Intelectuais Brasileiros & Marxismo:
Mário de Andrade
  (1893-1945)

Leandro Konder

26 de Novembro de 1990


Fonte: Revista Espaço Acadêmico. Publicado na REA, n. 79, dezembro de 2007, Nota do editor: Os textos desta série foram publicados pelo autor no jornal carioca Tribuna da Imprensa, ao longo do ano de 1990. Os artigos foram reunidos e publicados em “Intelectuais brasileiros & marxismo” (Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991). O autor, a quem agradecemos, autorizou a publicação na REA. Também registramos o agradecimento ao Prof. Paulo Cunha.
Transcrição: Alexandre Linares
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Fernando A. S. Araújo.
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Mario de Andrade (1893-1945)
Mario de Andrade
(1893-1945)

Continua crescendo a literatura sobre Mário de Andrade, numa clara demonstração de que a importância atribuída à sua obra está aumentando com o tempo.

No final do ano passado, saiu um magnífico ensaio de Moacir Werneck de Castro (Mário de Andrade – Exílio no Rio, Ed. Rocco), que não só reconstituía um período crucial da vida do grande escritor paulista como divulgava documentos essenciais para a reconstituição da sua trajetória em geral.

Agora, nestes últimos meses de 1990, está chegando às livrarias uma sofisticada análise da criação literária “marioandradina” feita pela professora Elisa Angotti Kossovitch (Mário de Andrade – Plural, Ed. Unicamp). Ainda não pude ler o volume recém-lançado (o que pretendo fazer nas próximas férias), mas quero aproveitar o lançamento para relembrar alguns aspectos desse tema vastíssimo que é Mário de Andrade.

Acho que vale a pena recordar, em especial, alguma coisa da relação – ainda pouco explorada pelos críticos – entre o “pluralismo” visceral de Mário (“sou trezentos”) e seu interesse (desconfiado porém simpático) pelo comunismo.

Entre os campeões do movimento modernista no Brasil, Mário se destacava pela amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos. Tinha uma visão panorâmica abrangente. Dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que todos os outros

Entre os campeões do movimento modernista no Brasil, Mário se destacava pela amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos. Tinha uma visão panorâmica abrangente. Dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que todos os outros.

Se o velho Hegel tinha razão quando escreveu que “a verdade é o todo”, Mário pode ser considerado, no meio dos modernistas, aquele que mais se aproximou da verdade. Ou, se concluirmos que a verdade é sempre plural, aquele que conseguiu chegar mais perto de um número maior de verdades.

Mário lia muito; e lia sobre todas as coisas. Tinha uma curiosidade insaciável. E essa curiosidade levava o tímido que ele era a vencer a timidez para conversar com seus próximos. Tratava-se – dizem – de um mestre da conversa: sabia sintonizar na onda do interlocutor e se empenhava em ouvi-lo e compreendê-lo.

Esse movimento da conversa, da abertura para o outro, na permanente disposição para cotejar sua opinião com as convicções alheias, só seria possível numa personalidade vocacionalmente reflexiva. E Mário era, de fato, um ser naturalmente inclinado à reflexão. Etimologicamente, um ser possuído pela necessidade de se debruçar outra vez (re + flectere) sobre a mesma coisa, a fim de enriquecer a primeira impressão, eventualmente corrigindo-a e superando-a.

Curiosamente, essa vocação reflexiva coexistia com um temperamento impetuoso, rebelde, que a timidez nem sempre conseguia controlar. E – é claro! – a reflexão precisou de mais tempo para se afirmar do que a rebeldia. Nos primeiros anos, prevalece uma inquietação que se manifesta com maior desenvoltura; e nos últimos anos, o ímpeto questionador (que jamais diminuiu) passa a se combinar, cada vez mais, com uma visão crítica (e auto-crítica) elaborado com maior solidez teórica.

Mário era mesmo um ser “plural”, como se lê no título do livro de Elisa Angotti Kossovitch. No começo dos anos vinte, quando se insurgia, desassombradamente, contra o conservadorismo que dominava a nossa linguagem literária, o moço ousado que demolia preconceitos ficou seriamente preocupado ao ser chamado de “futurista” num artigo de Oswald de Andrade, porque teve medo de, com o escândalo, perder os alunos das aulas de piano que ministrava (e que lhe assegurava seu sustento). Por outro lado, no último decênio da sua vida, sofrido e amadurecido, submetendo sua trajetória a uma prudente revisão, o escritor continuava a manifestar arroubos da juventude, a audácia e a coragem intelectual dos primeiros tempos.

