A Família e o Estado Socialista

Alexandra Kollontai


Fonte: Partido da Causa Operária
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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1. A família e o trabalho assalariado da mulher

Conservar-se-á a família no Estado comunista? Será esta a mesma e com a mesma missão que tem hoje? Eis aqui uma questão que atormenta a mulher da classe operária, e do mesmo modo os seus companheiros, os homens. Nestes últimos tempos este problema ocupa particularmente os espíritos no mundo dos operários, e isto não deve surpreender-nos, já que a vida muda ante os nossos olhos; vêem-se desaparecer pouco a pouco os antigos costumes; toda a existência da família proletária organiza-se de modo novo; de modo insólito e estranho, afirmam alguns. Todavia, o que mais fez refletir a mulher nas presentes contingências é que o divórcio foi facilitado na Rússia dos Sovietes. Com efeito, em virtude do decreto dos comissários do povo de 18 de dezembro de 1917, o divórcio deixou de ser um luxo, apenas acessível aos ricos; para o futuro, a mulher operária não deverá solicitar durante meses, ou durante anos, um passaporte separado para reconquistar sua independência e afastar-se de um marido bruto ou bêbado, que a enche de pancada. Para o futuro, o divórcio far-se-á no espaço de uma semana, ou, no máximo, duas semanas. Mas precisamente esta facilidade de divórcio, tão abençoado pelas mulheres infelizes no matrimônio, é o que espanta as demais, especialmente as que estão habituadas a considerar o marido como seu único sustento na vida, e que não compreendem que a mulher deve acostumar-se a procurar e encontrar o seu sustento em outra parte, não na pessoa do homem, mas na coletividade, no Estado.

A família no passado

Não se deve dissimular a verdade: a família normal do passado, em que o homem era tudo e a mulher não era nada - já que ela não tinha nem vontade, nem dinheiro, nem tempo para si mesma - esta família está se modificando dia a dia, e podemos afirmar que já passou. Mas isto não deve espantar-nos. Seja por erro, seja por ignorância, estamos dispostos a fingir que tudo à nossa volta continua imóvel, quando na realidade tudo muda. "Foi sempre assim e assim continuará". Não há nada tão errado como este provérbio. Basta ler como viviam os homens no passado e logo nos damos conta de que tudo está submetido a mudanças e que não há nada fixo e invariável, quer se fale dos costumes, quer das organizações políticas. E a família, nas diversas épocas da humanidade, mudou várias vezes de forma, e no passado foi muito diferente do que estamos habituados a ver hoje. Houve um tempo em que se conhecia somente uma forma de família: a família genética, quer dizer, aquela que tinha como chefe uma velha mãe, à volta da qual se agrupavam os filhos, os netos, os bisnetos para trabalharem juntos. Noutra época conheceu-se a família patriarcal, presidida pelo pai-patrono, cuja vontade era lei para os demais membros da família. Todavia, também nos nossos dias se podem ver em algumas aldeias estas famílias camponesas. Com efeito, ali os costumes e as leis da família não são os mesmos que os do operário da cidade; nas aldeias afastadas dos grandes centros ainda se encontram muitos costumes que já desapareceram nas famílias do proletariado urbano. A forma da família e seus usos variam segundo os povos. Há povos (por exemplo os turcos, os árabes, os persas, etc.) onde a lei admite que um só marido tenha várias mulheres. Houve, e há ainda, povos onde o uso tolera absolutamente o contrário, quer dizer, que uma mulher tenha vários maridos. E, ao contrário do costume habitual do homem dos nossos dias, que exige que a jovem permaneça virgem até o seu matrimônio legítimo, havia povos em que a mulher se vangloriava de ter muitos amantes e usava nos braços e nas pernas tantos anéis quantos amantes possuía...

A atual forma da família

Certos costumes que nos admirariam e que consideraríamos como imorais estão consagrados noutros países, que, pelo contrário, consideram como pecado as leis e os costumes que regem o nosso país. Por isso, não nos devemos espantar com a idéia de que a família está se modificando, ao vermos que desaparecem pouco a pouco os vestígios do passado, que já se tornam inúteis, e finalmente, porque entre o homem e a mulher se estabelecem novas relações. Só devemos perguntar: o que acabou nos costumes da nossa família e quais são, nas relações entre o operário e a operária, entre o camponês e a camponesa, os direitos e os deveres respectivos, que se harmonizariam melhor com as condições de existência da Rússia nova, da Rússia trabalhadora, isto é, da nossa atual Rússia soviética? Só se conservará o que convier; todo o resto, todas as coisas velhas e inúteis legadas pela maldita época da escravatura e dominação, que foi a dos latifundiários e dos capitalistas, tudo isto será varrido, junto com a classe dos proprietários, com esses inimigos declarados do proletariado e até dos pobres...

