O Buraco Negro da Economia Mundial

Robert Kurz

28 de novembro de 1997


Primeira Edição: Publicado na Folha de São Paulo de 12.12.1997 com o título O último buraco negro. Tradução de José Marcos Macedo. Original alemão integral não disponível. Versão reduzida do texto Das schwarze Loch der Weltwirtschaft em www.exit-online.org. Publicada em Neues Deutschland de 28.11.1997.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A causa mais profunda de todas as crises econômicas da modernidade, inclusive a atual, é sempre a contradição lógica do capitalismo: de um lado, o potencial técnico para a ampliação da produção cresce vertiginosamente; de outro, a massa crescente dos produtos tem de passar pelo buraco de agulha do limitado poder de compra. Essa desproporção cada vez maior entre potencial produtivo e restrição econômica foi aparentemente solucionada, após a Segunda Guerra, pela desvinculação entre crédito e substância real do valor. Da mesma forma que, na astrofísica, um buraco negro absorve matéria e a faz desaparecer, assim também o crescimento capitalista é simulado por uma crescente expansão autônoma do sistema de crédito. A produção suplementar, por assim dizer, é despejada no buraco negro de uma antecipação irreal da "renda futura".

Na era keynesiana dos anos 60 e 70, foi sobretudo o crédito estatal da economia interna dos países desenvolvidos que compôs o buraco negro da expansão simulada. Mas o preço para tanto foi a "inflação secular", a crescente desvalorização do dinheiro creditício, que se mostrava numa ascensão cada vez mais rápida dos preços das mercadorias. O "deficit spending" retrocedeu com espanto, ao passo que, por meio do processo forçado da racionalização e da automatização, as possibilidades de investimentos rentáveis em novos empregos e empresas sofreram uma drástica redução. Às pressas, descobriu-se um novo buraco negro a fim de manter a expansão capitalista em curso, para além de suas limitações internas: os vários regimes do Terceiro Mundo, aos quais foram impingidos os generosos créditos do sistema financeiro ocidental. De certo modo, tratou-se de um "keynesianismo para Terceiro Mundo".

Mas, obviamente, os governos do Terceiro Mundo não estavam em condições de desviar esse capital monetário para a produção suplementar no nível de rentabilidade do mercado global. Como poderia a periferia produzir algo para o qual os próprios centros não se encontravam mais capacitados? Com isso, os créditos internacionais para os Estados do Terceiro Mundo perderam-se em boa parte na compra de objetos de luxo e investimentos a fundo perdido (usinas atômicas, barragens, consumo militar etc.). O resultado foi a conhecida crise de endividamento do Terceiro Mundo e a hiperinflação nesses países. Como os créditos para o regime estatal eram concedidos, em sua maioria, a médio e a longo prazo, as instituições monetárias globais puderam transformar essas dívidas "podres", numa ação em grande escala, em títulos ("Brady-bonds"), que, desde então, são negociados nos mercados financeiros internacionais com sensível desconto. A crise da dívida não foi extinta com esse expediente, mas adiada para o futuro.

No início dos anos 80, o neoliberalismo monetarista afirmou dar uma resposta definitiva ao problema do crescimento: trocar a duvidosa captação estatal de crédito pelo desenvolvimento autônomo dos mercados e manter a emissão suplementar de dinheiro dos Bancos Centrais restrita ao crescimento real da produção de bens. A grande ironia, uma das maiores da história, é que essa doutrina só teve êxito momentâneo pelo fato de ser absurdamente implementada, na forma de seu oposto, pela política econômica dos Estados Unidos. Sob o presidente Reagan, a última potência mundial fez com que a União Soviética se curvasse sob o peso da corrida armamentista. Mas isso só foi possível com a majoração das dívidas estatais para além de todas as dimensões conhecidas até então, acompanhada da diminuição dos impostos para os ricos. Como a quota de poupança norte-americana é até hoje uma das menores do mundo, o gigantesco "keynesianismo militar" só pôde ser realizado com um rápido endividamento externo do Estado. Os Estados Unidos consolidaram uma balança de pagamento que, hoje, em sua estrutura interna, corresponde à dos países em crise do Terceiro Mundo.