Devemos reconhecer, entretanto, que a continuidade não excluía a mudança. A persistência das características essenciais (e contraditórias) de uma personalidade rica (e surpreendente) não deve obscurecer a significação das modificações que vão ocorrendo, ao longo da vida, na visão que Mário tinha das coisas.

As preocupações de Mário em relação à política, por exemplo, vão se tornando mais definidas; e ele vai assumindo posições mais concretamente críticas. A atitude assumida em face do comunismo também sofre alterações interessantes (e revela, igualmente, constâncias sintomáticas).

No clima de efervescência que caracterizava a vida política brasileira em torno de 1930, Mário andou lendo coisas sobre o marxismo e a União Soviética. Não chegou (parece) a ler Marx diretamente: leu Bukhárin. E fez questão de sublinhar sua distância em relação à Rússia. Numa carta ao jovem amigo Carlos Drummond de Andrade, admitia que a sua sensibilidade era receptiva a “apelos vagos porque sempre líricos, sociais, porventura comunistas (sem Rússia)” (carta de 1-7-1930, constante do livre A lição do amigo, Ed. José Olympio). Vale a pena sublinhar as palavras “sem Rússia”, colocadas entre parênteses.

Num artigo intitulado “Comunismo”, publicado no Diário Nacional (de São Paulo) em 30-11-1930, Mário se referia ironicamente à imagem do comunismo russo como “uma espécie de assombração medonha” e, de passagem, através do advérbio “verbalmente”, sugeria certa desconfiança em relação à identificação do comunismo com a União Soviética, “a primeira e a única nação que o aplicou verbalmente até agora”. Observava que a propaganda anticomunista havia exagerado as “mazelas” da URSS e os dirigentes russos reagiam, se defendendo, negando os problemas que tinham e sustentando que o regime por eles implantado assegurava a felicidade dos cidadãos. Mas havia uma “confusão pueril” na questão. Porque – como dizia Mário – “um sistema de governo jamais dará felicidade pra ninguém não. A felicidade é uma aquisição puramente individual”.

Em 6 de novembro de 1932, Mário escreveu a Drummond se queixando da posição assumida pelos comunistas brasileiros, que desqualificavam a revolta paulista de 1932 considerando-a um movimento exclusivamente burguês. E acusava, irritado: eles “mentem por pragmatismo, no seu já famoso pragmatismo que no Brasil se transformou notoriamente em licença pra todas as safadezas”.

Independentemente de todos os oportunismos que lhe causavam consternação e de todas as simplificações rudemente pragmáticas (ou dogmáticas?) dos comunistas, Mário não deixava de alimentar robustas esperanças no socialismo como idéia. Respondendo em 1933 a um questionário que lhe foi encaminhado pela Editora Macauley and Company, declarou:

“Minha maior esperança é que se consiga um dia realizar no mundo o verdadeiro e ainda ignorado Socialismo. Só então o homem terá o direito de pronunciar a palavra civilização” (citado por Drummond em A lição do amigo).

O marxismo lhe parecia uma teoria um tanto tosca. Os comunistas eram, às vezes, bisonhos. Mas a ideologia que os animava e as verdades temporárias em que se apoiavam eram elementos imprescindíveis no encaminhamento da revolta ética dos intelectuais.

“O intelectual pode bem – escrevia Mário – e deverá sempre se pôr a serviço duma dessas ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por isso mesmo que é um cultivado, e um ser livre, por mais que minta em proveito da verdade temporária que defende, nada no mundo o impedirá de ver, de recolher e reconhecer a verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei” (Táxi, ed. cit., p. 516).

Existia em Mário, como notou Telê Porto Ancona Lopez, “um desejo de opção política” (a expressão se encontra em Mário de Andrade: ramais e caminho, Ed. Duas Cidades). No entanto, a ética que cobrava o engajamento era a mesma ética que incitava à desconfiança em relação a todas as possibilidades concretas da militância.

