Sobre a questão do conceito de “atividade” e seu significado para a pedagogia

Evald Vasilyevich Ilyenkov


Primeira Edição: Publicado em ILIENKOV, E. V. Shkola dolzhna uchit’ myslit’ [A escola deve ensinar a pensar], 2002, pp. 78–84.

Fonte: https://medium.com/katharsis/ilienkov-sobre-a-questao-do-conceito-de-atividade-e-seu-significado-para-a-pedagogia-aab03a752542

Tradução: Bruno Bianchi

HTML: Fernando Araújo.

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A discussão colocada nas páginas da revista “Problemas de filosofia” de A. N. Leontiev me parece não só muito oportuna mas também muito precisa em seu objetivo. Gostaria de dizer que é uma feliz coincidência que o aparecimento dos artigos de Leontiev e a fundação de nosso seminário tenham coincidido no tempo. O conceito de atividade é, aparentemente, o conceito-chave que por si só permite que os esforços de professores, psicólogos e filósofos se unam para resolver a tarefa central de nosso Sistema Educacional: a tarefa de organizá-lo sobre a base de um sistema claro de teoria conceitual. Me parece que este conceito pode ser comparado a um cristal jogado na solução supersaturada de nosso pensamento pedagógico.

De fato, a necessidade de criar um sistema unificado de fundamentos teóricos para a organização do trabalho docente e educativo nas escolas é muito aguda, muito tensa. O sinal mais confiável desta situação tensa é a celeridade, a rapidez com que recentemente tem surgido e desaparecido no ambiente de nosso pensamento pedagógico uma espécie de epicentros, aqueles pontos de atração em torno dos quais começam a se agrupar de imediato as pessoas com determinadas afinidades. Ou é a ideia de “aprendizagem programada”, depois “pedagogia genética”, depois “aprendizagem evolutiva”, ou mesmo “cibernética”, a teoria da “informação” e outras modas similares. Esses passatempos não passam despercebidos, eles são aprendidos com gana, até mesmo com avidez. Vale a pena ler qualquer guia pedagógico escrito nos últimos anos para descobrir os traços de todos os passatempos desenvolvidos a curto prazo, algo como as camadas de uma massa folhada ou as franjas do estrato geológico.

Há muito a se fazer aqui! A retroalimentação externa, os programas ramificados, falar sobre o condicionamento genético das habilidades, o papel do meio e o papel das organizações do Komsomol.(1)

Naturalmente, também se fala da importância da “atividade”, da importância da atividade independente no curso do domínio do material. Às vezes, inclusive, fala-se muito, e à primeira vista parece que isso é correto. No entanto, permanecem sendo fragmentos que podem ser removidos sem alterar mais nada. Mas isso mostra também que o processo de educação (e de criação) do ser humano é compreendido fora de qualquer conexão com a característica principal da atitude especificamente humana perante o mundo e o outro — com o que faz e o que torna humana uma pessoa –, com o processo de alteração da natureza, com a atividade do sujeito no sentido mais sério da palavra.

Em termos gerais, isso já foi dito muito claramente. E, aparentemente, não se trata de repetir isso mais uma vez de uma forma geral. Por isso, tentarei analisar um problema pedagógico bem conhecido, aquele com o qual nossa escola tem muitos problemas, tanto no nível superior quanto secundário. E talvez quanto mais longe formos, mais problemático será.

Me refiro a um problema que costuma ser formulado como o problema aplicação do conhecimento na vida, na “prática”. Creio que não é necessário demonstrar que se trata de um problema delicado. Além disso, um problema que exige uma solução radical, uma solução teórica e prática.

Existe tal problema? De fato. Muitas vezes — e mais frequentemente do que parece — um graduado de nossa escola não consegue aplicar os conhecimentos adquiridos para resolver os problemas que surgem fora dela. A situação é absurda: uma pessoa sabe como agir de acordo com a ciência, no entanto age como se não soubesse. Não é porque não quer, mas porque não sabe como.

Se pensamos bem, o fenômeno é bastante estranho. De fato, parece que o conhecimento está lá, que o objeto ao qual esse conhecimento deve ser aplicado está lá, que há um desejo ardente, mas, no fim, esse conhecimento, de alguma forma, não se “aplica”.

Essa é a origem da noção de que, dentro das capacidades humanas, dentro das “habilidades”, deve haver uma capacidade especial, diferente do conhecimento em si, isto é, a capacidade de “aplicar” o conhecimento disponível.

Assim, portanto, surge a pergunta: é possível compreender e ensinar essa habilidade especial?

Se é possível ensinar essa habilidade especial, significa que existe (ou deveria existir) um tipo especial de atividade que se deve utilizar para relacionar o conhecimento ao objeto. Isso significa, por sua vez, que devem existir “regras” especiais de acordo com as quais essa atividade se desenvolve.

Assim, começa-se a buscar e formular as regras da correlação do conhecimento com o objeto, mais precisamente de fórmulas teóricas comuns com as situações objetivas diretas; começa-se a classificar os erros típicos que ocorrem para evitar esses erros típicos.

