Os Últimos Combates
O Maio parisiense de 1968, o Dezembro parisiense de 1995 e o recente acordo trabalhista alemão

Robert Kurz

Novembro de 1996


Primeira Edição: Original Die letzten Gefechte em www.exit-online.org. Publicado na revista Krisis, n.º 18, 1996. Publicado em Novos Estudos CEBRAP , nº 46, Novembro de 1996 com tradução de José Marques Macedo.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O Maio de 68 em retrospectiva

Quem não se recorda do Maio parisiense? Mesmo quem não esteve presente por ter nascido mais tarde, recorda-se com base nos documentos da história, e até hoje o Maio de 68 vaga como alma penada pela literatura. O Maio parisiense de 68, não o Maio de Berlim ou de Frankfurt, que foram antes um simulacro de Maio. A França, de fato, foi abalada em seus alicerces burgueses, e de Gaulle atirou-se aos braços do general Massu, que já não via a hora de deslocar para Paris os tanques do exército francês estacionados na Renânia. A revolta dos estudantes, deflagrada por um pequeno grupo de marxistas de esquerda, os chamados "situacionistas" da Universidade de Nanterre(1), foi uma verdadeira fagulha capaz de atear fogo às estepes: as batalhas na universidade desencadearam, como se sabe, uma colossal onda de greves e inúmeras ocupações de fábricas pelos trabalhadores. À diferença do relativamente pálido movimento de 68 na Alemanha, o Maio parisiense parecia pôr a questão da emancipação social na ordem do dia, e a base sindical estava pronta para a confrontação social.

De 3 de maio a 30 de junho de 1968, o poder do sistema dominante pareceu paralisado. Daniel Cohn-Bendit, já então vaidoso a mais não poder, embora ainda não cretinizado à força da democracia, escreveu de modo inflamado e virulento, parafraseando o Manifesto Comunista:

Pela construção de barricadas, o movimento revolucionário rompeu o muro do silêncio. [...] Um espectro ronda o mundo, o espectro do radicalismo de esquerda. Todos os poderes do mundo antigo aliaram-se numa cruzada contra tal espectro: o papa e Kosygin, Johnson e de Gaulle, comunistas franceses e policiais alemães.(2)

Comunistas franceses porque o Partido Comunista Francês (PCF), no estilo conhecido dos partidos de esquerda ocidentais, foi capaz de estrangular e canalizar para a via parlamentar o movimento com ajuda de sua influência sindical. A possibilidade, refulgente num breve momento histórico, de consumar num país capitalista altamente desenvolvido uma reviravolta revolucionária e uma emancipação social foi por água abaixo. E a considerar pela distância histórica, não foram somente as manobras burocráticas do PCF, nem as reacções da burguesia — por exemplo, uma concorrida manifestação dos comerciantes de classe média contra seus filhos e a favor do monumento nacional de Gaulle — que frustraram uma subversão revolucionária. Foi também uma curiosa cegueira acerca dos objectivos do próprio movimento — cegueira que não pode ser explicada apenas por sua espontaneidade, e a partir da qual a fugaz possibilidade foi mais uma vez inflectida para o impossível.

Houve decerto muitas palavras que se ergueram sem no entanto lograrem se constituir em verdadeiros conceitos de uma transcendência em relação ao mundo burguês. Jacques Sauvageot, um dos líderes estudantis, falou, por exemplo, da "autogestão das empresas pelos trabalhadores", de um "socialismo não-autoritário", do "poder estudantil", de "tradições anarquistas" e do "legado das revoluções francesas do século XIX"(3). Houve também o momento de uma rebelião romântica contra o "trabalho": "Sob o calçamento encontra-se a praia" — um bordão repisado a cada instante; "auto-organização" — mas do que e em que qualidade social? Em retrospectiva, salta aos olhos que a radicalidade (à semelhança das revoluções de modernização burguesa de recuperação no Leste e no Sul) referia-se mais às formas de organização e processo políticos do que à questão de uma almejada reprodução não-capitalista da sociedade.

A crítica radical dos situacionistas à forma de reprodução social do fetichismo da mercadoria permaneceu, como problemática da crítica, um programa minoritário. Tal programa infiltrou-se no máximo indirectamente nas declarações do movimento e foi então compreendido, se tanto, num sentido apenas culturalista. Terá sido um mal-entendido? Talvez somente em parte. De fato, as formulações dos situacionistas costumavam soar antes como cultural-revolucionárias do que como críticas da economia num sentido estrito. Ambas não eram necessariamente excludentes; muito pelo contrário, faziam parte do mesmo todo. Permanecia em aberto, entretanto, em que medida uma emancipação das constrições da relação totalizada, dinheiro-mercadoria, poderia ser posta em prática sem negar os potenciais das forças produtivas modernas. Não havia mediação alguma, somente o grande gesto.

Com tanto mais razão, a vontade do espontâneo movimento trabalhista francês de 68 não ultrapassava o horizonte da socialização pela mercadoria, para não falar da evocada tradição "das revoluções francesas do século XIX". O "ganhar dinheiro", essa actividade própria à burguesia, não foi questionado a sério pela maioria dos integrantes do movimento, isto é, não o foi da perspectiva sócio-econômica, mas, na melhor das hipóteses, de forma metafórica e culturalista. Assim, o fato de o movimento de massas ter desaguado na instância parlamentar e no deplorável plano sindical de exigências de um "salário justo por um dia justo de trabalho" foi apenas o saldo de uma limitação imanente do próprio movimento. O que pela última vez esteve em cartaz no Maio parisiense foi o eterno filme dos movimentos revolucionários "socialistas" e "proletários" do Ocidente: um breve avanço rumo a um horizonte desconhecido, para então ser compelido pela massa inerte da consciência monetária a regressar à forma de circulação burguesa, cuja incessante reforma resta como o único e exclusivo objectivo lastimavelmente imanente.

Este processo paradigmático, estilizado pelos radicais de esquerda como a história heróica das derrotas, indica, na verdade, o carácter intrinsecamente burguês da própria intenção cuja forma é revolucionária. A segunda, terceira, quarta e quinta infusões da razão iluminista e modernizadora da burguesia, da revolução burguesa e sua vanguarda jacobina, só são capazes, ainda que sob a roupagem marxista ou anarquista, de percorrer as mesmas estações numa versão cada vez mais tênue, a exemplo da órbita astronomicamente determinada dos corpos celestes, cujo modelo forneceu, de resto, o conceito moderno de revolução (tomado de empréstimo a Copérnico).

Quanto mais desenvolvida uma sociedade moderna produtora de mercadorias, determinada pelo movimento de valorização da moeda, menos ela carece para sua posterior história evolutiva da vanguarda jacobina, que se torna disfuncional como um apêndice cecal e degenera assim, seja qual foi a forma de legitimação ideológica, numa espécie de sintoma folclórico dos surtos de modernização. O Maio parisiense 1968 foi talvez um breve relance de olhos no quarto proibido, mas a porta logo foi cerrada e, às pressas, os turistas revolucionários foram conduzidos às antigas dependências originárias da revolução burguesa. Não faltou nem mesmo a gorjeta.

Enfim, o Maio parisiense não foi capaz de sustentar e desenvolver sua nova ideia de emancipação social para além da sociedade ocidental e capitalista. O rastro luminoso dos situacionistas dissipou-se rapidamente e mal foi tomado em conhecimento pelo movimento alemão de 68. Em vez disso, os olhares voltaram-se cada vez mais para os lugares onde o antigo processo parecia ainda jovem e viçoso: o Terceiro Mundo. A solidariedade aos movimentos de libertação antiimperialistas não foi efetivada em nome de uma transformação para além do sistema moderno produtor de mercadorias, de cujo contexto os retardatários históricos estariam, aliás, excluídos, mas justamente o contrário: a revolução burguêsa-recuperadora do Terceiro Mundo foi elevada a modelo, pois em seu brilho era perfeitamente possível aquecer-se à maneira pseudojacobina. De fato, quanto mais subdesenvolvida é uma sociedade produtora de mercadorias, quanto mais é obrigada a lutar, sob o signo de uma modernização retardatária, por sua auto-afirmação económica contra os concorrentes que lhe tomaram a dianteira no terreno desse mesmo modo de produção e em sua forma de intercâmbio global (mercado mundial), tanto maior é a importância da vanguarda jacobina, seja qual for a configuração ideológica.

Repetiu-se, portanto, o paradoxo histórico no qual a consciência (de acordo com a própria compreensão que tem de si mesma) do movimento revolucionário nas sociedades modernas mais desenvolvidas em termos capitalistas, tornou-se um simples esteio da consciência de uma revolução burguesa de recuperação nas sociedades menos desenvolvidas pelos moldes capitalistas. Da mesma forma que o antigo radicalismo ocidental de esquerda não foi além do papel de caçula da Revolução de Outubro, assim também o radicalismo da nova esquerda em relação aos movimentos de libertação no Terceiro Mundo. Como resultado, o próprio impulso romântico trocou a crítica ao "trabalho" pelo romantismo da luta armada e seus símbolos, que nos palcos originais nada mais eram do que o signo do "trabalho" e de sua história evolutiva de recuperação, como logo se tornaria manifesto em toda parte pelo carácter repressivo do novo regime. Quando veio à tona a face disforme e nada romântica da modernização retardatária e da operação estatal de "valorização" do Terceiro Mundo, a inteligência de 68 buscou abrigo, lacrimosa, no regaço maternal e burguês do Ocidente democrático. A conversão hipócrita de uma forma repressiva numa forma libertária só pode desembocar, no Ocidente, na liberdade de mercado do sujeito concorrente individualizado.

Em 1968, um Cohn-Bendit fazia praça de que ele e seus iguais podiam servir-se das leis de mercado de forma soberana, na condição de radicais de esquerda antiautoritários: "Por que aceitamos a sugestão de redigir este livro? Para pagar na mesma moeda, para voltar as leis de mercado desta sociedade contra ela própria e proferir afinal o que há muito [...] devia ter sido dito"(4). Na época, isto foi escrito possivelmente com um olho nas prováveis recriminações moralistas de que Cohn-Bendit ter-se-ia vendido ao editor burguês. Com toda certeza, seria ridículo recusar a possibilidade de ingressar na circulação burguesa com conteúdos antiburgueses, uma vez que a circulação na sociedade burguesa, na qual o próprio amor assume forma mercantil, é o único modo de intermediação em que as ideias podem difundir-se ampla e rapidamente. Mas o problema está em saber se as ideias possuem, de algum modo, um sólido núcleo antiburguês e se podem conciliar-se com uma práxis que ultrapasse o sistema da forma-mercadoria totalizada. Dessa perspectiva, o movimento de 68 foi condescendente. Eis por que Cohn-Bendit é hoje um idiota histórico da economia de mercado — e não apenas ele, como todos sabem.

Ao lançar um olhar retrospectivo, o medíocre democrata ecológico afirma que 68 foi "a última revolução que ainda nada soube do buraco de ozônio". Com vista à fisionomia social dele e de seus congéneres, podemos dizer que 68 foi a última revolução que ainda pôde obter ingresso no funcionalismo público. O Maio parisiense foi, inapelavelmente, o derradeiro embate da revolução civil-proletária na modernidade, o último estertor de um jacobinismo tornado asmático, o extremo combate da consciência fundada no "ganhar dinheiro" que podia ainda ser difundida sob vestes revolucionárias. Esta revolução pôs um ponto final ao processo, pois há muito ultrapassara seu objectivo imanente. As revoluções (em sua forma-mercadoria) que ainda agora são apregoadas têm lugar apenas nos textos publicitários de um consumismo gagá. A revolução política foi o caminho do fetichismo, e o saldo não é nada romântico. O toleirão urbano, devotado ao consumo, e o pesquisador de brechas no mercado triunfaram. O preço discutiremos depois.

Talvez tudo isso soe um tanto injusto em relação ao Maio parisiense, que afinal não podia cogitar onde iriam parar seus protagonistas. Isto é correcto apenas em parte, portanto, falso. O Maio parisiense tinha plena consciência de que, em última instância, ele próprio se proibia o ingresso no quarto proibido. Não só o Maio parisiense num sentido imediato, mas o movimento antiautoritário como um todo. Eis por que ele se rendeu tão rapidamente à credulidade autoritária, primeiro a uma autoridade social-democrata ou bolchevista (ainda que a última não passasse de uma mera fantasia carnavalesca), e depois à sujeição incondicional à "autoridade" das leis impessoais do mercado. A forma de dominação incógnita da democracia, em cujo nome já se encerra a auto-repressão, fora antes festejada na fase antiautoritária. Nesse sentido, não é surpreendente que os "novos filósofos" à la Glucksmann celebrassem enfim um capitalismo ocidental despojado de história em escritos propagandísticos superficiais, que não obstante ousavam proclamar-se "filosofia"; do mesmo modo que não surpreende o fato de que Cohn-Bendit e seus sequazes hoje façam parte de uma classe política a que antes davam combate.

