Os direitos políticos

Piotr Kropotkin

18 de fevereiro de 1882


Primeira Edição: no jornal «Le Revolté» de Genebra (18/2/1882), depois incluído no livro «Paroles d’un revolté» (1885)

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/07/18/os-direitos-politicos/

Tradução: João Black - da versão disponível em https://fr.wikisource.org/wiki/Paroles_d’un_révolté/Les_droits_politiques

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A imprensa burguesa canta-nos todos os dias, em todos os tons, o valor e o alcance das liberdades políticas, dos «direitos políticos do cidadão»: sufrágio universal, liberdade de eleições, liberdade de imprensa, de reunião, etc., etc.

«Uma vez que tendes essas liberdades — dizem-nos —, para que vos insurgis? As liberdades que possuís não vos asseguram a possibilidade de todas as reformas necessárias, sem que preciseis de recorrer ao fusil?» Analisemos então o que valem essas famosas «liberdades políticas» do nosso ponto de vista, do ponto de vista da classe que nada possui, que não governa ninguém, que tem muito poucos direitos e muitos deveres.

Não diremos, como por vezes se disse, que os direitos políticos não têm para nós nenhum valor. Sabemos muito bem que, desde os tempos da servidão e mesmo desde o século passado, certos progressos foram realizados: o homem do povo já não é o ser privado de todos os direitos que outrora foi. O camponês francês não pode ser açoitado nas ruas, como é ainda na Rússia. Nos locais públicos, fora da sua oficina, o operário, sobretudo nas grandes cidades, considera-se igual a qualquer um. O trabalhador francês já não é, enfim, aquele ser desprovido de todos os direitos humanos, considerado em tempos pela aristocracia como uma besta de carga. Graças às revoluções, graças ao sangue derramado pelo povo, ele adquiriu certos direitos pessoais, de que não queremos diminuir o valor.

Mas sabemos distinguir e dizemos que há direitos e direitos. Há-os que têm valor real, e há-os que não o têm — e aqueles que procuram confundi-los não fazem mais que enganar o povo. Há direitos, como por exemplo a igualdade do camponês e do aristocrata nas suas relações privadas, a inviolabilidade corporal do homem, etc., que foram tomados de alta luta, e que são suficientemente caros ao povo para que ele se insurja se forem violados. E há outros, como o sufrágio universal, a liberdade de imprensa, etc., aos quais o povo sempre permaneceu frio, porque sente perfeitamente que esses direitos, que servem tão bem para defender a burguesia governante contra as usurpações do poder e da aristocracia, não são senão um instrumento nas mãos das classes dominantes para manter oseu poder sobre o povo. Esses direitos não são sequer direitos políticos reais, visto que não salvaguardam nada para a massa do povo; e se ainda são adornados com esse pomposo nome, é porque a nossa linguagem política não é mais do que um jargão, elaborado pelas classes governantes para seu uso e no seu interesse.

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Com efeito, o que é um direito político se não é um instrumento para salvaguardar a independência, a dignidade, a liberdade dos que ainda não têm a força para impor aos outros o respeito desse direito? Qual a sua utilidade se não é um instrumento de emancipação para os que precisam de ser emancipados? Os Gambetta, os Bismarck, os Gladstone não precisam da liberdade de imprensa nem da liberdade de reunião, pois escrevem o que querem, reunem-se com quem bem entendem e professam as ideias que lhes apraz: eles já são emancipados, são livres. Se é necessário garantir a alguém a liberdade de falar e de escrever, a liberdade de se agrupar, é precisamente àqueles que não são poderosos o suficiente para impor a sua vontade. Tal foi justamente a origem de todos os direitos políticos.

Mas, deste ponto de vista, os direitos políticos de que falamos são feitos para quem deles precisa?

