i.e., de uma concepção de acordo com a qual o “ideal” existe como um mundo especial das entidades incorpóreas (“ideias”) que estão fora e independentemente do homem. Ele estará inclinado a censurar Marx por um uso injustificado ou “incorreto” do termo “ideal”, da “hipostatização” hegeliana dos fenômenos da consciência e outros pecados mortais, bastante imperdoáveis em um materialista.

Mas a questão não é tão simples assim. Não é uma questão de terminologia. Mas desde que a terminologia desempenha um papel muito importante na ciência, Marx usa o termo “ideal” no sentido que é próximo à interpretação “hegeliana”, justamente porque contém muito mais significado do que o entendimento pseudomaterialista popular do ideal como um fenômeno da consciência, como uma função puramente mental. A questão é que o idealismo inteligente (dialético) – o idealismo de Platão e Hegel – está de longe mais próximo da verdade do que o materialismo popular de tipo superficial e vulgar (o que Lenin chamou materialismo tolo). No sistema hegeliano, até mesmo de forma invertida, o fato da transformação dialética do ideal em material, e vice-versa, foi expresso teoricamente, um fato que nunca foi suspeitado pelo materialismo “tolo”, que ficou preso em uma oposição crua – não-dialética – de “coisas fora da consciência” com “coisas dentro da consciência”, do “material” com o “ideal”.

O entendimento “popular” do ideal não pode imaginar que armadilhas insidiosas a dialética destas categorias lançou para ele neste caso.

Marx, por outro lado, que havia passado pela escola teste da dialética hegeliana, discerniu esta falha dos materialistas “populares”. Seu materialismo foi enriquecido por todas as conquistas do pensamento filosófico, desde Kant até Hegel. Isso explica o fato que na representação hegeliana da estrutura ideal do universo existindo fora da cabeça humana e fora da consciência, ele foi capaz de ver não simplesmente um “absurdo idealístico”, não simplesmente uma versão filosófica dos contos de fadas religiosos sobre Deus (e isso é tudo que o materialismo vulgar vê na concepção hegeliana), mas uma descrição idealisticamente invertida da verdadeira relação da “mente com a Natureza”, do “ideal com o material”, do “pensamento com o ser”. Ela também encontrou sua expressão na terminologia.
Nós devemos, portanto, considerar brevemente a história do termo “ideal” no desenvolvimento da filosofia clássica alemã desde Kant até Hegel, e a moral de que o materialista “inteligente” (i.e., dialético) Marx foi capaz de extrair desta história.

Tudo começou quando o fundador da filosofia clássica alemã, Immanuel Kant, tomou como seu ponto de partida a interpretação “popular” dos conceitos do “ideal” e do “real”, sem suspeitar quais armadilhas ele preparou para si mesmo.
É notável que em sua Crítica da Razão Pura, Kant não formula seu entendimento de “idealidade”, mas usa este termo como um predicado pronto, não exigindo qualquer explicação especial quando ele está definindo espaço e tempo e falando de sua “idealidade transcendental”. Isso significa que as “coisas” possuem um determinismo espaço-tempo somente na consciência e graças à consciência, mas não nelas mesmas, fora e antes de seu aparecimento na consciência. Aqui, “idealidade” é claramente entendida como um sinônimo para a natureza “pura” e a priori da consciência enquanto tal, sem conexões externas. Kant não atribui outro significado ao termo “idealidade”.

Por outro lado, o elemento “material” do conhecimento é obtido por sensações, que nos assegura da existência (e somente isso!) das coisas fora da consciência. Assim, tudo que sabemos sobre “as coisas nelas mesmas” é que elas “existem”. O ideal é aquilo que existe exclusivamente na consciência e graças à atividade da consciência. E reciprocamente, aquilo que existe somente na consciência é caracterizado como o “ideal”. Tudo claro e simples. Uma distinção perfeitamente popular. E o que isso equivale é que nenhum dos fatos que conhecemos e temos ciência nas coisas – suas cores, formas geométricas, gosto, interdependência causal – pode ser atribuído às próprias coisas. Tudo isso são meros atributos providos por nossa própria organização, e não das coisas. Em outras palavras, o “ideal” é tudo que conhecemos sobre o mundo, exceto o simples fato de sua “existência”, seu “ser fora da consciência”. O último é não-ideal e, portanto, inacessível à consciência e ao conhecimento, transcendental, alheio, e ciente do fato das coisas, a parte de tudo mais, também “existem” (fora da consciência) não adiciona qualquer coisa ao nosso conhecimento delas. E é essa interpretação que Kant ilustra com seu famoso exemplo dos tálers(4). É uma coisa, ele escreve, ter uma centena de tálers em um bolso, e uma bastante diferente tê-los somente na consciência de alguém, somente na imaginação, somente nos sonhos (i.e., a partir da perspectiva do uso popular, somente tálers “ideais”).

Na filosofia de Kant, este exemplo desempenha um papel extremamente importante como um dos argumentos contra a tão falada “prova ontológica da existência de Deus”. Seu argumento é o seguinte: Não pode ser inferido, a partir da existência de um objeto na consciência, que o objeto existe fora da consciência. Deus existe na consciência das pessoas, mas não segue a partir disso que Deus existe “na verdade”, fora da consciência. Afinal, existem todos os tipos de coisas na consciência das pessoas! Centauros, bruxas, fantasmas, dragões com sete cabeças...

Com este exemplo, entretanto, Kant se coloca em uma posição bastante difícil. Na verdade, em um país vizinho onde a moeda corrente não era o táler, mas rubros ou francos, teria sido simples explicar a ele que o que ele tinha em seu bolso não eram “tálers reais”, mas somente pedaços de papel com símbolos, transportando uma obrigação somente para os sujeitos prussianos. ... Entretanto, se alguém reconhece como “real” somente o que é autorizado por decretos do rei prussiano e confirmado por sua assinatura e selo, o exemplo de Kant prova o que Kant quis provar. Se, por outro lado, alguém tem uma representação um pouco mais ampla do “real” e do “ideal”, seu exemplo prova justamente o contrário. Longe de refutar, na verdade confirma aquela própria “prova ontológica” que Kant declarou ser um exemplo típico da dedução errônea da existência de um protótipo fora da consciência a partir da existência do tipo de consciência.

“O contrário é verdade. O exemplo de Kant poderia ter forçado a prova ontológica”(5), escreveu Marx, que tinha uma posição ateísta muito mais radical que Kant em relação a “Deus”. E ele continuou: “Tálers reais têm a mesma existência que os deuses imaginados têm. Um táler real tem qualquer existência que não na imaginação, mesmo que apenas na imaginação geral ou bastante comum do homem? Traga papel-moeda para um país onde o uso de papel é desconhecido e todos irão rir de sua imaginação subjetiva”(6).

A reprovação voltada à Kant não deriva, naturalmente, de um desejo de mudar o significado dos termos “ideal” e “real” depois do estilo hegeliano. Marx fundamenta seu argumento na compreensão do fato de que o sistema filosófico que denota como “real” algo que o homem percebe como uma coisa existindo fora de sua própria consciência, e “ideal” tudo que não é percebido na forma de tal coisa, não pode extrair distinções críticas entre as ilusões e erros mais fundamentais da raça humana.

É bem verdade que os “tálers reais” não são de forma alguma diferentes dos deuses das religiões primitivas, dos fetiches brutos dos selvagens que cultuavam (precisamente como seu “deus”!) um pedaço de pedra absolutamente real e verdadeiro, um ídolo de bronze ou qualquer outro “objeto externo” similar. Os selvagens, de forma alguma, reconhecem o objeto de sua adoração como um símbolo do “Deus”; para ele este objeto em toda sua corporeidade bruta sensorialmente perceptível é Deus, o próprio Deus, e não uma mera “representação” dele.

A própria essência do fetichismo é que ele atribui ao objeto em sua forma imediatamente perceptível, propriedades que na verdade não pertencem a ele e não possuem qualquer coisa em comum com a aparência externa sensorialmente perceptível.

Quando tal objeto (pedra ou ídolo de bronze etc.) cessa de ser considerado como “o próprio Deus” e adquire o significado de um “símbolo externo” deste Deus, quando não é percebido como o sujeito imediato da ação descrita acima, mas meramente como um “símbolo” de algo exterior, de forma alguma parecido com o símbolo, então a consciência do homem dá um passo em direção ao caminho do entendimento da essência das coisas.

Por esta razão o próprio Kant e Hegel, que está completamente de acordo com o primeiro neste ponto, consideram a versão protestante do cristianismo como um estágio mais elevado no desenvolvimento da consciência religiosa do que o catolicismo arcaico, que não tem, realmente, progredido muito longe do fetichismo primitivo dos adoradores de ídolos. A própria coisa que distingue o católico do protestante é que o católico tende a tomar tudo retratado em pinturas religiosas e na história da bíblia literalmente, como uma representação exata dos eventos que ocorreram no “mundo externo” (Deus como um velho benevolente com uma barba e uma auréola brilhante em volta de sua cabeça, o nascimento de Eva como uma verdadeira conversão da costela de Adão em um ser humano etc., etc.). O protestante, por outro lado, considerando “idolatria” esta interpretação, considera tais eventos como alegorias que possuem um significado “interno”, puramente ideal, moral.