Por trás dessa juventude rebelde de classe média, e, obviamente, também dos trabalhadores, escondia-se um sólido núcleo pequeno-burguês. O petit bourgeois são todos os que se tomam por uma espécie de vendedor ambulante e são incapazes de imaginar que a compra e venda de si mesmo, algum dia terá fim — em suma, literalmente todos. Que o "burguês" se esconde como tal na forma-mercadoria totalizada pelo capitalismo é algo de que os combatentes das barricadas de 68 não quiseram tomar conhecimento. Isso não era apenas ignorância ou desconhecimento, mas uma recusa consciente da possibilidade de fazer declarações concretas sobre a superação das relações fundadas na mercadoria e propor os meios práticos e palpáveis para alcançá-la. E também não foi somente a consciência de que os trabalhadores rechaçariam essa ideia "monstruosa", já que eles o teriam feito com toda certeza (inclusive os ocupantes das fábricas). Apesar de toda a retórica romântica contra o "trabalho" e pela "praia sob o calçamento", na maioria das cabeças de 68, a lei férrea do dinheiro permaneceu intocada em sua validade. Quanto a isso, o embotamento sindical era generalizado. O rumo tomado pelo impulso francês, sobretudo na Alemanha, é evidenciado na absurda composição do nome de uma antiga revista da esquerda antiautoritária de Frankfurt, chamada Pflasterstrand ("Praia-calçamento"); não por acaso, nasceram dessa associação a principal facção dos "realos" do Partido Verde(5) e os simpatizantes "urbanos" da economia de mercado.

Ora, já na época, a negação consciente da ideia de tomar a peito a crítica e a superação prática do fetichismo da mercadoria fora ideologizada e alçada a princípio. Sabemos que o novo radicalismo de esquerda como um todo, oriundo da Teoria Crítica e dos marxistas que transfugiram do existencialismo, proclamava a interdição de se representar concretamente a sociedade não-capitalista e a reprodução "auto-organizada". Na verdade, tal negação, conscientemente vaga, é uma autodefesa da consciência burguesa contra as prováveis consequências de sua própria crítica social. Ate hoje não ha uma definição económica da reprodução alheia à forma-mercadoria, porque o radicalismo de esquerda — em todas as suas variantes, seja na versão atlética ou beletrista — proibiu a si próprio, de caso pensado, semelhante tarefa. Precisamente, em nome da determinação e organização autónomas do movimento revolucionário, cuja gloriosa práxis não cabia ser de antemão fustigada teoricamente! Raras vezes houve uma desculpa tão esfarrapada na história das ideias sociais.

Provavelmente, não cairia bem ao amplo gesto revolucionário dos actores desenvolver meras definições económicas e porventura rudimentos práticos para uma desvinculação com referência ao Estado e ao mercado; isto teria parecido a eles muito baixo e passageiro, quem sabe muito "feminino", já que não directamente relacionado aos gestos primevos da guerrilha latino-americana (as mulheres têm sempre um quê de insignificante, de infausto, aos olhos dos gloriosos fanfarrões da teoria e da política). E isto, muito embora o menor dos avanços rumo à desvinculação da forma-mercadoria já bastasse para desencadear um conflito com a estrutura burguesa de reprodução, o que encerraria um momento de guerrilha — mas, sem dúvida de um modo inteiramente diverso do que gostariam de imaginar os protagonistas de 68 e seus descendentes ideológicos.

Os eternos jovens vestindo impermeáveis, com eternos cigarros no canto da boca e olhares eternamente audazes, eternamente prontos a tomar de modo equivocado o conceito de emancipação social como um ramo da literatura; os pequenos Dantons e Mirabeaus de microfone em punho, a farejar uma oportunidade; os simulacros de Emiliano Zapata, com barba por fazer e jaquetas de couro, passando por perigosos e desejosos de ter livre acesso a qualquer dos saraus da alta burguesia; os doutorandos arrivistas, interessados tão-só no diploma — todos, máscaras das revoluções e revoluçõezinhas burguesas, que qualquer dia serão exibidas em desfiles de moda como peças da colecção de outono. Os representantes de 68 e seus sequazes apenas não estavam ainda totalmente certos se, com a utopia e o "inteiramente outro" como primeiro degrau na carreira, optariam por ser literatos, professores ou políticos burgueses.

Os trabalhadores nas fábricas ocupadas receberam, portanto, só quinze anos mais tarde, quando há muito já haviam esquecido a pergunta, uma resposta sobre o problema económico de um "socialismo antiautoritário": as empresas autogeridas, como integrantes do mercado, deviam ganhar seu dinheiro "alternativamente", nos dizeres dos cabeças do movimento alternativo. O "inteiramente outro" já tinha então um aspecto bastante melancólico e pequeno-burguês. Sabemos também o que resultou disso. Na Alemanha, de resto, não houve sequer fábricas ocupadas em 1968, pois os agitadores do movimento antiautoritário foram antes desancados defronte aos portões das fábricas pelos fanáticos do milagre econômico, que na época aproximava-se de seu fim. Eis por que a farsa revolucionária da classe média na Alemanha pôde ser posta em cartaz sem riscos, se bem que não sem os efeitos colaterais de um surto de modernização económica do mercado, do qual lamentavelmente ainda hoje se tem orgulho.

Apesar dos pesares, a força de irradiação do Maio parisiense consistiu no fato de o quarto proibido permanecer aberto por um instante, ao menos aparentemente, pois ninguém lhe fixou bem a vista. E há muito se exulta que não se tenha lançado um olhar preciso, para não falar ingressado no quarto, pois isso teria sido aterrador. A valorização da moeda como forma de reprodução total, comenta-se hoje, "não oferece alternativas". Isso foi tomado como certo pelos sindicatos em todo o mundo, que finalmente não precisam mais temer sua própria ideia nebulosa de emancipação social. E assim será no futuro. Os ambiciosos jovens de impermeáveis ainda reúnem- se nos cafés, mas agora não acalentam sequer sonhos literários.

A miséria do Dezembro parisiense

Que Dezembro parisiense? — somos tentados a perguntar, pois dele nos lembramos com tanta dificuldade, como, por exemplo, do nome do presidente do FDP(6). O Dezembro parisiense de 1995, ocorrido há pouco (escrevo no início de fevereiro de 1996), não se tornou um paradigma como o Maio parisiense; seu ténue rastro luminoso não ficará gravado na história. E isso não somente graças à diferença de clima entre esses dois meses. Vale relembrar, portanto: em dezembro de 1995, a França foi sacudida durante algumas semanas de forma aparentemente quase tão forte quanto no Maio de 68. Não houve ocupação de fábricas, e mesmo a greve geral foi apenas indirecta: em virtude da paralisação dos transportes públicos, praticamente todas as demais esferas foram paralisadas. O ensejo para a greve foi particular, mas a causa, ao contrário, socialmente universal. O governo do primeiro-ministro, Juppé propôs (nada extraordinário no mundo contemporâneo) "cortes drásticos" no interesse de um Estado financeiramente enxuto: restrições saneadoras no sector ferroviário e restrições reformadoras do seguro social e de saúde no serviço público. De um prisma superficial, tratava-se, ao menos em parte, da extinção de privilégios (ainda que bastante modestos) do funcionalismo público. De ordinário, um interesse assim limitado não é capaz de adquirir universalidade social, muito menos uma greve no serviço público, que onera sensivelmente a vida quotidiana e consome rapidamente os nervos de uma população que não reconhece seus interesses particulares no confronto com os dos funcionários públicos. Com frequência, tal efeito acorre num governo em conflito social com seus servidores; obviamente, Juppé também esperava firmar-se sobre essa onda de opinião para investir contra as greves. Esse cálculo, porém, caiu fragorosamente por terra.

O momento corporativista da greve foi de imediato inundado por um protesto social generalizado que se estendeu muito além de seu ensejo específico. Não apenas os grevistas directamente implicados saíram às ruas, mas centenas de milhares de simpatizantes. Em muitos relatos, falou-se de uma "explosão dos sentimentos sociais", do súbito despertar de um espírito de solidariedade, de uma descoberta da arte de improvisar e de uma camaradagem humana só vistas por ocasião de grandes incêndios e catástrofes naturais. Uma espécie de milagre de Maria em meio ao deserto da individualização e da ausência de solidariedade típicas da economia de mercado? O ultra-reacionário, Thankmar von Münchhausen, da secção de finanças do Frankfurter Allgemeine Zeitung, mostrava-se pasmo:

Governo democrático algum devia permitir que se impingissem aos franceses as privações impostas a cada dia, durante já quase três semanas, pelos sindicatos. Toda queixa modesta sobre os efeitos — perda de sono e oportunidades de vida e negócio baldadas- parte da afirmação de que se tem perfeita compreensão das exigências dos grevistas. Ninguém põe em dúvida o direito de greve, nem sequer nas empresas de monopólio estatal. A julgar pelas vozes resignadas, poder-se-ia pensar que os funcionários públicos não movem a greve de maneira egoísta contra a sociedade, mas antes, em nome dela própria (13/12/95).

Sem o querer, comentários inflamados como este, extraído de um periódico conservador e anti-social, acertaram na mosca: a greve de dezembro em Paris contou com tamanho apoio porque de fato os grevistas — um tanto inconscientemente — subiram ao ringue como representantes de todos os assalariados. Somente à primeira vista, estavam em jogo as aposentadorias dos ferroviários ou o seguro de saúde dos funcionários públicos: na verdade, o alvo do protesto era o consenso neoliberal das elites. Foram as irritantes declarações sobre a "imprescindibilidade" da chamada redução dos custos sociais, sobre o fim do pretenso toujours plus ("sempre mais") e sobre a "percepção necessária", etc., que atiçaram a bile das massas francesas. E com toda razão. Há muito se sabe que a matança social é generalizada e que a faca para nosso pescoço já se acha amolada. A espantosa desfaçatez das elites económicas chega hoje ao cúmulo — e não só na França — de querer impingir a falência social de seu sistema como lei natural a ser aceita, e a cuja bitola todos têm de se "adaptar". O verdadeiro milagre social de Maria é que as elites em todo o mundo ainda não tenham sido enforcadas por tal descaramento. Mas enquanto os assalariados alemães despem de boa vontade as calças em nome das leis de mercado, os franceses parecem pelo menos ter a dignidade de resistir ao assédio.

Um motivo suplementar talvez haja contribuído para a impostura grosseira da eleição de Jacques Chirac, na qual, porém, mesmo os franceses, contra sua própria convicção, foram logrados, pois se deixaram embair como todos os indivíduos enfeitiçados pela economia de mercado. O presidente socialista Mitterand — há muito transformado em monólito, isto é, mudo e despojado de idéias como uma pedra — é que dera início às restrições sociais sob a pressão das "leis sistémicas" do mercado capitalista, de forma análoga à que o monólito alemão, Helmut Schmidt, antes impulsionara a "redução de custos sociais" a que o governo de Helmut Kohl daria seguimento com tanto sucesso. Levando em conta que a memória dos indivíduos no mercado é extremamente curta, o candidato conservador, Chirac, ao lutar pela sucessão de Mitterand no outono de 1994, teve a astuciosa ideia de se proclamar como uma espécie de populista de esquerda que fazia menção de defender socialmente a França contra os excessos neoliberais dos socialistas pró-europeus.

Amparado numa "nota" de Emmanuel Todd — integrante da Fondation Saint-Simon, de cunho académico -, Chirac deixou-se arrebatar por promessas sociais. Segundo Todd, as linhas de conflito sociais não correspondem mais às políticas — e isso significa que, ao menos na propaganda, a política social e o conservadorismo podem seguir juntos quase como nos tempos de Bismarck, ao passo que a ideologia progressista e internacionalista dos social-democratas (vinculada, todavia, à economia de mercado), há-de fazer triste figura junto às camadas inferiores. O erro lógico, foi, porém, que Chirac efectivamente não contava mais, à diferença de Bismarck, com um campo de acção sociopolítico, mas antes era forçado, sob o influxo dos Estados Unidos ou da sonhada união monetária europeia e sob pressão dos mercados mundiais, a rapidamente tomar partido (mais rápido até do que para a memória curta do mercado) em favor das brutais restrições e romper assim, abertamente, com suas promessas tácticas de campanha. Se na Alemanha cada uma das promessas sociais de campanha pode ser quebrada sem maiores danos, na França tal procedimento ainda é implacavelmente punido.

O Dezembro parisiense não se tornou contudo um Maio parisiense. Um movimento que não tem sonhos não é mais um movimento. O sonho do Maio parisiense talvez tenha sido um daqueles de que já durante o seu curso somos incapazes de nos recordar; ele pode ter sido inconsequente e difuso, mas foi o sonho de uma outra vida, para além da estupidez econômica do mercado. Interpretado por uns como uma fraca utopia e por outros como uma variante democrática do "socialismo real" no Ocidente, foi apenas esse vestígio de um sonho que fez do Maio parisiense algo digno de ser historicamente recordado. Este sonho, como todo sonho, já então fugia à capacidade de compreensão do aparato dos partidos e sindicatos. Eis por que tais aparatos esperavam que, a par do colapso do socialismo estatal no Leste, malograssem também todas as idéias voltadas para uma alternativa ao sistema. Assim, eles esperavam poder extrair pragmaticamente o melhor, para além das chamadas idéias "irrealizáveis" e dogmáticas ou utópicas.

Raras vezes o anti-sonho dos burocratas ocidentais foi desenganado de maneira tão atroz. Não compreenderam eles que, na dialética capitalista, somente a existência do sonho transformador de um modo de vida e de produção fundamentalmente diverso é que constitui de forma indireta seu próprio direito à existência — seja como acólitos hesitantes e refreadores de um fim anticapitalista e da revolução social, ou (via de regra) como técnicos sociais burgueses, ou, caso necessário, talvez, como acólitos da repressão. Entre estes pólos reside o campo de possibilidades sindicais, inclusive no sentido de reformas sociais e até mesmo da simples defesa contra a "redução de custos sociais". Desde que restam somente os "realistas", devotos à economia de mercado, o pólo da crítica radical desapareceu. Com isso, porém, todo o campo de possibilidades sindicais caiu por terra, pois não há uma capacidade de ação unidimensional e dotada de um pólo exclusivo.

