Economia política do anti-semitismo
O pequeno-aburguesamento da Pós-Modernidade e o regresso da utopia do dinheiro de Silvio Gesell

Robert Kurz

1995


Primeira Edição: Politische Ökonomie des Antisemitismus em www.exit-online.org. Publicado na Revista Krisis nº 16/17, 1995. Publicado parcialmente como posfácio de Clemesha, Arlene. Marxismo e Judaísmo – História de uma relação difícil Boitempo & Xamã, 1998, pp. 177-197.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Tradução: Ana Cavalcanti, texto final de José Marcos Macedo.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Desde o princípio, a relação entre trabalho e capital foi um dos objetos centrais de discussão sobre economia política. O conceito abstrato trabalho, assim como a mercadoria nua, desvinculada de qualquer relação não-mercantil, é um produto do processo capitalista de modernização. Mas na superfície dessa relação fetichista moderna, trabalho e mercadoria aparecem como usurpados pelo dinheiro (capitalista), ainda que sejam somente um estágio transitório do próprio dinheiro como capital. Desse ofuscamento superficial resulta o impulso de querer, de alguma maneira, ‘libertar’ o trabalho e a mercadoria (fenômenos capitalistas) do dinheiro (o meio capitalista que é um fim em si mesmo).

Quando, nos séculos XVIII e XIX, o dinheiro converteu-se gradualmente no capital "produtivo’, isto é, na moderna racionalidade empresarial, as utopias do trabalho e da mercadoria logo se insurgiram contra a conjuntura do dinheiro capitalizado. Foi o caso dos intérpretes do economista clássico David Ricardo, um utopista do trabalho: as mercadorias, como produtos do trabalho, deveriam "relacionar-se diretamente entre si" (sem a mediação do dinheiro) ‘como produtos do trabalho social", na observação crítica de Marx. Isso, no entanto, seria uma contradictio in adjecto ‘Os produtos devem ser produzidos como mercadorias, mas não trocados como mercadorias’ (Marx). Sobre os mesmos fundamentos ideológicos Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) inverteu essa falsa utopia do trabalho numa igualmente falsa utopia da mercadoria: todas as mercadorias deveriam, imediatamente, tornar-se "dinheiro", o que foi satirizado por Marx como sendo a utopia do filisteu (Spiessbürger-Utopie), de que "todos os católicos deveriam tomar-se papas". Abstrair o dinheiro como "mercadoria universal" é, de fato, o pressuposto para que as mercadorias com diferenças qualitativas reduzam-se a um denominador abstrato e, assim, compatibilizem-se entre si.

A proposta absurda de Proudhon de emancipar o trabalho "honesto e a mercadoria honesta" da dominação do dinheiro, mediante uma troca "direta" de mercadorias à base de "dinheiro-trabalho" recai efetivamente no paradoxo de querer suprimir as condições da produção de mercadorias num ambiente de contínua produção mercantil. A tentativa de retirar do dinheiro aquele atributo de "mercadoria universal" (rainha das mercadorias) — atributo este que o torna, antes de mais nada, dinheiro é em si uma contradição. O sujeito-mercadoria esquizofrênico quer refugiar-se no pretenso lado "concreto" do trabalho e da mercadoria, e o seu alter ego, o sujeito-dinheiro abstrato, quer libertar-se de todo ou ao menos tomar as rédeas dessa cisão, sem atacar-lhe os fundamentos sociais que são sua causa primeira. O sujeito burguês quer suprimir (aufheben) a sociedade burguesa, mas sem suprimir a si mesmo como sujeito burguês. A tentativa de Proudhon de dominar o poder abstrato do dinheiro por meio dos "bancos do povo", com ajuda dos quais as mercadorias deveriam ser trocadas por ‘‘crédit gratuit’’, acabaria também, inevitavelmente, num desastre prático.

A frágil utopia de que o dinheiro não seja mais dinheiro sempre deduz os males e catástrofes do modo de produção capitalista não do fim tautológico do trabalho abstrato, mas somente do fim tautológico do dinheiro, embora um seja inevitavelmente o reverso do outro. Não é a racionalidade baseada na economia empresarial, com os seus potenciais destrutivos, que se toma objeto de crítica, mas somente a suposta deficiência da justiça distributiva e da justiça da troca, nos planos da distribuição e da circulação. Com a continua produção capitalista e a racionalidade econômico-empresarial, seriam abolidos os modos capitalistas da distribuição e da circulação. Dessa forma, não é o capital real ou o capital produtivo da indústria, do agrobusiness e dos serviços que se manifesta como "capitalismo", mas única e exclusivamente o capital especulativo (zinstragendes Kapital) da superestrutura financeira, concentrado no sistema bancário.

Para Proudhon, a famosa "mais-valia" não é procedente da racionalidade econômico-empresarial da produção, mas da posição privilegiada do dinheiro (e portanto do seu possuidor) na troca. No inicio do século XX, tal pensamento foi retomado e desenvolvido pelo comerciante e teórico do dinheiro teuto-argentino Silvio Gesell (1862-1930), em sua chamada Teoria da Economia Livre (Freiwirtschaftstheorie). Quase as mesmas concepções são encontradas no mistagogo e antropósofo Rudolf Steiner (1861-1925), em sua propaganda de uma pretensa ordem econômica "natural". Menos conhecido, embora nos anos 20 não menos influente, foi o economista alemão Gottfried Feder, que, de modo análogo, também defendeu essa concepção em seus aspectos essenciais. Para Proudhon, bem como posteriormente para seus seguidores, nas palavras de um geselliano atual, a pedra de toque é a desvantagem de quem oferece trabalho e mercadorias (e demanda dinheiro) em relação aos privilegiados, que oferecem dinheiro (e demandam trabalho e mercadorias)" (Dieter Suhr, Geld ohne Mehrwert, Frankfurt/M..1983. p. 14).

