O livro negro do capitalismo
Um canto de despedida da economia de mercado

Robert Kurz


A Utopia Negra da Concorrência Total


capa

Não há dúvida de que o mercado totalitário, tal como o conhecemos enquanto condição e esfera funcional do capitalismo, tem como pai o Estado totalitário dos regimes absolutistas com seus aparelhos burocráticos. Assim, o empreendedorismo capitalista privado, surgido do comércio mundial e do trabalho doméstico por empreitada, foi também um monstrinho saído desta constelação sócio-histórica. No entanto, não se poderia omitir que a nova figura social do "dono da fábrica" privado teve de ganhar uma crescente dinâmica própria, no contexto dos mercados em crescimento. Na mesma medida em que a lógica de ganhar dinheiro, iniciada pelo absolutismo, começou a apropriar-se da reprodução social e se tornou mediadora das relações sociais, uma estrutura de "interesses" específicos dos seus vários funcionários foi-se inevitavelmente desenvolvendo sobre este novo terreno da sociedade.

Já os grandes mercadores do Renascimento tinham desenvolvido uma autoconfiança considerável em relação às casas principescas do início da Idade Moderna. Também os donos da obra nas empreitadas de trabalho doméstico e os capitalistas das manufacturas rapidamente fizeram o mesmo. Numa sociedade cada vez mais dinâmica, os interesses particulares do indivíduo ganharam força. O empreendedorismo aspirante à economia de mercado assegurou uma forte posição social, deixando, ao mesmo tempo, de estar vinculado à estrutura tradicional da hierarquia autoritária. Este novo tipo de "senhores desvinculados" não olhava para trás, para as grandes e antigas tradições familiares, pelo contrário, muitas vezes tinha surgido da ralé do "povo".

O óbvio nojo destas figuras, exibidas por exemplo na galeria da Comédie Humaine de Honoré de Balzac (1799-1850), alimentou durante muito tempo o ressentimento conservador e retrógrado da velha autoridade. Desde então, as ideologias da "igualdade de oportunidades" e da concepção elitista reaccionária (originalmente aristocrática), do conservadorismo estatal e da liberdade económica têm competido entre si no métier da aldrabice socioeconómica, sobre qual a doutrina que produz piores personagens e piores consequências; essa nobre competição teve de ficar por decidir. De qualquer modo, a imprevisível mobilidade do dinheiro também começou a tornar móvel a estrutura social. O ambiente de declínio social, de desapossamento e empobrecimento para muitos era, ao mesmo tempo, o ambiente de ascensão para poucos: para os cavaleiros da fortuna, os chicos-espertos, os que sobem à cotovelada, os furiosos por enriquecer e as "pessoas de sucesso".

Estas criaturas do mercado, que se consideravam sujeitos da "nova mobilidade", também se sentiam cada vez mais constrangidas e assediadas pelo regime burocrático estatal dos aparelhos absolutistas. Assim, tiveram de produzir a sua própria ideologia de dominação, que não só legitimou os seus interesses específicos, mas também formulou uma explicação do mundo e uma imagem abrangente do ser humano, que desde então se tornou hegemónica para todo o pensamento ocidental da modernidade até hoje, sendo agora mais dominante do que nunca. Tanto mais tem de ser interessante descobrir as raízes históricas desta ideologia da economia de mercado do chamado liberalismo.

Já o nome em si não é apenas enganoso, mas uma distorção pérfida. Pois essa actividade e mentalidade, que até então tinha sido considerada por todos os povos e épocas como uma das mais baixas e desprezíveis, a saber, a transformação do dinheiro em mais dinheiro como um fim em si mesmo, o trabalho assalariado dependente aí incluído e, portanto, a indizível autodesprezo de ter de vender-se, foi reformulada como a quintessência da liberdade humana. Esta conspurcação do conceito de liberdade, culminando no louvor da autoprostituição, fez a carreira mais surpreendente da história do pensamento humano.