Se os sindicatos não representam mais uma consciência que, apesar da forma de circulação capitalista introjetada, contém um momento de transcendência ao sistema, então seu próprio direito à existência é totalmente infundado. Na mesma medida, como sua legitimação de idéias é congruente com o sistema dominante, seu campo de ação tende a zero. A superação (embora meramente parcial) da concorrência entre os assalariados, da maneira como a expõem os sindicatos, é inviável sem um momento de crítica radical do sistema e, portanto, de opção — mesmo que não explicitada — pela superação prática do sistema como garantia última. Ao inexistir sequer a mais vaga idéia dessa opção, os sindicatos vêem-se absolutamente extorquidos pelas "leis do mercado", e assim não podem mais evidenciar vantagens dignas de menção para seus membros. Ao mesmo tempo, eles se tornam supérfluos mesmo, como pára-choques do capitalismo contra a escalada dos movimentos sociais. Dessa maneira, impõe-se de forma lógica a concorrência individual desenfreada entre os proprietários da mercadoria "força de trabalho". O saldo só pode ser a progressiva autodissolução dos sindicatos, como há muito já sugere a constante redução de seus membros. Como instância social da sociedade capitalista resta ainda única e exclusiva- mente, com excepção das instituições de caridade, como a Bahnhofsmission(7)  e o Exército da Salvação, a administração estatal dos pobres e trabalhadores.

A soturna ausência de sonhos da sociedade ocidental, após o fim da atual crítica (movida pelos velhos marxistas) ao capitalismo, conduz também ao colapso dos sindicatos. Seus membros, por si sós despidos de sonhos, esqueceram que sua existência só é possível como administradores de um antigo sonho de emancipação social há muito sepultado. Esqueceram-se de que mesmo o reformismo mais superficial no interior do sistema capitalista carece sempre de uma legitimação que não se pode deduzir dos próprios critérios sistémicos e necessita de um momento de dissenso. A perda de toda idéia de transcendência conduz o reformismo sindical a uma desesperada defensiva histórica. Em vez de poder atuar de forma estrategicamente mais aberta, livre do lastro ideológico, os sindicatos, cuja legitimação tornou-se indefensável, são vítimas da paralisia estratégica. E em vez de poder agir de maneira pragmaticamente mais segura, eles são inescrupulosamente abatidos por seus "parceiros sociais", que farejam a vantagem.

Por certo, essa situação não pode ser retraduzida para as antigas categorias da luta de classes, segundo as quais a "classe capitalista" e "seu Estado" encontrar-se-iam em pleno avanço estratégico. A vantagem que as cúpulas das empresas e as associações de empresários auferem do desastre estratégico dos sindicatos limita-se ao restrito cálculo econômico-empresarial e desconsidera qualquer visão do desenvolvimento da sociedade como um todo. Embora faça parte da natureza do capital, como forma de reprodução social, representar originalmente apenas a soma de acções de interesse restrita aos particulares — acções estas que produzem uma resultante cega e sem sujeito -, o interesse empresarial pelo futuro da sociedade, como um todo, jamais foi tão reduzido como hoje. A defesa franca e encarniçada da vantagem historicamente imprevista e as "quedas-de-braço" a que nesse ínterim todos se submetem no dia- a-dia têm um quê de impulso suicida, já que carecem de reflexão sobre as condições futuras de valorização do próprio capital.

Isto se torna ainda mais nítido quando consideramos o lado estatal (seja qual for a vertente partidária). A redução dos custos sociais obedece aos cegos desígnios dos índices de crescimento negativos, do desemprego ascendente, da receita estatal decrescente e da dívida galopante do Estado, sem que se suponha uma instância reguladora diversa da malfadada "mão invisível". Em outras palavras: a redução dos custos sociais, as quedas-de-braço sociais impostas "de cima", o achatamento dos salários, etc., não resultam de um "grande plano" do capital ou do Estado. Não há nenhuma vontade politicamente estratégica e de longo alcance que se possa reconhecer por trás das medidas anti-sociais, seja na França ou em qualquer outro país. O próprio consenso ideológico e neoliberal das elites é resultado apenas de um reflexo pavloviano aos sinais de um mercado ensandecido que se autoprocessa.

Justamente por isso, entretanto, os protestos caem no vazio, pois os próprios manifestantes reconheceram a actividade insensata da economia de mercado total como a "única alternativa", e há muito capitularam incondicionalmente às leis do sistema. Se não lhes opõem mais uma simples vontade social estratégica, da qual se poderia arrancar algo com uma contra- estratégia imanente ao sistema, mas a pura execução sem estratégia da própria legislação sistémica, então não lhes cabe mais o direito de se queixar. A antiga luta de classes em torno de salários, condições de trabalho, reformas sociais, etc., pressupunha não apenas o sistema de produção de mercadorias, mas também sua capacidade social objectiva de reprodução. Mesmo a ameaça implícita da alternativa ao sistema, calcada no socialismo de Estado, estava longe de transcender as categorias da moderna produção de mercadorias. Agora se torna cada vez mais claro que o fim do sonho representado pelo socialismo de Estado caminha de mãos dadas com o fim da capacidade de reprodução social de todos os sistemas produtores de mercadorias, inclusive em sua variante ocidental.

O protesto sindical torna-se assim duplamente indigno de fé. Ele já é incapaz de utilizar o sonho do socialismo de Estado como um catalisador implícito, ao mesmo tempo que não cogita seriamente sequer em esboço — seja nos aparatos, seja na consciência das massas — de uma alternativa ao sistema — na França, não se deseja sequer recordar o rastro luminoso deixado pelos situacionistas. No entanto, os sindicatos vêem-se na contingência de reagir à crescente (e inconfessa) incapacidade de reprodução do sistema. Eles têm, portanto, de mover um tipo de luta de classes, mas paradoxalmente sem referência à luta de classes. Têm de consentir, sem reservas, às leis do sistema e ao mesmo tempo exigir medidas contra as leis do sistema (que então, é claro, não devem receber esse nome). Se o sonho de uma vida e produção diversas, não mais pautadas pela economia de mercado, praticamente não existe e se encontra muito mais longe do que em 68, os limites objectivos e absolutos do sistema produtor de mercadorias, por seu lado, tornaram-se bem mais próximos do que em 68. Antes havia um pequeno sonho, enquanto o campo de aço imanente ao sistema era grande; agora não seria preciso um grande sonho para se poder sobreviver de forma razoavelmente condigna. Cartas ruins para os realistas.

O Dezembro parisiense, para voltarmos ao assunto, mostrou, de forma exemplar, a desolada situação de conflito dos sindicatos e do movimento de protesto social em pelo menos três pontos. Primeiro, o movimento não se ergueu desde o início com suas próprias exigências positivas. Talvez, pela primeira vez na história dos movimentos sociais modernos, as razões a impulsionarem os atos reduziram-se ao lastimável desejo de que, se Deus quisesse, tudo continuaria de algum modo como antes. Nesse sentido, o próprio limite de evolução do sistema capitalista torna-se evidente: nos últimos duzentos anos, cada surto de crescimento qualitativo desencadeou tanto exigências políticas e sociais imanentes ao programa quanto momentos utópicos e transcendentes da parte do movimento social "progressista"; a defesa aberta do status quo, por sua vez, estigmatiza hoje o último protesto social dos sindicatos como um impulso literalmente conservador ou talvez até mesmo reacionário. Nada poderia deixar mais claro que os sindicatos são uma força social desprovida de futuro em sua forma tradicional, já que esse mesmo futuro não pode mais ser formulado.

Se desse modo os sindicatos aparecem de súbito como uma retaguarda social conservadora e meramente passiva, não é de admirar que, inversamente, a administração do capital e o governo assumam pela mesma razão a pose de progressistas. Quase no estilo situacionista, eles "desencaminharam" o conceito de reforma dos sindicatos -"desencaminhamento" era a expressão empregada pelos situacionistas para caracterizar uma refinada recodificação de conceitos, padrões e comportamentos dominantes. Agora, por sua vez, o neoliberalismo/neoconservadorismo dominante recodifica de modo refinado o conceito de reforma e transforma uma súmula do progresso social num termo irónico da destruição social. Os sindicatos perderam sua parcela no poder de definição sobre o rumo sociopolítico. Eles agora têm de ouvir que são um obstáculo às "reformas necessárias" ou mesmo "incapazes de reforma". De nada serve querer pleitear a codificação original do conceito de "reforma" e assinalar, por exemplo, que seu significado não passa hoje de um descarado retorno ao pré- capitalismo. Essa nova conotação do conceito resulta das formas objetivadas de evolução da própria economia de mercado, que como tal não foi sequer "em sonho" posta em dúvida pelos sindicatos.

Em segundo lugar, o conceito de solidariedade, mais uma vez aventado, desqualifica automaticamente a si próprio quando é instrumentalizado para o apego mesquinho às gratificações sociais da economia de mercado — gratificações, de resto, objetivamente evanescentes. De fato, nas atuais condições, a exigência de que tudo permaneça como está encerra, de ante- mão, a surda falta de solidariedade com todos os que há muito já se acham "de fora" — seja no antigo Terceiro Mundo, na periferia europeia ou no próprio país. Certamente, as exigências sindicais sempre foram, conforme sua própria natureza, uma expressão de interesses particulares, e também sempre puderam adoptar um carácter puramente defensivo. Mas no passado da história de modernização, tomada ainda como um processo ascendente, a própria luta pelo interesse particular sob o objectivo parcial mais restrito era banhada na luz de uma ideia universal e abrangente de emancipação social, que ao menos, mediata e indiretamente, produzia um contexto de movimento social, para além do ensejo imediato, e possibilitava uma "solidarização" irrestrita. Justamente por isso pôde uma exigência em si mesma, de puro carácter defensivo, erguer-se num contexto estratégico historicamente ofensivo.

No entanto, a par do reconhecimento incondicional da economia de mercado, desapareceu por completo o momento estratégico da ação sindical, e as batalhas defensivas não podem mais ser consideradas uma tática num contexto mais amplo de emancipação social. Dessa forma, a exclusão daqueles que não se acham incluídos nas exigências defensivas é absoluta. A solidariedade vigora então somente para aqueles que ainda não se encontram "fora". Nesse sentido, os ferroviários e funcionários públicos em greve no Dezembro parisiense não combateram, na verdade, em nome de todos, mas somente em nome da parcela de assalariados franceses (momentaneamente ainda reproduzível pela economia de mercado) que resiste a ser lançada na massa dos já excluídos, para os quais não há mais solidariedade alguma. Isso ficou claro até mesmo em termos institucionais, quando Juppé convocou a 21 de dezembro uma "reunião terapêutica da cúpula social" no Hotel Matignon, sede do governo: "Quase ignoradas pela opinião pública [...] as associações dos cidadãos destituídos de direitos (sem-teto, desempregados e demais excluídos sociais), que dizem representar 5 milhões de pessoas, pleitearam, em vão um lugar à mesa de negociações" (Neue Zürcher Zeitung, 22/12/95).

Mesmo que uma parte dessas organizações ou associações represente meros interesses caritativos e ideologias duvidosas (que de resto não podem ser mais duvidosas do que as ideologias de adaptação à economia de mercado), sua simples existência já é uma prova da incapacidade dos partidos e sindicatos de reagir à miséria social dos excluídos, senão com expressões moralistas e descompromissadas. A falta de crítica do sistema revela-se idêntica à incapacidade de representar uma crescente massa de pessoas socialmente "excluídas". Ainda que no Dezembro parisiense tenha ocorrido uma ebulição dos sentimentos sociais, essa "solidarização" conteve uma grande medida de hipocrisia social. A restrição corporativa dos funcionários públicos foi contornada em favor de uma metacorporação, de um cartel dos que ainda detinham emprego e direitos: em suma, a pseudo-solidariedade do apartheid social. Somente uma solidariedade ilimitada, que atue sob o lema "Todos ou ninguém", merece este nome. Se os sindicatos constituem pouco mais do que um bando organizado, que reserva a si próprio o acesso aos botes salva-vidas, sem consideração para com os fracos e infortunados, a "solidariedade" converte-se numa perversa virtude secundária que encerra seu próprio contrário.

Em terceiro lugar, o Dezembro parisiense revelou sua nulidade histórica pelo fato de achar-se despido de toda expressão intelectual, de toda teoria. Por ocasião do 18ºCongresso do sindicato Force Ouvrière, que ao lado da famosa CGT (mais próxima ao PCF) contribuíra de maneira decisiva na luta de dezembro, o secretário-geral, Marc Blondel, admitiu, dois meses depois da greve, que "não reinou a profusão de idéias" (Neue ZurcherZeitung, 02/03/96). Isso é lógico: quando não há mais o sonho de um modo de vida e de produção diverso, ou seja, quando não há mais crítica do sistema, quais idéias econômicas e sociais ainda haveria então que já não tivessem sido repisadas milhares de vezes, que não fossem ridiculamente indignas de fé? E isso, sobretudo, quando o próprio adversário não se pauta mais por nenhuma idéia (isto é, nenhuma pretensão consciente de "forma" e regulação), por mais que se queira dar o nome de "idéia " à propaganda neoliberal em favor da aplicação incondicional das pseudoleis "naturais" e impessoais do mercado.

