Contribuição à Questão da Produção de Mercadorias

Evald Vasilievich Ilienkov


Fonte: Tradução para o espanhol por Víctor Antonio Carrión Arias, a partir da versão publicada como anexo do livro A Dialética do Abstrato e do Concreto no Pensamento Científico e Teórico (1997), e publicado como parte do livro La Lógica Económica del Socialismo (2012). Essa tradução tem permissão da editora Edithor e do tradutor Víctor Antonio Carrión Arias. Disponível em russo no Lendo Ilienkov (Читая Ильенкова). [http://caute.ru/ilyenkov/].
Tradução do espanhol: Marcelo José de Souza e Silva.(1)
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Fernando A. S. Araújo.
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1. Discussões, semelhantes a esta que surgiu, somente se justificam em um caso. No caso de que estas, na qualidade de produto, reportem um entendimento em algo mais exato e mais concreto daquelas coisas em torno das quais se empenhou a discussão. Por isso não me parece proveitosa a orientação daqueles camaradas, que nas posturas de V. P. Schkredov(2) vieram simplesmente a nociva tentativa de envolvermos, em relação a coisas que já são totalmente evidentes e indiscutíveis. Se assim fosse, em rigor a tarefa dos envolvidos – me incluindo – seria claramente uma só: obrigar Schkredov a se ajoelhar, se arrepender e reconhecer seus erros, desistir de todas as suas inovações. E se essa discussão tem final semelhante, quem sairia ganhando seria Schkredov, embora sofre por isso seu amor próprio.

E todos nós, tanto o camarada Dzarasov, como Jessin, como Novikov, nos retiraremos nos sentindo muito bem, porque aqui temos triunfado sem reservas, e em resumo nossas posições não deviam nem ser emendadas nem precisadas. Não penso que este seja o mais vantajoso término para nossas discussões. Nosso entendimento geral do método de Marx neste caso não se moveria um centímetro, se manteria no mesmo nível que antes da discussão...

Por isso eu não quero me juntar ao tom das palestras dos camaradas Dzarasov e Novikov, não quero intervir no tom de relatório fiscal, embora de não já disse que não podia concordar de movo algum com uma série de afirmações de Schkredov, a estas considero categoricamente erradas. Porém, isso fica para um pouquinho mais adiante.

Creio que se encontra profundamente equivocado o camarada Dzarasov, não somente em relação ao tom de seu discurso, mas sim também em sua afirmação inicial, afirmando que toda essa discussão, infelizmente, não é nada mais que uma intolerável perda de tempo, imposto a nós pelas mistificações de Schkredov e que somente nos separada da resolução dos problemas atuais da economia política do socialismo, do aspecto teórico da construção socialista. Isso não é verdade.

Creio que a maioria dos que estão aqui presentes concordarão comigo se digo que a questão latente em nossas discussões é um dos problemas mais difíceis e atuais justamente da economia política do socialismo, o problema da importância específica, papel e função das categorias mercantis-monetárias no organismo socialista da economia nacional, no sistema socialista de organização econômica. Um problema sobre o qual por décadas versaram as discussões tanto no plano teórico, como no prático-político.

Isso, pelo visto, explica aquele aquecimento que uma e outra vez esquenta nossos discursos.

Na verdade, se o debate se tratasse somente daqueles matizes heterogêneos no entendimento das mercadorias e a produção de mercadorias expostos em O Capital, é mais provável que essas discussões transcorressem sob a forma de disputas acadêmicas gentis. Então esta teria sido, na verdade, uma discussão escolástico-professoral por excelência.

Porém, na verdade a questão reside justamente em que aqui as discrepâncias na interpretação de O Capital, de um movo inevitável vão parar em gravíssimas divergências em relação ao papel das mercadorias no socialismo, e em relação às categorias iniciais da economia política do socialismo.

Coloquemos assim a pergunta: a análise de Marx da forma mercadoria do produto do trabalho manteve seu pleno valor como tal para o socialismo? Ou se refere somente às mercadorias como elemento da organização capitalista de produção? Somente as mercadorias produzidas à forma capitalista?

Parece-me que justamente é aqui onde a ponta do prego de nossas divergências aparece.

Quando aprendi em meus anos de estudante da economia política do socialismo, isso seria nos anos 1948-1949, a aprendi segundo a interpretação de J. A. Kronrod. O ponto de partida dessa interpretação era o “valor modificado ao modo socialista”, e as categorias restantes como particulares específicos dessa categoria universal inicial. Dito de outra forma, o socialismo era examinado como uma das variedades históricas da economia mercantil. Esse ponto de vista, como bem sabem todos os aqui presentes, teve e ainda tem uma difusão bastante ampla.