A família, na sua forma atual, não é outra coisa senão uma das ruínas do passado. Sólida, encerrada em si mesma e indissolúvel, já que se considera como tal o matrimônio abençoado pelo pope , era também necessário que assim fosse para todos os membros. Se a família não tivesse existido, quem teria alimentado, vestido e educado as crianças e quem as teria guiado através da vida? A sorte do órfão era no passado a pior de todas as sortes. Na família a que estamos acostumados, o marido trabalha e mantém a mulher e os filhos, enquanto a mulher se ocupa da casa e educa os filhos, de acordo com o que pensa desta missão.

A decadência da família atual

Mas, desde o século passado esta forma tradicional da família destrói-se progressivamente em todos os países onde impera o capitalismo, onde aumenta rapidamente o número de fábricas, de oficinas e de outras empresas capitalistas que fazem trabalhar os operários. Os costumes e usos familiares transformaram-se ao mesmo tempo que as condições gerais de vida. O que em primeiro lugar contribuiu para transformar de modo radical os usos da família, foi, sem dúvida, a difusão universal do trabalho assalariado da mulher. No passado, só o homem foi considerado como o amparo da família. Mas nos últimos cinqüenta ou sessenta anos vê-se na Rússia (nos outros países o mesmo fenômeno produziu-se um pouco antes) que o regime capitalista obriga a mulher a procurar um trabalho remunerado fora da família, fora da sua casa. O salário do homem, o sustento, é já insuficiente para as necessidades da família, e a mulher, por sua vez, viu-se obrigada a trabalhar para ganhar dinheiro; também a mãe tinha que entrar pelas portas das fábricas ou das oficinas. E ano após ano vê-se aumentar o número de mulheres da classe operária que desertam da casa, quer para engrossar as fileiras das operárias, nas fábricas, quer para servir como jornaleiras, lavadeiras, domésticas, etc. Segundo um cálculo efetuado antes da guerra mundial, contaram-se nos Estados da Europa e da América sessentas milhões de mulheres que ganhavam a vida com um trabalho independente. Durante a guerra esta cifra aumentou consideravelmente. Quase metade destas mulheres são casadas e por aqui se vê qual deve ser a vida da família, quando a esposa e mãe vai para o trabalho e está fora de casa durante oito horas por dia, que com o trajeto chegam a dez. A casa está descuidada, necessariamente; os filhos crescem descuidados pela vigilância materna, abandonados a si mesmos e expostos aos perigos da rua, onde passam a maior parte do tempo.

No capitalismo, um verdadeiro presídio

A mulher, a mãe operária, sua sangue para cumprir três tarefas ao mesmo tempo: trabalhar durante oito horas num estabelecimento, o mesmo que seu marido; depois, ocupar-se da casa e, finalmente, tratar dos filhos. O capitalismo pôs nos ombros da mulher uma carga que a esmaga; fez dela uma assalariada, sem ter diminuído o seu trabalho de dona de casa e de mãe. Assim, a mulher dobra-se sob o triplo peso insuportável, que lhe arranca amiúde um grito de dor e que, às vezes, também lhe faz verter lágrimas. O afã foi sempre a sorte da mulher, mas nunca houve sorte de mulher mais terrível e desesperada que a de milhões de operárias sob o julgo capitalista durante o florescimento da grande indústria...

Quanto mais se generaliza o trabalho assalariado da mulher tanto mais se decompõe a família. Que vida de família é aquela em que o marido e a mulher trabalham fora de casa, em que a mulher nem sequer tem tempo de preparar a comida dos seus! Que vida de família é a que o pai e a mãe podem passar apenas alguns momentos com seus filhos! Em outros tempos a vida da família era muito diferente; a mãe, dona de casa, permanecia no lar, ocupando-se dele, e não cessava de cuidar dos filhos. Hoje, mal nasce o dia, ao primeiro apito da sirene da fábrica, a operária corre para o trabalho; e, quando vem, à noite, de novo ao apito da sirene, apressa-se em voltar para casa para preparar a comida da família e fazer os trabalhos de casa mais urgentes. Depois de ter dormido insuficientemente, volta no dia seguinte à sua jornada de operária; a vida da operária casada é um verdadeiro presídio! Não é de surpreender, por conseguinte, que em tais condições, a família se desmembre e se decomponha cada vez mais. Vê-se desaparecer pouco a pouco tudo o que antes fazia sólida a vida da família e a colocava sobre bases estáveis. A família deixa de ser uma necessidade, tanto para os membros que a compõem como para o Estado. A antiga forma da família torna-se hoje um estorvo.

Que fazia tão forte a família no passado? Em primeiro lugar, o fato de que o marido-pai mantinha a família; em segundo lugar, que o lar comum era necessário para todos os membros da família, e finalmente, a educação dos filhos por parte dos pais. Que fica hoje de tudo isto? Dissemos já que o marido deixou de ser o único amparo da família. Neste sentido, a operária é igual ao homem; aprendeu a ganhar a vida para si mesma e até, às vezes, para o marido e filhos. Fica a casa e a educação, assim como a criação dos filhos de tenra idade.


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Inclusão 13/03/2014