Isso obviamente não é culpa apenas dos sindicatos. Eles não precisam sequer se opor a uma nova teoria crítica do sistema, pois semelhante teoria não existe no espaço público. O que desde fins dos anos 70 era previsível e após a ruptura de época representada por 1989 tornou-se patente, revelou-se pela primeira vez em toda sua miséria no Dezembro parisiense, com base numa situação concreta de conflito: em substituição ao desbotado marxismo dos movimentos trabalhistas, em suas diversas variantes, não se apresentou sequer a sombra de uma nova teoria crítica da sociedade no meio dos intelectuais de ponta ou da juventude académica. O marxismo não foi transformado de acordo com o desenvolvimento da sociedade mundial, mas somente soterrado. No lugar de uma forma obsoleta da teoria crítica, surgiu a total ausência de teoria. Ora, para a aceitação do mercado não é preciso uma teoria crítica, nem sequer uma teoria em geral. Em vez disso, as chamadas ciências sociais e humanas sucumbiram a uma espécie de palavrório sem sentido. A crítica da economia política, tanto na França quanto na Alemanha e demais países, desapareceu de maneira tão consumada das cabeças e do discurso social como se jamais tivesse existido.

À diferença do Maio de 68, não se ergueu nenhum impulso de ideias, de críticas do sistema por parte dos estudantes franceses. Paralelamente às disputas em torno do serviço público no mês de novembro de 1995, houve, porém, uma paralisação nacional dos estudantes por melhores condições de ensino: "Em mais de trinta universidades estão suspensas as atividades letivas" (Frankfurter Rundschau, 29/11/95). Essa greve de estudantes, contudo, não teve a qualidade de um movimento estudantil estribado em idéias, embora não tenha sido tão inconsequente e privada de teoria quanto a greve do funcionalismo público. Como é natural, nada interessa menos a jovens que não querem mais do que melhores oportunidades na luta da concorrência por um emprego estúpido no mercado de trabalho do que as idéias de crítica social.

O aspecto mais perfeito foi, talvez, o desmascaramento de antigos intelectuais de esquerda, dignos de posição e renome. Os falsos arautos do capitalismo da linhagem de Glucksmann & Co. fitaram de maneira tão pasma e estarrecida o inesperado conflito social, refratário a todo sistema, quanto os protagonistas da pós-modernidade, com suas conversas fiadas e discursos superficiais nos meios de comunicação. Somente após uma embaraçosa pausa comercial, alguns ilustres sociólogos de velha cátedra tomaram a palavra em dois manifestos contrários, arrebanhados em torno de dois antigos opositores, Alain Touraine e Pierre Bourdieu. Mas que decadência em face dos debates de há vinte ou trinta anos, promovidos ainda sob o signo do marxismo! Não que os conteúdos de então pudessem ainda hoje mostrar-se promissores, mas a perda de todo nível intelectual nas declarações do Dezembro parisiense torna manifesto que os antigos pensadores de ponta agora só fazem uso da palavra de forma corriqueira, e seu pensamento é incapaz de dar formulação crítica às contradições reais da sociedade em crise no final do século xx.

O primeiro e desenxabido apelo foi formulado no círculo da revista Esprit, de tendência católica esquerdizante, e levava a assinatura de Touraine, que é o spiritus rector dessa intervenção. O conteúdo reduz-se a uma simples anuência às "reformas" anti-sociais do governo de Juppé, cuja "necessidade" é ressaltada. Assim, pela primeira vez na França, os cientistas de ponta, tidos (num sentido amplo) como "intelectuais de esquerda", declararam-se abertamente contra uma ação social de massas e postaram-se ao lado de um governo conservador — uma fruta podre do "realismo" que há muito era aguardada e que até agora, à falta de grandes combates sociais, ainda não tivera oportunidade de revelar seu amadurecimento (a propósito, vem a calhar que o falastrão ecológico franco-alemão, Cohn-Bendit, tenha igualmente defendido em jornais franceses, quanto ao essencial, a "reforma" de Juppé).

A posição de Touraine tem ao mesmo tempo uma queda inequívoca pelo nacionalismo, na medida em que se mostra preocupada com a "capacidade de concorrência da França" no mercado mundial, e teme que o "capitalismo social", especificamente francês, sobretudo o setor público, seja incapaz de adaptar-se ao processo de globalização. O vocábulo "adaptação", portanto, difundiu-se também na França, no seio do antigo discurso crítico. Em nome da (pretensa) capacidade nacional de concorrência nos mercados globalizados, caberia sacrificar as gratificações sociais, que de resto já há tempos tornam-se cada vez mais miseráveis. Eis como se deu a inversão ideológica na consciência de muitos intelectuais de esquerda, que, afoitos, tomaram o rumo da economia de mercado. Não é a "capacidade de concorrência" que deve servir à capacidade de reprodução social, mas justamente o contrário: a reprodução social só deve valer na medida em que servir à capacidade de concorrência.

Pessoas como Touraine já são incapazes de se perguntar qual é, afinal de contas, o sentido do sistema de mercado e concorrência se não mais renderem suas gratificações para as massas. Se as massas eram antes o deus dessas esquerdas, hoje estas se confessam com pose de inocentes ao deus da "valorização do valor", esse monstro da modernidade que, como um absurdo fim em si mesmo, se tornou a religião de Estado da democracia. O único fato que Touraine & Co. censuram no curso de adaptação do governo à economia de mercado é a chamada "insensibilidade" da propaganda de Juppé para impingir suas medidas às massas francesas. Estes intelectuais, convertidos em "consultores" sociológicos de uma política restritiva, começam, pois, a partilhar a ilusão económica de que excremento de cachorro, acondicionado numa embalagem requintada, pode ser vendido como confeito. Ao mesmo tempo, demonstram, com isso, seu atual pendor para serem "pesquisadores da aceitação", em tudo diversos de verdadeiros teóricos da sociedade. Eis por que tal apelo ganhou também o nome de "lista dos especialistas".

Por certo, o contramanifesto do grupo que cerca Bourdieu não possui melhor aspecto. Este apelo pôs-se sem reservas (ou seja, sem críticas) ao lado dos grevistas. A antiga devoção às massas foi novamente celebrada, embora sem uma idéia transcendente. De fato, a economia de mercado é em última instância tão iniludível para os sociólogos em torno de Bourdieu quanto para os que rodeiam Touraine. Ora, com isso, o apelo de solidariedade lançado por Bourdieu viu-se forçado a revelar implicitamente sua face avessa à "solidarização". Se tal aspecto não transparecia quanto aos incluídos na solidariedade, em referência aos excluídos, em compensação, vinha à luz de forma tanto mais virulenta. "Devemos nos adequar a Hong-Kong?", indagava-se Bourdieu mais demagógica que teoricamente. A alusão crítica ao trabalho infantil em Hong-Kong e outras nações só é justificada, entretanto, se puder ser associada a uma crítica radical do sistema da economia de mercado; sem essa correlação, torna-se um argumento hipócrita da concorrência de países de capital forte contra países de capital fraco.

O apelo "jacobino" de Bourdieu é efetivamente ainda mais nacionalista que o "pragmático" de Touraine. Ele apela principalmente à tradição nacional da Revolução Francesa, interpretada no sentido da "igualdade social" — um tema batido e cediço. Decerto, o antigo socialismo era delimitado também pela economia e Estado nacionais, à semelhança dos chamados movimentos de libertação antiimperialistas. No entanto, o velho nacionalismo de esquerda estava ligado à idéia (com certeza ainda historicamente burguesa em sua forma-mercadoria) de uma alternativa sócio-econômica ao sistema. Sem dúvida, foi-se o tempo desse tipo de crítica (socialista e estatal) do sistema. Se não é desenvolvida, porém, uma crítica nova, diversa e abrangente do sistema, o que resta então da crítica social de esquerda é apenas uma versão qualquer do nacionalismo social, que, por sua vez, integrará os argumentos dos partidos de direita e seus caudatários.

A evocação do apelo de Bourdieu às "tradições nacionais" nos remete fatalmente à marcha ideológica no Leste Europeu e na Rússia, onde não restou da antiga ideologia socialista de Estado e seu legado político, nada mais do que um nacionalismo primitivo e ordinário. Isso em nada se altera pelo fato de o sociólogo Edgar Morin, por exemplo, também ele um dos membros da velha guarda dos intelectuais franceses de esquerda, esforçar-se por conferir ao nacionalismo social francês uma dignidade mais elevada do que nos demais países, já que na França o nacionalismo, como tradição revolucionária, seria ao mesmo tempo um universalismo moderno e uma "identidade republicana". Tudo isso é apenas fumaça para os olhos. Em semelhante raciocínio, trata-se ideologicamente da eterna invocação esquerdista de ideais burgueses contra a realidade burguesa; hoje, porém, sob o signo da irrefreável globalização capitalista, por meio de cujo processo vacilam os fundamentos da economia nacional, trata-se do suicídio ideológico da esquerda.

Paradoxalmente, Bourdieu também clamou numa entrevista pela "necessidade vital" de uma nova "Internacional de intelectuais críticos e movimentos sociais". Isto parece promissor, mas, quando não se diz palavra sobre uma nova crítica radical da economia de mercado, tal clamor, infelizmente, não é digno de nossa fé. Uma "Internacional " à sombra do mercado aceito e sobre a base das instituições econômicas e políticas da nação já se tornou impossível; e como poderia uma crítica social debilitada e privada de conceitos, que se aferra a "tradições nacionais", adquirir uma perspectiva e uma força de radiação transnacionais? Uma Internacional de nacionalistas sociais é uma contradição em termos.

Se o nacionalismo da marca "Touraine" é indireto, por esgrimir uma fictícia capacidade de concorrência nacional (na verdade puramente empresarial) nas estruturas globalizadas, sem tomar em consideração os perdedores, o nacionalismo da marca "Bourdieu" é francamente direto, já que, em nome do status quo social, clama pela tanto mais fictícia autonomia econômica nacional contra a globalização. Estes intelectuais não têm mais reflexões críticas a oferecer, mas somente reflexos afirmativos e pseudoteóricos à economia de mercado total. Seu pensamento simplesmente redobra a paralisia dos sindicatos na esfera das idéias. Se o Maio parisiense foi o último combate do antigo radicalismo do movimento trabalhista, o Dezembro parisiense foi o derradeiro embate de uma retaguarda histórica que já não possui sequer um emblema próprio. Teoria e práxis do movimento social atingiram o fundo do poço.

A versão alemã da paralisia social: o Acordo Trabalhista

À diferença do que ocorre em terras francesas, na Alemanha os sindicatos não podem mais ser criticados em termos de um movimento social, já que há muito perderam tal carácter. O pecado capital do patriotismo social do antigo movimento trabalhista no Ocidente, por ocasião da I Grande Guerra, foi, na verdade, generalizado. E tal designação, obviamente, só pode ser tomada hoje de maneira irónica, pois a capitulação ante a guerra não resultou de uma "traição" subjetiva; antes, colocou pela primeira vez sob 'a luz da história o carácter imanentemente burguês e pautado pela mercadoria "luta de classes". Mas no interior dessa reduzida constelação, que não se pode mais interpretar como uma crítica sensata do sistema, os sindicatos preservaram nos países da Europa ocidental uma mobilização social que a crítica do sistema, calcada no antigo socialismo, então cada dia mais descorada, deixava cintilar de raro em raro (e pela última vez no Maio parisiense) como uma incômoda recordação. Na Alemanha, em contrapartida, os sindicatos, com a capitulação não somente pacífica, mas também embaraçosamente insinuante em face do nacional-socialismo, foram, em sentido estrito, historicamente anulados como movimento social.

Isso não se modificou fundamentalmente após 1945. Alguns sindicalistas, que retomavam do exílio e dos campos de concentração, buscaram levar adiante o velho carácter de mobilização dos sindicatos, a tradição das lutas sociais e o objectivo de uma transformação social. Porém, a maioria dos pequenos grupos, que passara pela experiência das frentes de trabalho do nacional-socialismo, não sabia mais o que fazer com essa tradição. Os conflitos sociais da Alemanha Ocidental jamais passaram de uma inofensiva luta com a própria sombra. Nesse sentido, a Alemanha Ocidental foi desde o início mais "moderna" do que a Europa Ocidental- uma modernidade progressiva da integração pela mercadoria e pelo Estado social, herdada do nacional-socialismo (o que traía seu carácter destrutivo e essencialmente bárbaro). Enquanto na França, Itália, Espanha e também Inglaterra, persistia o antigo meio social das classes capitalistas e prolongavam-se os embates na retaguarda da velha luta de classes, na Alemanha, o grau de individualização abstrata já atingia o nível norte-americano (ainda que com ênfase diversa), e isso justamente na esteira da curta, mas profundamente incisiva, era nacional-socialista. Embora os sindicatos na Alemanha Ocidental não tenham cortado de modo brusco as relações com o meio social do antigo movimento trabalhista, permaneceram apenas como uma roupagem formal que, na consciência das massas, não significava mais do que um seguro de automóvel ou um fundo de pensão.

