Dialética e Visão de Mundo

Evald Vasilievich Ilienkov

1977


Fonte: Dialética e Visão de Mundo (Диалектика и мировоззрение(1)) é um manuscrito de 1977 que teve uma primeira versão resumida publicada no livro A Dialética Materialista como a Lógica e Metodologia do Conhecimento Científico Moderno (Alma-Ata, 1977, pp. 158-181) e uma nova versão mais resumida publicada no livro A Dialética Materialista como Lógica (Alma-Ata, 1979, pp. 103-113). Traduzido para o espanhol por Víctor Antonio Carrión Arias, a partir da versão de 1979, e publicado como parte do livro La dialéctica leninista y la metafísica del positivismo de Evald Iliénkov (2014). Essa tradução tem permissão da editora Edithor e do tradutor Víctor Antonio Carrión Arias. Disponível em russo no Lendo Ilienkov (Читая Ильенкова) [http://caute.ru/ilyenkov/].
Tradução do espanhol: Marcelo José de Souza e Silva(2)
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Nas discussões sobre como procede elaborar e expor a teoria da dialética, a questão da correlação entre a dialética e a visão de mundo [мировоззрения] surge com regularidade, embora parecesse que na literatura marxista-leninista clássica isso estivesse resultado há muito tempo, de modo inequívoco e completo.

Vejamos mais atentamente em que contexto preciso surge a necessidade de voltar outra vez a debate-la, para colocar em evidência onde se escondem justamente essas imprecisões que tornam possível o aparecimento de pontos de vista diferentes que chocam em discrepâncias e contradições.

Deve-se notar, em primeiro lugar, que não é possível solucionar, nem ao menos colocar essa questão de forma abstrata geral, ahistórica, como a questão da relação da “visão de mundo em geral” [мировоззрения вообще] com a “dialética em geral”. Já que a mais minuciosa precisão dos termos correspondentes não nos fornece qualquer coisa para o entendimento da essência desses debates que hoje surgem ao redor da questão sobre que aspecto deve ter a teoria científica materialista da dialética; posto que ela é entendida e elaborada como parte inseparável da visão de mundo científica materialista.

Os clássicos do marxismo-leninismo jamais e em nenhuma parte encomendaram à filosofia a obrigação de construir certo quadro ou sistema geral do “mundo em seu conjunto”, a partir dos resultados das “ciências positivas”. Ainda menos razão tem atribuir a eles a opinião segundo a qual uma “filosofia” [философия] desse tipo – se somente esta – deve armar a gente de uma “visão de mundo” [мировоззрением]. A visão de mundo científica, segundo F. Engels, consiste e se plasma não em um sistema abstrato de postulados filosóficos, e sim nas “ciências reais mesmas”, em um sistema de conhecimentos científicos reais.

Toda tentativa de erigir sobre (ou “junto” a) as ciências positivas também uma ciência especial sobre os vínculos “universais” das coisas, F. Engels julga, incondicionalmente, como uma tarefa, no melhor dos casos, supérflua e infrutífera. No melhor dos casos. E, geralmente – como demonstrou e continua demonstrando a experiência – tal “filosofia” inescapavelmente se transforma em um pesado lastro, por assim dizer, em “pesos sobre os pés da ciência” e um estorvo ativo ao progresso das ciências reais, já que, sendo uma descrição generalizadora dos resultados da investigação de hoje, cada passo da ciência além dos limites desses resultados, naturalmente, ela os considera como um atentado contra suas próprias construções, como seu rompimento e “revisão”, enquanto não há aqui nem vestígio de revisão alguma das teses genuínas da filosofia científica materialista dialética.

Por outro lado, essa filosofia – orientada à maneira positivista – permanece, como regra, completamente apática e condescendente ali onde tem lugar uma revisão verdadeira dos princípios do materialismo filosófico e da dialética filosófica, e inclusive incentiva essa revisão nos casos quando ela se conduz sob a bandeira das conclusões “das ciências naturais contemporâneas”, ali onde os descobrimentos mais novos na física ou astronomia (e para o positivista estes sempre têm o significado de critério superior das verdades “filosóficas”) não correspondam diretamente com as afirmações da filosofia realmente científica, a materialista dialética. E aqui o positivista sempre se apressa a “corrigir” os conceitos filosóficos para favorecer os “descobrimentos mais novos” e no âmbito deles(3).