Uma sociedade de monstros

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) pode ser descrito como o primeiro grande patriarca do liberalismo. O facto de Hobbes ser ao mesmo tempo um teórico do absolutismo não é de modo nenhum uma contradição. A coincidência apenas indica que existe algo de comum entre absolutismo e liberalismo; não admira, pois ambos pertencem ao mesmo movimento de desencadeamento histórico do dinheiro e do "trabalho abstracto". O liberalismo deriva do absolutismo, contém como ele um momento totalitário e, em última análise, é apenas uma variante do próprio totalitarismo moderno; apenas que representa um totalitarismo do mercado fundado mais "economistamente", ao qual as pessoas devem se submeter incondicionalmente. Como tantas vezes na história, a viragem do liberalismo contra a doutrina absolutista do Estado autoritário não passa de um patricídio dentro da mesma constelação histórico-social, não constituindo uma diferença essencial.

Em Hobbes, o patricídio ainda não ocorreu; ele ainda fornece as bases para ambas as variantes da ideologia da modernização capitalista. Ao mesmo tempo, ele já reflecte clarividentemente a atomização social dos seres humanos através da lógica do dinheiro, que só estava desenvolvida embrionariamente no século XVII. Enquanto a sociedade pré-moderna ainda integrava os indivíduos e suas actividades de subsistência num "cosmos" muitas vezes cru e limitado, uma entidade cultural que fornecia tanto controle social quanto um certo grau de segurança, a modernização capitalista tende a dissolver completamente cada comunidade, substituindo o comum culturalmente determinado e a obrigação mútua por uma pura relação monetária.

Deste modo, a socialidade das pessoas, absurdamente, já não parece ser das pessoas, mas sim das coisas. O controle social também não é, portanto, ultrapassado, mas sim reificado, "sem sujeito" e não mais negociável pessoalmente, ou seja, é mais impiedoso do que nunca. Neste sistema paradoxal, cada ser humano, enquanto ser social, é, em princípio, um "indivíduo isolado", embora a divisão de funções e a complexidade social estejam ao mesmo tempo constantemente a aumentar. Ou, para dizê-lo com Margaret Thatcher: "Não há sociedade, só há indivíduos”. Independentemente do facto de em sua época a cooperação social ser ainda muito mais diversa e não completamente decomposta pela lógica do dinheiro, Hobbes já via o ser humano "voltado para o futuro", como um indivíduo abstracto lutando pela sua autopreservação individual:

"O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim." (Hobbes 2009/1651, 47).

Hobbes também não deixa dúvidas quanto à natureza dessa "liberdade" de que os cidadãos podem desfrutar: "Eles têm a liberdade de comprar e vender, ou de outro modo realizar contratos entre si" (ibid., 74). As pessoas não devem mais ter a liberdade de se comportar cooperativamente de acordo com suas próprias necessidades e acordos, mas apenas sob os ditames da economia monetária; e teve de permanecer um traço característico do liberalismo até hoje que ele persegue com suspeita toda a cooperação e toda a associação social que ameace levantar a impotência do "indivíduo isolado" contra as leis do dinheiro, se necessário procurando impedi-lo administrativamente, ou mesmo violentamente. Na sua linguagem orwelliana, ele chama liberdade precisamente a esta falta de liberdade do isolamento desesperado.

Mas como a generalização das relações monetárias só foi possível através da constituição de mercados anónimos e de grande escala, juntamente com a tendência ao isolamento total, ela também teve que trazer a tendência à concorrência total. Pois a comparação anónima e socialmente descontrolada das mercadorias dos produtores distantes uns dos outros, que já não estão em nenhuma relação comunicativa entre si, desencadeia a chamada "lei da oferta e da procura": as mercadorias têm de concorrer entre si através do preço, pelo que a produção está também sujeita à compulsão silenciosa da concorrência. Isto significa que o contexto social dos "indivíduos isolados" só é estabelecido negativamente pela concorrência económica. Qualquer alcateia de lobos é mais organizada socialmente do que as pessoas da economia de mercado. Portanto, deve ser rejeitado como uma calúnia aos lobos falar da "lei de lobos da concorrência".

Hobbes pressentiu essa lógica da concorrência, sem considerá-la fundamentalmente criticável. Ele pôde tornar-se o ideólogo nuclear do liberalismo porque generalizou radicalmente suas observações numa imagem sombria do ser humano, ignorando o facto de não estar a descrever a "natureza" da sociedade humana como tal, mas sim o resultado histórico de um processo em que os primeiros surtos da moderna economia de mercado tinham começado a corroer todas as formas de cooperação social voluntária e autodeterminada. Assim, Hobbes apresentou o ser humano como um ser por princípio egoísta, que é supostamente "por natureza" mais solitário do que um animal:

"Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. [...] De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias [...] Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos contra todos" (ibid., 46).