O fato de que tal situação tenha sido impingida como "parceria social" bem-sucedida e mesmo como "modelo alemão" tem suas raízes única e exclusivamente na ascensão da Alemanha Ocidental (ao lado do Japão) à dignidade de grande vitoriosa do mercado mundial e de campeã das exportações. Somente por intermédio dos enormes ganhos nos mercados mundiais, desde o "milagre econômico", foi possível fazer com que os sindicatos ocidentais, já em estado de rigidez cadavérica na condição de movimento social, funcionassem com sucesso e quase sem atritos como instância sociopolítica e máquina reguladora de salários. Mesmo um cego teria visto que tais sucessos repousavam não sobre a força social de combate, mas simplesmente sobre os privilégios nacionais de uma economia triunfante, e que, portanto, não podiam ser universalizados nem servir de "modelo". Tanto maior se tornaria o desamparo dos sindicatos quando, a partir da década de 80, o desemprego estrutural em massa assumiu de ciclo para ciclo proporções cada vez maiores e as gratificações sociais foram dilapidadas pedra por pedra. Hoje, as máquinas de demolição já estão a postos diante das ruínas do outrora tão imponente Estado social alemão, e o sindicato, como instância social, derrete como um boneco de neve ao sol.

Na crise crônica e estrutural do sistema capitalista, é apenas lógico que a individualização sócio-econômica, há muito consumada na Alemanha Ocidental, espalhe-se também pela superfície institucional. Eis por que os sindicatos alemães são incapazes até mesmo daquele anêmico epílogo do último embate dos perdedores que vimos na França (e que veremos talvez com freqüência ainda maior, sob diversas capas, em toda a Europa Ocidental). Embora a constelação social na incorporada Alemanha Oriental seja diversa e lá persista paradoxalmente, sob a crosta burocrática, o meio de um contexto social como uma espécie de subcultura, tal divergência não se sedimentou até hoje de forma social ou institucional; ao contrário, os alemães orientais parecem ter pressa de recuperar, a toque de caixa, a individualização abstrata de seus vizinhos ocidentais e adaptar-se ao capitalismo desse país à força de mortificações (o fato de se derramarem lágrimas sentimentais pelo aconchego do lar perdido não afetou em nada o processo de adaptação nessa meia-década).

Seria equivocado responsabilizar, sobretudo, a direção dos sindicatos, consoante os antigos padrões da esquerda radical, pelo fato de não se vislumbrar sequer um esboço de reação. O aparato, com toda certeza, não apoiaria um movimento militante da base sindical, antes o sufocaria — na Alemanha, de maneira ainda mais inequívoca e brutal do que no Maio francês de 68. Mas, por outro lado, o aparato não pode obviamente ser mais combativo e ativista do que a sua própria base de filiados. Quem por décadas a fio lutou somente com a própria sombra é incapaz de subitamente subir ao ringue com seriedade. Os primeiros golpes não partiram de adversários institucionais, mas da própria maioria dos membros, que na Alemanha jamais se envolveria num desesperado ato de força como o Maio parisiense. Em meio à crise, o lema é mais nítido na Alemanha do que nas demais partes do mundo (com exceção talvez dos Estados Unidos): "Cada um por si e Deus contra todos".

No entanto, o restante das instituições sindicais alemãs se vê forçado, no interesse de sua própria raison d'être, a tentar algo como uma "política de crise". Como é natural, esta assume um aspecto ainda mais sórdido do que na França. Líderes sindicais como Walter Riester, vice-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, há muito já consumaram uma mudança de posição ideológica que ainda hoje seria impensável na França: "Sou cada vez mais forçado a pensar de forma empresarial — inclusive e sobretudo no interesse dos trabalhadores, diz o especialista em salários [...] acerca da crescente exigência para que sua organização, numa época de desemprego, tome decisões muitas vezes desagradáveis em prol dos filiados" (Nürnberger Nachrichten, 27/12/95). A lógica à primeira vista bastante confusa de "no interesse" dos trabalhadores toma!; "decisões desagradáveis" em prol deles próprios só pode ter por objectivo (se abstrairmos o penetrante travo paternalista) radicalizar a "política de adaptação" à economia de mercado dentro dos sindicatos. Não se deve reagir à crise com uma reformulação da crítica social, mas, ao contrário, com o recrudescimento da aceitação masoquista. É exatamente isso que Richter & Co. entendem, em último caso, por "modernização", de forma bastante análoga aos chamados modernizadores do SPD(8) agregados em torno de Schröder, governador da Baixa-Saxônia, ou de Clement, secretário das Finanças da Renânia do Norte-Vestefália.

Essa linha de sindicato foi capaz de obter uma vitória fragorosa no outono de 1995, por ocasião do congresso sindical que reuniu os maiores sindicatos de todo o mundo, quando Klaus Zwickel, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, surpreendeu os delegados com um projeto de acordo trabalhista concebido à revelia de discussões e debates. Com ele, não apenas se forneceu aos "modernizadores" e às elites institucionais ou ao governo conservador e neoliberal da Federação uma palpável flor de retórica para a propaganda da imobilidade do sindicato, mas também se consumou uma dramática guinada na política sindical como um todo, que há tempos já se via às voltas com o contexto de crise.

O ponto decisivo é o furtivo abandono e sepultamento da política de redução da jornada de trabalho. Ninguém terá pressa em reconhecê-lo oficialmente, mas o fato é este. O recente acordo ria indústria metalúrgica, com a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho semanal (conforme o caso) para 30 horas (sem compensação salarial), tampouco altera a situação. O mesmo ocorre com a chamada jornada parcial por idade, destinada tão-somente a sustentar a lenta extinção do modelo da aposentadoria antecipada, que se tornou "impagável", e que, por isso, não faz mais parte de uma estratégia comum de redução da jornada de trabalho. 'Há muito já se previa o fim dessa estratégia. Quando o Sindicato dos Metalúrgicos e o dos Tipógrafos (hoje, dos Meios de Comunicação) ergueram no final dos anos 70 a bandeira da redução da jornada de trabalho com a compensação integral de proventos contra o nascente desemprego em massa, eles o fizeram ainda como máquinas reguladoras de salários, cujo combustível era fornecido pelo ganho que a Alemanha Ocidental obtivera no mercado mundial. Nos anos 80, a transição à jornada de trabalho de 35 horas semanais com a compensação integral dos proventos não ocorreu pela mera comunhão entre capital e trabalho nas fronteiras da Alemanha Ocidental, mas em parte a expensas dos perdedores do mercado mundial, em parte com respaldo no boom (alimentado por déficits) de exportações nos Estados Unidos ao longo da época áurea da "Reaganomics". Mesmo nesse período, o desemprego em massa não foi contido, mas antes cresceu de ciclo para ciclo.

Quando a posição da Alemanha Ocidental no mercado mundial começou a ruir e a pressão social exercida pelo virulento desemprego de raiz impunha restrições cada vez maiores ao campo de ação institucional dos sindicatos, teve início nos anos 90 uma discussão bastante vaga acerca da redução da jornada de trabalho, embora sem compensação salarial (ou apenas parcial). Houve mesmo certas tentativas modelares, como a da Volkswagen (ou a do setor do aço, hoje marginalizada). Mas essa estratégia apenas teria uma perspectiva caso estivesse compromissada com a transição para formas autónomas de reprodução para além do mercado e do Estado, ou seja, caso o "tempo disponível" adicional pudesse ser desfrutado não como vago "tempo livre", mas como tempo para atividades autônomas, externas à relação dinheiro-mercadoria. Para tal estratégia dupla faltam não apenas um projeto, mas também a disposição para refletir sobre o assunto. No interior de uma reprodução abrangente da economia de mercado, contudo, o modelo de redução da jornada de trabalho, sem compensação salarial não faz sentido econômico ou social. No tocante à crise, tal modelo produz efeitos pró-cíclicos pela diminuição do poder de compra interno. Enquanto um programa crítico da transformação social poderia ser dinamizado por tal fato, a consciência aferrada ao trabalho assalariado total só pode experimentar o mesmo efeito pró-cíclico de forma negativa, como agravamento da crise. Para as massas, que se firmam tanto sobre a renda monetária do trabalho assalariado quanto sobre o consumo de mercadorias e dependem da injeção de créditos para o consumo e a casa própria, esse modelo não é aceitável ou o é apenas em parte. Somente os que possuem duas fontes de renda poderiam enxergar nele algum atrativo, em geral, para agravo das mulheres, que à força da jornada parcial de trabalho num contexto determinado pela pura economia de mercado vêem-se ainda mais restritas a "filhos, fogão e fé". Os operários da Volkswagen, por sua vez, utilizaram fartamente seu tempo conquistado no comércio ilegal, o que despertou queixas das câmaras de comércio na região de Wolfsburg. Com a absoluta ausência de alternativa ao sistema e o total apego ao mercado e ao trabalho assalariado, à idéia de redução da jornada de trabalho sem compensação salarial resta pouco mais do que um tranquilo sepultamento. O que designará então esse nome não será mais um projeto sociopolítico, mas apenas o reduzido encargo corriqueiro em condições ruins de trabalho.

É significativo que o Acordo Trabalhista, no propósito de substituir a redução da jornada de trabalho como perspectiva sociopolítica, tenha elegido, além da promessa de comedimento nas futuras negociações salariais, sobretudo a aceitação de "salários de ingresso" abaixo do piso para pessoas que há muito se acham desempregadas e a redução dos benefícios sociais. Isso representa sob muitos aspectos o rompimento de um dique. Para os desempregados, equivale a uma insolente impertinência: salário parcial em contrapartida à jornada integral de trabalho. Em vez do maior tempo disponível, que ao menos , potencialmente poderia ser utilizado para alternativas econômicas, sociais e culturais, ao trabalho assalariado e para uma crítica da economia de mercado, o "ingresso" no apartheid social e na escravidão econômica dos baixos salários, a fim de "obter licença" para se esfalfar até a última gota por objectivos imbecis ou que são uma ameaça à comunidade. Não admira que a imprensa econômica neoliberal tenha louvado esse "passo adiante" na ocasião em que o Acordo Trabalhista recebeu a bênção do chanceler Kohl:

Não se pode esperar dos sindicatos que estejam à testa do movimento por salários de ingresso mais baixos e pela redução dos benefícios sociais ou dos adicionais por horas extras. Com seu "sim " firmado no documento do Acordo, eles se mostram dispostos a aceitar tais intervenções sem greves, demonstrações de massa ou a habitual gritaria. Só por isso, a assessoria do chanceler deu uma valiosa contribuição à paz social nesse país (Handelsblatt, 25/01/96).

A crítica vinda das próprias fileiras e dos sindicatos menores deve claramente ser sufocada no famigerado estilo administrativo; em sua rígida estrutura burocrática, com funcionários do alto escalão investidos de facto nos cargos por ordens de cima, os sindicatos desconhecem um processo verdadeiramente aberto de formar a opinião. A cúpula sindical dos metalúrgicos, que cerca Zwickel e Riester, conta nesse sentido com o poderoso respaldo do já tradicional Sindicato "de direita" dos Químicos, o primeiro a se converter num cartel social de empregados de elite orientados pelo mercado global:

O presidente do Sindicato dos Químicos, Hubertus Schmoldt, advertiu para o perigo de se arruinar, à força das discussões internas, a proposta de acordo trabalhista do Sindicato dos Metalúrgicos. Em entrevista ao Handelsblatt, ele dirigiu duras críticas às declarações cépticas de círculos sindicais nos últimos dias- [...] Segundo Schmoldt, agora não seria hora dos cuidadosos, daqueles que não estão dispostos a colocar em questão os pontos de vista tradicionais dos sindicatos, como, por exemplo, o de que a redução salarial não gera empregos [!]. [...] Todos os que, na frente de discussões, erguem obstáculos que não poderão mais tarde ser desarmados sem uma perda de autoridade, arriscam reproduzir na Alemanha os episódios franceses [!]. [...] Schmoldt considera totalmente incompreensível a recusa de salários escalonados abaixo do piso por parte do Sindicato dos Bancários. Mesmo que um semelhante acordo não tenha causado uma reestruturação de vulto no setor químico, semelhante instrumento já foi utilizado, como afirma Schmoldt, que se diz feliz com cada um dos desempregados que podem assim [!] ser integrados ao mercado de trabalho (Handelsblatt, 22/12/95).

O que de fato está por trás do Acordo Trabalhista de Zwickel é posto aqui a descoberto, a saber, nada menos do que uma guinada sindical francamente absurda rumo ao neoliberalismo de mercado. Sob o ponto de vista político-econômico, trata-se da guinada do keynesianismo para o monetarismo, da política de demanda (deficit spending, fortalecimento do poder de compra das massas) para a política de oferta (redução dos custos, incentivos às exportações em detrimento do poder de compra interno). Esse é o estágio final da eliminação radical de qualquer atitude crítica ao sistema: se o antigo movimento trabalhista ainda ostentava tanto idéias tingidas pelo socialismo de Estado quanto momentos de transcendência utópica, após a II Guerra Mundial, tal postura já se reduziu nos países do Ocidente ao keynesianismo, que representava, por assim dizer, uma versão "fraca " do intervencionismo social de Estado compatível com o capitalismo ocidental. A par disso, deu-se a guinada "político-científica" de uma teoria calcada em Marx para um rasteiro positivismo à la Popper na social-democracia e nos sindicatos (de modo mais inequívoco e abrangente na Alemanha que no resto da Europa Ocidental). Agora, os alpinistas pendurados na mesma corda que Zwickel, em conjunto com os "modernizadores" do SPD, estão prestes a lançar por terra o keynesianismo e dar assim o último passo rumo à aceitação total da pura economia de mercado.