Enquanto todo país tem de ganhar divisas com um elevado índice de exportações, a fim de poder captar e pagar créditos externos, os Estados Unidos meramente endividam-se no exterior com empréstimos em sua própria moeda. Isto só funciona porque o dólar cumpre a função de um "dinheiro universal", na condição de ser a mais importante moeda mundial de comércio e reservas. Tal função não repousa mais, porém, ao contrário do período posterior à Primeira Guerra Mundial, no fato de os Estados Unidos possuírem uma superioridade absoluta na exportação global de capitais e mercadorias. De certo modo, é a máquina militar dos Estados que vale como o "ouro" do dólar: o peso da força militar de combate tomou o lugar da substância real da economia. Com isso, um "fator extra-econômico", no sentido rigoroso do termo, assumiu uma tarefa central no sistema econômico — e isso de forma totalmente irracional.

O paradoxal endividamento externo norte-americano em sua própria moeda não só financia o seu aparato militar onipresente, mas serve também, desde meados dos anos 80, como combustível de toda a economia mundial. Como ele não tem de ser pago com divisas, mas apenas com o aceite de uma dívida abstrata e não resgatada em favor dos credores de sua riqueza nacional, os Estados Unidos são capazes de gastar duplamente o capital monetário emprestado do exterior: primeiro, são quitados os armamentos e, segundo, esse mesmo dinheiro é novamente gasto para poder importar um volume de mercadorias maior do que é exportado. Em outras palavras, a compensação para os títulos da dívida com que os Estados Unidos pagam o seu enorme excedente de importação, na verdade, há muito já se acha esgotada e navega pelos mares na figura de porta-aviões ou, então, foi lançada no espaço.

Desse modo, os Estados Unidos tornaram-se o maior “buraco negro” da economia global: eles absorvem o capital monetário e o fluxo de mercadorias de todo o mundo, mas não pagam, de fato, nem um nem outro. O keynesianismo militar financeiramente globalizado do governo norte-americano é o pressuposto nacional para o aparente sucesso da guinada neoliberal em todo o globo. Trata-se, porém, de um processo que consome a si mesmo. Numa escala inconcebível, são retidas letras do Tesouro sem qualquer valor, que jamais poderão ser resgatadas. Esses títulos absurdos, cujo valor há muito foi dilapidado, circulam pelo mundo como uma pseudomoeda. Os países que contabilizam excedentes de exportação diante dos Estados Unidos pagam com ela suas dívidas com outrem. Isso não vale apenas para o circuito de deficit interasiático entre Japão e os tigres, mas também para os déficits da União Européia e demais países em relação ao Japão.

Por isso, toda a conjuntura mundial dos últimos 10 a 15 anos é uma prosperidade ilusória dessa economia-zumbi global, cuja base são os Estados Unidos. Enquanto o consumo gigantesco dos norte-americanos dissipa boa parte dos recursos financeiros e materiais do planeta, acumula-se no Japão, em imagem espelhada, uma montanha de títulos sem valor. Mas isso não diz respeito somente à relação direta entre Japão e Estados Unidos, mas, indiretamente, à relação entre esses dois Estados e o resto do mundo. Da pseudoliquidez acumulada no Japão surgiu a onda global de especulação que, desde meados da década de 80, foi "preparada" pela conjuntura alimentada pelo “buraco negro” dos Estados Unidos. Essa especulação acionária e imobiliária já deu como favas contadas, com sua peculiar irracionalidade, que a conjuntura do fluxo financeiro e de mercadorias ainda irresgatado não só persistirá século 21 adentro, mas também crescerá de proporção.

E, de novo, foi o Japão que, mesmo depois do estouro de sua própria bolha especulativa, impulsionou impassivelmente a grande roda: os japoneses baixaram os juros do yen a quase zero e criaram do nada, sem custos, novas massas de liquidez, que, por sua vez, foram investidas, a uma alta taxa de juros, nos títulos norte-americanos. Com ajuda dessa "licença de emissão de moeda", eles impediram não apenas a realização de suas perdas na economia interna, mas impeliram para fora novas massas de liquidez no sistema financeiro mundial (sobretudo nos Estados Unidos e no seu campo de ação asiático). Devia estar claro, contudo, que a pseudoliquidez, cuja reprodução é mais rápida que a dos coelhos e eleva a si mesma à segunda, à terceira ou à quarta potência, não poderia fluir indefinidamente.