Em que consiste, então, o "privilégio" do dinheiro, com que antipatizam os inimigos do capital especulativo? Proudhon já o enxergava no simples poder do detentor de dinheiro, que podia procurar o momento mais favorável para a troca, enquanto os oferentes de mercadorias e trabalho dependiam da transação imediata, a fim de, por sua vez, possuir os "equivalentes universais" (dinheiro) e obter poder de compra. Por meio dessa vantagem, o proprietário de dinheiro poderia "fechar uma barreira" no processo de mercado e, para abri-la, ele seria ressarcido com algo especial - exatamente os juros, que os agentes econômicos "produtivos", os reais mediadores do mercado, teriam de pagar. Para Proudhon é inconcebível que esse poder peculiar do dinheiro, a sua posição-chave no mercado, não seja uma "falha" ou uma "usurpação" (e muito menos que não provenha da subjetividade do proprietário do dinheiro), mas, antes, decorra da necessidade que um sistema produtor de mercadorias tem de ser representado e mediado por um equivalente geral.

Os descendentes programáticos de Proudhon não ousaram mais patinar no gelo fino dos conceitos da economia política, no sentido estrito do termo. Eles preferiram, fiéis a sua mentalidade de construtores da pátria e engenheiros sociais, fundamentar apenas "tecnicamente", de maneira pseudofísica, o poder peculiar do dinheiro em oposição ao trabalho e à mercadoria. Na argumentação de Silvio Gesell, o dinheiro, ao contrário das mercadorias não se deteriora nem consome tanto como os gastos com a subsistência da força de trabalho; ele não acarreta, portanto, nenhum "custo de manutenção" ou de estocagem. (Silvio Gesell, Die natürliche Wirtschaftsordnung,, 6ª. ed., Berlim. 1924. p. 317 ss.). O neogeselliano Helmut Creutz, indicado como candidato a um "Prêmio Nobel alternativo", também vê nisto o problema fundamental: "Imaginemos que as portas de um cofre com dez mil marcos fique fechado por 14 dias, depois que as portas de um mercado, com mercadorias no valor de dez mil marcos, e as portas de uma sala, onde cinco pessoas cuja renda é normalmente de dez mil marcos em 14 dias, também fiquem fechadas. Após 14 dias, abrimos as portas: é bem provável que as cinco pessoas que ocupavam a sala estejam mortas, que as mercadorias do mercado estejam em grande parte estragadas, mas as cédulas do cofre estarão tão novas quanto antes (Helmut Creutz, Das Geld-Syndrom, Frankfurt/M. e Berlim, 1994, p. 32).

Essa qualidade do dinheiro de não produzir custos de manutenção é aproveitada pelos proprietários de dinheiro, que exigem dos agentes produtivos do mercado um "tributo", na forma de juros, para receberem uma injustificada "renda sem trabalho" e erguerem obstáculos no caminho da produção e da troca. Enquanto o "capitalismo do proprietário do dinheiro" reinar sob a forma de capital especulativo, o fluxo de trabalho e de dinheiro, diante da crescente paralisação do trânsito de mercadorias, só poderia ser mobilizado pelo recurso "artificial" e nocivo da inflação, às expensas daqueles que têm renda produtiva e de sua poupança, enquanto a quebra do capital financeiro se compensaria sem danos por meio do aumento de seu "tributo-guia".

Rudolf Steiner e, sobretudo, Silvio Gesell - sendo este último quem mais amplamente desenvolveu todo esse princípio -, propõem como remédio uma típica panacéia, que Marx, ao tratar de Proudhon e dos ricardianos de esquerda, utopistas do trabalho, já designara, de maneira bem direta, como "trabalho sujo do dinheiro". Steiner e Gesell, no entanto, não queriam mais queimar os dedos nos "bancos de troca" de Proudhon, mas iludir a lógica do dinheiro por meio de um truque administrativo, à maneira de Daniel Düsentrieb. O dinheiro até agora utilizado deveria ser substituído por um ‘dinheiro alternativo" (Steiner) ou "notas bancárias enferrujáveis" (Gesell). O que seria e como se pode distinguir esse dinheiro da inflação habitual?

Gesell propõe que todas as cédulas em circulação (e os saldos bancários líquidos) sofram uma desvalorização automática de cerca de cinco por cento ao ano ("redução monetária"). Elas só guardariam seu valor nominal quando nelas se apusesse, periodicamente, um selo de valor respectivo ou fossem carimbadas contra o pagamento de uma taxa. Por meio dessas medidas, o dinheiro deveria, no futuro, sujeitar-se a determinados "custos de manutenção", fazendo com que o proprietário do dinheiro perdesse suas vantagens diante dos proprietários de mercadorias e da força de trabalho. Em contrapartida, todo dinheiro depositado a longo prazo como poupança no sistema bancário, e que servisse de base para créditos lucrativos, deveria ser automaticamente poupado dessa "ferrugem" ou dessa "redução" do meio circulante. Assim sendo, Gesell acredita derrubar três coelhos de uma só cajadada. Primeiro, a economia seria fomentada, porque não haveria mais estímulo para reter dinheiro ou para que este rendesse juros: cada um se empenharia em gastar na economia real, para evitar as taxas dos "custos de manutenção" administrativos. Segundo, embora os juros desapareçam sem deixar substituto, haveria um estimulo real à poupança, uma vez que o dinheiro depositado seria excluído da "redução" administrativa das notas em circulação e dos saldos líquidos. E, terceiro, finalmente, a economia poderia preservar sua completa estabilidade, pois a medida de preço para a força de trabalho e para o crédito tornar-se-ia invariável. O mal do capital especulativo desapareceria, o dinheiro perderia a sua vantagem em relação às outras mercadorias e poderia, apesar disso, preencher suas funções necessárias. Estariam, assim, lançados os fundamentos para a prosperidade e a estabilidade.

[...]

A "economia política do anti-semitismo" refere-se à existência de uma relação estrutural e histórica entre essa crítica redutora do capital especulativo e o anti-semitismo. Não se trata aqui, absolutamente, de tachar Silvio Gesell de partidário de Hitler e nacional-socialista, ou cada geselliano e neogeselliano de anti-semita enrustido. O problema está em outro plano. Ideologicamente, trata-se das duas faces da mesma moeda, na qual o anti-semitismo explícito compõe, por assim dizer, "o lado da cara". Mas isto não significa que cada economista cuja crítica limita-se à troca e à distribuição, ou que cada crítico dos juros, deve ser sempre um aberto anti-semita, mas precisamente o contrário, que cada anti-semita sempre utiliza a redutora crítica ideológica do capital especulativo como modelo "econômico" de legitimação. O ódio ao capital especulativo, que passa a vicejar, de modo abstrato e irrefletido, na crise monetária junto à massa dos perdedores, constitui não somente o solo fértil, mas, de forma imediata a "base econômica" do anti-semitismo e dos pogroms anti-semitas.

