A ditadura do tempo abstrato
Sobre a crise compartilhada de trabalho e lazer

Robert Kurz

Outubro de 1999


Primeira Edição: Síntese parcial do texto Die Dikatur der abstrakten Zeit em Feierabend! Elf Attacken gegen die Arbeit, Hamburg 1999. Texto publicado na Folha de S. Paulo, Outubro de 1999. Apresentado no V Congresso Mundial de Lazer, São Paulo, 1999.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Desde a época do Iluminismo, a modernidade capitalista se vê como ponta de lança do progresso. Supostamente, o passado pré-moderno era dominado por fome, miséria, escravidão e trabalho penoso. A verdade, entretanto, corresponde precisamente ao oposto: foi a própria modernidade capitalista que, desde o século dezasseis, expandiu a jornada de trabalho até os limites do fisicamente suportável. Apenas paulatinamente, e pagando o preço de renhidas lutas sociais, é que a jornada de trabalho reduziu-se outra vez, a partir dos fins do século dezanove.

Numerosas sociedades pré-modernas ou desconheciam a abstracção do "trabalho", ou o termo designava uma actividade em estado de dependência ou de não-emancipação. Metaforicamente, portanto, o trabalho significava sofrimento e desgraça. Por outro lado, não existia designação geral para as actividades concretas no "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) da produção agrícola até a arte. O dinheiro deixou de ser simples meio para transformar-se em finalidade abstracta em si mesma (transformação de dinheiro em dinheiro). À medida em que todas as actividades da produção passaram a referir-se a esta abstracção comum ao dinheiro, surgia a moderna categoria do trabalho como generalização social abstracta, à qual se subordinava a totalidade da vida. A transmutação automática de dinheiro em mais dinheiro exige a transformação do trabalho em mais trabalho. Este carácter insaciável do "sujeito automático" (Marx) impossibilita a tradução das crescentes forças produtivas em menos trabalho (o que também fez malograr teorias como as de Jean Fourastier).

A abstracção das actividades concretas à abstracção do dinheiro também tornou abstracto o tempo deste novo "trabalho" generalizado na sociedade. Esta ditadura do tempo abstracto, incrementada pela concorrência anónima, transformou as actividades do "processo de metabolismo com a natureza" em espaço funcional abstracto, ou seja, o capital divorciado dorestante da vida. Assim sendo, dissociaram-se "trabalho" e moradia, "trabalho" e vida íntima, "trabalho" e cultura, etc. Foi apenas desta forma que também surgiu a moderna separação e o dualismo entre "trabalho" e "lazer". Nas sociedades pré-modernas, ainda que se dispondo de parcos recursos, a finalidade da produção não consistia em finalidade abstracta em si, mas sim em fruição e ócio (lazer). Não podemos confundir esta noção antiga e medieval de ócio com o lazer moderno. O ócio não era uma fracção de vida isolada do processo de actividade com fins lucrativos, mas estava presente até nos poros e nichos da própria actividade produtiva. Em termos atuais, é por este motivo que a jornada de trabalho não era apenas mais curta, como ainda menos concentrada.

A família burguesa tornou-se um espaço funcional complementar da vida íntima, criando o pano de fundo de esferas capitalistas. Por um lado, este espaço pessoal é considerado a esfera particular da ternura e da privacidade, embora, por outro lado, também de pouco valor e secundário, justamente por não ser a área social na qual "se ganha dinheiro". No processo de modernização, à metade feminina da humanidade foi atribuído este espaço ambíguo da sociedade, e compulsoriamente, todas as actividades que nele se realizam. À mulher coube a competência do lar e da família e "actividades" imateriais como "amor", "dedicação", etc. Já no transcurso do século XX, deu-se o fenómeno do duplo encargo: a exemplo do homem, as mulheres agora precisam "ganhar dinheiro", além de, ao mesmo tempo, encarregar-se do espaço da esfera pessoal do lar. Assim, afora mulheres pertencentes às classes altas e algumas poucas profissionais, a participação da mulher no lazer capitalista tem permanecido extremamente modesta.

A utopia de uma contínua redução da jornada de trabalho e o aumento do lazer falhou sob vários aspectos. Mesmo nas metrópoles ocidentais, a jornada real de trabalho foi apenas reduzida em certa medida, muito aquém dos ganhos de produtividade. Em particular, porém, a utopia do lazer falhou em termos de seu próprio conteúdo. Na medida em que aumentou realmente este mero restante da vida, ele foi imediatamente ocupado pela finalidade própria do capital: a indústria da cultura e a indústria do lazer passaram a ocupar e a colonizar o tempo penosamente conquistado e concedido fora do espaço funcional abstracto. Uma vez que o "trabalho" carece, a priori, de emancipação, o "lazer" também tem de ser dependente. Não consiste em um tempo liberado, pois que se transforma em espaço funcional secundário do capital. Não se trata, portanto, de ócio livre, no seu sentido antigo, mas de tempo funcional para o consumo permanente de mercadorias. Ironicamente, o lazer tornou-se para o consumidor a continuação do trabalho por outros meios. Não apenas quando "ganha" dinheiro, mas também quando o gasta, o homem capitalista é um "trabalhador". A ditadura do tempo abstracto também ocupou o lazer.


Inclusão: 30/10/2020