Levando em conta a constante possibilidade do surgimento de filósofos semelhantes e de “filosofias” nesse modelo, F. Engels afastou qualquer argumento sobre a necessidade de construir junto a uma visão de mundo genuinamente científico, isto é, junto ao conjunto entrelaçado de conhecimentos científicos reais (“positivos”) sobre o mundo, também um quadro filosófico específico do mundo. Nessa tarefa ele não via materialismo algum, para não dizer dialético:

“E se pudéssemos derivar o esquematismo do mundo, não de nosso cérebro, mas por meio dele, do mundo real, se pudéssemos derivar os princípios da existência daquilo que existe, não seria necessária essa filosofia, mas, pelo contrário, contentar-nos-íamos com uma série de conhecimentos positivos do mundo e do que nele ocorre, conhecimentos que não formam uma filosofia, mas apenas uma ciência positiva”(4).

Disso é evidente que F. Engels rechaça de imediato não a ideia em si da criação de um quadro do mundo generalizado e esquematizado. Pelo contrário, ele parte justamente da circunstância de que toda representação científica (quer se trate de uma ciência em separado ou de todo o conjunto das ciências, da Ciência com maiúscula) é, de um modo ou de outro, uma representação esquematizada do mundo que nos rodeia. Justamente por isso ele insiste em que a criação de um sistema generalizado de representações sobre o mundo pode somente o conjunto das ciências positivas, “reais”, que clareiam a travação mútua e as transições dentro de uma concepção de mundo única e total, e são as mesmas que nos armam com a compreensão do vínculo universal das coisas e o conhecimento sobre essas coisas, mostrando e demonstrando essa ligação tanto em seu conjunto com nas particularidades.

Não se pode deixar de notar que F. Engels jamais nem em parte alguma chama as ciências positivas – física, química, biologia ou economia política – com o nome depreciativo de “particulares”, pois o próprio uso de tal predicado pressupõe que além das ciências “particulares” deve existir certa “ciência universal”, a “ciência da totalidade”. Mas se tal ou qual ciência se dirige exclusivamente ao conhecimento das “particularidades”, não ligadas a qualquer forma essencialmente nem entre si, nem com outra categoria dessas “particularidades”, então ela, no melhor dos casos, caracteriza sua imaturidade histórica. Se, em troca, ela revela nestas “particularidades” certa lei, então isso significa que ela descobre na forma finita o infinito, no singular o universal, no transitório o eterno:

“Todo verdadeiro conhecimento da natureza é conhecimento de algo eterno, infinito e, portanto, de algo essencialmente absoluto”(5).

E aquele que não compreende essa simples circunstância descobre seu mais absoluto desconhecimento dos axiomas da dialética e do materialismo. Linda visão de mundo “científica” teríamos se ela se formasse a partir das ciências “particulares” que estudam umas “particularidades” sem ligação, e uma “filosofia que, ao contrário, nos retrata a ligação sem as particularidades que ela vincula! Essa divisão ridícula da ciência em duas categorias – na investigação das coisas sem suas relações mútuas e a investigação das relações sem as coisas – é justamente onde se assenta o cimento da noção positivista do papel e função da filosofia no corpo da “visão de mundo científica”. E essa “emenda” com a qual certos autores procuram uma vez ou outra atenuar o ridículo dessa noção, emenda segundo a qual as travações “particulares e singulares” das coisas não têm a ver com as relações “gerais”, “universais” entre elas (isso seria prerrogativa da “filosofia”), não muda qualquer coisa no assunto. Um ponto de vista semelhante condena as ciências “particulares” a uma existência decadente, uma vez que, essencialmente (consciente ou inconscientemente, aqui isso não têm importância) lhes proíbe chegar até a dialética dentro de seu objeto, lhes proíbe implementar dialeticamente a compreensão desse objeto, pois, caso contrário, a “filosofia” se veria sem trabalho.