De acordo com Hobbes, esta "guerra de todos contra todos" (bellum omnium contra omnes) é o "estado natural" do género humano, supostamente encontrado em cultura pura por toda a parte onde ainda não há domesticação institucional. E para não deixar dúvidas de que se trata de uma determinação cega por forças da natureza, na versão latina ele leva-a mesmo a uma comparação elucidativamente animal:

"Por que as pessoas, que no entanto possuem razão, precisam de mais provas, quando até mesmo os cães parecem entender do que se trata: ladram a quem aparece no caminho, durante o dia a todo o desconhecido, mas à noite a toda a gente" (ibid., 47).

Esta imagem do ser humano, literalmente vinda do cão, permaneceu o credo do liberalismo até hoje. O sujeito da concorrência, ao qual a economia de mercado degrada o indivíduo, torna-se a lei da natureza da consciência humana, e assim a economia de mercado claramente histórica é redefinida como a "forma natural" supra-histórica das relações sociais. Com pérfida astúcia, pode supor-se que todos aqueles que não querem obedecer a esta imagem canina do homem "cometem pecado contra a natureza". 120 anos depois de Hobbes, Adam Smith também fala da "tendência ou propensão da natureza humana a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa por outra" (Smith, ibid., 69), da qual terá surgido a divisão do trabalho e, portanto, a cultura.

Em todos os ideólogos do liberalismo, durante mais de três séculos, encontraremos a mesma construção básica, repetidamente, por muitas que sejam as variantes: a "naturalização do social", a biologização ou a fisicalização da economia de mercado e da concorrência económica. E, por ser tão bonita, não pode faltar uma sacrossanta figura de paz da recente "Revolução da Liberdade" da Europa de Leste, na figura do Presidente checo Vaclav Havel:

"Acima de tudo e principalmente: nunca na minha vida me identifiquei com qualquer ideologia, dogma ou doutrina, seja de direita, de esquerda ou qualquer outra [...] Por mais que meu coração sempre tenha batido no peito à esquerda, sempre soube que a única economia funcional e possível é a economia de mercado [...] Só uma tal economia é natural [...] Para mim, a economia de mercado é algo tão evidente como o ar: afinal de contas, trata-se de um princípio da actividade económica do ser humano que foi experimentado e testado durante séculos (que digo eu — milénios!) e que corresponde melhor à natureza humana" (Havel 1992, 59ss.).

Também aqui novamente é fascinante a impertinência com que uma pessoa se declara livre da ideologia e, ao mesmo tempo, repete impensadamente a versão original de todo o pensamento ideológico da modernidade, atingindo uma certa visão do mundo e do ser humano com o mais rígido doutrinarismo concebível da "natureza humana".

Não custa muito refutar esta doutrina. Historiadores, etnólogos e antropólogos há muito que provaram mil vezes que a afirmação de Adam Smith sobre a "tendência natural" do ser humano para trocar mercadorias é completamente infundada, e que a divisão social de funções surgiu de um modo completamente diferente, dentro de pequenas comunidades que não se baseiam na troca de mercadorias. Do mesmo modo, é fácil mostrar que o egoísmo abstracto do ser humano monetário, como postulado pelos liberais, é um paradoxo, porque o bem-estar humano em quase todas as coisas só é possível através da satisfação das relações sociais, num espaço de segurança social. E, na verdade, é inerente ao homem capitalista um alto grau de autodestruição.