Esse contexto, que conduz a reações de reflexo involuntário nos sujeitos-mercadoria acuados pelo medo possui raízes históricas profundas e remonta à Alta Idade Média. A ruptura irrefletida entre o aspecto supostamente concreto e sombriamente abstrato da produção mercantil, a afirmação do "trabalho" e da mercadoria, de um lado, e a crítica do dinheiro ou a condenação dos juros, de outro, produziram bem cedo uma cisão da consciência do sujeito-mercadoria (isto é, na medida em que as pessoas em geral eram embrionariamente sujeitos­mercadoria). A economia política do anti-semitismo é um produto lógico e histórico desse ofuscamento. Nesse ambiente surgiu o vinculo entre "judeu" e "dinheiro", por intermédio de uma perfídia específica da Idade Média cristã, que solucionou a contradição entre a condenação dos juros e a necessidade de crédito das relações monetárias atribuindo aos judeus a função de usurários.

Que justamente os judeus tenham sido onerados com essa função deve-se sobretudo a motivos externos - históricos e religiosos. Mas, estruturalmente, trata-se da lógica interna da função de bode expiatório, que deriva da cisão do sujeito-mercadoria. Dessa esquizofrenia estrutural resulta a pressão para projetar para fora, em um "ser estranho", aspectos "ruins", sinistros, abstratos da relação mercadoria-dinheiro. A auto-alienação interna do sujeito-mercadoria aparece, ela própria, como imagem do inimigo externo, podendo assim, mesmo em sua forma embrionária, manifestar-se no seio da alma-mercadoria cindida. Tal mecanismo clássico de projeção impregnou-se profundamente, no curso de mais de mil anos, na sociedade ocidental e em sua consciência.

Enquanto predominaram no Ocidente as formas fetichistas pré-modernas, o aspecto religioso ocupou o primeiro plano na definição dos judeus como os "estranhos" ou os "outros". Em uma das primeiras perseguições aos judeus no Ocidente, aos "marramos", na Espanha e em Portugal do século XV, ainda se falava, sob o signo da Inquisição, dos "assassinos de Jesus" e dos "heréticos", que, apesar do batismo compulsório, insistiam em sua própria religião. Quanto mais se expandiam as relações dinheiro-mercadoria e o modo de produção solidificava a nova forma-fetiche da modernidade, originária do Ocidente, mais "o judeu" foi definido pura e simplesmente como o "outro", não tanto no sentido religioso, mas como o estranho "ser do dinheiro e dos juros". E, de fato, desde que a cristandade européia contornara a proibição dos juros, empurrando o problema para os usurários judaicos, sempre foi uma minoria de judeus que desempenhou funções financeiras. Em uma projeção social coletiva, entretanto, não interessam as relações sociais efetivas nem as qualidades reais do objeto dessa projeção. O caráter fantasmagórico de todo o processo permite que o mecanismo de projeção se fortaleça mesmo quando os fatos externos, tomados como motivo ou pretexto, não encontram apoio na realidade.

Neste ponto, como foi frequentemente observado, é até mesmo possível haver um "anti-semitismo sem judeus" (Cf. Jürgen Elsässer, Antisemitismus-- das alte Gesicht des neuen Deutschland, Berlim, 1992, p. 55 ss.). Como se trata de um antagonismo nascido no próprio interior do sujeito-mercadoria - antagonismo este que se projeta para fora -, sua verdadeira essência permanece intocada. "Judeu" torna-se uma cifra fantástica e homicida para o ódio que sentem por si mesmas as pessoas "que ganham dinheiro", as quais querem se "libertar" de sua própria esquizofrenia estrutural, sem porém tocar ou suprimir o modo de produção capitalista ou a si próprios como sujeitos-mercadoria. Na medida que o termo "judeu" é usado conto sinônimo do lado abstrato, negativo, do sistema produtor de mercadorias e essa projeção da vulgaridade econômica é identificada com o capital especulativo, não é necessário, em princípio, que existam judeus verdadeiros para desencadear o reflexo anti-semita. O fantasma dessa psicose coletiva é onipresente, e no pogrom ele se "materializa" nas comunidades judaicas como vítimas e bodes expiatórios; entretanto, grupos de esquerda, políticos liberais, escritores críticos da sociedade, artistas modernos, estrangeiros, outras minorias religiosas etc. podem também, caso necessário, ser definidos como "judeus" pela consciência psicótica daqueles que insuflam pogroms.

Na economia política do anti-semitismo, vale dizer na afinidade entre a crítica redutora do capital especulativo e a tendência anti-semita, não se trata, de maneira alguma, de uma ligação meramente acidental. Essa correlação tanto funcional quanto fantasmagórica está profundamente arraigada na consciência histórica e assenta-se nas contradições polares e reais das categorias da lógica mercantil. Os economistas vulgares (como o geselliano, por exemplo) repartem a lógica interna do modo de produção capitalista no lado "bom" do "trabalho" ou da mercadoria e no lado "ruim" do dinheiro e do capital especulativo. A produção total de mercadorias não deve ser suprimida, mas libertada de seu lado negativo. O anti-semita declarado traduz tal concepção "economicamente pura" em uma imagem fantasmagórica do inimigo: o lado bom, "concreto", "próprio" da modernidade deve ser libertado de seu lado ruim, abstrato, "estranho" (ou "estrangeiro"); e o estranho, o outro, é o "judeu".

Existe, portanto, um necessário nexo estrutural e histórico entre o anti-semitismo e a crítica rasteira, redutora, do capital especulativo. Por isso, em todos os conceitos econômicos correspondentes, estamos as voltas com uma economia política do anti-semitismo, independentemente de como esse nexo se expressa subjetivamente. É claro, porém, que o nexo subjetivo-ideológico não poderia faltar nesse fundamento. Os economistas vulgares que fazem a crítica dos juros não são, nesse caso, vítimas inocentes, meramente instrumentalizadas pelo anti-semitismo. O citado Gottfried Feder não foi somente aclamado como companheiro de luta por Hitler em Mein Kampf e festejado como o seu mentor econômico; ele teve também a "honra" de poder redigir o programa econômico do partido nacional-socialista. Mas no próprio Rudolf Steiner, que estava longe de ser um expoente ideológico do nacional-socialismo, encontram-se diversas cartas com brutais invectivas anti-semitas.