Nisso consiste justamente o dano de representar a filosofia como ciência especial sobre o “mundo em geral”. Essa representação, arcaica por seu conteúdo, sempre resulta não somente conservadora, mas também diretamente reacionária. Justamente por isso F. Engels valoriza a fantasia positivista de criação de um quadro ou sistema filosófico do mundo em seu conjunto não somente como falta de perspectiva, mas também como uma tarefa anticientífica e antidialética que dificulta ativamente a penetração da dialética na consciência e na teoria dos mesmíssimos cientistas “positivos”, isto é, dos naturalistas e historiadores. As próprias ciências naturais não só podem, mas estão obrigadas a revelar plenamente e sem desperdício a dialética na natureza, o mesmo que a dialética do processo histórico social a evidencia e está em capacidade de evidenciar todo o conjunto das ciências sociais: a economia política, a teoria do estado e do direito, a psicologia etc.

V. I. Lenin não é menos categórico na valorização da interpretação positivista do lugar e papel da filosofia dentro da visão de mundo científica contemporânea. Nas margens do livro de Abel Rey, A Filosofia Contemporânea, a propósito de um juízo do autor que reitera esse ponto os critérios de A. Comte e E. Dühring, V. I. Lenin faz anotações breves, mas suficientemente expressivas(6). Está aqui sua apreciação da “teoria universal do ser” de Suvorov:

“Bem. A ‘teoria geral do ser’ é novamente descoberta por S. Suvórov depois de numerosos representantes da escolástica filosófica a terem descoberto muitas vezes sob as mais variadas formas. Felicitemos os machistas russos por esta nova ‘teoria geral do ser’! Esperemos que a sua próxima obra colectiva seja inteiramente consagrada à fundamentação e desenvolvimento desta grande descoberta!”(7).

A acuidade e clareza da reação de V. I. Lenin se explica, em primeiro lugar, pelo fato de que todas as fantasias similares no caminho de criar “teorias universais do ser” surgiram nessa época não como entretenimentos vazios, e sim como antíteses diretas da concepção engelsiana da dialética como ciência, dessa mesma concepção que V. I. Lenin defendeu consequentemente na polêmica com os revisionistas. Não pode haver qualquer dúvida que V. I. Lenin, ao insistir na compreensão da dialética como lógica e teoria do conhecimento do “materialismo contemporâneo” e ao observar os limites de todas as tagarelices sobre as “teorias universais do ser”, defendeu também a essência genuína da posição de Engels expostas no Anti-Dühring, já que essa posição era justamente a que os positivistas se apressavam em falsificar de qualquer forma no espírito de uma “teoria universal do ser”, para logo contrapô-la a sua – “nova” – teoria universal do ser, a sua “nova” esquemática do mundo, que se corresponderia às novíssimas realizações da ciência.

O materialismo dialético é uma visão de mundo [мировоззрение], de outra maneira, uma visão científica do mundo, quer dizer, um conjunto de representações científicas sobre a natureza, a sociedade e o pensamento humano; como tal, este não pode sob nenhuma circunstância ser construído pelos esforços da “filosofia” somente, e sim unicamente pelos esforços comuns de todas as ciências “reais”, incluindo, naturalmente, a filosofia científica. A visão de mundo denominada materialismo dialético, não é uma filosofia no velho sentido da palavra, a que carregou sobre seus ombros uma tarefa ao alcance unicamente de todo o conhecimento científico, e isso em perspectiva. Se a “filosofia anterior” se colocou diante de si essa tarefa utópica, a única justificativa para suas pretensões então era o insuficiente desenvolvimento histórico das outras ciências. Mas,

"desde o instante em que cada ciência tenha que se colocar no quadro universal das coisas e do conhecimento delas, já não há margem para uma ciência que seja especialmente consagrada a estudar as concatenações universais”(8),

repete incansavelmente F. Engels, vinculando diretamente essa compreensão com a própria essência do materialismo. É completamente indiscutível que a clara e inequívoca posição de F. Engels, antes expostas em suas próprias palavras, foi o ponto de partida axiomático também para V. I. Lenin em todas suas discussões com gente do tipo de Y. Berman e A. Bogdanov, de P. Yuschkevich e A. Lunacharski, de V. Bazarov e S. Suvorov, no que eles se esforçavam para erigir no sonho da visão de mundo marxista científica e materialista outra “teoria universal do ser”, uma singular – “filosófica” – “visão de mundo”, posto que a genuína visão de mundo de K. Marx e F. Engels exposta em O Capital e Anti-Dühring, em O 18 de Brumário de Luis Bonaparte e na Crítica ao Programa de Gotha, não os satisfazia de forma alguma e eles neste trabalhos não leram qualquer coisa que tenha a ver com uma visão de mundo de conjunto. A “visão de mundo” eles viam, exclusivamente, na forma de uma ciência especial acima das outras ciências (“particulares” e por isso “insuficientes”).