Mas não se percebe que o problema que se está tentando resolver aqui é, em princípio, na essência mesma da questão, insolúvel. E que a única solução só pode ser tornar esse mesmo problema impossível, para que não seja, nem possa ser, nem mesmo viável para ninguém.

Em outras palavras, a única maneira de resolver este problema é eliminar as condições em que ele surgiu.

A questão é que o “conhecimento”, que, todavia, deve estar especificamente correlacionado com o objeto, não é um conhecimento como tal, mas uma ilusão.

A esse respeito, parece-me que a distinção feita aqui por A. N. Leontiev entre “conhecimento” e “crença” não é totalmente precisa. A fronteira, parece-me, não é entre conhecimento e crença, mas entre conhecimento verdadeiro e conhecimento imaginário. Essa é a diferença entre o conhecimento da matéria e o puramente formal, isto é, o conhecimento puramente verbal, com termos, com símbolos, com signos e suas combinações, com frases etc.

Por “conhecimento”, entende-se, às vezes, de fato, apenas este último, isto é, o domínio da linguagem de um determinado campo do saber, a posse de uma terminologia e a capacidade de usá-la.

Isso não significa assimilar o objeto (e o conhecimento não consiste, de nenhum modo, nisso), mas apenas ter o domínio das frases que se referem a este assunto, apenas o domínio da casca verbal do conhecimento, em vez do próprio conhecimento.

Aqui está a raiz da ilusão sobre a qual cresce o problema peculiar, inerentemente absurdo e irracional, de “relacionar” o conhecimento com um objeto. Trata-se de um problema que, por sua própria natureza, não tem nem pode ter uma solução racional.

Isso entendeu bem um analista tão sutil como Immanuel Kant. Em sua Crítica da Razão Pura há uma análise muito aguda dessa situação. A essência dessa análise é a seguinte: se o conhecimento que se aprende na escola consiste em um conjunto definido de conceitos, definições e fórmulas e suas combinações em juízos, deduções e sistemas de deduções, isto é, de um conjunto de regras, que constituem a erudição profissional, então, além disso, na atividade do intelecto permanece outra tarefa muito especial, a saber, a tarefa de submeter casos particulares e especiais a estas regras. A tarefa de colocar o particular sob o universal.

É aqui, via de regra, que geralmente ocorre o colapso típico.

A função particular dessa habilidade consiste, como Kant definiu com bastante precisão, na capacidade de distinguir se um caso dado se ajusta a uma regra determinada ou não. Kant chamou essa habilidade especial de capacidade de juízo. E essa capacidade especial, à princípio, não pode ser aprendida na forma de norma. E por uma razão muito simples: porque a norma, precisamente por ser uma norma, isto é, algo geral, requer por sua vez a orientação da capacidade de juízo, ou seja, de novo a capacidade de discernimento; e esse caso de “aplicação” da norma se enquadra ou não na regra de dita aplicação formulada por nós?

Assim acontece que, embora o intelecto seja capaz de ser instruído mediante regras e de aprendê-las, a capacidade de julgar é um talento especial, que requer exercício, mas não pode ser aprendida. Esse talento é um elemento peculiar do engenho, e sua deficiência não pode ser compensada por nenhuma escola, pois uma escola só pode entregar um intelecto limitado e, por assim dizer, martelar nele todas as regras extraídas pela compreensão dos outros. Porém, a capacidade de usá-lo adequadamente deve pertencer ao próprio aluno e, em caso de deficiência desse dom natural, nenhuma regra que se atribua a esse fim o protegerá contra a aplicação errônea dele.

A falta de juízos é na realidade o que se chama estupidez; não há cura para essa deficiência. Uma mente embotada ou limitada, que carece de suficiente poder de juízo, pode, no entanto, com a ajuda do treinamento, até mesmo alcançar o aprendizado. Mas como tais pessoas carecem da capacidade de julgar, não é raro encontrar-se com homens cultos que, aplicando sua ciência, revelam a cada passo esse irreparável defeito.(2)

Portanto, a conclusão é direta: a capacidade de julgar é uma capacidade inata. Não importa se vem de Deus ou da natureza. Se um aluno nasce com ela, pode e deve treina-la. Mas se não, nenhuma quantidade de treinamento sofisticado o ajudará.

Por isso, a tradição, partindo do raciocínio de Kant, está relacionada com a abrupta divisão das pessoas em duas categorias: os que agem de acordo com as regras, obtidas pela mente de um outro, e os que são capazes de obter essas regras da experiência e aplicá-las sabiamente na experiência.

Nesse caso, naturalmente, a maioria das pessoas se enquadra precisamente na primeira categoria. E o intelecto desse tipo de pessoa trabalha segundo esquemas que lembram mais os esquemas de ação de um animal domesticado do que as ações de um homem. Desse modo, elas agem em estrita conformidade com os esquemas das “regras” formalmente aprendidas, sendo incapazes de confrontar a tarefa quando a situação resulta na impossibilidade de agir de acordo com um esquema predeterminado.