Silvio Gesell, por sua vez, aparentemente não proclamou um aberto anti-semitismo, embora também afirmasse que "os judeus ocupavam-se com gosto das transações financeiras" (Silvio Gesell, apud Klaus Schmitt, "Geldanarchie und Anarchofeminismus", in: Silvio Gesell. "Marx" der Anarchist?, Berlim, 1989, p. 197). Todavia, quando ele se volta contra a "difamação dos judeus" como uma "injustiça colossal", ele o faz a partir do argumento puramente econômico de que a identidade entre o "cobrador de juros" e o "judeu" é simplesmente acidental. Esse recurso ao plano da lógica econômica (redutora) desconsidera tanto a correlação histórica como o problema estrutural de uma projeção do antagonismo interno do sujeito-mercadoria, que se realiza sobre um "estrangeiro" externo, justamente porque o próprio Gesell afirma em seus princípios o sujeito-mercadoria. Assim, ele é e continua sendo, por força da matéria, um "economista político do anti-­semitismo", ainda quando confessa, de modo subjetivo, que os judeus têm o direito de desfrutar dos "privilégios de proprietários do dinheiro", enquanto este não for neutralizado pela panacéia geselliana.

Em conformidade a isso, surgiu entre os seguidores de Gesell toda uma série de tendências populares e anti-semitas que decorrem necessariamente da lógica econômica e da falsa utopia do dinheiro. Soma-se a isto, tanto em Gesell como em Steiner e outros mais, a aberta ideologia sociodarwinista, biologista e favorável à "higiene racial". Gesell arremata a propaganda sociodarwinista da economia competitiva com um programa biológico da "raça humana’’ como luta competitiva. A maneira típica das seitas na virada do século, Gesell critica com rispidez o "matrimônio com alcoólatras", que levaria à "degeneração racial", e recomenda às mulheres só se relacionarem com "parceiros sadios e fortes": ele fala até de uma "degenerescência racial milenar" (apud Günther Bartsch, "Silvio Gesell, die Physiokraten und die Anarchisten". in: Klaus Schmitt, op. cit., p. 15). Pouco admira que as mulheres apareçam, nessa absurda concepção biologista, sobretudo como um tipo de "animal maternal", que deve decidir-se "livremente" pelo melhor "macho reprodutor".

Os neogesellianos atuais passam por cima dessa ideologia absurda da "higiene racial" de seu mestre de maneira envergonhada, como se se tratasse apenas de uma questão externa da concepção econômica, ou então vão a ponto de querer recuperar para a ideologia da raça biológica seus aspectos positivos nos dias de hoje. Günther Bartsch e Klaus Schmitt, por exemplo, atrevem-se a vender as considerações de seu mestre a respeito da raça humana como o todo especialíssimo "feminismo fisiocrata". É certo que aspectos biologistas também se encontram, ocasionalmente, no feminismo atual, mas aí eles não se prendem à idéia de "seleção" biológica como no neogeselliano Bartsch, que gostaria também de exumar esse tema de horror: "Uma eugenia fisiocrata, fundada na livre escolha amorosa e na livre competição, deixará [...] de lado as causas da degeneração (!). [...] Gesell queria abrir caminho para a seleção natural(!). Não no plano físico, mas como um estímulo a conquistas (!) cada vez melhores e maiores, que elevem os capazes (!) e favoreçam sua reprodução mais vigorosa (!) [...]" (Bartsch, op. cit., p. 16).

O fato de um recurso tão indiscutível a um biologismo socio­darwinista poder ser publicado, no inicio dos anos 90, na afamada editora anarquista Karin Kramer (Berlim), indica, pelo menos, que as correntes anarquistas também são suscetíveis a esse tipo de absurdo homicida e que, por isso, depois do colapso do socialismo de Estado e da obsolescência das ideologias do movimento operário marxista, o anarquismo tornou-se uma pretensa alternativa tão pouco plausível quanto os outros princípios de crítica social do passado. Fica cada vez mais claro que todas as correntes intelectuais e políticas da história da ascensão capitalista, inclusive as dos opositores radicais, estão contaminadas pelas idéias biologistas, de "higiene racial", da "seleção" racial humana, que encontram no nacional-socialismo, sem dúvida, sua expressão mais brutal e rematada, porém não a única.

Isto também vale, infelizmente, para o marxismo e os partidos operários. O fato de, neles, as referências serem menos numerosas do que em Silvio Gesell ou nos antropósofos (como nos escritos de Karl Kautsky, na consciência de massas do antigo movimento operário ou no contexto ideológico do stalinismo) não é tomado por neogesellianos do calibre de Schmitt e Bartsch como uma oportunidade de fazer uma crítica de época tão radical quanto abrangente, que não pouparia nem sequer seus "próprios" precursores teóricos, mas exatamente como justificativa não só para desculpar tais idéias bárbaras da "teoria social" geselliana, mas também para retomá-las descaradamente e propagá-las no final do século XX.

Mais importante que a correlação das idéias históricas é a pergunta sobre qual valor ainda podem ter as idéias biologistas sobre raça humana e "seleção" na economia política do anti-semitismo. A imaginação desvairada das pessoas "que ganham dinheiro" no mercado reproduz essas ideologias meio esquecidas da primeira metade do século na nova situação de crise desse final de século etenta reformulá-las no mais alto nível de abstração possível. Num mundo mais "individualizado" do que nunca na história da modernização, no qual vivem milhões de singles e onde cada uma dessas mônadas monetárias está exposta à concorrência total e globalizada, não surge apenas uma mistura explosiva entre o antigo egoísmo exacerbado e anárquico do individualista Max Stirner (1806-1856), a quem os gesellianos fazem referência, e todas as ideologias modernas de concorrência e da exclusão: nada mais lógico, também, que esse pensamento procure armar-se novamente com argumentos pseudobiologistas.