Certamente não. O sufrágio universal pode algumas vezes proteger até um certo ponto a burguesia contra as usurpações do poder central, sem que ela precise de recorrer constantemente à força para se defender. Pode servir para restaurar o equilíbrio entre duas forças que disputam o poder, sem que os rivais fiquem reduzidos a esfaquear-se mutuamente, como em tempos se fazia. Mas não pode ajudar em nada quando se trata de derrubar ou mesmo delimitar o poder, de abolir a dominação. Excelente instrumento para resolver de modo pacífico as querelas entre governantes — que utilidade pode ter para os governados?

Não está aí a história do sufrágio universal para o dizer? Enquanto a burguesia temeu que o sufrágio universal se tornasse nas mãos do povo uma arma que podia ser virada contra os privilegiados, ela combateu-o com afinco. Mas no dia em que lhe foi provado, em 1848, que o sufrágio universal não é de recear, e que pelo contrário se conduz muito bem um povo sob a batuta com o sufrágio universal, ela aceitou-o de imediato. Agora, é a própria burguesia que se faz seu defensor, porque ela compreende que é uma arma excelente para manter a sua dominação, mas absolutamente impotente contra os privilégios da burguesia.

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O mesmo com a liberdade de imprensa. Qual foi o argumento mais conclusivo, aos olhos da burguesia, a favor liberdade de imprensa? A sua impotência! Sim, a sua impotência: M. de Girardin fez um livro inteiro sobre este tema: a impotência da imprensa. «Antigamente — diz ele —, queimavam-se os feiticeiros, porque se tinha a burrice de acreditar que eram todo-poderosos; agora, estamos a cometer a mesma burrice relativamente à imprensa, porque acreditamos que também ela é todo-poderosa. Mas não é nada: é tão impotente quanto os feiticeiros da Idade Média. Portanto, nada de perseguições à imprensa!» Eis o raciocínio que fazia M. de Girardin. E quando os burgueses discutem agora entre si sobre a liberdade de imprensa, que argumentos avançam a seu favor? «Vejam — dizem eles — a Inglaterra, a Suíça, os Estados Unidos. A imprensa aí é livre, e no entanto a exploração capitalista está mais bem estabelecida do que em todos os outros países, o reino do capital é mais seguro do que em qualquer outro lugar. Deixai que se produzam — acrescentam eles — as doutrinas perigosas. Não dispomos nós de todos os meios para sufocar a voz dos seus jornais sem recurso à violência? Além disso, se um dia, num momento de efervescência, a imprensa revolucionária se tornasse uma arma perigosa… bem! nesse dia haverá tempo de sobra para a arrasar dum só golpe sob um pretexto qualquer.»

Pela liberdade de reunião, o mesmo raciocínio. «Concedamos plena liberdade de reunião — diz a burguesia: — isso não afetará os nossos privilégios. O que devemos temer são as sociedades secretas, e as reuniões públicas são o melhor meio de as paralisar. Mas se, num momento de sobre-excitação, as reuniões públicas se tornassem perigosas, pois bem, teremos sempre os meios de as reprimir, visto que possuímos a força governamental.»

«A inviolabilidade do domicílio? Por Zeus! inscrevei-a nos códigos, bradai-a aos quatro ventos!» dizem os espertalhões da burguesia. «Nós não queremos ser surpreendidos por agentes no nosso larzinho. Porém, instituiremos um gabinete negro para vigiar os suspeitos; povoaremos o país de bufos, faremos a lista dos homens perigosos, e vigiá-los-emos de perto. E quando um dia nos cheirar que as coisas se vão complicar, então estejamos à altura das circunstâncias, não nos importemos com a inviolabilidade, prendamos as pessoas nas suas camas, revistemos, vasculhemos! Mas sobretudo, sejamos enérgicos, e se houver quem grite demasiado alto, prendamo-los também e digamos aos outros: «Que quereis, senhores! Na guerra e no amor vale tudo! Seremos aplaudidos!»