O significado disso torna-se explícito em face da disputa na França. A iniciativa de Zwickel é próxima à posição de Alain Touraine, com a diferença de que não se trata de mera declaração publicista de intelectuais, mas de uma guinada institucional. A posição de Bourdieu, ao contrário, pode ser entendida como fiel ao keynesianismo. O mesmo vale para a invocação do contexto econômico nacional, pois já Keynes tinha plena consciência de que sua teoria da regulação e intervenção estatais só era possível num contexto econômico restrito às nações, razão pela qual chegou até a advertir contra uma expansão violenta do mercado mundial. Keynesianismo, economia nacional e nacionalismo social, compõem um todo lógico. Não resta dúvida também de que o implícito keynesianismo nacionalista da corrente de Bourdieu já não constitui um keynesianismo reformista "para todos", mas tão-somente um keynesianismo em defesa do status quo e da limitação dos danos sociais para a nação, o qual não dispõe mais da perspectiva de mudança e não pode mais integrar os já excluídos.

A transição dos sindicatos para uma política neoliberal de oferta significa, no entanto, muito mais do que a mera aceitação ideológica da economia de mercado: encerra a aceitação de que toda reprodução social incapaz de se provar "regular" e economicamente rentável sob as novas condições da globalização tem simplesmente de desaparecer. Embora a expressão "acordo trabalhista " possua, sobretudo na Alemanha, fortes ecos nacionalistas (evoca quase forçosamente a "frente de trabalho" e a "comunidade popular" nacional-socialistas, da mesma forma, aliás, que o apelo francês de Touraine tem bases nacionalistas), o abandono nela contido do keynesianismo e da política de demanda anuncia implicitamente o fim do fundamento comercial do nacionalismo social contemporâneo.

O novo nacionalismo social, de base monetarista e calcado na política de oferta, não é mais, sob o signo da globalização capitalista, um verdadeiro nacionalismo, ou é antes um nacionalismo de segunda classe. Não apenas os países perdedores "externos", mas também as massas de perdedores sociais "internos", devem ser rebaixados ao nível de uma realidade salarial miserável na economia de mercado. A inflexão rumo à ideologia da exportação e redução dos custos equivale ao desejo de pôr em marcha um vagão de primeira classe, reservado à minoria dos empregados de elite, aptos à concorrência global na pura economia de mercado, e, atrelados a ele, vagões de carga com trabalhos forçados e salário de fome para os perdedores. Com insolência neoliberal à altura,. os adeptos de Zwickel apressam-se a impingir tal perspectiva aterradora como "garantia de emprego" e "integração dos desempregados no mercado de trabalho", ao passo que a simples menção de lutas sociais, mesmo que no limitado sentido keynesiano, é denunciada como o suposto fantasma dos "episódios franceses".

O que então ainda resta para os dejetos sociais do material humano não mais aproveitável pelo capitalismo nos é narrado, com o discreto charme do técnico social ultramoderno, por Klaus Lang, consultor pessoal de Zwickel, ao exercitar-se em contorções sociodiplomáticas num balanço sobre o Acordo Trabalhista:

...a programada redução da base de cálculo para o auxílio-desemprego individual foi diminuída de 5% para 3%. O projeto do governo, que previa uma redução de 5%, fora decidido muito antes da iniciativa do Acordo. Sem tal iniciativa, de onde mais partiria a pressão pública para que a coalizão governamental recuasse em seu propósito? [!] Se não é certamente um sucesso arrebatador, já é, porém, um pequeno passo (Frankfurter Rundschau, 14/02/96).

Semelhante escárnio à capacidade sindical de combate, que adota como medida de "sucesso" o grau de diminuição dos benefícios para os mais pobres, é incomum até mesmo na história social alemã. Os desempregados acabarão por dar-se conta de que as instituições de caridade ainda os amparam melhor do que os sindicatos.

Que a "integração ao mercado de trabalho" (não importa a que preço) transfigure-se em objectivo supremo, como se as pessoas fossem incapazes de desejar algo melhor, é obviamente uma especulação com a consciência das massas, que se acha hoje em petição de miséria. Certamente é também uma reação à efetiva obsolescência do keynesianismo, pois a política do deficit spending de fato malogrou, e suas gratificações jamais passaram de um bônus nacionalista de alguns poucos países da metrópole capitalista. Nesse sentido, uma posição, como a de Bourdieu, também é insustentável, já que se volta "contre la destruction d'une civilisation" mas tem em vista somente a civilização keynesiana do "capitalismo social" do pós-guerra. Tal civilização keynesiana do Estado do bem-estar social e do "serviço público" chega ao fim em todas as suas cidadelas, na França e na Alemanha, bem como na Suécia. Isso indica apenas, contudo, que as possibilidades de uma política social aceitável no interior do sistema de mercado estão inteiramente esgotadas. Mas é justamente isso que os sindicatos, com sua inesperada investida, brandindo uma política de oferta e redução de custos, não querem admitir.

A iniciativa de Zwickel excede assim o próprio desarmamento programático dos sindicatos — uma proposta que só deve ser coroada no outono de 1996, por ocasião do congresso da Liga Alemã dos Sindicatos (Deutscher Gewerkschaftsbund) em Dresden, com um keynesianismo reduzido ao mínimo do pudor, que "recusa a formulação de projetos alternativos fechados em si mesmos" (no dizer de Meyer, presidente da Liga, morto precocemente em 1994, em sua réplica ao programa de diretrizes da Liga no ano de 1981). No Acordo Trabalhista não se descobre sequer o menor vestígio de um keynesianismo pudico. Ora em diante, a Liga dos Sindicatos pode poupar-se um programa e um congresso (uma contribuição para a redução de custos?).

Questão inteiramente diversa, no entanto, é saber se terão futuro os sonhos de florescimento capitalista que os "modernizadores" nutrem por um sindicato com legitimação social drasticamente reduzida, e se o "desconto Zwickel" (na gíria sindical) permitirá efetivamente o ingresso num cartel minoritário da globalização. A bem da verdade, uma política sindical neoliberal é uma contradição em termos. Enveredar por uma linha de redução de custos baseada na política de oferta significa a definitiva abdicação dos sindicatos, ou seja, a perda de legitimidade, com o abandono de toda crítica do sistema, é confirmada agora em grande escala sob o aspecto prático. O programa suicida de Zwickel não protege sequer os empregados de elite, e, além disso, conduz a uma redução generalizada do nível social e salarial. De fato, é ilusório supor que o abandono dos pisos salariais e das condições de trabalho regulamentadas pode restringir-se a um segmento social. A aceitação de salários de ingresso abaixo do piso é o início do fim dos salários mínimos em geral.

No próprio microcosmo empresarial comprova-se em exemplos concretos que o Acordo Trabalhista repousa desde o início no masoquismo social dos empregados de elite:

Um acordo trabalhista próprio é praticado hoje pela Mercedes- Benz em conjunto com o conselho administrativo, na nova linha de montagem de Bad Cannstatt. A fábrica do futuro, orçada em 800 milhões de marcos, trabalha com a mais alta tecnologia 24 horas por dia, e, se preciso, também aos sábados. Em setembro, data do início da produção, os 900 operários mostram-se dispostos a sacrificar até mesmo a chamada pausa de Steinkühler, de 5 minutos a cada hora de trabalho. Além disso, eles se submetem a um novo sistema salarial e trabalham em grupos, segundo padrões exatos de qualidade e produtividade (Die Woche, 12/01/96).

Os vocábulos centrais dos novos empregados de elite não são "conforto" e "salário alto", mas "sacrifício" e "submissão", "alta produtividade" que beira os limites físicos e psíquicos, atividade individual ou em grupo, sem consideração para com os mais fracos. O "privilégio" do trabalhador individualizado, apto à "olimpíada" da alta produtividade em velocidade recorde, consistirá em ser inclementemente esfalfado, para aos 40 estar no ponto para a psiquiatria ou o necrotério. Os sindicatos são para tanto absolutamente supérfluos.

À parte os padrões sociais e o direito de existência dos sindicatos, a questão é se a política de oferta e a redução dos custos sociais, em geral, podem subsistir como projeto de salvação para o sistema (persignai-vos coletivamente pela redenção da economia de mercado). Uma passagem da teoria da crise de Marx, retomada por Rosa Luxemburgo, se referia ao subconsumo estrutural das massas como fator de crise do próprio capital. Principalmente desde a era fordista de um capitalismo abrangente, voltado à produção em massa altamente organizada, o poder de compra das massas é conditio sine qua non para uma bem-sucedida acumulação do capital. Se o poder de compra das massas é radicalmente pulverizado pelo desemprego em massa, pela redução dos benefícios sociais e pela retração dos serviços públicos ou dos investimentos estatais, então o que se põe em xeque não é somente a reprodução social, mas também a capacidade de existência e funcionamento econômico do próprio capitalismo. Mediante a globalização econômico-empresarial, tal problema não é superado, mas somente globalizado ele próprio: nesse plano, ele retomará sobre o capital com fúria redobrada. Eis por que, já a médio prazo, o neoliberalismo monetarista é um programa suicida do modo de produção capitalista.

Justamente, este problema compunha o cerne da teoria de Keynes e o pano de fundo para a política de demanda do deficit spending (originalmente sob o influxo da crise econômica mundial de 1929-33). A teoria keynesiana certamente padecia de insuficiências, pois não era uma teoria da crise do modo de produção capitalista, mas, sobretudo, uma mera teoria superficial, com vistas à salvação do sistema. O mesmo vale para o keynesianismo de esquerda com algumas incursões pudorosas em Marx, representado na Alemanha Ocidental pelo grupo Memorandum, de professores de esquerda, que durante muito tempo encontrou acesso na argumentação sindical. O escasso poder de compra das massas é considerado aqui, no mais belo positivismo, um fenômeno isolado ao alcance da "regulação política" e da intervenção estatal. Em última instância, apela-se para que o capital tenha compaixão para com ele próprio e reconheça o fortalecimento do poder de compra das massas como uma necessidade "política" do sistema.

Em Marx, ao contrário, o escasso poder de compra das massas não é analisado como um fenômeno de crise isolado, regulável pelo Estado ou pela política salarial, mas como uma limitação interna, estrutural e objetiva das relações capitalistas. Não se trata tampouco de um mero limite externo à "realização" da mais-valia produzida no mercado (como se lê em Rosa Luxemburgo), mas de uma produção escassa da própria mais-valia suficiente, que, por sua vez, se acha na base do fenômeno superficial de um poder de compra carente das massas. A forma-fetiche "valor", adotada positivamente tanto pela teoria econômica quanto pelo movimento trabalhista, não tem nada a ver com a quantidade material de bens produzidos, mas apenas com o volume quantitativo de trabalho abstrato nela incorporado, em relação ao respectivo padrão de rentabilidade. O capital, por meio do aumento da produtividade mediado pela concorrência, tende a produzir um número cada vez maior de produtos materiais com cada vez menos trabalho, mas seu verdadeiro objectivo é o acúmulo da quantidade de trabalho encarnada no dinheiro. Ocorre, portanto, que, com uma produtividade "muito elevada" (da perspectiva da valorização), o capital já acumulado não pode mais ser reinvestido de modo suficientemente rentável ("superacumulação"). A queda do poder de compra das massas e das receitas estatais indica assim apenas a queda da produção real do valor e em si mesma não está de modo algum ao alcance de uma regulação "política " e externa; demarca, antes, as fronteiras do próprio sistema. Superacumulação e subconsumo são duas faces da mesma moeda.

A teoria da crise de superacumulação já fora exposta com acerto no interior do marxismo dos movimentos trabalhistas (a exemplo de Paul Mattick) contra os keynesianos de esquerda e sua argumentação isolada e simplificada do subconsumo. Condicionado pela época, Mattick, sem dúvida, deixou em aberto a questão de um limite histórico absoluto da acumulação, da mesma maneira que formulou (também condicionado pela época) a questão da superação do sistema ainda nos antigos termos sociológicos da luta de classes. No passado, de fato, o limite do sistema que se manifestava nas crises podia sempre ser estendido, na medida em que novos campos de valorização do trabalho abstrato eram abertos em níveis sempre superiores — o que ocorreu pela última vez, como se sabe, no boom do milagre econômico após a II Guerra Mundial. A ilusão keynesiana pôde sustentar-se não porque o keynesianismo funcionasse, mas porque a acumulação de capital rendia por si mesma uma produção real de valor suficiente para poder cevar o deficit spending(9)Desde que, com o final do fordismo e com a revolução microeletrônica, a crise da produção real do valor retomou em nova escala e a superacumulação do capital deixou de ser meramente cíclica para tomar-se estrutural, evidenciou-se, ao mesmo tempo, a insustentabilidade de um programa de socorro externo e "político" do poder de compra social. É justamente aqui que reside o fracasso do keynesianismo nos países da metrópole capitalista.

O retorno à política de oferta, porém, só faz acelerar e agravar a crise. Ao que tudo indica, foram atingidas as fronteiras históricas do modo de produção capitalista — fronteiras estas que não podem mais ser estendidas. Por temor à morte, os sindicatos à la Zwickel preferiram abertamente cometer suicídio ao lado do capitalismo a oferecer resistência social e desenvolver uma alternativa inovadora ao sistema. A política da "adaptação radical" é ingênua, porque o que está em jogo, na verdade, é a adaptação ao colapso do sistema de trabalho assalariado. Este colapso será confirmado mesmo se as instituições sociais não o quiserem admitir. Como é evidente, só as forças da barbárie, do terror e da loucura serão capazes de executar sobre si mesmas, no decorrer da crise, o veredicto do sistema.

Pode haver uma práxis de crítica radical da sociedade para além da antiga luta de classes?