O indivíduo abstrato, agora totalmente amadurecido, desvinculado de todas as relações não-mercantis, sente-se como o umbigo do mundo ecomo um ser nuclear auto-referente e auto-suficiente, ao passo que "os outros" aparecem como verdadeiros "circunstantes", perturbadores e inimigos. Não é de admirar que a pretensão exagerada desse ‘‘eu’’ abstrato se influi sobremaneira na crise de sua própria estrutura. Comoos gatos que, ao se sentirem ameaçados, eriçam os pêlos e ficam com o rabo espesso, para parecerem maiores e intimidadores, e como as pessoas com pretensão autoritária que "batem no peito" e assumem ares de importância, assim também o sujeito universalmente ameaçado procura uma legitimação mais inatacável possível para afirmar com fúria a sua vontade própria. E o que seria mais inatacável, afinal, do que a prova da "superioridade natural", biológica ou genética? A alucinação de um "super-homem" tem suas raízes nesse sentimento básico da modernidade produtora de mercadoria tanto quanto a propaganda de que estes ou aqueles conceitos, idéias, programas etc. corresponderiam a uma pretensa ordem "natural". Se fantasias desse tipo ainda se restringiam, no passado, à esfera artística ou filosófica que hipoteticamente se antecipava, hoje elas se sedimentaram na consciência de massas. E se antes, a pretensão exagerada do sujeito-mercadoria na concorrência relacionava-se diretamente com noções coletivas como classe, nação ou "raça", hoje o mesmo naturalismo social é filtrado pela estrutura do indivíduo isolado, já totalmente desenvolvida, o qual se agarra a uma absurda legitimação de si mesmo como o último vislumbre de esperança. Qualquer pobre-diabo do sistema produtor de mercadorias se envaidece imaginando ser um feixe de músculos do tipo Rambo ou um "super-homem", um profissional cool ou um mamífero geneticamente super-dotado em comparação com o "sub-homem degenerado". O deplorável pega-pra-capar na disputa pela comida escassa na manjedoura da "ocupação" e da renda monetária é estilizada em batalha divina dos nobres contra os não-nobres.

Com base nisso, porém, a síndrome ideológica cinde-se mais uma vez de forma polarizada. Com efeito, a imagem fantasiosa dos "improdutivos" e dos biologicamente "impuros" é também duplicada como reflexo da cisão própria, sendo experimentada como oposição polar: ora como "sub-homem", ora como "super-homem negativo" (cf. sobre isso, baseado na teoria de Moishe Postone, Joachim Bruhn, "Unmensch und Übermensch, über Rassismus und Antisemitismus", in: Kritik und Krise no. 4/5. Freiburg, 1991). Tanto os pensionistas do Estado social, fracos concorrentes, como os poderes do capital especulativo, fortes concorrentes, são economicamente improdutivos no mercado. Ao traduzir a concorrência econômica e social na língua da concorrência pseudobiológica, essa diferença aparece novamente como aquela entre o geneticamente "inferior", de um lado, e o geneticamente "superior", de outro. A essa concepção corresponde também a diferença entre racismo e anti-semitismo: o racismo qualifica como "inferiores" os negros, os europeus do leste ou os asiáticos, mas também os árabes, os europeus mediterrâneos (romanos, "Welsche"1) e até mesmo grupos populacionais dentro do próprio país. O anti-semitismo, ao contrário, imagina "os judeus" como o fantasma do poderoso capital financeiro, como uma "conspiração mundial" de dissimuladas super-inteligências estrangeiras etc. O sujeito-mercadoria, que compreende a si mesmo como "produtivo", natural da pátria, idêntico a si próprio, "racialmente puro" e "hereditariamente sadio", perfila-se imaginariamente entre essas duas formas fantasmagóricas do "outro", a inferior e a superior, ambas igualmente simples projeções externas de suas próprias contradições internas.

A cisão esquizofrênica e a polaridade entre falsa identidade e projeção, em vários planos sobrepostos, formam a base da estrutura ideológica que pode ser descrita conto economia política do anti-semitismo. O nacional-socialismo pôs em prática essa concepção paradigmaticamente. Não desempenhou nenhum papel prático, quanto a isso, o fato de o anti-semita Gottfried Feder inspirar-se em Silvio Gesell para criar uma "moeda Feder", semelhante ao princípio da "redução monetária", como se queixam os neogesellianos (cf. Gerhard Senft, Weder Kapita!ismus noch Kommunismus, Berlim, 1990, p. 196). A "moeda Feder", por assim dizer, não viu a luz do dia em proporções sociais relevantes, a exemplo da utopia monetária de Gesell. Efetivamente, a política monetária do nacional-socialismo incorreu no extremo oposto, ao criar, com ajuda da chamada "cédula Mefo", um gigantesco programa de crédito protokeynesiano, que possivelmente conduziria ao colapso monetário e à hiperinflação, mesmo com uma vitória militar do regime nazista. Em essência, a economia do nacional-socialismo (à semelhança do contemporâneo planejamento estatal da União Soviética e do New Deal norte-americano, de Roosevelt) era comandada pelo Estado, enquanto a utopia monetária pseudogeselliana de Feder servia, quando muito, para guarnecer uma ideologia anti-semita. A marca geral da época era a ilusão da "primazia da política", que também foi apropriada pelo regime nacional-socialista (cf. Christina Kruse, Die Vokswirtschaftslehre im Nationalsozialismus, Freihurg, 1988).

Porém a utopia monetária da economia vulgar só podia ser, mesmo assim, um pretexto e um disfarce para o desvario da projeção, que integra a lógica da mercadoria. O nacional-socialismo fez o possível para preservar essa projeção, atuando de ambos os lados de seu mecanismo. Tanto os grupos definidos, de maneira racial e sociodarwinista, como "inferiores" (eslavos, homossexuais, ciganos, deficientes físicos etc.) assim como os judeus, definidos de maneira anti-semita como negativamente ‘‘superiores", foram levados para os campos de extermínio: "O sujeito de valor pleno tem de enfrentar-se com os inferiores e os superiores" (Joahim Bruhn, op. cii., p. 19). O filisteu de uniforme preto, que se imaginava como sujeito-trabalho ou como sujeito-mercadoria geneticamente "saudável", queria eliminar os dois lados do "estrangeiro" em seu próprio ser, enviando "o outro" para a câmara de gás.

O caráter singular do nacional-socialismo consiste justamente no fato de ele, em uma situação histórica especifica, ter realizado, por assar dizer, todas as conseqüências dessa economia política do anti-semitismo. Do mesmo modo que se apegaram à lenda positiva de Wörgl, os neogesellianos quiseram, assim também, apegar-se à lenda negativa de que o regime nazista havia tão-somente ‘‘roubado" a panacéia de sua utopia monetária , sem jamais procurar realizá-la. Essa utopia do dinheiro "honesto", contudo, é impossível de ser realizada em qualquer versão, e, diante das necessidades atuais de cientificização, ela é menos provável cio que nunca. O que se pode reali­zar, porém, e isso mostraram os nazistas, é a lógica da projeção oculta na utopia monetária burguesa, que acaba em extermínio. O sujeito-trabalho ou o sujeito-mercadoria não escapam ilesos, mas, em princípio, em seu desvario estrutural, são capazes do Holocausto.