Os hegelianos, na verdade, reprovaram Kant por jogar nas mãos da idolatria católica com seu exemplo dos tálers, por argumentar contra suas próprias simpatias e atitudes protestantes, porque os “tálers externos” (os tálers em seu bolso) eram somente símbolos na “imaginação geral ou bastante comum do homem”, eram somente representantes (formas de expressão externa, personificação) do “espírito”, assim como as pinturas religiosas, apesar de sua realidade sensorialmente perceptível, eram somente imagens produzidas pela autoconsciência social humana, pelo espírito humano. Em sua essência, eles eram inteiramente ideais, embora em sua existência eles fossem substanciais, materiais e estavam localizados, naturalmente, fora da cabeça humana, fora da consciência do sujeito, fora da atividade mental singular com seus mecanismos transcendentais.

“Deuses” e “tálers” são fenômenos de mesma ordem, Hegel e os hegelianos declararam, e por esta comparação o problema do “ideal” e seu relacionamento com o “real”, com o mundo materialmente substancial, foi postulado de maneira bastante diferente da de Kant. Foi associada com o problema da “alienação”, com a questão da “reificação” e “des-reificação”, da “reassimilação” pelo homem dos objetos criados por ele próprio, objetos que através da ação de alguns processos misteriosos foram transformados em um mundo não somente de formações “externas” objetivas, mas formações que eram também hostis ao homem.

Daí vem a seguinte interpretação do problema de Kant:

As provas da existência de Deus são meras tautologias vazias. Tome, por exemplo, a prova ontológica. Só significa isso: “aquilo que é concebido por mim mesmo em uma forma real (realiter) é um conceito real para mim”, algo que funciona para mim. Neste sentido todos os deuses, os pagãos assim como o cristão, tem possuído uma existência real. O antigo Moloque(7) não reinou? O Templo de Apolo não era um poder real na vida dos gregos? A crítica de Kant não significa qualquer coisa a este respeito. Se alguém imagina que possui uma centena de tálers, se este conceito não é para ele arbitrário, subjetivo, se ele acredita nisso, então esta centena de tálers imaginados tem para ele o mesmo valor que uma centena real. Por exemplo, ele vai incorrer em dívidas com a força de sua imaginação, sua imaginação vai funcionar, da mesma maneira que toda humanidade tem incorrido em dívidas com seus deuses.(8)

Quando a questão foi postulada desta maneira, a categoria do “ideal” adquiriu um significado bastante diferente daquele dado por Kant, e isso não foi, de forma alguma, devido a um capricho terminológico de Hegel e dos hegelianos. Ele expressava o fato óbvio que a consciência social não é simplesmente a consciência singular repetida muitas vezes (assim como o organismo social em geral não é o organismo humano singular repetido muitas vezes), mas é, na verdade, um sistema historicamente formado e historicamente desenvolvido das “representações objetivas”, formas e padrões do “espírito objetivo”, da “razão coletiva” da humanidade (ou mais diretamente, “as pessoas” com sua inimitável cultura espiritual), tudo isso sendo bastante independente de caprichos singulares da consciência ou vontade. Este sistema compreende todas as normas morais gerais regulando a vida diária das pessoas, os preceitos legais, as formas de organização político-estatal da vida, os padrões ritualmente legitimados da atividade em todas as esferas, as “regras” da vida que devem ser obedecidas por todos, as estritas regulações das corporações, e assim por diante, até e incluindo as estruturas gramaticais e sintáticas do discurso e linguagem e as normas lógicas do raciocínio.

Todas essas formas e padrões estruturais da consciência social inequivocamente opõem a consciência e vontade singular como uma “realidade” especial, internamente organizada, como as formas completamente “externas” determinando aquela consciência e vontade. É um fato que todo sujeito deve, a partir da infância, contar com muito mais cuidado com demandas e restrições do que com a aparência imediatamente perceptível das “coisas” e situações externas, ou as atrações orgânicas, desejos e necessidades de seu corpo singular.

É igualmente óbvio que todos esses padrões e formas externamente impostos não podem ser identificados na consciência singular como padrões “inatos”. Eles são todos assimilados ao longo da criação e educação – isto é, ao longo da assimilação singular da cultura intelectual que está disponível e que toma forma ante ele, sem ele e independentemente dele – como os padrões e formas daquela cultura. Não existem formas “imanentes” da atividade mental singular. Elas são as formas do “sujeito” externo, “outro”, que ele assimila.

É por isso que Hegel vê a principal vantagem do ensinamento de Platão no fato de que a questão do relacionamento do “espírito” com a “natureza” é postulado pela primeira vez não na base estreita das relações da “alma singular” com “tudo mais”, mas com base em uma investigação do “mundo das ideias” universal (coletivo social) como contrário ao “mundo das coisas”. Na doutrina de Platão “[...] a realidade do espírito, na medida em que é contrário à natureza, é apresentando em sua verdade mais elevada, apresentado como a organização do estado”(9).

Aqui deve ser observado que pelo termo “estado”, Platão entende não somente a superestrutura política e legal, mas também a soma total das regras sociais regulando a vida dos sujeitos dentro de uma sociedade organizada, a “polis”, ou qualquer formação similar, tudo que é agora implícita pelo termo mais amplo “cultura”.

É de Platão, portanto, que surge a tradição de examinar o mundo das ideias (ele, na verdade, nos dá o conceito do “mundo ideal”) como um mundo de leis, regras e padrões estável e internamente organizado, controlando a atividade mental do sujeito, a “alma singular”, como uma “realidade objetiva” supernatural, especial, em oposição a todo sujeito e ditando imperativamente ao sujeito como ele deve agir em qualquer situação dada. A força “externa” imediata determinando a conduta do sujeito é o “estado”, que protege todo o sistema da cultura espiritual, todo o sistema de direitos e obrigações de todo cidadão.

Aqui, em uma forma semi-mística, semi-mitológica, foi claramente estabelecido um fato perfeitamente real, o fato da dependência da atividade mental (e não somente mental) do sujeito no sistema de cultura estabelecido antes dele e completamente independentemente dele, um sistema na qual a “vida espiritual” de todo sujeito começa e corre seu curso.

A questão do relacionamento do “ideal” com o “substancialmente material” foi aqui apresentada como uma questão do relacionamento dessas formas estáveis (padrões, estereótipos) da cultura do mundo das “coisas singulares”, que incluíam não somente “coisas externas”, mas também o corpo físico do próprio homem.

Na verdade, foi somente aqui que a necessidade surgiu para uma definição clara da categoria da “idealidade” como contrário à representação vaga, indiferenciada da “psique” em geral, que deve igualmente bem ser interpretada como uma função totalmente corpórea da “alma” fisicamente interpretada, não importa a qual órgão esta função foi realmente atribuída – coração, fígado ou cérebro. Ao contrário, “idealidade” permanece como um rótulo verbal supérfluo e completamente desnecessário para o “psíquico”. É isso que era antes de Platão, o termo “ideia” sendo usado, até mesmo por Demócrito, para designar uma forma completamente substancial, os esboços geométricos da “coisa”, um corpo, que foi bastante fisicamente imprimido no homem, no corpo físico de seus olhos. Este uso, que era característico da forma primitiva, ingênua do materialismo, não pode, naturalmente, ser usado pelo materialismo atualmente, que leva em consideração toda a complexidade dos relacionamentos entre a atividade mental singular e o “mundo das coisas”.

Por esta razão, no vocabulário da psicologia materialista moderna (e não somente na filosofia), a categoria de “idealidade” ou o “ideal” define não a atividade mental em geral, mas somente certo fenômeno conectado, naturalmente, com a atividade mental, mas de forma alguma fundindo com ele.

Idealidade caracteriza principalmente a ideia ou imagem na medida em que eles, se tornando objetivado em palavras” [entrando em um sistema de conhecimento socialmente evoluído que para o sujeito é algo que é dado a ele – Ilienkov], “na realidade objetiva, assim adquire uma independência relativa, separando eles próprios, por assim dizer, da atividade mental do sujeito”(10), escreve o psicólogo soviético S. L. Rubinstein.

Somente nesta interpretação a categoria da “idealidade” se torna uma definição especificamente significante de certa categoria de fenômenos, estabelecendo a forma do processo de reflexão da realidade objetiva na atividade mental, que é social e humana em sua origem e essência, na consciência humana-social, e cessa de ser um sinônimo desnecessário da atividade mental em geral.

Com referência na citação do livro de S. L. Rubinstein, só é preciso observar que a imagem é objetivada não somente em palavras, e pode entrar no sistema do conhecimento socialmente evoluído não somente em sua expressão verbal. A imagem é objetivada assim como (e até mesmo mais diretamente) em formas esculturais, gráficas e plásticas, e na forma de maneiras rituais rotineiras de lidar com coisas e pessoas, assim é expressa não somente em palavras, no discurso e linguagem, mas também em projetos, modelos e tais objetos simbólicos como brasões, bandeiras, roupas, utensílios ou como dinheiro, incluindo moedas de ouro e papel-moeda, notas promissórias, títulos ou notas de créditos.
“Idealidade” em geral é, na linguagem historicamente formada da filosofia, uma característica das imagens materialmente estabelecidas (objetivadas, materializadas, reificas) da cultura social humana, isto é, os modos historicamente formados da vida social humana, que confronta o sujeito que possui consciência e vontade como uma realidade objetiva “supernatural” especial, como um objeto especial comparável com a realidade material e situada em um e mesmo plano espacial (e, além disso, frequentemente identificado com ele).