Daqui também a incompreensão orgânica dessa gente para a dialética como lógica e teoria do conhecimento, como a lógica verdadeira do desenvolvimento da visão de mundo científica, como teoria do conhecimento do mundo pelo homem, conhecimento realizado não pela “filosofia”, e sim por todas as ciências reais em colaboração com a filosofia materialista científica, como a concebeu F. Engels. Os positivistas russos, ao negar de antemão o valor da dialética como lógica do pensamento, de lógica do desenvolvimento dos conceitos em toda esfera concreta do conhecimento científico e da prática, o marxismo russo e os positivistas interpretaram também essa dialética como a ação passiva e não obrigatória de “complemento” à análise científica, somente como a “linguagem” na qual por algum motivo (e por algum motivo desconhecido) K. Marx e F. Engels expressaram alguns dos “resultados positivos” de seu estudo da economia política e da história.

O próprio V. I. Lenin vê na dialética, primeiro de tudo, o método universal, a forma ativa do pensamento de K. Marx e F. Engels, a lógica genuína do desenvolvimento dos conceitos ao longo da investigação concreta daquelas esferas concretas da realidade, das quais se ocuparam diretamente os fundadores da visão de mundo comunista, e em absoluto um conjunto “das generalizações mais comuns”, feitas post factum, como tentaram mostrar os revisionistas, começando com E. Bernstein e K. Schmidt e terminando com Y. Berman e S. Suvorov. Por isso mesmo V. I. Lenin salienta também que a essência da dialética materialista consiste não em que ela seja o conjunto das “afirmações mais gerais” relativas ao “mundo em geral”, e sim em que ela é a lógica do desenvolvimento da visão de mundo científica realizada por K. Marx e F. Engels de modo algum na forma de uma “teoria universal do ser”, e sim justamente na forma de compreensão científica materialista de leis concretas do desenvolvimento da sociedade em um estado histórico concreto determinado de seu desenvolvimento; na forma da economia política científica de O Capital, na forma de princípios concretamente formulados de estratégia e tática da luta do proletariado, na forma de compreensão teórica da sujeição a leis do processo revolucionário de transformação da sociedade mercantil capitalista em sociedade socialista (na forma disso que V. I. Lenin chama “socialismo científico”). Nestes resultados absolutamente concretos da investigação teórica, realizada com ajuda da dialética como método de investigação, se encerra também a visão de mundo que se desenvolve e precisa ininterruptamente com cada novo passo da investigação da realidade histórica concreta, com cada novo descobrimento em qualquer esfera da natureza e da história. V. I. Lenin via justamente nisso a essência da dialética materialista. E nisso – e não em outra coisa – consistia também a contradição (e não somente “diferença”) entre as posições de V. I. Lenin e as posições dos positivistas a respeito do marxismo.

É difícil sobrestimar toda a profundidade do seguinte enunciado feito pelo acadêmico N. N. Semenov:

“Alguns filósofos expressam às vezes ressentimento: como considerar a filosofia marxista leninista como Lógica, como teoria do conhecimento? E não levará isso à perda do valor de visão de mundo da filosofia marxista, ao prejuízo de seu papel e inclusive à ‘separação da filosofia com respeito às ciências naturais’? [...] Se a lógica vai ser compreendida realmente ao modo leninista, então não há o que temer. Pelo contrário: pois todas nossas ciências, toda nossa cultura se desenvolve com ajuda de um pensamento fundado na prática humana, e por isso a ciência sobre o pensamento desempenha um papel primordial no desenvolvimento da compreensão científica do mundo”(9).