Nem o nacional-socialismo nem o Holocausto irão se repetir do mesmo modo. Mas a estrutura básica do sujeito-mercadoria existe como antes e hoje se mostra com clareza tanto maior em sua forma desenvolvida. Na grande crise do atual sistema produtor de mercadorias - que, em comparação a crise mundial de 1929-53, manifesta-se num grau, por assim dizer, mais elevado, como crise financeira e de crédito -, é inevitavelmente evocado o antigo mecanisrno de projeção, ainda que numa forma certamente transformada.

Mas é justamente para isso que se prestaria, de uma forma todo especial, o neogesellianismo, servindo a uma nova formação ideológica correspondente. Em muitos aspectos, a concepção geselliana mostra-se talhada para focalizar de novo, no fim do século XX, a antiga ideologia homicida e exclusivista. De fato, essa concepção contém todos os elementos essenciais da economia política do anti-semitismo, mas em outras dosagens e em outras constelações que não as da ideologia nacional-socialista. É exatamente isso, porém, que faz com que o neogesellianismo possa ser, potencialmente, um promotor de um novo surto esquizofrênico no sujeito-mercadoria, já incapaz de suportar a sua normalidade estúpida.

Justamente porque Silvio Gesell e sua tendência liberal em economia não foram, no passado, absorvidos na organização do nacional-socialismo, os seus seguidores ideológicos hoje podem voltar a falar, sem preocupações, de idéias análogas. E justamente pelo fato de limitarem essa ideologia à sua manifestação econômica, isto é, à crítica econômica vulgar do capital especulativo, eles são capazes de agir como abre-alas para a economia política do anti-semitismo, sob uma forma histórica renovada. O anti-semitismo aberto não se fará esperar, e, no frigir dos ovos, é indiferente se o pogrom anti-semita é perpetrado na crise monetária pelos próprios neogesellianos ou por bandos vinculados à respectiva ideologia econômica ,sem mais negar, com pu­dor, a conseqüência anti-semita.

Ao gesellianismo caberia também uma espécie de função moderrmizadora no revival do darwinismo social e das tendências sociobiológicas. Nesse ponto, a peculiaridade de Silvio Geseil é que ele não adora a definição dos pretensos inferiores, no sentido racista usual, mas sim no modo ocidental e universalista, isto é, de modo plenamente adequado à forma-mercadoria de todo globalizada e desenvolvida. O desvario biologista também pode esconder-se na roupagem de uma propagan­da da igualdade. Nesse caso, não se trata mais de um racismo particular contra deteminadas concepções de "povo" e grupos humanos, mas de uma idéia igualmente paranóica de uma "raça superior" dos "capa­zes"; de modo inverso, os "inferiores" devem ser desqualificados e, quando possível, eliminados, independentemente da cor de sua pele ou de pertencerem a certo "povo" etc. Essa perversa "higiene racial" geselliana é mais coerente e mais universalista do que aquela dos nazistas, adequando-se a um darwinismo social modemizado no plano das relações universais do mercado mundial, darwinismo este que rende homenagem mais ao desvario produtivo e funcionalista do que a pre­conceitos específicos a uma raça ou a um povo. A ideologia do "survival of the fittest" mostra-se aqui em sua forma universalista, depurada de toda escória do antigo particularismo racial.

Se o neogeselianismo é capaz, portanto, de modernizar os dois lados da mecânica da projeção no contexto de uma economia política do anti-semitismo, o mesmo vale para a determinação do sujeito possivelmente encarregado de pôr em prática tal concepção absurda. Se a ideologia nazista estava comprometida com os meta-sujeitos coletivos do Estado e da nação e podia, por conseguinte, formular a condenação do capital especulativo apenas sob o signo do estatismo e com a afirmação de um "primado da política’, bem ao gosto da época , o anti-estatismo individualista de Silvio Gesell, num tempo de neoliberalismo radical, está muito melhor talhado para representar o sujeito-mercadoria pós-moderno em seu desvario competitivo.

[...]

Após o período das grandes catástrofes da primeira metade do século, cujos presságios intelectuais foram as idéias paranóicas de salvação, os modos de vida extravagantes e as seitas da crise, o curto verão siberiano do "milagre econômico" fordista aparentemente extinguira, nas poucas décadas posteriores às guerras, o fantasma do anti-semitismo ou mesmo a lembrança de sua gênese ideológica. Entretanto, a estrutura ideológica da economia política desse anti-semitismo oculta-se na própria forma-mercadoria social e, como resultado, no "inconsciente coletivo", no qual ela pode surgir em configurações modificadas.

A breve época histórica da prosperidade produziu, de uma forma por assim dizer vergonhosamente mecânica, até mesmo na crítica social marxista, a ilusão monstruosa de que o sistema produtor de mercadorias passara pelo pior, restando agora apenas eliminar gradual mente, pelo trabalho de organização e desenvolvimento, os vestígios dos tempos de catástrofe. Absurdamente, essa cômoda noção democrática persiste até hoje (inclusive reforçada pelo colapso do socialismo de Estado), apesar de a prosperidade econômica do mercado ter­se há muito desvanecido. Cegas aos surtos reais de crise, a absurda palavra de ordem das pessoas, no âmbito da esquadrilha reformista habermasiana, é, com maior razão, "civilizar o capitalismo até desfigurá-lo" (Helmut Dubiel). O que aconteceu, na verdade, foi o inverso: a própria crítica radical da sociedade há muito foi desfigurada e emporcalhou-se democraticamente, em vez de renovar-se à força de "superar" a si mesma (durch "Aufhebung").