Por esta razão, puramente para o bem da precisão terminológica, é infrutífero aplicar esta definição aos estados mentais puramente singulares a qualquer momento dado. Os últimos, com todos os seus caprichos e variações singulares únicos, são determinados em efeito pelas numerosas interconexões dos mais diversos fatores até e incluindo estados transientes do organismo e características peculiares destas reações bioquímicas (tais como alergia ou daltonismo, por exemplo), e, portanto, pode ser considerado no plano da cultura social humana como puramente acidental.

É por isso que encontramos Kant falando sobre a “idealidade do espaço e tempo”, mas não sobre a “idealidade” das sensações conscientes do peso, por exemplo, nos músculos do braço quando alguém está carregando algo; sobre a “idealidade” na corrente de causa e efeito, mas não sobre a idealidade do fato de que a pedra com o sol brilhando sobre ela se torna mais quente (embora este fato é também conscientemente percebido). Em Kant, “idealidade” se torna um sinônimo para o “caráter transcendental” das formas universais de sensorialidade e razão, isto é, padrões da atividade cognitiva que são inerentes em todo “eu”, e assim tem um caráter e exibição completamente impessoal, além disso, uma força compulsiva em relação a cada “eu” separado (“empírico”). É por isso que espaço e tempo, dependência causal e “beleza” são para Kant “ideais”, enquanto não são estados mentais conectados com os estados físicos transitórios e únicos do corpo do sujeito. Reconhecidamente, como vimos no exemplo dos “tálers”, Kant nem sempre adere estritamente a sua terminologia, embora a razão para isso não seja certamente descuido (seria difícil reprovar Kant por isso), mas sim a artimanha dialética dos problemas que ele levanta. Mas, apesar da instabilidade da definição terminológica das categorias, seus conteúdos dialéticos objetivos começam a se mostrar – o próprio conteúdo que a escola hegeliana provê com uma definição muito mais adequada. O ponto é que Kant não poderia superar plenamente a representação de “consciência social” (“espírito universal”) como, as muitas vezes repetidas, consciência singular.

Na filosofia hegeliana, entretanto, o problema foi indicado de forma fundamentalmente diferente. O organismo social (a “cultura” das pessoas dadas) não é de forma alguma uma abstração expressando a “semelhança” que pode ser descoberta na mentalidade de todo sujeito, um “abstrato” inerente a todo sujeito, o padrão “transcendentalmente psicológico” da atividade da vida singular. As formas historicamente construídas e desenvolvidas do “espírito universal” (“o espírito das pessoas”, o “espírito objetivo”), embora ainda entendido por Hegel como certos padrões estáveis em cuja estrutura a atividade mental de todo sujeito procede, não é menos reconhecida por ele não como abstrações formais, não como “atributos” abstratamente universais inerentes em todo sujeito, tomados separadamente. Hegel (seguindo Rousseau com sua distinção entre a “vontade geral” e a “vontade universal”) toma plenamente em conta o fato óbvio de que em colisões diversas de “vontades singulares” diferentemente orientadas, certos resultados, que nunca estiveram contidos em qualquer um deles separadamente, nascem e se cristalizam, e isso por causa desta consciência social como uma “entidade” não é construída, certamente, de tijolos, a partir da “semelhança” a ser encontrada em cada uma de suas “partes” (os eus singulares, consciências singulares). E nisso é onde somos mostrados o caminho para um entendimento do fato de que todos os padrões que Kant definiu como formas “transcendentalmente inatas” de operação da mentalidade singular, como “mecanismos internos” a priori inerentes em toda mentalidade, são, na verdade, formas da autoconsciência do homem social assimilada de fora pelo sujeito (originalmente eles opuseram ele como padrões “externos” do movimento da cultura independente de sua vontade e consciência), o homem social sendo entendido como o historicamente desenvolvido “agregado de todas as relações sociais”.

São nessas formas da organização da atividade da vida humana social (realizada coletivamente), que existe antes, fora e completamente independente da mentalidade singular, de uma forma ou de outra, estabelecida materialmente na linguagem, em costumes e direitos ritualmente legitimados e, além disso, como “a organização de um estado” com todos os seus atributos e órgãos materiais para a proteção das formas tradicionais da vida que estão em oposição ao sujeito (o corpo físico do sujeito com seu cérebro, fígado, coração, mãos e outros órgãos) como uma entidade organizada “nela e para ela mesma”, como algo ideal em que todas as coisas singulares adquirem um significado diferente e desempenham um papel diferente daquele que eles desenvolveram “como eles próprios”, isto é, fora desta entidade. Por esta razão, a definição “ideal” de qualquer coisa, ou a definição de qualquer coisa como um momento “desaparecendo” no movimento do “mundo ideal”, coincide em Hegel com o papel e significado desta coisa na cultura social humana, no contexto da atividade da vida humana socialmente organizada, e não na consciência singular, que aqui é reconhecida como algo derivado do “espírito universal”.

Será prontamente apreciado quão amplo e mais profundo tal posicionamento da questão é, em comparação com qualquer concepção que designa como “ideal” tudo que está “na consciência do sujeito”, e “material” ou “real”, tudo que está fora da consciência do sujeito, tudo que o sujeito dado não é consciente de, embora este “tudo” não exista na realidade, e assim desenha entre o “ideal” e o “real” uma linha fundamentalmente divisória que os coloca em “mundos diferentes” que têm “nada em comum” uns com os outros. Está claro que, dada tal divisão e delimitação metafísica, o “ideal” e o “material” não podem e não devem ser considerados como opostos. Aqui eles são “diferentes”, e isso é tudo.
Hegel procede de um fato bastante óbvio para a consciência do sujeito, o “real” e até mesmo o “material bruto” – certamente não o “ideal” – são, primeiramente, o todo grandioso da cultura humana materialmente estabelecida da raça humana, em que e pela assimilação que este sujeito desperta para a “autoconsciência”. É isso que confronta o sujeito, como o pensamento das gerações antecedentes realizado (“reificaram”, “objetivaram”, “alienaram”) em “matéria” sensorialmente perceptível – na linguagem e imagens visualmente perceptíveis, em livros e estátuas, em madeira e bronze, na forma de locais de adoração e instrumentos de trabalho, em projetos de máquinas e prédios públicos, nos padrões dos sistemas científico e moral, e assim por diante. Todos esses objetos são, em sua existência, em seu “presente ser” substancial, “material”, mas em sua essência, em sua origem eles são “ideais”, porque eles “personificam” o pensamento coletivo das pessoas, o “espírito universal” da humanidade.

Em outras palavras, Hegel inclui no conceito de “ideal”, tudo que outro representante do idealismo na filosofia (é certo que ele nunca reconheceu a si próprio como sendo um “idealista”) – Alexander A. Bogdanov – um século depois designa como “experiência socialmente organizada” com seus padrões estáveis, historicamente cristalizados, normas, estereótipos e “algoritmos”. A característica que ambos Hegel e Bogdanov têm em comum (como “idealistas”) é a representação de que este mundo da “experiência socialmente organizada” é, para o sujeito, o único “objeto” que ele “assimila” e “conhece”, o único objeto em que ele tem qualquer relação.

Mas o mundo que existe antes, fora e independentemente da consciência e vontade em geral (i.e., não somente na consciência e vontade do sujeito, mas também da consciência social e da “vontade” socialmente organizada), o mundo enquanto tal, é levado em conta por esta concepção somente na medida em que encontra expressão nas formas universais da consciência e vontade, na medida em que já é “idealizado”, já assimilado na “experiência”, já apresentado em padrões e formas desta “experiência”, já nele incluído.

Mas essa reviravolta de pensamento, que caracteriza o idealismo em geral (seja ele platônico, berkeleiano, hegeliano ou aquele de Popper), o mundo material real, existindo antes, fora e bastante independentemente da “experiência”, e antes de ser expresso nas formas desta “experiência” (incluindo a linguagem), é totalmente removido do campo de visão, e o que começa a se descobrir sob a designação de “mundo real” já é um mundo “idealizado”, um mundo já assimilado pelas pessoas, um mundo já conformado por sua atividade, o mundo como as pessoas conhecem, como apresentado nas formas existentes de sua cultura. Um mundo já expresso (apresentado) nas formas da experiência humana existente. E este mundo é declarado como sendo o único mundo sobre o qual qualquer coisa pode ser dita.

Este idealismo secreto se mostra transparentemente na discussão de Hegel da “idealidade” como fenômenos naturais, em sua apresentação da natureza como um ser “ideal” em si mesmo. Fundamentando o que ele tem a dizer sobre certos fenômenos naturais é sua descrição dos conceitos e termos da física atual: “[...] porque a massa empurra e esmaga cada um e não existe vácuo entre eles, é somente neste contato que a idealidade da matéria em geral começa, e é interessante ver como este caráter intrínseco da matéria surge, pois em geral é sempre interessante ver a realização de um conceito”(11). Aqui Hegel está realmente falando não sobre a natureza como ela é, mas sobre a natureza como é apresentada (descrita) no sistema de uma teoria física definida, no sistema de suas definições estabelecida por sua “linguagem” historicamente formada.

É este fato, incidentalmente, que explica a sobrevivência persistente de tais “substituições semânticas”; realmente, quando estamos falando sobre a natureza, somos obrigados a fazer uso da linguagem disponível da ciência natural, a “linguagem da ciência”, com seus “significados” estabelecidos e geralmente entendidos. É isto, especificamente, que forma a base dos argumentos do positivismo lógico, que bastante conscientemente identifica “natureza” com a “linguagem”, na qual as pessoas falam e escrevem sobre a natureza.