O perigo deste rumo talvez seja visto por parte dos sindicatos da mesma maneira que o é pelo resto da esquerda desmoralizada. Mas tal perigo é retratado hoje somente nas categorias da antiga crítica do sistema, que se tornou obsoleta, cuja versão "forte" foi o socialismo estatal voltado para a modernização de recuperação, e a versão "fraca", o keynesianismo ocidental de esquerda com certas plumas marxistas. Estamos às voltas com a espantosa incapacidade da antiga crítica do sistema de transcender a si mesma e de reconhecer sua própria parcela de participação no mundo burguês da modernidade em colapso. A percepção de que o "burguês" se esconde na própria forma-mercadoria totalizada e não pode ser restrito a uma classe social é recusada enfaticamente como antes. Seja nos sindicatos ou no espectro do que restou das esquerdas políticas, a crítica cada vez mais ténue do neoliberalismo e da política de adaptação a ele, praticada pelos sindicatos, pela social-democracia e pelo Partido Verde, é formulada com inconsolável perplexidade conceitual a partir da premissa da antiga "luta de classes", cujas implicações históricas permanecem no fundo nebulosas.

A célebre diferenciação interna do Partido Verde em "realos" (modernizadores capitalistas) e "fundis" (marxistas da ida- de da pedra, consagrados à antiga luta de classes) repete-se em várias constelações também nos sindicatos e partidos social- democratas e (ex-)comunistas — e não apenas na Alemanha, mas também na França, Itália e demais países. No Sindicato dos Metalúrgicos existe ainda a ala tradicionalista, com reminiscências do antigo movimento trabalhista (e voltada contra a excessiva "conciliação de classes"), a qual, porém, desde a época do presidente Steinkühler, forçado à renúncia por motivos de corrupção, está esgotada e fadada à insignificância. O mesmo se passa com a chamada facção Stamokap ("capitalismo monopolista de Estado") do SPD (sobretudo entre jovens socialistas). No PDS(10), é a pequena Plataforma Comunista que busca conter o curso de adaptação capitalista da cúpula partidária com lemas embolorados da Alemanha Oriental ( existe ainda, se me permitem este conceito da história dos partidos trabalhistas, uma espécie de grupo "centrista" que se designa Fórum Marxista). Na França, na Itália, na Espanha, em Portugal, etc., os produtos da cisão do velho marxismo e da antiga luta de classes — consoante ao desenvolvimento da Europa Ocidental na história do pós-guerra — foram maiores do que na Alemanha, embora, da mesma forma, no papel de uma retaguarda tradicionalista. O próprio PT, partido de esquerda brasileiro, foi vítima de um correspondente fracionamento, e também nele o antigo marxismo levou a pior.

Não admira, portanto, que o Dezembro parisiense não tenha sido analisado criticamente pela esquerda naufragante da antiga luta de classes, sendo as boas-novas utilizadas como mera tábua de salvação. Esperava-se a continuação do mesmo e do imutável nos acontecimentos franceses. Esse desabrochar outonal da luta de classes teria que ser visto como prova de uma suposta potência inovadora ou ao menos imaginado como uma vetusta lembrança da antiga força de ação, para que pudesse safar-se da confirmação de uma ruptura de época e da inevitável mudança de paradigma da crítica radical à sociedade. Ao tempo do Dezembro parisiense, nada melhor acorreu à mente dos velhos mandarins do radicalismo de esquerda, devotados à luta de classes, senão a cristalina auto-afirmação:

Nestas jornadas de dezembro, em Paris, fica claro que com os ideólogos do capital, os quais anunciaram solenemente o fim da luta de classes, ocorre o mesmo que com a Igreja Católica e sua tentativa de abolir o impulso sexual. Em que pese a doutrina social religiosa, em que pese uma juventude outrora exaltada no Maio em Paris, a qual era elitista, apesar da boa vontade para com a justiça e a igualdade, em que pesem todos os revisionistas: a contradição entre capital e trabalho, entre produção social e apropriação privada, sempre vem à tona.(11)

Certo, chega a ser comovente. Todavia, aqui se confunde algo que na época do movimento trabalhista era inevitável e até progressista confundir, mas que hoje se tornou repreensível. Refiro-me à relação da luta de classes — que de maneira indubitável "sempre vem à tona", e cujo crescente enfraquecimento, por ocasião das crescentes crises sociais, carece, de forma igualmente indubitável, de explicação — com o problema da alternativa ao sistema. Para o velho marxismo, seus mandarins e sequazes, a "luta de classes" era e é o conceito central de crítica da sociedade e transcendência ao sistema. Eis por que esses infatigáveis vêem rebrilhar em toda a crítica da luta de classes a opção da doutrina social católica, a conciliação de classes pequeno-burguesa, a renúncia à crítica radical da sociedade, etc. O fato e a razão de todo esse aparato conceitual soar hoje tão velho quanto o diabo não são postos em dúvida, embora este problema não seja obviamente de pura natureza conjuntural e condicionado pelos tempos.

Para o velho e obstinado radicalismo de esquerda, é simplesmente incompreensível que a luta de classes, segundo seu conceito, seja obrigada a permanecer em sua capa formal burguesa, e que, justamente por isso, possa haver uma crítica emancipatória do próprio paradigma da luta de classes, crítica que não é de forma alguma burguesa e "conciliatória". Trata-se aqui de um problema que, à diferença de antes, não pode mais ser ignorado no atual nível de desenvolvimento capitalista e que "sempre vem à tona" da mesma maneira que a própria luta de classes, embora simultaneamente lhe empane cada vez mais o brilho. O capitalismo, como se sabe — por meio do feedback cibernético do "valor" ou de sua forma de manifestação, o dinheiro, como "valorização do valor" -, é uma sociedade da forma-mercadoria totalizada. O antigo marxismo e o velho radicalismo de esquerda concentraram-se inteiramente no antagonismo dos sujeitos funcionais dentro desta forma-fetiche. A "contradição" entre "produção social e apropriação privada" foi retratada, portanto, como vimos em Gremliza, ante o pano de fundo do antagonismo entre "capital e trabalho" no sentido de classes sociais: a "produção social" aparecia análoga à "classe trabalhadora", e a "apropriação privada", à "classe capitalista".

Mas, com isso, a relação social de fetiche é equivocadamente simplificada de modo sociologista, pois também a "força de trabalho" é uma mercadoria em cujo conceito está contido o "aspecto privado". Issonada mais significa que também a "classe trabalhadora", na forma do salário monetário, "apropria de maneira privada". O velho e limitado marxismo indigna-se com semelhante declaração e, como num reflexo, logo retruca que uns apropriam somente os custos de reprodução de suas vidas e outros, porém, a "plenitude da riqueza". Já no puro plano da imanência, essa forma de consideração é equívoca, pois em primeiro lugar "o capital" (isto é, uma das partes dos sujeitos funcionais, na conceituação simplificada) não apropria de maneira subjetiva ou pessoal a massa da riqueza abstrata, mas, sobretudo, executa e organiza sua constante reconversão na absurda finalidade em si mesma da "valorização do valor". E, em segundo lugar, o próprio aspecto material da riqueza privada dos "bem-remunerados" e dos "milionários" porta o signo desse fim em si mesmo capitalista e sem sujeito. Essa riqueza dos ricos assume cada vez mais os traços (com a crescente progressão do capital) do desatino e da autodestruição, de sorte a não poder mais ser aceita, do modo em que se apresenta, como objectivo emancipatório digno de universalização.

Involuntariamente, a forma com que o antigo marxismo considera a "apropriação privada" revela sobretudo que ele conhece apenas a diferença quantitativa no interior da forma-mercadoria, embora tateie às cegas na completa escuridão quanto ao verdadeiro aspecto do carácter privado. Quando não se trata mais apenas da diferença quantitativa da massa apropriada, mas da qualidade formal da apropriação, logo fica claro que a contradição capitalista fundamental entre produção social e apropriação privada não é idêntica à contradição de classes dos sujeitos funcionais no seio da forma-mercadoria. Antes, é a contradição entre o conteúdo social da produção material e a forma privada dos sujeitos sociais ou de seus modos de apropriação como um todo (com inclusão da "classe trabalhadora") que caracteriza a relação do capital. Assim, a luta de classes só pode ser o movimento formal imanente da relação do capital, mas não o movimento para superar a relação capitalista.

Marx foi capaz de unir, em curto-circuito, esses dois planos do movimento de emancipação social (embora isso permanecesse desde o início conceitualmente confuso), porque a emancipação relativa no interior da forma-mercadoria e do trabalho assalariado ainda dispunha de um horizonte histórico à sua frente. Agora, a relação capitalista encontra-se completamente desenvolvida até suas fronteiras extremas, e, por isso, estamos às voltas com a crise do sistema referencial comum a "capital e trabalho". Apenas quando isso for compreendido, ficará claro por que a nova crise sócio-econômica coincide com a paralisia da antiga luta de classes. Não se trata, portanto, da "conciliação pequeno-burguesa de classes" no interior e sobre o solo da forma-mercadoria total e universal, mas da crítica e superação dessa própria forma-fetiche universal e historicamente social. De fato, agora tornou-se inevitavelmente evidente que todas as manifestações da degradação social, da pobreza e da repressão, têm sua origem primária nessa forma da relação dinheiro-mercadoria como tal, e não na mera subjetividade de seus próprios e limitados portadores funcionais.

Quando passamos em revista, à luz dessa percepção, o desenvolvimento dos movimentos sociais (inclusive dos sindicatos) desde o Maio parisiense de 68, a crescente fraqueza dos últimos e penúltimos combates da luta de classes e o ocaso da (antiga) consciência crítica, revelam-se como indícios da proximidade dos limites históricos do sistema. O programa ignorado, malcompreendido ou visto como apenas cultural dos situacionistas contra o fetichismo da mercadoria — programa este formulado ainda nos termos da luta de classes, embora seu conteúdo já a ultrapassasse — pode ser visto como uma dobradiça histórica. Hoje não é possível tomá-lo diretamente como ponto de partida, mas trata-se antes de alcançar, com inclusão de uma crítica e avaliação histórica dessa teoria outrora radical, uma nova crítica formal que vise transformar a modernidade produtora de mercadorias. Enquanto o conceito de luta de classes continuar se arrastando, a orientação estatal — equívoco básico de todo antigo "socialismo" — manterá seu posto nas facções derrotadas e incapazes de aprender dos sindicatos, da social-democracia, dos comunistas e do Partido Verde; e mesmo nas cabeças de Gremliza, Trampert/Ebermann, etc., numa inspeção mais minuciosa, nada se encontrará de diverso. Nos modelos históricos, ou seja, nos antigos (ou ainda vigentes) regimes da modernização burguesa de recuperação, tal perspectiva é a cada dia mais sombria. Segundo Iuri Masliukov, presidente da duma russa para questões econômicas e funcionário do PC, "O Estado pode conduzir de forma absolutamente eficaz as empresas": "OPartido Comunista da Rússia exige mudanças na política de privatização, a defesa mais severa do mercado interno e o controle estatal dos recursos do país" (Handelsblatt, 15/03/96).

As antiquíssimas receitas mercantilistas da pré-história da economia de mercado são mais uma vez requentadas, mas agora no contexto de uma orientação francamente capitalista e de seu embasamento nacionalista depurado de toda fraseologia crítica do mercado. No governo popular da China, o socialismo de Estado voltado à modernização de recuperação já se converteu num regime bárbaro que conjuga uma sangrenta e generalizada administração penitenciária a um mercado radicalmente neoliberal, e que com malícia se denomina "socialista". Cuba, país da predileção revolucionária caribenha do antigo radicalismo de esquerda, deseja igualmente seguir estes mesmos passos, segundo as palavras do ministro da Economia José Rodríguez: "Interessam-nos a eficiência e mais eficiência. [...] Temos consciência, é claro, do fim do sistema socialista no Leste Europeu, mas também da crise na América Latina. Buscamos encontrar um meio caminho, mais ou menos como a China" (Wirtschaftswoche, 11/96).

Alguns poucos radicais de esquerda ocidentais insistem em seu revolucionarismo cubano e em sua irrefletida solidariedade a Cuba, como se nada houvesse ocorrido — o que não faz mais senão expô-los ao ridículo. Não há dúvida de que ainda é válido erguer-se contra o embargo dos Estados Unidos, mas isso não tem mais nada a ver com a defesa de uma alternativa histórica. A atitude de repúdio dos velhos radicais de esquerda em face da exigência de pôr teoricamente em dia o carácter de todos estes regimes, bem como sua própria orientação, e reavaliá-los historicamente, desacredita tudo o que ainda lhes resta de uma obscura crítica do capitalismo. O mesmo se dá com as correntes reformistas de esquerda de proveniência mais ou menos académica (que na Alemanha Ocidental são representadas por revistas como Prokla, Argument, links, etc.). Estas procuram afastar-se com mais resolução da antiga "metafísica de classes" e, sobretudo, do velho estatismo de esquerda, mas apenas para reproduzir com uma ênfase ligeiramente diversa a mesma sujeição à forma burguesa e suas categorias funcionais.