É preciso levar em conta que, desde 1968, a oposição radical da Nova Esquerda (Neue linke), bem como o ulterior movimento alternativo dos verdes experimentaram sua socialização política ainda nos desdobramentos da época de prosperidade e sempre desfrutaram, tacitamente, da posição privilegiada do mercado ocidental, especialmente na Alemanha Ocidental, Seus conceitos, suas idéias, soluções e exigências sempre tiveram, de certa maneira, uma "economia de mercado bem-sucedida" como seu surdo pano de fundo, mesmo quando se ocupavam com teorias da crise. Desde o início, entretanto, não era de bom-tom, em todas as facções, falar em "teoria do colapso", que passou a ser vista como um tabu, embora esse objeto de horror existisse quase só em forma quimérica e nunca tivesse sido sistematicamente elaborado, Nesse recalque da possibilidade de o sistema produtor de mercadorias submeter-se a uma catastrófica e absoluta finitude histórica talvez estivesse decidido, de antemão, que a Nova Esquerda não atravessaria o rubicão da crítica radical, da mesma forma que ocorrera com a velha esquerda.

A crise, convertida em processo socioeconômico e ecológico, desafiava, não obstante, as reações. Em comparação à virada do século passado, trata-se, ao término do século XX, de uma ruptura estrutural de ordem superior: há indícios de que não estamos mais às voltas com a transição para um novo surto de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias (como freqüentemente ainda se aceita com esperança), porém com um processo efetivo de colapso da coerência mercantil entre "trabalho" e dinheiro, no qual o sistema amadurecido destrói irreversivelmente seus próprios fundamentos. Os "Realos" do Partido Verde, bem como o restante do antigo radicalismo de esquerda, buscam refúgio nos mesmos critérios equivocados da razão e da revolução burguesas (uns, com base na atual democracia de mercado; outros, por meio de uma infusão diluída da variante das lutas de classes do antigo marxismo, dentro das mesmas formas mercantis do pensamento iluminista); por outro lado, a oposição a esse tipo de recalque da crise recai num crescente irracionalismo, que não é a superação da racionalidade burguesa, mas somente seu reverso, como ela se mostrou desde o princípio, revelando sempre (a começar com Johann Georg Hamann, no século XVIII) as falhas da razão mercantil e conduzindo, ao mesmo tempo, nas crises de ruptura, a modelos bárbaros de pensamento e ação. Essa alternativa errada e funesta ressurge hoje na nova grande crise do sistema produtor de mercadorias.

Os anos 80 não foram apenas a era do capitalismo-cassino e do chamado desvario consumista dos hedonistas vulgares alimentados pelo comércio, mas também um novo apogeu do sectarismo político, socioeconômico, cultural e religioso. Os seus promotores foram a Nova Esquerda e o próprio movimento alternativo dos verdes que se seguiu, e isso tanto em termos de idéias quanto de pessoas. Os próprios princípios emancipatórios do movimento psicanalítico, da "politização da esfera privada" ou mesmo da crítica das relações entre os sexos resvalaram num boom de irracionalismo nos anos 70, já que nunca se deixavam intermediar por uma crítica da forma-fetiche moderna. Assim, alguns intrépidos revolucionários mundiais dos anos 70 já caminhavam no início dos anos 80 em vestimentas laranjas dos discípulos de Krishna. E, no princípio dos anos 80, já floresciam nos verdes alternativos a mística da natureza e o romantismo do chá de camomila. As extravagâncias das formas de vida reformistas da virada do século experimentaram apenas um revival fracamente modernizado.

Desse meio desenvolveu-se, com crescente nitidez das restrições sociais, uma "atmosfera" que vinha ao encontro das ideologias irracionais de crise, nas quais a crise real da socialização sob a forma-mercadoria era reelaborada numa forma fantasmagoricamente distorcida. Em vez de uma análise, de uma crítica ou de uma superação do sistema produtor de mercadorias, surgiu a tentativa de afirmar-se por meios irracionais e fantásticos no interior da própria concorrência. As técnicas mediadoras, as formas de comportamento, as "regras de vida" etc., manifestam-se, então, como atributos individuais; como processo ideológico coletivo, ao contrário, surgem a discriminação que brota de órgãos sectários ou até mesmo o extermínio "dos outros’. O ponto de partida para isso é, uma vez mais, a crescente "naturalização" do social, da forma como ela se evidenciou, nesse meio tempo, como ampla corrente ideológica. A propaganda de uma "ordem natural" já se ocultava nos primeiros esboços de um conceito abstrato da natureza, que nos anos 80 começou a herdar o conceito sociológico das relações sociais. Era sintomático, por exemplo, que a editora Fischer desse inicio à série "Teoria e história do movimento trabalhista" e, paralelamente à "alternativa Fischer’, fosse lançada uma grande série "Antroposofia", mesclada a títulos significativos como "Guia do dinheiro" e "Guia da especulação" uma clara reação à mudança das neces­sidades do público. O fim do marxismo do antigo movimento operário e os seus revivals na Nova Esquerda certamente estavam na ordem do dia, porém não produziram uma superação crítica; em vez disso, somente exumou-se um outro cadáver ideológico da história de ascensão do sistema produtor de mercadorias, o do irracionalismo e do conceito abstrato de natureza, enquanto se recorria, ao mesmo tempo, às "benesses do mercado" oferecidas. O sociologismo redutor e subjetivista do batido paradigma da "luta de classes", coerente à forma-rnercadoria, não foi substituído por um nível mais elevado de reflexão, mas por um retrocesso aquém do sociologismo.

A substituição do conceito crítico de sociedade pelo conceito de natureza não está muito longe da naturalização do social, da "ordem econômica natural". Ao revival daantroposofia seguiu-se o revival deSilvio Gesell e a ramificação desse patrimônio ideológico nas corren­tes autônomas e de esquerda. E nesse estranho "retomo à esfera económica", cada princípio radical e emancipatório é extirpado; torna-se clara a careta sociodarwinista e anti-semita de uma crítica social perdida, distorcida. Aprópria Nova Esquerda, que se mostrou incapaz de transformar o marxismo, converteu-se em duas décadas num catalisador para a nova economia política do anti-semitismo, que começa a tornar-se socialmente autônoma como as velhas "inovações" da esquerda e de seus diversos "meios".