Será apreciado que a principal dificuldade e, portanto, o principal problema da filosofia, não é distinguir e contrapor tudo que está “na consciência do sujeito” a tudo que está fora da consciência deste sujeito (isso quase nunca é difícil de fazer), mas delimitar o mundo das representações coletivamente reconhecidas, isto é, todo o mundo socialmente organizado da cultura intelectual, com todos os seus padrões universais materialmente estabelecidos, e o mundo real como ele existe fora e a parte de sua expressão nestas formas socialmente legitimadas da “experiência”.

É aqui e somente aqui que a distinção entre o “ideal” e o “real” (“material”) adquire um significa científico sério, porque na prática os dois são geralmente confundidos. Apontando o fato de que a coisa e a forma da coisa existem fora da consciência do sujeito e não dependem da vontade do sujeito, ainda não resolve o problema de sua objetividade no seu sentido plenamente materialista. E, reciprocamente, de forma alguma todas aquelas pessoas que não sabem, estão ignorantes de, não percebem como as formas das coisas externas, é invenção, o desempenho da imaginação, uma representação que existe meramente na cabeça do homem. É por causa disso que a “pessoa sensível”, cuja forma de pensamento Kant apela com seu exemplo dos tálers, é mais frequente do que outras pessoas iludidas em todas as representações coletivamente reconhecidas pela realidade objetiva, e a realidade objetiva revelada pela pesquisa científica como invenção subjetiva existindo somente nas cabeças dos “teóricos”. É a “pessoa sensível”, diariamente observando o sol nascer no Leste e se pôr no Oeste, que protesta que o sistema de Copérnico é uma invenção que contradiz os “fatos óbvios”. E exatamente da mesma maneira a pessoa ordinária, puxada na órbita das relações dinheiro-mercadoria, considera o dinheiro como uma coisa perfeitamente material, e valor, que de fato encontra sua expressão externa no dinheiro, como mera abstração existindo somente nas cabeças dos teóricos, somente “idealmente”.

Por esta razão o materialismo consistente, diante deste tipo de situação, não consegue definir o “ideal” como aquilo que existe na consciência do sujeito, e o “material” como aquilo que existe fora desta consciência, como a forma sensorialmente percebida da coisa externa, como uma forma corpórea real. A fronteira entre os dois, entre o “material” e o “ideal”, entre a “coisa nela mesma” e sua representação na consciência social não pode cruzar esta linha porque, se fizer, o materialmente seria completamente inútil quando confrontado com a dialética que Hegel descobriu nas relações entre o “material” e o “ideal” (particularmente, nos fenômenos do fetichismo de todos os tipos, desde o da religião até da mercadoria, e, além disso, o fetichismo das palavras, da linguagem, símbolos e signos).

É um fato, que assim como o ícone ou a moeda de ouro, qualquer palavra (termo ou combinação de termos) é primariamente uma “coisa” que existe fora da consciência do sujeito, possui propriedades físicas perfeitamente reais e é sensorialmente percebida. De acordo com a velha classificação aceita por todos, incluindo Kant, palavras estão claramente sob a categoria do “material” com tantas justificativas como pedras e flores, pão ou garrafa de vinho, a guilhotina ou o prelo. Certamente então, em contrate a estas coisas, o que nós chamamos o “ideal”, é sua imagem subjetiva na cabeça do sujeito, na consciência do sujeito.

Mas aqui somos imediatamente confrontados com a artimanha desta distinção, que é plenamente provida pela escola hegeliana e sua concepção da “materialização”, a “alienação”, a “reificação” das representações universais. Como resultado deste processo, que tem lugar “atrás das costas da consciência do sujeito”, o sujeito é confrontado na forma de uma “coisa externa” com a representação de pessoas em geral (i.e., coletivamente reconhecida), que não tem qualquer coisa em comum com a forma física sensorialmente percebida na qual está “representada”.

Por exemplo, o nome “Pedro” é, em sua forma física sensorialmente percebida, absolutamente diferente do Pedro real, a pessoa que ele designa, ou a imagem sensorialmente representada de Pedro que outras pessoas têm dele. A relação é a mesma entre a moeda de ouro e os bens que podem ser comprados com ela, bens (mercadorias) cujo representante universal é a moeda e (depois) a cédula. A moeda não representa a si mesma, mas “outro”, no mesmo sentido no qual um diplomata representa não sua própria pessoa, mas seu país, que o autorizou a fazê-lo. O mesmo pode ser dito da palavra, o símbolo ou signo verbal, ou qualquer combinação de tais signos e o padrão sintático desta combinação.

Esta relação da representação é uma relação na qual uma coisa sensorialmente percebida executa o papel ou função de representante de outra coisa, e, para ser ainda mais preciso, a natureza universal daquela outra coisa, isto é, algo “outro” que, nos termos físicos, sensoriais, é bastante diferente dele, e foi essa relação que na tradição terminológica hegeliana adquiriu o título de “idealidade”.

Em O Capital, Marx bastante conscientemente usa o termo “ideal” neste significado formal que foi dado por Hegel, e não no sentido em que foi usado por toda a tradição pré-hegeliana, incluindo Kant, embora a interpretação teórica-filosófica do alcance dos fenômenos em que ambos os casos são designados similarmente como “ideal”, é diametralmente contrária a sua interpretação hegeliana. O significado do termo “ideal” em Marx e Hegel é o mesmo, mas os conceitos, i.e., as formas de entendimentos deste “mesmo” significado são profundamente diferentes. Afinal, a palavra “conceito” na lógica dialeticamente interpretada é um sinônimo para o entendimento da essência da matéria, a essência dos fenômenos que são somente delineados pelo termo dado; não é de forma alguma um sinônimo para “o significado do termo”, que pode ser interpretado formalmente como a soma total dos “atributos” dos fenômenos cujo termo é aplicado.

Foi por essa razão que Marx, assim como qualquer teórico genuíno, preferiu não mudar os “significados dos termos” historicamente formados, a nomenclatura estabelecida dos fenômenos, mas, enquanto fazendo um uso dele estrito e rigoroso, propôs um entendimento bastante diferente destes fenômenos, que era, na verdade, o oposto do entendimento tradicional.

Em O Capital, quando analisando o dinheiro – aquela categoria familiar, ainda assim misteriosa dos fenômenos sociais – Marx descreveu como “ideal”, nada mais, nada menos, que a forma-valor dos produtos do trabalho em geral (die Wertform überhaupt).

Assim, o leitor para o qual o termo “ideal” é um sinônimo para o “imanente na consciência”, “existindo somente na consciência”, “somente nas ideias das pessoas”, somente em sua “imaginação” compreenderá equivocadamente a ideia expressa por Marx, porque neste caso verifica-se que mesmo o capital – que nada mais é que não a forma-valor da organização das forças produtivas, uma forma do funcionamento dos meios de produção – também existe somente na consciência, somente na imaginação subjetiva das pessoas, e “não na realidade”.

Obviamente, somente um seguidor de Berkeley poderia tomar o ponto desta forma, e certamente não um materialista.

De acordo com Marx, a idealidade da forma do valor consiste, naturalmente, não no fato de que esta forma representa um fenômeno mental existindo somente no cérebro do proprietário de mercadoria ou teórico, mas no fato que a forma palpável corpórea da coisa (por exemplo, um casaco) é somente uma forma de expressão de uma “coisa” bastante diferente (linho, como um valor), com o qual não tem qualquer coisa em comum. O valor do linho é representado, expresso, “personificado” na forma do casaco, e a forma do casaco é a “forma ideal ou representada” do valor do linho.

Como valor de uso, o linho é uma coisa fisicamente distinta do casaco; como valor, ele é “casaco-idêntico” [Rockgleiches] e aparenta, pois, ser um casaco. Assim, o linho recebe uma forma de valor diferente de sua forma natural. Seu ser de valor aparece em sua igualdade com o casaco, assim como a natureza de carneiro do cristão em sua igualdade com o Cordeiro de Deus.(12)

Esta é uma relação completamente objetiva, em que a “forma natural da mercadoria B converte-se na forma de valor da mercadoria A, ou o corpo da mercadoria B se converte no espelho do valor da mercadoria A”(13), o representante autorizado desta natureza “valor”, da “substância” que é “personificada” tanto aqui como lá.

É por isso que a forma do valor ou forma-valor é ideal, isso quer dizer, é algo bastante diferente da forma palpável da coisa na qual é representada, expressa, “personificada”, “alienada”.

O que é esse “outro”, esta diferença que é expressa ou representada aqui? A consciência das pessoas? Sua vontade? De forma alguma. Ao contrário, tanto vontade como consciência são determinados por sua forma ideal objetiva, e a coisa que expressam, “representam”, é uma relação social definida entre pessoas, que em seus olhos assumem a forma fantástica de um relacionamento entre coisas.

Em outras palavras, o que é “representado” aqui como uma coisa é a forma da atividade das pessoas, a forma da atividade da vida que eles realizam juntos, que tomou a forma “por trás da consciência” e está estabelecida materialmente na forma do relacionamento entre coisas descrito acima.

Isso e somente isso cria a idealidade de tal “coisa”, seu caráter sensório-supersensório.

Aqui a forma ideal, na verdade, está em oposição à consciência do sujeito e vontade do sujeito, como a forma da coisa externa (lembre-se dos tálers de Kant) e é necessariamente percebida precisamente como a forma da coisa externa, não sua forma palpável, mas como a forma de outra coisa igualmente palpável que ela representa, expressa, personifica, diferindo, entretanto, da corporeidade palpável de ambas as coisas e tendo nada em comum com sua natureza física sensorialmente perceptível. O que é personificado e “representado” aqui é uma forma definida de trabalho, uma forma definida de atividade objetiva humana, isso quer dizer, a transformação da natureza pelo homem social.