Em 1938, entristecido com o fracasso de um projeto a que se dedicara durante três anos na Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário resolveu se “exilar” no Rio de Janeiro, onde viveu por dois anos e oito meses. O “exílio” lhe proporcionou uma ampliação no seu círculo de amizades: conviveu com jovens intelectuais combativos, dispostos a enfrentar a política e, eventualmente, a ir para a prisão. Com sua habitual sinceridade, confessou-lhes que tinha medo de ser preso. Viveu mal, no Rio, angustiado com o Brasil e o mundo, naqueles anos de Estado Novo getuliano e de ascensão do fascismo na Europa.

Moacir Werneck de Castro conta:

“A experiência que Carlos Lacerda e eu trazíamos de nossas militâncias de esquerda o deixava assombrado.”

Não abria mão de suas exigências mais íntimas de ser sempre senhor do seu engajamento, mantendo-o sob controle, porém, queria incorporar algo do pensamento novo mais combativo. Moacir explica:

“Mário jamais pretendeu assimilar o marxismo, mas utilizava conceitos marxistas como instrumentos de análise e de conhecimento da realidade.”

Essa atitude se manifesta em diversos trabalhos que abordam a relação da música com a história e a sociedade. E se manifesta também nos conselhos que dá a Oneida Alvarenga (que mais tarde viria a escrever o livro Mário de Andrade, um pouco, lançado pela Editora José Olympio):

“Você sabe que pessoalmente não admito integralmente o marxismo e sinto na vida humana uma porção de causas e de imponderáveis que produziriam os efeitos. Mas incontestavelmente o marxismo contém uma enorme parte de verdade que hoje nem é marxista mais porque incorporada ao conhecimento geral, à verdade humana. Coisas que ninguém discute mais.”

De volta a São Paulo, em 1941, Mário se mostrava inclinado a aprofundar sua reflexão, num movimento tanto crítico como autocrítico, que o levou a assinalar com surpreendente vigor polêmico as limitações que passara a enxergar no movimento modernista. O artista, ameaçado como homem pelo nazismo, precisa se unir à luta dos outros homens; precisa “marchar com as multidões”. Ninguém tem o direito de permanecer à margem de um esforço imprescindível para enfrentar um grave perigo que ameaça toda a humanidade.

O artista, o escritor, o intelectual não devem “servir aos donos da vida”. Devem ser solidários em relação às aspirações dos homens da sociedade em que vivem. Devem, no entanto, preservar sua autonomia individual. O próprio Mário se sente pressionado por essa dupla exigência e reflete sobre ela com intensa dramaticidade em seus últimos anos de vida. Gilda de Mello e Souza providenciou a edição de um volume que reúne um longo e fascinante diálogo que o autor de Macunaíma estava publicando na Folha da Manhã quando a morte o levou, em 1945. Nessa obra – intitulada O banquete – Mário mostra cinco personagens imaginários discutindo sobre arte e sociedade. E se serve das criaturas de ficção para expressar suas inquietações, a diversidade dos pontos de vista que correspondiam à multiplicidade das suas preocupações, de seus “valores”.

A União Soviética, na guerra que estava travando contra Hitler, nas vitórias que obtinha sobre a barbárie nazista, empolgava o coração do escritor. Seu último texto terminado foi uma apresentação de um livro de Victor Serof a respeito do compositor russo Dmitri Chostacóvich; e, naquele momento, Mário chegou a admitir que a comunidade tinha o direito de cobrar do compositor, como indivíduo, que ele, na sua arte, atendesse à demanda coletiva, renunciando às formas mais exasperadas do seu individualismo.

As discussões que podem ser lidas em O banquete, contudo, refletiam de maneira mais completo a complexa gama das questões éticas e estéticas com que o escritor se defrontava. De um lado, os personagens Janjão e Pastor Fido expressam a disposição de Mário para assumir o compromisso da arte com a afirmação do caráter nacional e com a crítica social. De outro, a cantora Siomara Ponga traduz a convicção (partilhada por Mário) de que a arte, de algum modo, se justifica por si mesma, por sua qualidade, por sua capacidade de durar.

As contradições irresolvidas da estética remetem às tensões e conflitos do movimento da sociedade. A cultura não pode resolver questões que a vida não resolveu: o que ela pode (e precisa) fazer é nos proporcionar maior familiaridade com elas.


Inclusão 27/04/2015