Não se deve, de modo nenhum, desenvolver uma imagem idealista, sentimental, altruísta e, portanto, ingénua do ser humano, a fim de tomar posição contra o liberalismo. Mas a tensão antropológica entre a personalidade individual e a organização social não tem de assumir necessariamente a forma louca do capitalismo, e esse não foi o caso em mais de 99% da história humana. O facto de as pessoas sociais argumentarem como indivíduos, que só podem estabelecer as suas condições comuns de existência através de um processo comunicativo, não corresponde minimamente às "leis do mercado" e à forma de circulação do dinheiro. E que os seres humanos individuais desenvolvam qualidades como coragem ou covardia, ambição ou inveja, simpatia ou antipatia, que as necessidades e os gostos sejam diferentes — tudo isso não pressupõe a lógica da concorrência económica, nem é provocado por ela, que só emergiu a partir dos séculos XVI e XVII. Mesmo o facto evidente de que as pessoas não querem se esforçar por nada, nem por caridade, nunca se dissolve na específica relação de troca de equivalência abstracta entre mónadas concorrentes; formas completamente diferentes de reciprocidade social, não determinadas pela concorrência, são também possíveis e historicamente observáveis. Pelo contrário, são precisamente as "leis da concorrência", como só o capitalismo as produziu, que repetidamente forçam a maioria dos indivíduos a condições que reduzem a sua participação na produção social, como em nenhuma outra forma de sociedade.

O negro modelo do liberalismo coloca o ser humano ainda abaixo do mundo animal, porque nem mesmo os instintos animais estão condicionados por essa "guerra de todos contra todos", como em Hobbes. O "direito do mais forte" é a consequência interior desta "liberdade", em que o critério precedente já é sempre a capacidade de imposição na banalidade das relações de mercado, pelo que esta definição de "força" prefere um tipo particularmente mesquinho. O racismo e o fascismo são apenas a continuação desta ideologia liberal da concorrência por outros meios, transferindo o esquema concorrencial do liberalismo para grupos étnicos, "povos" e outros sujeitos colectivos irracionais. A este respeito, não é de modo nenhum um exagero descrever o fascismo como um descendente histórico do liberalismo, que é hegemónico na ideologia da modernização como um todo.

Em última análise, isto também se aplica à questão do Estado repressivo e dos seus aparelhos de administração humana. Depois ter condenado os humanos como mónadas existenciais ao bellum omnium contra omnes, Hobbes teve de procurar aquele "poder superior" que deveria domesticar o suposto macaco predador humano na socialidade negativa. Para que os indivíduos abstractos, em sua concorrência assassina, não se despedaçassem nem se comessem completamente uns aos outros, ele construiu assim o Estado, como força coerciva necessária que deve estar acima do indivíduo, e à qual deu o nome do monstro bíblico "Leviatã". Os muitos pequenos monstros do individualismo da concorrência da economia de mercado devem ser domesticados pelo grande monstro total do Estado "Leviatã" e acorrentados à ordem, para que possam celebrar contratos uns com os outros sem caírem imediatamente uns sobre os outros com dentes, garras e facas. Uma deliciosa forma de socialidade que nem pigmeus, nem aborígines, nem mesmo as hordas de Genghis Khan jamais conheceram. Mas, para o pensamento moderno (não apenas para o liberal, mas ainda mais para o conservador e radical de direita), este motivo de "domesticação institucional do homem predador" tornou-se constitutivo, por exemplo, no século XX, na versão antropologicamente sofisticada de Arnold Gehlen (1904-1976).

O "Leviatã" é, naturalmente, tão pouco uma instituição de comunhão cultural e social como a selva social do mercado. Porque o Estado não elimina a concorrência total; é apenas uma violência repressiva e externa aos combatentes sociais isolados, um aparelho que constrói improvisadas condições de enquadramento comuns para os sujeitos delirantes do mercado. Isto não mudou desde Hobbes. E o terrível é que os indivíduos humanos, depois de mais de 400 anos de economia de mercado, agora supõem ser esses insanos macacos predadores aos quais foram ideologicamente declarados pertencer, embora a maioria deles, na verdade, não passe de forragem viva para o processo de valorização do capital. Hobbes não era um especialista em "natureza humana", mas um amargo e sinistro profeta da economia de mercado.

Com a ideia do "Leviatã", Hobbes, naturalmente, veio ao encontro do absolutismo. Ele foi considerado como um propagandista da Coroa e das tendências para o Estado absoluto, que também eram fortemente pronunciadas na Inglaterra. Assim não surpreende que, após a execução de Carlos I (1649), o ditador republicano e fundamentalista Oliver Cromwell (1599-1658) também o tenha apreciado. De facto, a teoria da sociedade e do Estado de Hobbes não está fixada a um determinado tipo concreto e, portanto, foi capaz de fornecer o padrão básico para todos os modernos tipos de sociedade e formas de Estado, em modificações e mitigações constitucionais, por exemplo, através do seu sucessor John Locke (1632-1704). Este esquema abstracto permaneceu o mesmo, e suas premissas ainda hoje são repetidas com a mesma rigidez pelos principais liberais. Assim, um liberal contemporâneo como Ralf Dahrendorf deixa de lado o seu tom reflexivo, geralmente suave, assim que se trata do essencial, e ataca a ideia de Marx de "associação de pessoas livres" e a ideia de Habermas de uma "comunicação sem dominação", com um gesto contorcido pela raiva:

"Mas todas estas esperanças são ilusões. Na prática, todas as associações sociais exigem dominação, e isso é uma coisa boa [...] Quaisquer histórias que os etnólogos nos possam contar sobre ‘tribos sem dominantes’ têm pouca plausibilidade [...] Sociedade significa dominação [...] A sociedade não é agradável, mas é necessária" (Dahrendorf 1992, 47 ss.).

Qualquer realidade histórica e qualquer pensamento fora da imaginação condicionada pela economia de mercado é "pouco plausível", podendo ser varrida "se necessário", não duvidemos, com tanques e metralhadoras. A sociedade deve ser e permanecer o que o capitalismo fez dela: a indigência "necessária", amarga e artificialmente gerada, que obriga o indivíduo a entregar-se à "necessidade" ditada pelo mercado mundial. Entretanto, também a ex-esquerda ocidental, que se transformou neste "realismo" capitalista, está a colocar este ponto em evidência, como uma ilustre vice-presidente verde do Bundestag alemão conseguiu formular com um trémulo antropologizador:

"Tudo começa com o ser humano a ter desejos. Tudo começa com a escassez. Tudo começa com o facto de o ser humano não estar sozinho. Tudo começa com a inevitável situação concorrencial em todos os dados básicos da existência. Alimentação, amor parental, trabalho, espaço, ar para respirar, reconhecimento e dignidade humana, tudo é escasso [...] Portanto, toda a violência vem da intensidade com que desejamos algo e do facto de nos encontrarmos com seres humanos semelhantes que partilham connosco os mesmos desejos com a mesma intensidade. Assim, a violência na verdade vem da luta pela existência, como disse Nietzsche. O estranho neste processo é que a luta pela existência não é apenas inflamada em tempos de necessidade material, mas é possível em qualquer momento em que simplesmente uma situação concorrencial é dada ou sentida" (Vollmer 1996,69).

Talvez até mesmo Hobbes tivesse ficado embaraçado com uma argumentação tão grosseira, pois sua premissa misantrópica ainda não estava tão simplesmente em curto-circuito com os axiomas da economia capitalista. A modalidade da argumentação de Vollmer, que mais não representa que uma transparente racionalização da sua própria mutação ideológica, zomba de todo o conhecimento sobre as sociedades históricas. Uma concorrência no interior da sociedade por coisas como "comida", fora de uma situação extrema de catástrofes naturais, teria parecido absurda a todas as pessoas pré-capitalistas, não "ter de comer tudo" e dar os restos aos porcos era considerado como o nível mínimo de auto-estima, mesmo pelos camponeses mais pobres. E os efeitos violentos da paixão, como as acções bélicas, nem sequer sob tortura teriam sido justificados com o motivo de uma "concorrência derivada da escassez", ou pelo muito bom do "trabalho". Mesmo o "ar para respirar", no sentido de um espaço pessoal em grande escala ou de um espaço social livre de concorrência, foi retirado à maioria das pessoas apenas pelo "profundo" princípio da concorrência capitalista e pelo mesquinho modo de contabilização e atribuição da economia de mercado; no que diz respeito ao ar respirável literalmente físico, a Sra. Vollmer até antecipa o sistema de produção de mercadorias, embora este esteja, sem dúvida, trabalhando com força para transformar mesmo um "bem" tão elementar num "bem escasso" que possa ser racionado pela economia de mercado.

Não só a comida, mas também a violência da auto-afirmação se tornaram miseráveis na história da imposição da economia de mercado. Hobbes (como Nietzsche mais tarde) tinha pelo menos em mente a ficção sombriamente grandiosa de um predador genuíno, enquanto a concorrência de rato de Vollmer, por queijo, amor, "trabalho" e possivelmente até mesmo por migalhas de ar, insulta até mesmo a honesta misantropia. O liberalismo constitucional (e mais tarde, no século XX, democrático) marca um ponto de uma baixeza insuperável na história das ideias, rebaixando tanto os motivos da violência quanto a sua crítica, ao nível da malvadez financeira pequeno-burguesa e do estatalmente submisso e crispado "medo de chatices" perante as autoridades policiais.