Algo é indiscutível: as pessoas que reprovam a compreensão acima exposta por “subestimar o valor de visão de mundo da filosofia”, reconhece publicamente, pura e simplesmente, que concebem o “pensamento” de uma maneira algo estranho, para nada materialista: como certa capacidade puramente subjetiva que não tem relação alguma como mundo real, com a natureza e a sociedade, com o conhecimento genuíno das leis do desenvolvimento da natureza e da sociedade.

Se partimos dessa compreensão do pensamento, que se apresenta nos trabalhos de K. Marx, F. Engels e V. I. Lenin, então esta reprovação é francamente um disparate, pois o pensamento em sua realidade não é, de fato, outra coisa que o processo de reflexo da natureza e sociedade que realiza o esforço conjunto de todas as ciências, e é exatamente por isso que as leis da Lógica em si não são outra coisa que as leis universais do desenvolvimento natural e sócio-histórico refletidas na cabeça humana (e comprovadas pela milenar prática humana). Esta circunstância se expressa pela fórmula segundo a qual a dialética é a doutrina sobre aquelas leis universais as quais se subordinam, por igual, tanto o desenvolvimento do pensamento, como o desenvolvimento da realidade (quer dizer, da natureza e sociedade); “estudar as leis gerais que presidem à dinâmica e ao desenvolvimento da natureza e do pensamento”(10), e não somente do “pensamento” concebido como processo psíquico subjetivo que tem lugar nas profundezas do cérebro e na psique do indivíduo humano, pois o “pensamento” em semelhante concepção não é estudado em absoluto na filosofia, nem na “dialética”, e sim na psicologia, na fisiologia da atividade nervosa superior, etc.

O “pensamento” para a filosofia (para a dialética como ciência especial” é, em primeiro lugar, o conhecimento em pleno desenvolvimento, o conhecimento em seu devir, isto é, o processo de desenvolvimento histórico do conhecimento real, (das ciências naturais e das ciências sobre a história). Toda dialética estuda as leis universais da natureza, a sociedade e o pensamento. O específico da dialética marxista consiste em que esta dialética é materialista. E isso significa que ela compreende as leis universais do pensamento como leis universais da natureza e a história refletidas pelo conhecimento científico (e comprovadas pela milenar prática humana). Nisso se resume tudo, nisso também se encontra a diferença específica entre a dialética marxista e a hegeliana ou qualquer outra. Portanto, se falamos sobre uma definição mais concisa, que expresse o “objeto específico da dialética marxista”, então esta de modo algum é simplesmente “as leis universais do ser e do pensamento”, e sim – em uma expressão mais concisa – as leis gerais do reflexo do ser no pensamento. Aqui se observa a alternativa à dialética hegeliana, pois na variante hegeliana o assunto é justamente o inverso, e as leis universais do movimento e o desenvolvimento na natureza e na história aparecem como “alienação”, quer dizer, como leis do pensamento, projetadas na natureza e na história, como esquemas lógicos do “autodesenvolvimento do pensamento”.

Assim, a concreticidade da determinação da dialética em geral (de qualquer dialética), que transforma essa determinação em determinação “específica” da dialética marxista (e somente da marxista), consiste justamente na sinalização clara do fato de que as leis do pensamento (as leis lógicas, as leis do desenvolvimento do conhecimento do mundo pelo homem) são leis do desenvolvimento da mesmíssima realidade refletidas, quer dizer, conhecidas e comprovadas pela prática, leis do desenvolvimento da natureza e dos acontecimentos sócio-históricos. Nisso consiste, de forma resumida, a determinação específica do objeto da dialética marxista como ciência especial, e não como método aplicado a qualquer objeto no universo (estes dois sentidos da palavra “dialética” sob nenhuma circunstância se podem confundir!).

Como ciência especial, particular, que se encontra não “sobre” as outras ciências, e sim junto a elas, como ciência com plenos direitos, que tem seu objeto rigorosamente delimitado, a dialética é também a ciência sobre o processo do reflexo do mundo exterior (da natureza e da história) no pensamento humano. A ciência sobre as leis da metamorfose da realidade no pensamento (isto é, sobre as leis do conhecimento, das leis da forma superior do reflexo), e do pensamento na realidade (isto é, sobre as leis da realização prática dos conceitos, as representações teóricas no material natural e na história). A teoria e a prática (quer dizer, o reflexo e a ação na base do reflexo) se ligam, de tal modo, em um processo, dirigido pelas mesmas leis (dialética, justamente), pelas leis da Lógica e o conhecimento teórico e da atividade prática.