A questão que se coloca é: é possível saída neste caso? Sim. É muito simples em princípio, embora muito difícil na sua realização pedagógica concreta.

A saber, toda a arte de um pedagogo deve ser orientada desde o início não para impor regras pré-fabricadas que são percebidas como um instrumento de ação, mas para organizar as condições externas e objetivas da atividade dentro da qual esta irá ocorrer.

Em outras palavras, o educador deve se preocupar, em primeiro lugar, em criar um sistema de condições de ação que dite autoritariamente ao sujeito este ou aquele modo de agir.

Uma vez realizada essa ação, pode e deve ser identificada nela uma regra, um esquema ao qual a ação foi forçada a se ajustar. Portanto, essa regra pode e deve ter uma forma verbal, icônica. Então, e não antes, essa regra pode ser levada para a forma verbal da consciência.

Dessa maneira, a pessoa pode já manusear o objeto de acordo com as exigências impostas pela natureza do objeto, ao invés de uma “regra” pré-fabricada (e independente da ação com o objeto); um esquema de ação anterior e independente dele.

Aqui teremos uma dialética muito curiosa e insidiosa.

Se é apresentada a capacidade de agir de acordo com uma regra como uma situação externa, fora da consciência da pessoa e independente da vontade, existindo como um estado de coisas que requer um determinado método de ação, então a pessoa aprende a regra como uma forma (ou método) subjetiva de lidar com o objeto.

Se é feito o contrário, se é estabelecida essa capacidade de agir segundo uma regra na forma de uma “regra enquanto tal”, isto é, como um esquema de ação do sujeito, então essa regra não se aprende como um esquema de ação subjetivo. Aprende-se precisamente como um esquema externo, como uma matéria em conjunto com outras matérias, como uma coisa com propriedades conhecidas. Por exemplo, uma fórmula, um algoritmo. Uma pessoa está acostumada a agir sobre eles da mesma maneira que agiria sobre qualquer outro objeto externo.

O paradoxo da característica psicológica reside em o instrutor, em ambos os casos, alcançar exatamente o resultado oposto (em comparação com sua intenção).

Se estabelece uma “regra” através da organização de uma situação objetiva, isto é, não como regra, mas como um conjunto de condições externas de ação que consegue assimilar a regra da atividade subjetiva.

No entanto, se estabelecermos uma regra precisamente como um esquema de atividade subjetiva (como uma ordem de operações), obteremos a assimilação de um objeto extra, uma coisa externa extra com a qual teremos que realizar ações especiais e, em particular, ações de correlação especial com outro objeto.

É por isso que os pensadores que partiram das dificuldades claramente indicadas por Kant insistiram que o modo subjetivo da ação com as coisas aparece e se forma única e exclusivamente nos atos da atividade real com as coisas, e não pode se dar como esquema a priori das ações. Para aprender a nadar, é preciso entrar na água, repetia Hegel.

Sob essa condição, se o ponto de partida é uma ação real com o objeto, acompanhada da observação do modo de ação (“reflexão”), a regra é assimilada diretamente como requisito para a ação a partir do objeto. Em outras palavras, diretamente como a forma de uma coisa. Ao mesmo tempo, o conhecimento atua para uma pessoa precisamente como conhecimento de uma coisa e não como uma estrutura especial localizada fora da coisa que todavia precisa ser de alguma maneira “aplicada”, “aplicada” a essa coisa, realizando algumas ações especiais para ela.

Aqui ocorre uma reorientação psicológica muito séria da personalidade; obtém-se um tipo de atitude psicológica completamente diferente em relação ao conhecimento e ao objeto.

Em um caso, uma pessoa é confrontada, por assim dizer, com dois objetos, que ela mesma, sendo diferente de ambos, é obrigada a relacionar de alguma maneira.

Em outro caso, diante dela existe um só objeto, porque a pessoa se funde desde o início com o outro objeto (conhecimento), pois também surge como sujeito da ação para o objeto, como conhecimento personificado, como conhecimento que tem uma correlação direta com as coisas, como conhecimento das coisas. E não das frases que outras pessoas dizem sobre essas coisas.

Essa é a diferença fatídica. O homem está muito menos propenso a ver e conhecer o objeto que a pensar sobre ele. Na maioria das vezes, ele só vê o que sabe pelo que os outros dizem, porque na verdade ele nem encara o objeto em si. Não lhe é apresentado o assunto, mas o que está escrito sobre ele em livros, manuais, instruções e livros didáticos. E essas, como dizem, são duas grandes diferenças.


Notas de rodapé:

(1) N. T. Kommunisticheskii Soiuz Molodiozhi, ou Komsomol, é o nome da União da Juventude Comunista soviética, criada em 1918. (retornar ao texto)

(2) Obras, vol. 3, pp. 217–219 (retornar ao texto)

Inclusão: 08/10/2022