Em vez de uma transformação crítica formal do conceito de classe, deve haver uma "teoria de classes à altura do tempo(12), desligada de toda fundamentação crítica da economia e legitimada de maneira puramente democrático-politicista, a fim de poder assim insistir caprichosamente na "produção político-cultural da estrutura social" (Heinz Steinert), longe do raio de ação da crítica radical do mercado e da forma-valor. Quanto mais esse tipo de esquerda aparentemente reclama a crítica da economia política, menos soluciona ele próprio essa exigência e torna-se mais repressor e sociologista — e isto porque teme a crítica radical da forma do mesmo modo que o antediluviano radicalismo estatal de esquerda. Característico disso é o programa de investigação "Classes 96", que resume toda a miséria prática e teórica:

Interesses antagônicos e imposições estruturais da reprodução capitalista dominam o comércio político do dia-a-dia. Assim, a própria mensagem do fim da sociedade de classes é reconhecida como o que sempre foi: uma generalização precipitada que permanece na superfície dos acontecimentos. [...] Que os princípios estruturais do capitalismo venham à luz de forma tão clara não se deve à lógica do capital, por mais desenvolvida que seja [!]. Antes, é resultado de uma estratégia política, a saber, o estilhaçamento neoliberal das formas institucionais de regulação por meio das quais o compromisso de classes até agora foi assegurado.(13)

Aqui, por um lado, a teoria e a crítica da lógica básica do capital são pejorativamente ofuscadas ou postas em segundo plano. Por outro lado, a crise contemporânea e a degradação social não devem brotar de um desenvolvimento histórico e do advento de um limite histórico dessa lógica básica; antes, graças a uma pura "estratégia política" do neoliberalismo, são apenas os "princípios estruturais do capitalismo", que mais uma vez surgem claramente, de maneira a-histórica e, "como sempre", exteriores a todo desenvolvimento estrutural. A história capitalista não se desenrola, portanto, de maneira essencialmente estrutural e sócio-econômica, mas simplesmente em opiniões políticas, socioculturais e ideológicas cambiantes, ante o pano de fundo de "princípios estruturais" a-históricos, vistos como semi-ontológicos, não sendo por isto submetidos a uma crítica radical concreta. Será que o socialismo académico e trabalhista acredita com toda a seriedade que poderia haver, sob as condições da revolução microeletrônica e do capital como relação mundial após a crise fordista, uma nova "forma de regulação do compromisso de classes", que de resto só pode ser pensada na forma estatal e econômica de uma nação?

É certo que Joachim Hirsch, um dos protagonistas desse meio de esquerda, formula uma espécie de programa revolucionário crítico da cultura, inteiramente determinado pelo mundo da vida, e cujo objectivo, com Walter Benjamin, é

intervir nas engrenagens dessa maquinaria, interrompê-la, dar- lhe fim, sustar a colaboração quotidiana — e tudo isso com reflexão crítica. O que importa é dar adeus à antiga idéia socialista de um capitalismo industrial melhor e ter consciência de que a libertação não reside numa outra sociedade qualquer, nem na modernização (por maior que ela seja) das relações atuais, mas na criação de condições capazes de tornar possível a livre configuração da vida social própria.(14)

Isso parece sensato e promissor, e poderia ser o princípio de uma discussão solidária abrangente sobre a renovação da crítica radical da sociedade. Numa análise mais próxima, porém, essa formulação programática permanece infelizmente vazia de todo conteúdo de crítica da formação, ou a crítica da formação refere-se simplesmente (de acordo com a chamada teoria da regulação) à forma correspondente de "regulação política" que porventura será substituída por uma outra, sem que se reconheça sequer um aceno da forma-mercadoria totalizada como tema.

Desse modo, também Hirsch sucumbe à inevitável alternativa entre Cila e Caribdes, entre mercado e Estado. No sistema moderno de produção de mercadorias, a forma repressiva do Estado só pode ser contraposta à liberdade do mercado, a qual, entretanto, é apenas a liberdade do dinheiro e nunca a "livre configuração da vida social própria". O conceito cínico de liberdade do liberalismo aconselha aos indivíduos tornar-se autônomos como mônadas da concorrência, obter sucesso individual ou empresarial, etc. e assim arrastar-se sob o eterno jugo do dinheiro. Uma sociedade solidária, livre de relações contratuais de vida e de produção, é, per definitionem, impossível como sociedade de produtores de mercadorias. A emancipação social só pode ser liberdade com relação ao mercado. Na medida em que Hirsch não se digna a pensar hoje nesse núcleo de crítica da forma da emancipação social, sua crítica da "colaboração quotidiana" permanece oca. Todos os que "ganham seu dinheiro" se vêem na contingência de colaborar no cotidiano, e tal colaboração finda exatamente onde termina o "ganhar dinheiro". Como não demarca esse limite, Hirsch acaba na velha fórmula da "política", impelido pelo fato de que esta é per se uma orientação estatal, pois toda política já é por definição um vínculo com o Estado.

Mesmo quando se admite que deva haver algo como um período de transformação no qual um novo princípio de auto- organização, livre da forma-mercadoria, tenha de ser conciliado (criticamente) com os momentos ainda existentes de reprodução em sua forma-mercadoria, com os conflitos em torno do dinheiro e também com a chamada política, importa, antes de mais nada, formular este novo princípio de emancipação social, firmá-lo sobre os pés e explicitá-lo em suas qualidades antieconômicas e antipolíticas, em vez de abandonar a questão da crítica radical e da emancipação ao descompromissado plano metafórico e continuar a pensar e agir dentro das antigas categorias reais e conceituais do mercado e da política.

Ainda que todo verdadeiro movimento social, mesmo o mais radical e inovador, tenha de desenvolver algo semelhante a uma "dialética de reforma e revolução" para superar a forma-mercadoria totalizada (com um objectivo, é claro, inteiramente diverso, pela primeira vez exterior ao universo burguês da modernidade ), são necessários, acima de tudo, o novo objectivo de crítica radical e um correspondente ímpeto inovador conflituoso, antes que se lhe possa dar o nome de reformista (se é que tal conceito tem ainda alguma valia). Isso significa, como imperativo categórico imprescindível do momento, a recusa (inclusive emocional) da ilusão de êxito do capitalismo, a histórica "recusa dos trabalhadores" (com inclusão da crítica de um socialismo de resultados e quantificador do trabalho, cuja idéia situa-se hoje abaixo do padrão das forças produtivas). Trata-se, sobretudo (talvez historicizando criticamente tanto os situacionistas quanto Herbert Marcuse), de desenvolver uma cultura da recusa — quanto a isso, deve-se concordar, por exemplo, com a formulação análoga de Joachim Hirsch, embora ainda seja preciso deduzir-lhe as consequências críticas da economia e da política, o que ele (até agora) não fez.

Não tardará a que o novo objectivo histórico de uma superação do "trabalho", da forma-mercadoria, da moeda, do mercado e do Estado, se choque com a surda recusa de toda consciência dominante — nos fetichistas protestantes do trabalho, seja qual for sua orientação, por motivos de princípio, bem como nos pseudopragmáticos, em virtude da suposta impossibilidade de realizar tal plano. Ora, precisamente porque a luta por um "salário justo por um dia justo de trabalho" não tem mais nenhuma perspectiva histórica de evolução, encontra-se finalmente em pauta a concretização histórica do lema inverso ao de Marx: "abaixo o trabalho assalariado!" Em vez de contribuir com uma minguada esmola conceitual para o miserável debate, que nos corta o coração, sobre a geração de empregos", e preciso atacar pela raiz o sistema de empregos", isto é, a transformação de "trabalho" em dinheiro.

Essa perspectiva não significa absolutamente abandonar sem lutas o terreno das contradições imanentes de interesses (em sua forma-mercadoria) que "sempre vêm à tona". Dessa contradição burguesa, determinada pela forma capitalista, não pode mais ser desenvolvido, contudo, nenhum objectivo transformador, nenhum programa de um modo de vida e de produção diversos. A luta por dinheiro, salário, assistência social, etc. é, portanto, um modelo histórico em fim de linha, que terá de ser incorporado como tal. Não é mais algo isolado, e deve antes ser entendido como um momento tático e de apoio para um objectivo e um programa totalmente diversos, ou seja, para uma reprodução alheia à forma-mercadoria, para além do mercado e do Estado. O irremediável declínio dos sindicatos nos últimos anos nos revela que o mero conflito resignado ao sistema pode desembocar apenas na auto-renúncia, pois não há mais objectivo nem estratégia; uma "tática" por si só, sem uma relação estrategicamente crítica do sistema, constitui todavia uma impossibilidade. Só na medida em que um novo objectivo de crítica radical da sociedade estabelecer um vínculo estratégico com o movimento social, a luta social (coadjuvante) de interesses imanentes à forma-mercadoria poderá ganhar nova força persuasiva.

Somente as pessoas que se impuseram um objectivo para além do trabalho assalariado e nisso encontraram possibilidades de vida, podem exigir na antiga forma, inclusive com ataduras mais resistentes, as gratificações sociais (por exemplo, segundo o lema: "Seu mercado mundial nos é indiferente"). A divergência decisiva com relação à antiga luta de classes seria que a disputa imanente, em sua forma-mercadoria, não dá mais a forma ao objectivo de emancipação social; antes, a ruptura com a forma burguesa da modernidade aparece como um dos próprios objectivos.

Os atores sociais, nesse contexto, não podem mais ser "sujeitos de classe", constituídos a priori e portanto presos à forma-mercadoria, mas apenas um movimento de emancipação social que se constitui a si próprio. Tal movimento não assumirá mais a forma de um partido político, mas a de um sistema coligado de iniciativas sociais em diversos planos, cujo denominador comum não é apenas a crítica social do mercado e do Estado, mas também um respectivo momento prático e vivencial de desvinculação do mercado, do dinheiro e do Estado — o que dificilmente a consciência normal contemporânea compreende de um só golpe, já que todas as instâncias de cooperação e reprodução social da vida (com exceção da esfera de atividades própria às mulheres) passaram às mãos do capital e do Estado. Não são tanto os problemas técnicos ou económicos de realização que se opõem hoje à idéia de desvinculação dos âmbitos de vida e de reprodução, mas, antes, a forma-mercadoria introjetada pelo sujeito.

Se for possível desenvolver socialmente a perspectiva de um movimento de desvinculação do mercado e do Estado em âmbitos parciais acessíveis da reprodução social, a própria questão da redução da jornada de trabalho ganhará nova plausibilidade sobre o solo da forma-mercadoria. Mesmo sem compensação salarial, a redução da jornada ou a jornada parcial de trabalho contêm um momento de gratificação (em flagrante diferença com o salário baixo ou o salário inferior ao mínimo de um segundo mercado de trabalho): a saber, um ganho de tempo disponível. Se tal gratificação surge como absurda num sistema abrangente de dependência do dinheiro, poderá tornar-se atraente com a construção simultânea de elementos da reprodução social alheios à forma-mercadoria. Uma oposição sindical teria sua incumbência exatamente nesse contexto (conciliada a uma nova orientação prática), e não no simples apego à antiga ideologia da luta de classes em sua forma-mercadoria.

Na história desde 1968 (na verdade, já desde a II Guerra Mundial), a teoria crítica da sociedade, os movimentos sociais e a contracultura decompuseram-se cada vez mais até atingir a paralisia total, simultaneamente à crescente crise de reprodução da sociedade burguesa. Apenas a transformação e a reformulação da sociedade para além do fetichismo da mercadoria possibilitarão uma reintegração e uma nova força persuasiva. Com toda certeza, essa renovação da crítica não pode ser exposta diretamente à consciência das massas sindicais fixadas na forma-mercadoria. Contudo, sob a superfície das instituições dominantes (partidos, sindicatos, universidades, igrejas), talvez ainda seja possível o desdobramento de um discurso sobre o "impossível". Muitos são os que têm hoje de passar sob o fio da espada no interior do próprio aparato, de modo que não faltarão portadores e mediadores a semelhante discurso. Não precisaremos mais nos recordar com melancolia da linha decadente dos últimos combates da antiga luta de classes desde o Maio de Paris, se começarmos a nos preparar para o primeiro combate de um Maio inteiramente diverso.


Notas de rodapé:

(1) Membros da Internacional Situacionista, movimento artístico e político originado no surrealismo. Seu inspirador foi Guy Debord, autor de A Sociedade do Espectáculo (1967) (N. T.). (retornar ao texto)

(2) Cohn-Bendit, Daniel. Linksradikalismus -Gewaltkur gegen die krankheit des Kommunismus. Reinbek, 1968 (texto de orelha). (retornar ao texto)

(3) Sauvageot, Jacques e outros. Aufstand in Paris oder Ist in Frankreich eine Revolution moglich? Reinbek, 1968, p. 16s, (retornar ao texto)

(4) Cohn-Bendit, Daniel, op. cit., p. 12. (retornar ao texto)

(5) "Modernizadores capitalistas", cf. segundo parágrafo da última seção (N. T.). (retornar ao texto)

(6) Freie Demokratische Partei (Partido Liberal Alemão) (N. T.). (retornar ao texto)

(7) Associação evangélica ou católica que presta gratuitamente auxílio a viajantes, sobretudo crianças e doentes, nas estações de trem (N.T.) (retornar ao texto)

(8) Sozjaldemokratjsche Partej Deutschlands (Partido Social-Democrata Alemão) (N. T.). (retornar ao texto)

(9) Cf. Kurz, Robert. "Der Himmelfahrt des Geldes". Krisis nº 16/17, 1995 (retornar ao texto)

(10) Partei des Demokratischen Sozialismus (Partido Socialista Alemão) (N. T.). (retornar ao texto)

(11) Gremliza, Hermann L. Konkret, n.º 1, 1996. (retornar ao texto)

(12) Links, nº 310/11, março/abril 1996. (retornar ao texto)

(13) Ibidem. (retornar ao texto)

(14) Ibidem (retornar ao texto)

Inclusão: 20/12/2019