O Biológico e o Social no Sujeito

E. V. Ilienkov


Primeira Edição: Publicado originalmente como Biologicheskoye i sotsial’noye v cheloveke. Disponível em http://caute.ru./ilyenkov/texts/sch/biosoc.html. Agradecimentos à Miguel Borrajo e Víctor
Carrión da Ediciones Edithor pela disponibilização da tradução em espanhol para cotejamento.

Fonte: https://medium.com/katharsis/e-v-ilienkov-o-biológico-e-o-social-no-sujeito-c8cb0b9ef24f

Tradução: Bruno Bianchi

HTML: Fernando Araújo.

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Parece que aqui não existe nenhum problema que mereça uma discussão séria. Tudo parece ser tão simples: por um lado, a pessoa é em si um organismo biológico, um indivíduo da espécie Homo Sapiens, e por outro, sempre emerge como membro de um ou outro organismo social, como um representante da sociedade em determinada etapa de seu desenvolvimento, que vem a ser o representante de determinada classe, profissão, de tal ou qual grupo social. Não é necessário ser um filósofo, nem um médico, para entender esta circunstância. É tão evidente quanto o fato de que o Volga flui para o Mar Cáspio.

Por que ao longo dos séculos têm surgido repetidas vezes esse questionamento? Por que reacendem, repetidamente, as discussões a respeito da relação exata que existe entre estes dois lados, estes dois, por assim dizer, aspectos da atividade vital do ser humano? Não é por acaso uma discussão inventada que não tem relação alguma com a problemática real deste aperto do parafuso em que se encontra realmente o ser humano?

Pelo visto, não o é. Além disso, o problema surge justamente porque o sujeito não é um “ser social, por um lado, e um ser biológico, por outro”, que poderia ser desmembrado — mesmo que apenas no pensamento — nesses dois lados, mas é um ser dialético no sentido literal.

Isso significa que toda função social, toda ação, toda manifestação da vida social na pessoa é garantida por mecanismos biológicos, em primeiro lugar: os mecanismos do sistema nervoso. Por outro lado, todas as funções biológicas do organismo da pessoa se subordinam à realização de suas funções sociais em tal nível que toda a biologia se torna aqui apenas uma forma de manifestação de algo totalmente distinto do princípio natural.

Por isso, neste ponto sempre surge a possibilidade de duas interpretações de todo caso concreto, de todo caso particular. Além disso, é possível justamente considerar as funções biológicas do organismo como uma forma de manifestação das funções sociais historicamente determinadas do indivíduo em questão; e é possível — justamente o contrário — considerar as funções sociais como uma forma de manifestação do naturalmente inato, das particularidades “genéricas” do organismo humano, simplesmente como uma forma externa na qual se revelam as funções organicamente incorporadas deste organismo.

De um ponto de vista lógico, do logicamente formal, ambas as abordagens são igualmente legítimas. Por isso, ao considerar um e o mesmo fato obtemos duas lógicas opostas, diretamente inversas. Aqui está a possibilidade de pensar um e o mesmo fato em caminhos mutuamente inversos, criando a possibilidade de que aqui surja uma disputa que não é mais formal.

valor é a forma concreta de manifestação do abstrato, o valor de uso é simplesmente a forma de encarnação do valor de troca. E não o contrário.

Por regra, esta questão surge sempre onde as pessoas encontram com uma ou outra anomalia, com uma violação mais ou menos aguda do curso habitual, “normal” da atividade vital humana, e começam a meditar sobre as causas desta anomalia, desta violação da norma. Onde procurar a causa que viola o curso normal e habitual da atividade vital, a fim de se eliminá-la? A questão não é, naturalmente, sobre casos individuais, mas sobre tais casos que, por alguma razão, têm tendencia a se tornar típicos, massivos e que, portanto, exigem uma certa solução geral. Tenho em mente, por exemplo, fatos como uma redução da taxa de natalidade ou um aumento na taxa de mortalidade, o aumento ou a queda do número de determinadas enfermidades ou, por exemplo, as estatísticas criminais. Em geral, qualquer descontentamento de importância.

Aqui sempre surge a possibilidade de interpretar fenômenos que por sua origem são puramente sociais a partir de causas naturalmente inatas, deduzindo, por assim dizer, o social do biológico, ou, dito mais amplamente, arrancar, em geral, do naturalmente inato, e curar as enfermidades sociais com as medidas da medicina, e curar as enfermidades orgânicas com as medidas de seguridade social.