Isso se vincula também com uma interpretação peculiar dos primeiros capítulos de O Capital. J. A. Kronrod, ademais, se viu constrangido a explicar esses capítulos como a imagem teórica das mercadorias especificamente capitalistas e assim ter a possibilidade de protestar em público que as mercadorias sob o socialismo são mercadorias completamente diferentes, que nada têm em comum com aquelas mercadorias, as quais foram analisadas nos primeiros capítulos de O Capital. Naturalmente, a mercadoria modificada ao modo socialista resultava liberada de todas as contradições, características do modo imanente às mercadorias e a todas as demais categorias mercantis, incluindo o dinheiro, a ganância, a renda etc., etc.

“Mercadorias” ideais, como forma externa de expressão da produção planificada... Como instrumento dócil de realização do princípio de planificação...

Vem à minha memória como mais tarde J. A. Kronrod, furiosamente, bateu com repreensões ao meu livro, onde eu sustento que ao início de O Capital se analisa a forma valor em geral, em sua forma geral, independentemente de todas as suas modificações posteriores, ligadas ao capitalismo, feudalismo ou socialismo. A essa postura a qualifico de “hegelianismo”.

Na minha opinião, V. P. Schkredov não levou em consideração a possibilidade de interpretações semelhantes quando começou a defender a tese de que Marx não retratou na primeira seção de O Capital a forma mercadoria ou o valor em geral, e sim unicamente a uma forma extraordinariamente abstrata e historicamente particular, a saber, a organização capitalista da produção.

Veja, com que graves consequências estão impregnadas as mais pequenas imprecisões na interpretação das formas de organização da produção mercantis-monetárias, do mercado.

Naturalmente, V. P. Schkredov está correto em relação a que somente no capitalismo a forma mercadoria do produto tornou-se na forma universal do produto em geral e expõe integralmente tudo aquilo que tem em si como potencial represado. Verdade que o objeto de análise direta de Marx, tanto no capítulo 1, como no 5, como no 24, foram as formas de desenvolvimento da produção burguesa. Isso é um fato e a este se referiu em múltiplas ocasiões o próprio Marx. A mercadoria para ele surge, na verdade, como a forma mais abstrata da riqueza burguesa.

Contudo, V. P. Schkredov se deixou levar de tal forma pela evidência desse pensamento completamente justo, que em seu entusiasmo parou de olhar onde estava parado, e não reparou nos buracos e pedras sob seus pés. E assim tropeçou.

Ele não reparou o seguinte: Marx, no primeiro capítulo, olha para esse todo histórico concreto (concreticidade(3)) como capitalismo. Sim. Schkredov aqui está cem por cento correto.

Não obstante, a este todo historicamente concreto – e justamente essa é a peculiaridade da primeira parte – visto aqui a partir das premissas históricas necessárias de seu engendramento, de seu surgimento.

Justamente as premissas, porém não a partir do ângulo das condições internamente necessárias do desenvolvimento capitalista.

Marx, com muita clareza distingue a premissa do surgimento do fenômeno conhecido das condições reais de existência deste mesmo fenômeno(6). Sim, ao longo do desenvolvimento do capitalismo todas as premissas realmente indispensáveis desse desenvolvimento realmente reproduz seu movimento propriamente dito, assim a premissa se transforma em consequência, e o desenvolvimento recapitula, tomando sua forma de espiral. Porém, Marx no começo se interessa por um problema, que V. P. Schkredov rapidamente restitui: a saber, se o desenvolvimento econômico capitalista chega a ser possível somente com a existência da totalidade inteira das premissas historicamente necessárias, se é assim, torna-se urgente colocar às claras quais são justamente as premissas (ou condições de engendramento) que devem estar presentes, e quais não fariam falta, sem prejuízo de historicamente ter tido lugar em toda a parte.

É exatamente aqui que resulta que a produção de mercadorias se desenvolve o suficiente (tanto intensiva como extensivamente) e isso implica o suficiente desenvolvimento da mercadoria; porém, se vê que é a circulação mercantil-monetária a que se constitui em premissa absolutamente indispensável, sem cuja existência em geral, capitalismo algum poderia surgir, nem poderia engendrar-se.

Aqui contam também, entre as condições absolutamente necessárias do engendramento do capital, ou seja, contam como premissas absolutamente necessárias, condições sine qua non da produção capitalista, a relação e presença de uma quantidade suficiente de gente, a qual à parte de sua alma, nada tem a não ser suas próprias mãos para trabalhar. Se não existe tal gente, pronta a ser contratada e a trabalhar com a ajuda de ferramenta e matérias-primas que não lhes pertencem, não surgirá o capitalismo, mesmo que todas as outras premissas se fizerem presentes...