Com a mudança explícita do egoísmo individual para a motivação concorrencial puramente de economia de mercado e a sua justificação como movens "naturalmente necessário", mais tarde o liberalismo alterou o equilíbrio no constructo desumano de Hobbes. O próprio Hobbes ainda não argumentou "economisticamente" no verdadeiro sentido, tendo permanecido aberto a uma interpretação absolutista ou mercantilista de "Leviatã", como virtual empreendedor capitalista total. Por seu lado, o liberalismo não só assumiu a imagem do ser humano de Hobbes, mas também o construto do "Leviatã", tendo o sujeito económico do empreendedorismo capitalista sido introduzido apenas como um pólo "necessariamente" independente.

Assim, a doutrina liberal que seguiu Hobbes e expandiu a sua argumentação apenas ajustou a relação entre a economia de mercado e o Estado num sentido funcionalista, processando a dinâmica própria da concorrência ou dos seus sujeitos, sem abandonar o "Leviatã" como força de dominação. O grande monstro deve garantir repressivamente o livre jogo das forças da concorrência, tanto a nível externo como interno. No caso do ideal liberal, o Estado pode e deve continuar a concorrência para o exterior, na selva das nações predadoras, por meios militares, desde as conquistas coloniais até ao massacre nacionalista da Sra. Thatcher nas Falkland. E internamente, além do mais, pode e deve, mas deve incondicionalmente, com o punho de ferro de um aparelho de violência fortemente armado, impedir as vítimas da concorrência de organizar uma vida diferente da que é imposta pelos ditames das "leis de mercado". Não foi preciso um Pinochet para provar que a ditadura sangrenta, o Estado policial e os esquadrões da morte são muito compatíveis com um liberalismo económico consistente e uma economia de mercado "livre".

O liberalismo tem tão pouca confiança nos efeitos benéficos da sua "liberdade" que tem de se entregar repetidamente ao "Leviatã": Por um lado, ele considera o "ser humano", ou seja, todos as pessoas sem excepção, como combatentes isolados, lutando entre si com um ódio de morte, e que precisam do aparelho de Estado como moderador para poderem viver; mas, por outro lado, o Leviatã também é usado para chicotear e atormentar todos aqueles que não se curvam à imagem negativa do ser humano nem lhe querem corresponder, porque sabem ou são capazes de imaginar outras coisas.

É por isso que o liberalismo não só surgiu da cabeça do absolutismo, como também pode voltar a assumir uma forma absolutista a qualquer momento. A este respeito, também, tanto o fascismo como o socialismo de Estado (e todas as ditaduras modernizadoras em geral) foram apenas variantes ou manifestações do Proteu liberal, cujo denominador comum, como já na forma original dos séculos XVI e XVII, foi sempre a expansão e a socialmente usurpadora pretensão da forma de mercadoria e das relações monetárias a uma "economificação" ou "valorização" tendencialmente total da sociedade.

Tal como as formas originais de absolutismo e liberalismo histórico no Ocidente, também os regimes de socialismo de Estado ou de "libertação nacional" da modernização atrasada no Leste e no Sul consideraram a população dos seus Estados como uma "força de trabalho total abstracta", a ser mobilizada e regulada para fins de "criação de valor" económico nacional, independentemente do seu bem-estar. E, assim como a livre concorrência do Ocidente sempre incluiu enormes aparelhos burocráticos do Estado, o planeamento burocrático do absolutismo tardio do socialismo de Estado não poderia passar sem elementos de "incentivos monetários individuais", concorrência económica empresarial e reformas da "economia de mercado". Onde quer que as pessoas sejam treinadas como animais de circo para os truques do dinheiro e do "trabalho abstracto", os domadores têm de ameaçá-los com o chicote em nome do poder e atraí-los com melosos bombonzinhos compensatórios.