É aqui que encontramos a resposta para o enigma da “idealidade”. Idealidade, de acordo com Marx, não é qualquer coisa senão a forma da atividade social humana representada na coisa. Ou, reciprocamente, a forma da atividade humana representada como uma coisa, como um objeto.

“Idealidade” é um tipo de estampa impressa na substância da natureza pela atividade da vida social humana, uma forma de funcionamento da coisa física no processo de sua atividade. Assim, todas as coisas envolvidas no processo social adquirem uma nova “forma de existência”, que não está incluída em sua natureza física e difere dela completamente – sua forma ideal.

Assim, não se pode falar de “idealidade” onde não existem pessoas produzindo e reproduzindo socialmente sua vida material, isso quer dizer, sujeitos trabalhando coletivamente e, portanto, possuindo necessariamente consciência e vontade. Mas isso não significa que a “idealidade das coisas” é um produto de sua vontade consciente, que é “imanente na consciência” e existe somente na consciência. Muito pelo contrário, a consciência e vontade do sujeito são funções da idealidade das coisas, sua idealidade consciente, compreendida.

Idealidade, assim, tem uma natureza e origem puramente social. É a forma de uma coisa, mas está fora da coisa, e na atividade do homem, como uma forma de sua atividade. Ou, reciprocamente, é a forma da atividade da pessoa, mas fora desta pessoa, como uma forma da coisa. Aqui, então, está a chave para todo o mistério que tem provido uma base real para todos os tipos de construções e concepções idealísticas, do homem e do mundo além do homem, desde Platão até Carnap e Popper. “Idealidade” constantemente escapa, foge da fixação teórica metafisicamente de valor único. Tão logo é fixada como a “forma da coisa”, começa a importunar o teórico com sua “imaterialidade”, seu caráter “funcional”, e aparece somente como uma forma da “atividade pura”. Por outro lado, tão logo alguém tenta fixa-la “enquanto tal”, como purificada de todos os traços da corporeidade palpável, verifica-se que esta tentativa é fundamentalmente fadada ao fracasso, que depois de tal purificação não existirá qualquer coisa senão um vazio fantasmagórico, um vácuo indefinível.

E realmente, como Hegel entendeu muito bem, é absurdo falar de “atividade” que não é realizada em qualquer coisa definida, não é “personificada” em algo corpóreo, mesmo que apenas em palavras, discurso, linguagem. Se tal “atividade” existe, não pode ser na realidade, mas somente na possibilidade, somente potencialidade e, portanto, não como atividade, mas seu contrário, como inatividade, como a ausência de atividade.

Então, de acordo com Hegel, o “espírito”, como algo ideal, como algo oposto ao mundo de formas corporalmente estabelecidas, não pode “refletir” (i.e., tornar-se consciente das formas de sua própria estrutura) a não ser que preliminarmente contrarie “a si mesma”, como um “objeto”, uma coisa que difere dela mesma.

Quando fala da forma-valor como uma forma ideal de uma coisa, Marx, de forma alguma, usa acidentalmente a comparação do espelho:

De certo modo, ocorre com o homem o mesmo que com a mercadoria. Como ele não vem ao mundo nem com um espelho, nem como filósofo fichtiano – Eu sou Eu –, o homem espelha-se primeiramente num outro homem. É somente mediante a relação com Paulo como seu igual que Pedro se relaciona consigo mesmo como ser humano. Com isso, porém, também Paulo vale para ele, em carne e osso, em sua corporeidade Paulínia, como forma de manifestação do gênero humano.(14)

Aqui, Marx indica claramente o paralelo entre sua teoria da “idealidade” da forma-valor e o entendimento de Hegel da “idealidade”, que leva em conta a dialética do surgimento da autoconsciência coletiva da raça humana. Sim, Hegel entendeu a situação muito mais amplamente e profundamente que o “filósofo fichtiano”; ele estabeleceu o fato que o “espírito”, antes que possa examinar a si próprio, deve derramar sua imaculada pureza e natureza fantasmagórica, e deve tornar si mesmo em um objeto e na forma deste objeto contrário a si mesmo. Primeiramente, na forma da Palavra, na forma da “personificação” verbal, e então na forma de instrumentos de trabalho, estátuas, máquinas, armas, igrejas, fábricas, constituições e estados, na forma do grandioso “corpo inorgânico do homem”, na forma do corpo sensorialmente perceptível da civilização, que para ele serve somente como um vidro no qual ele pode examinar a si próprio, seu “outro ser”, e conhecer através deste exame sua própria “idealidade pura”, entendendo a si mesmo como “atividade pura”. Hegel entendeu plenamente bem que a idealidade, como “atividade pura”, não é dada diretamente e não pode ser dada “enquanto tal”, imediatamente em toda sua pureza e perfeição imperturbável; só pode ser conhecimento através da análise de suas “personificações”, através de sua reflexão no vidro da realidade palpável, no vidro do sistema de coisas (suas formas e relacionamentos) criado pela atividade do “espírito puro”. Por seus frutos os conhecereis – e não o contrário.

As formas ideias do mundo são, de acordo com Hegel, formas de atividade realizada em algum material. Se elas não são realizadas em algum material palpável, permanecem invisível e desconhecidas para a atividade do próprio espírito, o espírito não pode se tornar consciência delas. Para examiná-las, elas devem ser “reificadas”, isto é, tornadas em formas e relações de coisas. Somente neste caso a idealidade realmente existe, realmente possui um ser presente; somente como uma forma reificada e reificável de atividade, uma forma de atividade que se tornou e está se tornando a forma de um objeto, uma coisa palpável fora da consciência, e em nenhum caso como um padrão psicológico-transcendental da consciência, não como um padrão interno do “eu”, se distinguindo de si mesmo dentro de si mesmo, como aconteceu com o “filósofo fichtiano”.

Como o padrão interno da atividade da consciência, como um padrão “imanente na consciência”, a idealidade só pode ter uma existência ilusória, fantasmagórica. Torna-se real somente ao longo de sua reificação, objetivação (e desobjetivação), alienação e a suprassunção da alienação. Quão mais razoável e realística esta interpretação era, comparada com a de Kant e Fichte, é auto-evidente. Ela abraçou a verdadeira dialética da “autoconsciência” se desenvolvendo das pessoas, abraçou as verdadeiras fases e metamorfoses em cuja sucessão sozinha a “idealidade” do mundo existe.

É por esta razão que Marx se une a Hegel com respeito à terminologia, e não Kant ou Fichte, que tentaram resolver o problema da “idealidade” (i.e., atividade) enquanto permanecendo “dentro da consciência”, sem se aventurar no mundo corpóreo sensorialmente perceptível externo, o mundo das formas e relações palpáveis das coisas.

Esta definição hegeliana do termo “idealidade” tomou, em toda a gama de fenômenos em que o “ideal”, entendido como a forma corporalmente personificada da atividade do homem social, realmente existe.

Sem um entendimento desta circunstância, seria totalmente impossível sondar os milagres desempenhados ante os olhos do homem pela MERCADORIA, a forma mercadoria do produto, particular em sua forma dinheiro, na forma dos notórios “tálers reais”, “rubros reais”, ou “dólares reais”, coisas que, tão logo temos o menor entendimento teórico deles, imediatamente vem a ser não “real”, mas “ideal” por completo, coisas cuja categoria bastante inequivocamente inclui palavras, as unidades da linguagem, e muitas outras “coisas”. Coisas que, enquanto sendo totalmente formações palpáveis, “materiais”, adquirem todo seu “significado” (função e papel) do “espírito” e até devem a ele a existência física específica. ... Fora do espírito e sem ele não podem existir até mesmo palavras, existe meramente uma vibração do ar.

O mistério desta categoria de “coisas”, o segredo de sua “idealidade”, seu caráter sensório-supersensório foi primeiro revelado por Marx ao longo de sua análise da forma mercadoria (valor) do produto.

Marx caracteriza a forma mercadoria como uma forma IDEAL, i.e., como uma forma que não tem qualquer coisa em comum com a forma palpável real do corpo em que está representada (i.e., expressada, materializada, reificada, alienada, realizada), e por formas pela qual “existe”, possui um “ser presente”.

É “ideal” porque não inclui um único átomo da substância do corpo em que está representada, porque é a forma de outro corpo bem diferente. E este outro corpo é apresentado aqui não fisicamente, materialmente (“fisicamente” é um ponto bastante diferente no espaço), mas somente mais uma vez “idealmente”, e aqui não existe um único átomo de sua substância. Análises químicas da moeda de ouro não revelarão uma única molécula de polidor de botas, e vice-versa. Não obstante, uma moeda de ouro representa (expressa) o valor de uma centena de latas de polidor de botas, precisamente por seu peso e brilho. E, naturalmente, este ato de representação é desempenhado não na consciência do vendedor de polidor de botas, mas fora de sua consciência em qualquer “sentido” desta palavra, fora de sua cabeça, no espaço do mercado, e sem ele ter a menor suspeita da natureza misteriosa da forma dinheiro e a essência do preço do polidor de botas. ... Todos podem gastar dinheiro sem saber o que o dinheiro é.