A situação, de fato, é constrangedora: até a "base econômica" direta, no sentido mais habitual, desta mutação ideológica construiu-se sobre um processo de "pequeno-aburguesamento" biográfico dos ex-esquerdistas. Não se trata, em absoluto, de denunciar os destinos de vida e as existências como tais; a questão está em saber se e como, à maneira de um manual grotesco, o "ser" econômico transforma-se numa "consciência" ideológica. O núcleo da questão é formado, em primeiro plano, por projetos que restaram da antiga logística do movimento: livrarias, editoras, pequenas tipografias, jornais locais (além de outros meios de comunicação), bares de reunião etc., que, por falta de clientela e de perspectiva de uma crítica social, foram obrigados a tornar-se pequenos empreendimentos, na mais estrita normalidade, a fim de sobreviver. Some-se a isso os projetos de "vida alternativa" posteriores: além de bares, também padarias, marcenarias, oficinas mecânicas, empreendimentos agrícolas, auditórios, empresas de terapia etc.

A maioria atravessou o Jordão, mas os sobreviventes financeiros tiveram de se "profissionalizar". Muitos dependem de créditos bancários; na Alemanha e Suíça, fundaram-se até bancos alternativos. Na onda da "profissionalização" desses épiciers, adotou-se (o que é inteiramente compreensível) a ideologia da "auto-exploração’. Sob as dadas condições, no entanto, pôde-se desenvolver facilmente a típica ideologia do filisteu sobre o "trabalho honesto" e o "salário justo por uma jornada de trabalho justa", entremesclada, paradoxalmente, com "atitudes", teorias e mídia pós-modernas. Mas em que medida essa síndrome é compatível com o gesellianismo e com a economia polí­tica do anti-semitismo? E a que recorrem as pessoas na mais grave crise pessoal, quando cai por terra a superestrutura financeira, igualmente pessoal, dos épiciers alternativos?

Hoje, nesses círculos, ainda se vota no Partido Socialista Alemão (PDS), o que tampouco deixa de ser ambíguo, nessa mistura de ambiente de cervejaria, ideologia do trabalho, geografia pátria e ódio ao "vilão" Capital, cujo aspecto não dispensa o nariz adunco. Quanto ainda falta para sucumbir à paranóia? E o micélio da economia política do anti-semitismo tem um chão fértil para crescer ainda mais. Uma parte considerável do cenário cultural alternativo depende das injeções de créditos estatais, a exemplo dos "espaços alternativos" comunais, e esses fundos são cortados até mesmo pelos parlamentares da facção "Realos" do Partido Verde. A reação a isso não é necessariamente emancipatória, epode descambar no gesellianismo e em suas conseqüências sociodarwinistas.

Essa possibilidade também não está descartada para os ex-esquerdistas e "jobbers" e "freeriders" autônomos do ambiente pós-moderno (cena musical, jornalismo, propaganda etc.). Nestes círculos tampouco se chegou a uma crítica dialética nem a princípios práticos de uma emancipação da forma-mercadoria social; em vez disso, a ordem pseudocrítica foi "nadar a favor da corrente" do capitalismo-cassino. O restante de um pensamento marxista diluído e redutor, enriquecido com os teoremas pós-modernos (Foucault etc.) e equipado mais com as teorias da cultura e da mídia do que com as críticas da economia, pôde contrair alianças profanas, de forma mais ou menos secreta, com a consciência comercial dos anos 80. Mas e na hora em que a alternância entre o emprego e o turismo nas férias, ou a alegre vida pós-moderna, for subitamente estrangulada pela conta bancária no vermelho para onde, então, seguirá a viagem?

Sem dúvida, esses reduzidos meios sociais têm pouca importância, ainda que as suas mutações ideológicas surtam efeito social. A reprodução no âmbito dos movimentos de esquerda, cuja dinâmica é classicamente pequeno-burguesa e restrita a profissionais liberais (mas que não exclui, também, os "biscates" ou "bicos"), compõe na área social, porém, o espectro infinitamente maior da nova classe média dos setores de serviços do Estado (professores, assistentes sociais etc.), que sofrem uma brutal redução com a crise do crédito estatal, a exemplo dos projetos alternativos; como resultado, aumenta também a possibilidade de ingresso no âmbito da economia política do anti-semitismo.

Naturalmente, a essa mentalidade pequeno-burguesa de aspectos sociais, psíquicos e ideológicos, que promete ser aterradora, não se opõe mais o velho "ponto de vista da classe proletária". Salta à vista, com toda a imanência, que os próprios setores clássicos da "ideologia operária e camponesa" (agricultura, mineração, siderurgia, indústria naval), longe de serem a base da reprodução do sistema produtor de mercadorias dessubstancializado, há muito dependem das injeções de crédito estatal (ou seja, do "capital fictício") e, por conseguinte, em uma grande crise monetária, poderiam igualmente sensibilizar-se pela economia política do anti-semitismo, talvez até numa versão que unisse keynesianismo e nacionalismo estatal.

Sobre todas as estruturas sociais que merecem análise, no entanto, paira a individualização abstrata como uma superestmtura do processo de pequeno-aburguesamento de toda a sociedade - processo este pós-moderno, não mais preso à pequena propriedade, mas à estrutura nuclear do sujeito-mercadoria -, que caminha para o seu ponto de culminância histórico e para a crise da forma-mercadoria totalizada. Tanto o interesse particular pela catástrofe de segmentos sociais isolados quanto o processo como um todo de atomização social podem servir de gancho para uma variante modernizada da economia política do anti-semitismo. E é bom contar com isso. Já se tornou patente que não existe forma de ocupação absurda o bastante a que os acuados sujeitos-mercadoria não se possam entregar desenfreadamente.

No entanto, não é forçoso que a ideologia irracional da crise se imponha socialmente. Como não há uma determinação mecânica da consciência a partir do ser social, o instinto primitivo do interesse obstinado, imanente à forma-mercadoria, pode como mais razão (e também em massa) romper as fronteiras históricas do sistema produtor de mercadorias. Porém o pressuposto para tanto é, em primeiro lugar, que os opinion leaders no que restou do movimento de esquerda e alternativo, nos empreendimentos e meios alternativos, nos cenários hedonistas pós-modernos, nos projetos culturais e nas instituições sociais etc. enfrentem resolutamente quaisquer manifestações da economia política do anti-semitismo, que eles tomem consciência do problema e refutem toda tentativa de fraternização. Em segundo lugar, e diante da ameaça, não se pode mais reprimir que um novo discurso de crítica radical do sistema de produção de mercadorias volte à ordem do dia, o qual transformará o marxismo obsoleto do movimento operário e o superará criticamente, em vez de apenas prolongá-lo ou abandoná-lo às traças.


Inclusão: 30/10/2020