Assim, era fatal chegar o instante em que, de um lado, o “buraco negro” glutão dos norte-americanos começasse a padecer de cólicas digestivas e que, de outro, os países com excedentes não fossem mais capazes de aumentar suas remessas. Quando os Estados Unidos, nos últimos dois anos, tentaram timidamente "pôr as coisas nos eixos" e pelo menos não aumentar o déficit interno ou o endividamento externo, os "tigres" atingiram simultaneamente os seus limites internos, tanto financeiros quanto materiais, de exportação. O aumento vertiginoso do endividamento externo e a concomitante baixa das taxas de crescimento provocou primeiro a queda das moedas e, depois, das bolsas dos "emerging markets" — e isso com efeitos ameaçadores ou já manifestos de uma reação em cadeia em todo planeta. Resultado: subitamente, a massa de créditos "podres" tornou-se maior do que o potencial japonês de criar nova liquidez.

Portanto amadurece uma situação análoga a um grande "dia de pagamento". Este cenário tomará corpo tão logo o “buraco negro” da economia deficitária americana seja tapado à força. O corpo-a-corpo ocorrerá entre as economias-chave do Japão e dos Estados Unidos. Das duas, uma: ou o Japão deixará que seu sistema financeiro entre em colapso, numa espécie de haraquiri, como os soluçantes empresários da Yamaichi acabaram de demonstrar diante das câmeras do mundo — e aí a segunda maior economia mundial cairá em miséria da noite para o dia; ou, então, os japoneses, para livrarem a cara, retirarão seu patrimônio investido nos Estados Unidos — e aí será a potência mundial, sentada em sua máquina militar, que terá de declarar-se falida. Ora, em ambos os casos, a pseudoconjuntura global, alimentada pelos paradoxais déficits norte-americanos, será sufocada. Primeiro, a pseudoliquidez especulativa evaporará e, com ela, a produção global de bens de luxo. A inflação dos preços de ações, imóveis e bens de luxo de todo tipo converte-se num processo de desvalorização deflacionário que, em breve, alcançará a suposta economia "real" e provocará uma depressão global sem precedentes.

Esse processo teve início há pouco na Ásia. Se não ocorrer um milagre, só existe um meio de conter momentaneamente a avalanche: os Estados e Bancos Centrais da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) têm de dar uma guinada ideológica e político-econômica de 180 graus e não só trocar o monetarismo neoliberal pelo velho keynesianismo, mas criar um novo hiperkeynesianismo político-financeiro no plano supra-estatal -embora os Estados, sem exceção, estejam endividados até o pescoço. Isto obviamente seria a confissão de que a lógica do "deficit spending", na verdade, nunca foi superada, tendo sido, todo esse tempo, a determinante da economia mundial, sob a figura do keynesianismo militar norte-americano e por trás da fachada monetarista. Os primeiros passos nessa direção revelaram-se há algumas semanas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), financiado pelos Estados e Bancos Centrais, aumentou em 45% suas quotas disponíveis (490 bilhões de marcos). E o governo japonês assegurou que impedirá o colapso do sistema financeiro com auxílio estatal. Falando claramente: a "autonomia das forças de mercado", evocada desde a guinada neoliberal, não vale mais um tostão.

Ora, de onde o FMI e os governos pretendem retirar o capital necessário? Hoje, em termos absolutos, a soma das ajudas requisitadas ultrapassa tudo que se acha à disposição do fundo de crise. Segundo estimativas ainda pendentes de confirmação, a massa dos ameaçadores créditos "podres" pode atingir a soma da capitalização global das bolsas. Não restará aos governos da OCDE senão fomentar conjuntamente a emissão de moeda de seus Bancos Centrais. Este seria o último “buraco negro” que o capitalismo poderia criar, a fim de prolongar artificialmente sua vida. A expansão autônoma do sistema de crédito econômico nos últimos 15 anos restringiu o processo inflacionário ao preço de ações, imóveis e bens de luxo.

Mas, se um novo hiperkeynesianismo estatal e supra-estatal abandonar-se à criação de crédito por meio de seus bancos emissores, para evitar o processo inverso de deflação global, o dinheiro, como tal, será desvalorizado — e, então, o fantasma da inflação, a exemplo do gênio da lâmpada, voltará mil vezes maior. Inflação ou deflação, afinal de contas, redundam no mesmo: aniquilação do capital fictício. Atingida tal situação, a humanidade terá finalmente de perguntar a si mesma se não pode fazer algo melhor com a terceira revolução industrial do que meramente sacrificá-la à tautologia da acumulação de capital.  


Inclusão: 28/12/2019