Por esta razão a pessoa que confidentemente usa sua linguagem nativa para expressar as circunstância mais sutis e complexas da vida, se encontra em uma posição muito difícil se ele põe na cabeça adquirir consciência do relacionamento entre o “signo” e o “significado”. A consciência que ele pode derivar de estudos linguísticos, no presente estado da ciência linguística, é mais provável coloca-lo na posição da centopeia que foi imprudente o bastante para se perguntar em que pé começa a andar. E toda a dificuldade que isso causou, tanto aborrecimento para a filosofia, reside também no fato que as “formas ideais”, como a forma-valor, a forma do pensamento ou forma sintática, sempre surgiram, tomaram forma e se desenvolveram, transformadas em algo objetivo, completamente independente da consciência de qualquer um, ao longo do processo que ocorre não na “cabeça”, mas muito definitivamente fora dela – embora não sem sua participação.

Se as coisas fossem diferentes, o “idealismo” de Platão e Hegel seria, realmente, uma aberração muito estranha, bastante indigna de mentes de tal calibre e tal influência. A objetividade da “forma ideal” não é fantasia de Platão ou Hegel, mas um fato indisputável e teimoso. Um fato de que tais impressionantes pensadores como Aristóteles, Descartes, Espinoza, Kant, Hegel e Einstein, para não mencionar milhares de espíritos menores, quebraram suas cabeças ao longo dos séculos.

“Idealismo” não é uma consequência de algum erro elementar, cometido por um estudante ingênuo que viu um fantasma terrível que não estava lá. O idealismo é uma afirmação completamente sóbria da objetividade da forma ideal, isto é, o fato de sua existência no espaço da cultura humana independentemente da vontade e consciência dos sujeitos – uma afirmação que foi, entretanto, deixado sem uma explicação científica adequada.

Esta afirmação do fato sem sua explicação materialista científica é o que o idealismo é. No caso dado, o materialismo consiste precisamente na explicação científica do fato, e não o ignorando. Formalmente, este fato parece exatamente como foi descrito pelos pensadores da “linha platônica” – uma forma de movimento dos corpos fisicamente palpáveis que são objetivos, apesar de sua óbvia incorporeidade. Uma forma incorpórea, controlando o destino de formas inteiramente corpóreas, determinando se elas estão a ser, ou não ser, uma forma, como algo descarnado, e ainda assim uma “alma” toda poderosa das coisas. Uma forma que preserva a si mesma nas personificações corpóreas mais diversas e não coincide com uma única sequer delas. Uma forma que não pode se dizer ONDE EXATAMENTE “existe”.

Um entendimento não-místico, completamente racional do “ideal” (como a “forma ideal” do real, mundo substancialmente material) foi desenvolvido de forma geral por Marx ao longo de seu domínio crítico construtivo da concepção hegeliana de idealidade, e particularizada (como a solução da questão da forma do valor) através de sua crítica da economia política, isso quer dizer, da clássica teoria do valor-trabalho. A idealidade da forma-valor é um caso típico e característico da idealidade em geral, e a concepção de Marx dela serve como uma ilustração concreta de todas as vantagens da visão materialista dialética da idealidade, do “ideal”.

A forma-valor é entendida em O Capital precisamente como a forma reificada (representada como, ou “representando”, a coisa, o relacionamento das coisas) da atividade da vida social humana. Diretamente apresenta a si mesma para nós como a personificação “fisicamente palpável” de “outro” algo, mas este “outro” não pode ser alguma matéria fisicamente palpável.

A única alternativa, nos parece, é assumir algum tipo de substância incorpórea, algum tipo de “substância insubstancial”. E a filosofia clássica propôs aqui uma solução lógica o bastante: tal “substância” estranha só pode ser atividade – “atividade pura”, “atividade de criação de forma pura”. Mas, na esfera da atividade econômica essa substância foi, naturalmente, decodificada como trabalho, como trabalho físico do homem transformando o corpo físico da natureza, enquanto o “valor” torna-se trabalho realizado, o ato “personificado” do trabalho.

Assim, foi precisamente na economia política que o pensamento científico deu seu primeiro passo decisivo em direção à descoberta da essência da “idealidade”. Já Smith e Ricardo, homens bastante distantes da filosofia, perceberam claramente a “substância” das misteriosas definições de valor no trabalho.

Valor, entretanto, apesar de entendido a partir da perspectiva de sua “substância”, permaneceu um mistério em consideração a sua “forma”. A teoria clássica do valor não poderia explicar porque esta substância expressava si mesma como fazia, e não em alguma outra maneira. Incidentalmente, a tradição burguesa clássica não estava particularmente interessada nesta questão. E Marx demonstrou claramente a razão para essa indiferença do assunto. Em todo o caso, a dedução da forma do valor a partir de sua “substância” permaneceu uma tarefa insuperável para a ciência burguesa. A idealidade desta forma continuou sendo tão misteriosa e mítica quanto antes.

Entretanto, desde que os teóricos se encontraram em confrontação direta com as propriedades misteriosas – fisicamente impalpáveis – desta forma, eles recorreram repetidamente às bem-conhecidas formas de interpretação de “idealidade”. Assim, a ideia da existência dos “átomos ideais de valor”, que era altamente reminiscência das mônadas(15) de Leibniz, o quanta imaterial e sem extensão de “substância espiritual”.

Marx, como um economista, foi ajudado pelo fato de que ele conhecia muito mais sobre filosofia do que Smith e Ricardo.

Foi quando ele viu na concepção hegeliana-fichtiana a idealidade como “atividade pura” uma descrição abstratamente mistificada do real, trabalho fisicamente palpável do homem social, o processo da transformação física da natureza física, desempenhada pelo corpo físico do homem, que ele ganhou a chave teórica para o enigma da idealidade da forma-valor.

O valor de uma coisa apresenta si mesmo como o trabalho reificado do homem e, portanto, a forma do valor se revelando nada mais que não a forma reificada deste trabalho, uma forma de atividade da vida humana.

E o fato de que isso não é, de forma alguma, a forma das coisas como elas são (i.e., a coisa em sua determinidade natural), mas uma forma do trabalho humano social ou da atividade criadora de formas do homem social, personificadas na substância da natureza – foi esse fato que forneceu a solução ao enigma da idealidade. A forma ideal de uma coisa não é a forma da coisa “nela mesma”, mas uma forma da atividade da vida humana social, considerada como a forma de uma coisa.

E, desde que em seus estágios desenvolvidos, a atividade da vida humana sempre teve um propósito, i.e., um caráter conscientemente desejado, “idealidade” se apresenta como uma forma da consciência e vontade, como a lei guiando a consciência e vontade do homem, como o padrão objetivamente compulsório da atividade conscientemente desejada. É por isso que ela passa a ser tão fácil de retratar o “ideal” exclusivamente como uma forma da consciência e autoconsciência, exclusivamente como o padrão “transcendental” da psique e vontade que realiza este padrão.

E se assim é, a concepção platônica-hegeliana de “idealidade” começa a aparecer como meramente um projeção inadmissível das formas da consciência e vontade (formas do pensamento) no “mundo externo”. E o “criticismo” de Hegel equivale meramente para reprovar ele por ter “ontologizado”, “hipostatizado” as formas puramente subjetivas da atividade mental humana. Isso leva a uma conclusão bastante lógica de que todas as categorias do pensamento (“quantidade”, “medida”, “necessidade”, “essência”, e assim por diante) são somente “ideais”, isto é, somente padrões psicológico-transcendentais da atividade do sujeito e nada mais.

Marx, naturalmente, tinha uma concepção bastante diferente. De acordo com ele, todas as categorias lógicas, sem exceção, são somente o idealizado (i.e., convertido em formas da atividade da vida humana, atividade que é primariamente externa e sensorialmente objetiva, e então também “espiritual”), formas universais de existência da realidade objetiva, do mundo externo. E, certamente, não projeções de formas do mundo mental no “mundo físico”. Uma concepção, como pode ser facilmente visto, que é justamente o contrário na sequência de sua “dedução teórica”.

Esta interpretação de “idealidade” é, em Marx, baseada, acima de tudo, no entendimento materialista da natureza específica do relacionamento humano social com o mundo (e a diferença fundamental entre isto e o relacionamento dos animais com o mundo, o relacionamento puramente biológico):

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência.(16)

Isso significa que a atividade do animal é direcionada somente em direção a objetos externos. A atividade do homem, por outro lado, é direcionada não somente neles, mas também em suas próprias formas de atividade da vida. É atividade direcionada sobre si mesmo, o que a filosofia clássica alemã apresentou como a característica específica do “espírito”, como “reflexão”, como “autoconsciência”.

Na passagem acima citada de um dos trabalhos iniciais de Marx, ele não enfatiza suficientemente o detalhe fundamentalmente importante que distingue sua posição, da interpretação fichtiana-hegeliana da “reflexão” (o relacionamento a si mesmo como ao “outro”). Em vista disso, essa passagem pode ser entendida para significar que o homem adquire um segundo plano de atividade da vida, novo, precisamente porque ele possui consciência e vontade, o que o animal não possui.

Mas isso é justamente o oposto do caso. A consciência e vontade aparecem no homem somente porque ele já possui um plano especial de atividade da vida que está ausente no mundo animal – atividade direcionada em direção ao domínio de formas de atividade da vida que são especificamente sociais, puramente sociais em origem e essência, e, portanto, não codificadas biologicamente nele.