A guilhotina é médica e químico-farmacêutica.

Este curso de pensamento, que se torna muito sedutor sob determinadas condições e para uma certa categoria de pessoas, é constantemente observada na história da cultura teórica e há muito tempo se cristalizou em uma visão de mundo íntegra. É possível designá-la como o critério naturalista sobre a pessoa e sua atividade vital.

Aqui, pode nos servir como exemplo simplista — cômico para nós, embora em sua época não foi nada divertido — a tese de Aristóteles segundo a qual por natureza uns indivíduos são escravos e outros são seus senhores. O mais interessante aqui é que essa tese surge precisamente quando a sociedade clássica antiga entrava na fase de seu declínio e dissolução. Essa tese surge justamente como base teórica da defesa, da proteção da organização social que desmorona, como antítese à demanda por outra forma de organização da vida, que já começava a se tornar vagamente visível em muitas pessoas.

Porém as explicações naturalistas dos conhecidos fenômenos sociais podem não ter caráter e inclinação protetora, mas também pode ser destruidora. Por exemplo, em 1789, a burguesia francesa se elevou à revolução em nome da assim chamada “natureza do homem”, declarou que o regime estamental feudal era “antinatural”, contrário à “natureza”, à organização natural inata da essência humana. Assim, se declarou natural o direito à propriedade privada, a liberdade da propriedade privada.

Deste modo, por trás da ilusão naturalista, pode-se ocultar uma concepção que seja conservadora e reacionária ou que, em seu sentido objetivo, é progressista ou mesmo revolucionária. Não obstante, em ambos os casos, a ilusão continua sendo uma ilusão, e mesmo as pessoas mais progressistas podem cair nela.

A filosofia materialista, sendo um adversário de princípio de todas as ilusões, não faz uma exceção tampouco a esta ilusão, a qual tende a ser revivida das formas mais inesperadas.

Já em seu nascimento, o marxismo se chocou com ela durante a polêmica com os hegelianos de esquerda de caráter revolucionário. Na Ideologia Alemã, Marx e Engels demonstraram toda a perfídia desta ilusão teórica que levou os hegelianos radicais de esquerda — Bauer e Stirner — a acabarem como apologistas teóricas da ordem existente das coisas, apesar de todas as suas disposições e frases revolucionárias sinceras.(1)

Marx e Engels sempre interviram de maneira categórica contra todas as matrizes da interpretação naturalista da atividade vital humana, inclusive nos casos em que esta concepção naturalista era combinada com intenções politicamente progressistas, eles entenderam que esta ilusão, em virtude de ser precisamente uma ilusão e não uma explicação científica materialista, cedo ou tarde conduziria as pessoas a decisões politicamente errôneas e nocivas, que estas pessoas cedo ou tarde, independente de suas disposições revolucionárias subjetivas, se colocariam em posições de proteção para com o estado de coisas existentes, em relação àquela mesma ordem que lhes parecia anormal. Assim aconteceu com a maioria dos hegelianos de esquerda.

As explicações naturalistas das desgraças massivas e das anormalidades do nosso século provam ser, a cada passo, uma forma de pensar muito conveniente para o anticomunismo. Pode se considerar como um caso extremo, limite no seu gênero, em que a pérfida explicação naturalista se manifesta de modo particularmente preciso, a concepção de Arthur Koestler, um teórico muito, mas muito popular no Ocidente.(2)

A posição geral do materialismo genuíno, formulada por Marx, Engels e Lenin, pode ser caracterizada brevemente, em geral e no seu conjunto, assim:

Tudo o que é humano no sujeito — isto é, tudo o que diferencia especificamente a pessoa dos animais — é em si 100% (não 90% ou mesmo 99%) é resultado do desenvolvimento social da sociedade humana, e toda capacidade do indivíduo é função individualmente realizada do organismo social e não do organismo natural inato, embora, é claro, seja sempre realizada pelos órgãos naturais inatos, biologicamente congênitos do corpo humano, em particular o cérebro.