Acontece que, embora o objeto direto de análise nos primeiros capítulos de O Capital era o capital, ainda não era sobre sua estrutura interna, e sim algo totalmente diferente, a saber, o conjunto inteiro das premissas que são absolutamente indispensáveis para seu surgimento, suas condições de engendramento, “conditio sine qua non”.

Realmente, as premissas, quer dizer, os fatos diabolicamente reais que devem ter existência antes de, fora de e totalmente independentes ao fato do desenvolvimento especificamente capitalista, a sua existência, a seu “ser real”(4), se por acaso nos expressarmos nos termos da lógica hegeliana...

Todas essas premissas da produção capitalista é, então, a continuação do seu próprio movimento, tornando-os, assim, em formas elementares de sua própria existência histórica concreta. Mas antes de ser capaz de fazê-lo, deve encontra-las já prontas, antes de e independentemente de ter constituído o mesmo.

Se não fosse assim não seriam premissas(5).

Aqui temos exatamente o mesmo quadro do processo de surgimento da vida na Terra. A biologia se interessa muito por esse problema, de como surgiu essa vida, quer dizer, diante da presença de quais condições físico-químicas exatamente surge, em geral, a mesma por necessidade.

(“Se todas as condições realmente necessárias para engendrar a coisa existem, então essa coisa se cristaliza em realidade” – Hegel).

Na primeira seção, Marx resolve uma tarefa análoga: seu interesse é, quais premissas históricas existentes eram absolutamente necessárias para engendrar o capital, e quais de tais premissas históricas reais não eram absolutamente necessárias, embora universalmente ocorreram.

Bem, entre essas últimas estão, por exemplo, o capital comercial ou mercantil. Essa forma de relação econômica pode ou não pode existir, mas o capital ainda teria surgido.

Mas, se não existe a produção desenvolvida de mercadorias (quer dizer, sem a produção, que desde seu próprio início teve lugar para o mercado, ou em proveito do consumo mediado pelo mercado, compra e venda) não surgirá.


Notas de rodapé:

(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)

(2) [A obra mais importante de V. P. Schkredov, que era jurista de profissão, foi O Método de Investigação da Propriedade em O Capital de Karl Marx, editada em 1973, e na atualidade é considerada um dos escritos mais importantes realizados sobre o tema na época soviética. Na introdução Schkredov assinala: “... é bem conhecido, que a propriedade é uma das instituições fundamentais do direito, dos conceitos jurídicos. Por isso surge inevitavelmente a questão, de o que é que diferencia a este último da definição econômica de propriedade, e torna possível que a propriedade seja objeto da ciência jurídica e não da economia política. Junto a isso está a necessidade de resolver o problema da interrelação entre as relações materiais-produtivas, volitivas, jurídicas, que existem no processo da produção social e a circulação de produtos, que determinam as diferenças e os vínculos entre os sistemas de categorias econômicas por um lado, com o sistema de categorias jurídicas, que caracterizam as relações de produção em sua expressão jurídica, por outro lado” – V.A.] (retornar ao texto)

(3) [No original “конкретность”: termo que pode ser interpretado de diversos modos, nas traduções inglesas de Ilienkov essa palavra foi traduzida como “concreteness” literalmente “qualidade do concreto”, em castelhano se poderia traduzir como “Concreto”, com maiúscula, para indicar o caráter de categoria filosófica deste termo, enquanto uma forma mais literal de tradução russo-castelhana seria “caráter concreto” – V.A.] [Nos textos em português traduzidos por mim tenho optado por traduzir este termo como concreticidade – M.S.] (retornar ao texto)

(4) [“Assim, a importância se torna aparente do princípio do historicismo concreto que impõe o requisito do estabelecimento, em uma maneira estritamente objetiva, do ponto no qual a história real do objeto sob consideração começa, o ponto de partida genuinamente concreto de sua origem” (E. V. Ilienkov. A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx, capítulo 4, item 3). – M.S.] (retornar ao texto)

(5) [A expressão “наличного бытия” poderia ser traduzida também como “ser existente” ou “ser efetivo” – V.A.] (retornar ao texto)

(6) [“O sistema capitalista, por exemplo, não surge do nada, mas com base em e dentro de formas historicamente precedentes de relações econômicas, seu desenvolvimento concreto envolvendo a luta e superação dessas formas. Surgido originalmente como como um modo bastante discreto, mas mais viável de relações econômicas, esse sistema gradualmente transforma todos os tipos de produção existentes na época de seu nascimento de acordo com seus próprios requisitos e sua própria imagem” (E. V. Ilienkov. A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx, capítulo 4, item 3). – M.S.] (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2014