O animal que acabou de nascer é confrontado com o mundo externo. As formas de sua atividade da vida são inatas da morfologia de seu corpo e ele não precisa desempenhar qualquer atividade especial a fim de “dominar” elas. Ele só precisa exercitar as formas do comportamento codificadas nele. O desenvolvimento consiste somente no desenvolvimento dos instintos, reações congênitas a coisas e situações. O ambiente meramente corrige esse desenvolvimento.

O homem é uma questão bastante diferente. A criança que acabou de nascer é confrontada – fora de si mesma – não somente pelo mundo externo, mas também por um sistema muito complexo de cultura, que requer dele “modos de comportamento” para o qual não existe geneticamente (morfologicamente) “qualquer código” em seu corpo. Aqui não é uma questão de ajustar padrões prontos de comportamento, mas de assimilar modos de atividade da vida que não suportam qualquer relacionamento com as formas biologicamente necessárias das reações de seu organismo com coisas e situações.

Isso se aplica até mesmo para os “atos comportamentais” diretamente conectados com a satisfação de necessidades biologicamente inatas: a necessidade de comida é biologicamente codificada no homem, mas a necessidade de comer com a ajuda de prato, faca, garfo e colher, sentado em uma cadeira, a uma mesa etc., etc., não é mais congênito nele do que as formas sintáticas da linguagem que ele aprende a falar. Em relação à morfologia do corpo humano, estes são puramente e externamente convencionais, como as regras do xadrez.

Estas são formas puras do mundo externo (existindo fora do corpo singular), formas de organização deste mundo, que ele ainda tem que converter em formas de sua atividade da vida singular, em padrões e modos de sua atividade, a fim de se tornar um homem.

E é este mundo das formas da atividade da vida social humana que confronta o recém-nascido (para ser mais exato, o organismo biológico da espécie Homo sapiens) como a objetividade a qual ele é compelido a adaptar todo seu “comportamento”, todas as funções de seu corpo orgânico, como o objeto em direção à assimilação a qual seus anciãos guiaram toda sua atividade.

A existência deste objeto especificamente humano – o mundo das coisas criada pelo homem para o homem e, portanto, coisas cujas formas são formas reificadas da atividade humana (trabalho), e certamente não as formas naturalmente inerentes neles – é a condição para a existência da consciência e vontade. E certamente não o contrário, não é a consciência e vontade que são a condição e pré-requisito para a existência deste objeto único, muito menos sua “causa”.

A consciência e vontade que surgem na mente do sujeito humano são a consequência direta do fato de que ele, confrontado como o objeto de sua atividade da vida, não é natureza enquanto tal, mas a natureza que foi transformada pelo trabalho das gerações prévias, moldada pelo trabalho humano, natureza nas formas da atividade da vida humana.

Consciência e vontade se tornam formas necessárias da atividade mental somente onde o sujeito é compelido a controlar seu próprio corpo orgânico, em resposta não às demandas orgânicas (naturais) de seu corpo, mas às demandas apresentadas de fora, pelas “regras” aceitas na sociedade em que ele nasceu. É somente nestas condições que o sujeito é compelido a distinguir si mesmo de seu próprio corpo orgânico. Estas regras não são passadas a ele pelo nascimento, através de seus “genes”, mas são impostas sobre ele de fora, ditadas pela cultura, e não pela natureza.

É somente aqui que aparece o relacionamento consigo mesmo como a um representante único de “outro”, um relacionamento desconhecido para os animais. O sujeito humano é obrigado a subordinar suas próprias ações a certas “regras” e “padrões” que ele assimilou como um objeto especial, a fim de fazer deles regras e padrões da atividade da vida de seu próprio corpo.

A princípio eles o confrontam como um objeto externo, como as formas e relacionamentos de coisas criadas e recriadas pelo trabalho humano. É pelo domínio dos objetos da natureza nas formas criadas e recriadas pelo trabalho humano que o sujeito se torna pela primeira vez um homem, se torna um representante da “raça humana”, visto que antes disso ele era meramente um representante de uma espécie biológica.

A existência deste legado puramente social de formas de atividade da vida, isso quer dizer, um legado de formas que de forma alguma são transmitidas através dos genes, através da morfologia do corpo orgânico, mas somente através da educação, somente através da assimilação da cultura disponível, somente através de um processo ao longo do qual o corpo orgânico do sujeito muda em um representante da RAÇA (i.e., o todo específico agregado de pessoas conectadas pelos laços das relações sociais) – é somente a existência deste relacionamento específico que produz a consciência e a vontade como formas especificamente humanas de atividade mental.

Consciência surge somente onde o sujeito é compelido a olhar para si mesmo como se pelo lado – como se pelos olhos de outra pessoa, os olhos de todas as outras pessoas – somente onde ele é compelido a correlacionar suas ações singulares com as ações de outro homem, isso quer dizer, somente dentro da estrutura da atividade da vida coletivamente desempenhada. Falando estritamente, é somente aqui que existe qualquer necessidade para VONTADE, no sentido da habilidade de forçosamente subordinar suas próprias inclinações e impulsos a certa lei, certa demanda ditada não pelo sujeito orgânico de seu próprio corpo, mas pela organização do “corpo coletivo”, o coletivo que se formou ao redor de certa tarefa comum.

É aqui, e somente aqui, que surge o plano IDEAL da atividade da vida desconhecida para o animal. Consciência e vontade não são a “causa” da manifestação deste novo plano de relacionamentos entre o sujeito e o mundo externo, mas somente as formas mentais de sua expressão, em outras palavras, seu efeito. E, além disso, não uma forma acidental, mas uma forma necessária de sua manifestação, sua expressão, sua realização.

Nós não devemos ir mais além ao exame da consciência e vontade (e sua relação com a “idealidade”), porque aqui começa a entrar no campo especial da psicologia. Mas o problema da “idealidade” em sua forma geral é igualmente significante para a psicologia, linguística e qualquer disciplina sócio-histórica, e naturalmente vai além dos limites da psicologia enquanto tal, e deve ser reconhecida independentemente dos detalhes puramente psicológicos (ou puramente político-econômicos).

A psicologia deve necessariamente proceder do fato que entre a consciência singular e a realidade objetiva, existe o “vínculo mediato” da cultura historicamente formada, que age como o pré-requisito e condição da atividade mental singular. Isso compreende as formas econômica e legal dos relacionamentos humanos, as formas da vida diária e formas de linguagem, e assim por diante. Para a atividade mental do sujeito (consciência e vontade do sujeito), esta cultura aparece imediatamente como um “sistema de significados”, que foi “reificado” e o confronta bastante objetivamente como realidade extra-psicológica, “não-psicológica”(17).

Portanto, a interpretação do problema da “idealidade” em seu aspecto puramente psicológico não nos leva muito mais perto de um entendimento correto disso, porque o segredo da idealidade é então procurado não onde realmente surge: não no espaço, onde a história dos relacionamentos reais entre o homem social e a natureza é promulgada, mas na cabeça humana, nos relacionamentos materiais entre terminações nervosas. E isso é um empreendimento tão absurdo como a ideia de descobrir a forma do valor por análises químicas do ouro ou cédulas na qual esta forma se apresenta ao olho e tato.

O enigma e solução do problema do “idealismo” são encontrados nas características peculiares da atividade mental do sujeito, que não consegue distinguir entre duas categorias fundamentalmente diferentes e até mesmo contrárias de fenômenos que ele está conscientemente ciente como existindo fora de seu cérebro: as propriedades naturais das coisas, por um lado, e aquelas suas propriedades que eles devem não à natureza, mas ao trabalho humano social, personificado nestas coisas, por outro lado.

Este é o ponto em que tais contrários como o materialismo cruamente ingênuo e o idealismo ingênuo não menos cru fundem diretamente. Isso quer dizer, onde o material é diretamente identificado com o ideal, e vice-versa, onde tudo que existe fora da cabeça, fora da atividade mental, é reconhecido como “material”, e tudo que está “na cabeça”, “na consciência”, é descrito como “ideal”.

O materialismo científico, real, reside não em declarar tudo que está fora do cérebro do sujeito como sendo “primário”, em descrever este “primário” como “material”, e declarando tudo que está “na cabeça” como sendo “secundário” e “ideal”. O materialismo científico reside na habilidade de distinguir a fronteira fundamental na composição das “coisas” e “fenômenos” sensorialmente perceptíveis, palpáveis, para ver a diferença e oposição entre o “material” e o “ideal”, e não em algum outro lugar.

O plano “ideal” da realidade compreende somente aquilo que é criado pelo trabalho, tanto no próprio homem como na parte da natureza na qual ele vive e age, aquilo que diariamente e de hora em hora, desde que o homem existe, é produzido e reproduzido por sua própria atividade transformadora – e, portanto, intencional –humana social.

Assim, não se pode falar da existência de um “plano ideal” no animal (ou em um “homem” não civilizado, desenvolvido puramente biologicamente) sem partir de um significado filosófico estritamente estabelecido do termo.