Por isso a dialética entra em cena como Lógica, como ciência sobre o domínio teórico e prático, da assimilação do mundo pelo homem social. Nisso consiste sua primordial e grandiosa importância de visão de mundo, seu papel e função, não na composição de “teorias universais do ser”, nem nas tentativas de solucionar uma tarefa que está ao alcance somente do conjunto todo das “ciências reais”, e isso em sua perspectiva.

Seria justo por isso dizer que a importância de visão de mundo da dialética filosófica a “subestima” justamente aqueles teóricos que, por princípio, não promovem a compreensão engelsiana-leniniana da dialética como lógica e teoria do conhecimento do mundo pelo homem, como ciência sobre as leis do desenvolvimento de toda a visão de mundo científica, quer dizer, de todo o pensamento humano que se realiza a si mesmo na ciência e nos assuntos práticos. E por causa desse interesse direto de afirmar o marxismo-leninismo na filosofia consiste no tratamento consequente da dialética como lógica e teoria do conhecimento, pois nisso constitui sua importância de caráter de visão de mundo, seu papel de lógica do desenvolvimento da visão de mundo científica materialista contemporânea.


Notas de rodapé:

(1) [мировоззрение (mirovozzreniye) e suas flexões мировоззрения (mirovozzreniya) e мировоззрением (mirovozzreniyem) podem ser traduzidos como ideologia, perspectivas, panorama, filosofia (de vida). O sentido que Ilienkov procura no texto é o de visão de mundo, sentido que Lenin deu para o termo ideologia, de forma diferente da usada por Marx e Engels em A Ideologia Alemã – M.S.] (retornar ao texto)

(2) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)

(3) Sobre esta via se manifestam corajosas conclusões “filosóficas” a partir dos êxitos e equívocos da ciência contemporânea sobre os quais se baseia o positivismo. Os físicos descobriram o fato de que o átomo não é a partícula última e indivisível da matéria mundial; e no mesmo instante surge a dedução: “a matéria desapareceu”, a matéria já não existe mais, e sim somente existem os “complexos de sensações” que se modificam historicamente, os “coágulos da energia”, etc. e etc. Construíram uma máquina dentro da qual tem lugar a transformação de umas expressões em outras expressões, de umas combinações de signos em outras combinações de signos; e no mesmo instante aparece a multidão de “filósofos” que veem nisso a refutação de tudo que a filosofia do materialismo dialético havia dito previamente sobre o “pensamento”, sobre o “intelecto”. Quantos foram já esses tristes ensinamentos, não existem para eles, não vão em seu benefício. E na base de tudo isso reside essa mesma noção sobre a filosofia como conjunto de “generalizações mais comuns”, como “sistema” dessas conclusões mais gerais retiradas do desenvolvimento das ciências naturais (muito frequentemente) ou do desenvolvimento das ciências do ciclo socioeconômico (já isso, raramente). (retornar ao texto)

(4) ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 33. (retornar ao texto)

(5) ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Сочинений [Obras], t. 20. 2.ed. Moscou: Editora Literatura Política, 1955, p. 549. (retornar ao texto)

(6) Ver: LENIN, Vladimir Ilitch. Cadernos Filosóficos. In: Полное собрание сочинений [Obras Completas], t. 29. 5.ed. Moscou: Editora Literatura Política, 1969, p. 521. (retornar ao texto)

(7) LENINE, Vladimir Ilitch. Materialismo e empiriocriticismo: notas críticas sobre uma filosofia reaccionária. Lisboa: Edições Avante, 1982, p. 253. (retornar ao texto)

(8) ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 23. (retornar ao texto)

(9) SEMENOV, Nikolai Nikolaevich. Наука и общество: Статьи и речи [Ciência e Sociedade: Artigos e Discursos]. Moscou: Ciência, 1973, p. 235. (retornar ao texto)

(10) ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 120. [A tradução da edição brasileira está incompleta. Em russo: наука о всеобщих законах движения и развития природы, человеческого общества и мышления (ciência das leis gerais do movimento e desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento humano) – M.S.] (retornar ao texto)

Inclusão 08/08/2014