Tal posição parece ser para muitos um tanto extrema, enfatizada de modo exagerado. Alguns camaradas temem que tal posição teórica pode levar na prática à subestimação das particularidades biológicas, geneticamente congênitas dos indivíduos, e inclusive ao nivelamento e padronização. Estes são receios, me parecem, vaidosos. Me parece que, pelo contrário, toda concessão — mesmo a menor — à ilusão naturalista na explicação da psique humana e da atividade vital humana irá conduzir, cedo ou tarde, o teórico que faz tal concessão a capitular todas as posições materialistas a uma completa rendição às teorias do tipo koestleriana. Aqui, “se as garras são amaradas, o passarinho morre”. Pois começando com as digressões sobre a origem genética (isto é, naturalmente inata) das nuances individuais conformadas por tais e quais capacidades humanas, sempre se termina com a conclusão de que estas capacidades, por sua constituição, são naturalmente inatas e congênitas, e indiretamente — por meio da explicação naturalista destas capacidades — à imortalização (começando na fantasia, e logo também na prática) do existente, do que é formado até hoje, isto é, ao modo de divisão do trabalho entre pessoas historicamente herdado.

Este é sempre o caso quando para o teórico os indicadores puramente físicos do organismo humano (por exemplo: altura, cor do cabelo ou dos olhos) são colocados como “modelo”, por meio do qual ele começa a compreender também os indicadores psíquicos, tais como o nível dos dons intelectuais ou do talento artístico.

Esta lógica inexoravelmente conduz ao fato de que o talento (como seu polo, o idiotismo) começa a parecer um desvio da norma, uma exceção rara, e a “norma” começa a parecer mediocridade, a carência de capacidade para criar, a inclinação para o trabalho não-criativo, passivo, puramente executivo.

Neste ponto, minha opinião é que é dever dos marxistas opor-se categoricamente a tais explicações das diferenças psíquicas. Creio que é muito mais justo — tanto na teoria como na prática — a asseverar que a “norma” para o sujeito é precisamente o talento, e que ao declarar o talento como uma raridade, um desvio da norma, estamos simplesmente colocando nossa culpa na mãe natureza, essa incapacidade nossa de criar para cada indivíduo clinicamente normal todas as condições externas de seu desenvolvimento até o nível mais alto de talento.

Por isso me parece não só absurdas, mas também nocivas as digressões sobre a predisposição genética das capacidades intelectuais da pessoa. Pois a conclusão prática destas digressões é sempre uma estratégia errônea no trabalho de colaboração entre pedagogo e médico, trabalho que predispõe esta colaboração, tão essencial, quando se trata da tarefa do desenvolvimento multilateral de cada sujeito, isto é, a tarefa fundamental da transformação comunista.

Se colocamos a culpa na mãe natureza, se culpamos o corpo humano orgânico pelo fato de nossas escolas deixarem sair uma porcentagem bastante significativa de pessoas sem talento e uma porcentagem insuficiente de pessoas talentosas, substituímos automaticamente a tarefa de reconstruir a escola e todas as outras condições do desenvolvimento humano, em geral, pela tarefa de reconstruir o orgânico, a estrutura do cérebro e os sistemas nervosos dos indivíduos. Assim, geralmente se começa a ver a tarefa da medicina e do médico não na proteção e reestabelecimento da norma biológica do funcionamento do organismo, mas no esquema utópico de reconstrução desta norma. Pois o médico desempenha o papel indigno de apologeta de todas as deficiências em nossa escola e em nossa educação. Se começa fazendo da criança um neurótico e até mesmo um psicopata para logo o enviar ao neurologista, o qual, naturalmente, vai corrigir uma neurose. Assim, obtemos um círculo vicioso, onde sempre a causa é facilmente se revelada como se fosse o efeito.

Deste modo, o problema da relação do biológico e do social na atividade vital humana e no psiquismo não é um problema imaginário, mas vital, e o médico, como o pedagogo, deve conhecer a solução teórica geral deste problema na filosofia do marxismo-leninismo, para cometer o menor número possível de erros nos casos particulares, concretos, com o qual se encontra.


Notas de rodapé:

(1) MARX, K. & ENGELS, F. Obras, vol. 3, pp. 424–426 (retornar ao texto)

(2)  N. T. Arthur Koestler (1905–1983), jornalista húngaro, militante do movimento comunista que durante a Segunda Guerra Mundial foi recrutado pelo serviço de inteligência britânico. No início da guerra, integrou as operações de guerra cultural dirigidas pela CIA no âmbito do Congresso para a Liberdade Cultural, cujo objetivo era a criação de uma “política de esquerda não comunista” destinada a criar confusão no interior a intelligentsia e criar uma camuflagem progressiva para as políticas imperialistas. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/10/2022