O homem adquire o plano “ideal” da atividade da vida somente através do domínio das formas historicamente desenvolvidas da atividade social, somente junto com o plano social da existência, somente junto com a cultura. “Idealidade” não é nada que não um aspecto da cultura, uma de suas dimensões, fatores determinantes, propriedades. Em relação com a atividade mental é tanto quanto um componente objetivo como montanhas e árvores, a lua e o firmamento, como os processos do metabolismo do corpo orgânico do sujeito. É por isso que as pessoas frequentemente confundem o “ideal” com o “material”, tomando um como o outro. É por isso que o idealismo não é fruto de alguma má-interpretação, mas o fruto legítimo e natural de um mundo onde as coisas adquirem propriedades humanas, enquanto as pessoas são reduzidas ao nível de uma força material, onde coisas são dotadas de “espírito”, enquanto os seres humanos são completamente privados dele. A realidade objetiva de “formas ideais” não é mera invenção dos idealistas, como parece ser para os pseudomaterialistas que reconhecem, por um lado, o “mundo externo” e, por outro lado, somente o “cérebro consciente” (ou “consciência como uma propriedade ou função do cérebro”). Este pseudomaterialismo, apesar de todas as suas boas intenções, tem ambos os pés firmemente plantados no mesmo pântano místico do fetichismo como seu oponente – com princípios idealistas. Isso também é fetichismo, somente não aquele do ídolo de bronze ou o “Logos(18), mas um fetichismo de um tecido nervoso, um fetichismo de neurônios, axônios e DNAs, que de fato possui tão pouco do “ideal” como qualquer cascalho na estrada. Tão pouco como o “valor” do diamante que ainda não foi descoberto, não importa quão grande ou pesado ele possa ser.

“Idealidade” é, realmente, conectada necessariamente com a consciência e a vontade, mas não da forma que o velho materialismo, pré-marxista, descreve esta conexão. Não é a idealidade que é um “aspecto” ou “forma de manifestação” da esfera consciência-vontade, mas, ao contrário, o caráter consciência-vontade da mentalidade humana é uma forma de manifestação, um “aspecto” ou manifestação mental do plano ideal (i.e., gerado sócio-historicamente) de relacionamentos entre homem e natureza.

Idealidade é uma característica das coisas, não como são determinadas pela natureza, mas como são determinadas pelo trabalho, a atividade transformadora e criadora de formas do homem social, sua atividade sensorialmente objetiva, intencional.

A forma ideal é a forma de uma coisa criada pelo trabalho humano social. Ou, reciprocamente, a forma do trabalho realizada na substância da natureza, “personificada” nela, “alienada” nela, “realizada” nela, e, portanto, apresentando a si mesma ao homem criador como a forma de uma coisa ou um relacionamento entre coisas na qual o homem, seu trabalho, os tem colocado.

No processo do trabalho do homem, enquanto permanecendo como ser natural, transforma as coisas externas e (ao fazê-lo) seu próprio corpo “natural”, molda a matéria natural (incluindo a matéria de seu próprio sistema nervoso e o cérebro, que está em seu centro), convertendo ela em um “meio” e “órgão” de sua atividade da vida intencional. É por isso que ele olha sobre a “natureza” (matéria) desde o início como material no qual seus objetivos são “personificados”, e como os “meios” de sua realização. É por isso que ele na natureza, primariamente, o que é adequado para este papel, o que desempenha ou pode desempenhar a parte de um meio em direção ao seu fim, em outras palavras, o que ele já projetou no processo de sua atividade intencional.

Assim, em primeiro lugar, ele direciona sua contemplação para as estrelas exclusivamente como um relógio natural, calendário e bússola, como instrumentos de sua atividade da vida. Ele observa suas propriedades e regularidades “naturais” somente na medida em que são propriedades e regularidades do material no qual sua atividade está sendo realizada, e com estas características “naturais” ele deve, portanto, considerar como um componente completamente objetivo de sua atividade que não é de forma alguma dependente de sua vontade e consciência.

Mas, é por essa mesma razão que ele toma os resultados de sua atividade transformadora (as formas e relações das coisas dadas por ele próprio) como as formas e relações das coisas como elas são. Isso dá origem ao fetichismo de todo tipo e tom, uma das variedades que era e ainda é o idealismo filosófico, a doutrina que considera as formas ideias das coisas (i.e., as formas da atividade humana personificadas nas coisas) como as formas eternas, primordiais e “absolutas” do universo, e leva em conta todo o resto somete na medida em que “todo o resto”, isso quer dizer, toda a verdadeira diversidade do mundo já foi extraída no processo do trabalho, já tendo feito o meio, instrumento e material de realização da atividade intencional, já tendo refratado através do grandioso prisma das “formas ideais” (formas da atividade humana), já é apresentada (representada) nestas formas, já moldadas por elas.

Por esta razão o “ideal” existe somente no homem. Fora do homem e além dele não pode existir qualquer coisa “ideal”. O homem, entretanto, precisa ser entendido não como um sujeito com um cérebro, mas como um agregado real de pessoas reais realizando coletivamente sua atividade da vida especificamente humana, como o “agregado de todas as relações sociais” surgindo entre pessoas ao redor de uma tarefa comum, ao redor do processo de produção social de sua vida. É “dentro” do homem assim entendido que o ideal existe, porque “dentro” do homem assim entendido estão todas as coisas que “mediam” os sujeitos que estão produzindo socialmente suas vidas: palavras, livros, estátuas, igrejas, centros comunitários, torres de televisão, e (acima de tudo!) os instrumentos do trabalho, desde o machado de pedra e a agulha de osso até a fábrica automatizada moderna e o computador. É nessas “coisas” que o ideal existe como a atividade da vida “subjetiva”, que cria formas intencionalmente, do homem social, personificada no material da natureza.

A forma ideal é uma forma de uma coisa, mas uma forma que está fora da coisa, e é para ser encontrada no homem como uma forma de sua atividade da vida dinâmica, como objetivos e necessidades. Ou, reciprocamente, é uma forma da atividade da vida do homem, mas fora do homem, na forma da coisa que ele cria. “Idealidade” enquanto tal existe somente na constante sucessão e substituição destas duas formas de sua “personificação externa” e não coincide com nenhuma delas tomadas separadamente. Existe somente através do incessante processo da transformação da forma de atividade – na forma de uma coisa e de volta – a forma de uma coisa na forma de atividade (do homem social, naturalmente).

Tentar identificar o “ideal” com qualquer uma dessas duas formas de sua existência imediata – e ele não existe mais. Tudo o que resta é o corpo inteiramente material, “substancial”, e seu funcionamento corpóreo. A “forma de atividade” enquanto tal acaba por ser corporalmente codificado no sistema nervoso, em intrincados estereótipos neuro-dinâmicos e “mecanismos cerebrais” pelo padrão da ação externa do organismo humano material, do corpo do sujeito. E não se descobrirá qualquer coisa “ideal” naquele corpo. A forma da coisa criada pelo homem, tirada do processo de atividade da vida social, tirada do processo do metabolismo homem-natureza, também acaba por ser simplesmente a forma material da coisa, o molde físico de um corpo externo e nada mais. Uma palavra, tirada do organismo das relações humanas, acaba por ser nada mais que um fenômeno acústico ou óptico. “Em si mesmo” não é mais “ideal” do que o cérebro humano.

E somente no movimento alternativo de duas “metamorfoses” contrárias – formas de atividade e formas de coisas em suas dialéticas transformações contraditoriamente mútuas – EXISTE O IDEAL.

Portanto, foi somente o materialismo DIALÉTICO que foi capaz de resolver o problema da idealidade das coisas.


Notas de rodapé:

(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)

(2) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Posfácio à Segunda Edição Alemã. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 90. (retornar ao texto)

(3) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 170-171. (retornar ao texto)

(4) Nota do Tradutor: uma das inúmeras moedas de prata usadas na Europa (principalmente nos países germânicos) entre os séculos XV e XIX. (retornar ao texto)

(5) MARX, Karl. The Difference Between the Democritean and Epicurean Philosophy of Nature. Appendix: Critique of Plutarch's Polemic against the Theology of Epicurus. 1841. (retornar ao texto)

(6) MARX, Karl. The Difference Between the Democritean and Epicurean Philosophy of Nature. Appendix: Critique of Plutarch's Polemic against the Theology of Epicurus. 1841. (retornar ao texto)

(7) Nota do Tradutor: Nome do deus ao qual os amonitas, uma etnia de Canaã, sacrificavam seus recém-nascidos, jogando-os em uma fogueira. (retornar ao texto)

(8) MARX, Karl. The Difference Between the Democritean and Epicurean Philosophy of Nature. Appendix: Critique of Plutarch's Polemic against the Theology of Epicurus. 1841. (retornar ao texto)

(9) HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Obras Completas (Sämtliche Werke), Bd. 18, Stuttgart, 1928, S. 269. (retornar ao texto)

(10) RUBINSTEIN, Sergey L., Ser e Consciência, Moscou, 1957. (retornar ao texto)

(11) HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Obras Completas (Sämtliche Werke), Bd. 9, Stuttgart, 1929, S. 101. (retornar ao texto)

(12) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 129. (retornar ao texto)

(13) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 129. (retornar ao texto)

(14) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 129, nota 18. (retornar ao texto)

(15) Nota do Tradutor: No sistema filosófico de Leibniz, significa substância simples, única, fazendo parte dos compostos, mas não constituída de partes, sendo indissolúvel e indestrutível. (retornar ao texto)

(16) MARK, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 84. (retornar ao texto)

(17) Esta questão é examinada com grandes detalhes no artigo Atividade e Consciência, de A. N. Leontiev, incluído neste volume. (retornar ao texto)

(18) Nota do Tradutor: Logos, inicialmente, tem o significado de palavra escrita ou falada - Verbo. A partir dos filósofos gregos antigos, passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, a capacidade de racionalização singular ou o princípio cósmico da Ordem e da Beleza. Já no cristianismo, Logos é identificado com a Palavra, Jesus Cristo. (retornar ao texto)

Inclusão 05/05/2013