«O segredo da correspondência? Dizei por toda a parte, escrevei, gritai que a correspondência é inviolável. Se o chefe de um escritório da aldeia abrir uma carta por curiosidade, destituí-o imediatamente e escrevei em letras garrafais: «Que monstro! que criminoso!» Tomai cuidado para que os segredinhos que trocamos nas nossas cartas não possam ser divulgados. Mas se sentirmos o cheiro de uma trama contra os nossos privilégios, então não nos embaracemos: abramos todas as cartas, nomeemos mil funcionários para tal, se for preciso, e se alguém se atrever a protestar, respondamos francamente, como um ministro inglês fez ultimamente sob os aplausos do parlamento: — «Sim, meus senhores, é de coração apertado e com o mais profundo desgosto que mandamos abrir as cartas; mas é exclusivamente porque a pátria (vale dizer, a aristocracia e a burguesia) está em perigo!»

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Eis a que se reduzem as chamadas liberdades políticas.

Liberdade de imprensa e de reunião, inviolabilidade do domicílio e de tudo o mais, só são respeitadas se o povo não lhes fizer uso contra as classes privilegiadas. Mas no dia em que ele começa a servir-se delas para minar os privilégios, essas ditas liberdades são atiradas borda fora.

Isso é bem natural. O homem não tem direitos além dos que adquiriu de alta luta. Não tem direitos além dos que está pronto para defender a cada instante, com as armas na mão.

Se não se chicoteiam homens e mulheres nas ruas de Paris, como se faz em Odessa, é porque no dia em que um governo ousasse fazê-lo o povo faria em pedaços os executores. Se um aristocrata já não abre passagem nas ruas com bastonadas distribuídas à direita e à esquerda pelos seus criados, é porque os criados do nobre que tivesse a ideia ficariam no chão sem os sentidos. Se uma certa igualdade existe entre o operário e o patrão na rua e nos estabelecimentos públicos, é porque o operário, graças às revoluções precedentes, tem um sentimento de dignidade pessoal que não lhe permitirá suportar a ofensa do patrão — e não porque os seus direitos estão inscritos na lei.

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É evidente que na sociedade atual, dividida em senhores e servos, a verdadeira liberdade não pode existir; não poderá enquanto houver exploradores e escravos, governantes e governados. No entanto disto não decorre que, até ao dia em que a revolução anarquista vier varrer as distinções sociais, nós desejemos ver a imprensa amordaçada, como é na Alemanha, o direito de reunião anulado como na Rússia, e a inviolabilidade pessoal reduzida ao que é na Turquia. Escravos do capital que somos, nós queremos poder escrever e publicar o que bem entendermos, queremos poder reunir-nos e organizar-nos como nos aprouver — precisamente para sacudir o jugo do capital.

Mas já é tempo de compreender que não é às leis constitucionais que há que reclamar esses direitos. Não é numa lei — num pedaço de papel, que pode ser rasgado ao menor capricho dos governantes — que iremos buscar a salvaguarda desses direitos naturais. É somente constituindo-nos como força, capaz de impor a nossa vontade, que conseguiremos fazer respeitar os nossos direitos.

Queremos ter a liberdade de dizer e escrever o que bem nos parecer? Queremos ter o direito de nos reunir e organizar? Não é a um parlamento que devemos ir pedir a permissão; não é uma lei que devemos mendigar ao Senado. Sejamos uma força organizada, capaz de mostrar os dentes cada vez que alguém, seja quem for, se atrever a cercear o nosso direito de palavra ou de reunião; sejamos fortes, e poderemos estar seguros de que ninguém ousará vir disputar-nos o direito de falar, de escrever, de imprimir, de reunir. No dia em que tivermos sabido estabelecer suficiente acordo entre os explorados para sair em número de muitos milhares de homens para a rua e tomar a defesa dos nossos direitos, ninguém nos ousará disputar esses direitos, nem muitos outros que soubermos reivindicar. Então, mas só então, teremos adquirido tais direitos, que poderíamos em vão mendigar durante décadas à câmara dos deputados; então esses direitos nos serão garantidos de modo bem mais seguro do que se fossem inscritos de novo em letra morta.

As liberdades não se dão, tomam-se.


Inclusão: 24/10/2020