Tanto histórica como estruturalmente, o contraste entre mercado e Estado, capital privado e economia estatal, elites económicas e políticas é sempre apenas a tensão entre os dois pólos de um mesmo campo social, com saltos possíveis a qualquer momento. A transição quase suave das elites funcionais do socialismo de Estado para o radicalismo do mercado neoliberal, após 1989, não tem aqui nada de surpreendente. O Proteu da "modernização" só mudou de forma mais uma vez, mas não mudou sua natureza interior. A fixação na mera oposição externa entre ideologia de mercado e ideologia de Estado é, por assim dizer, um truque histórico e um jogo do absolutismo-liberalismo na sua cambiante natureza dual. Ele compreendeu como atrair os movimentos de libertação social para uma armadilha lógica e cultural e, finalmente, caçar até à morte o coelho da emancipação entre as suas duas figuras de ouriço da individualidade monetária e do poder estatal.

Enquanto Hobbes, como patriarca desta ideologia, ainda representava ambos os momentos por igual, a polaridade da "modernização" repressiva desde então tem-se diferenciado de acordo com os países e as épocas: A Inglaterra e mais tarde o mundo anglo-saxónico como um todo são considerados a pátria do liberalismo económico, enquanto o continente europeu (especialmente a Alemanha) e o Oriente são considerados a pátria do absolutismo estatal, embora os dois elementos da moderna pretensão de poder se tenham permeado e condicionado um ao outro em toda a parte. O facto de a Inglaterra ter desempenhado esse papel pode ser explicado pela história, que Hobbes testemunhou e interpretou: se, a partir da guerra civil inglesa do século XVII (e certamente com um olhar de soslaio para a Guerra dos Trinta Anos no Continente), ele apresentou, como pensador desesperado, a sua atrofiada imagem do ser humano, os resultados dessa guerra civil em 1688, com a restauração moderada de uma realeza controlada parlamentarmente, que deixou aos "senhores privados" margem suficiente para os seus próprios empreendimentos desastrosos, forneceram o ponto de partida social para o desenvolvimento do liberalismo; pois, em contraste com o Continente, nenhum absolutismo centrado na economia estatal poderia emergir na Inglaterra desde então, mas sim uma iniciativa privada orientada para o mercado mundial e apoiada pelo Estado, que, evidentemente, no século XVII, ainda se baseava na propriedade local da terra (a "gentry", pequena nobreza) e nos arrendatários privados, ou seja, não era de modo nenhum empreendedorismo no sentido moderno. Mas este foi o terreno sobre o qual o capitalismo privado se pôde desenvolver mais rapidamente e com o mínimo de restrições.

O liberalismo económico anglo-saxónico, que queria instrumentalizar a máquina estatal mais para os interesses dos "empreendedores" capitalistas privados, adoptou depois as ideias de alguns economistas franceses nesse sentido, que foram menos capazes de se afirmar permanentemente na própria França. Estes chamados "fisiocratas", com François Quesnay (1694-1774) à cabeça, que já em seu nome indicavam o credo liberal geral de uma suposta "regra da natureza" económica, exigiam que a economia fosse deixada à "ordre naturel". Os indivíduos atomizados acorrentados à lei do dinheiro deveriam ser tão móveis quanto o próprio dinheiro e, com base no modo de produção capitalista emergente, deveriam ser autorizados a agir como egoístas naturais, ao seu próprio critério e para seu próprio benefício; pensava-se aqui "naturalmente" sobretudo nos patrões da fábrica e do comércio, na sua relação com o Estado absolutista.

Essa doutrina, resumida no famoso slogan "Laissez faire et laissez passer, le monde va de lui-meme" (Deixai fazer e deixai acontecer, o mundo segue o seu próprio caminho), ou resumidamente "Laissez faire", permaneceu na própria França um episódio entre a economia estatal absolutista de Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), Ministro da economia de Luís XIV, e o regime económico igualmente amplamente estatal da Revolução. O liberalismo anglo-saxónico, por outro lado, expandiu sistematicamente esta palavra de ordem, assim marcando um acento decisivo na história da modernização. Pois as ideias económicas liberais aproximavam-se mais da lógica interna do modo de produção capitalista como ele se desenvolveria nos dois séculos seguintes.

Vícios privados, benefícios públicos

Inicialmente, porém, havia uma certa dificuldade moral no avanço do liberalismo e da sua "livre" economia de mercado. Para Hobbes, infelizmente, o concorrente individual pseudonatural é determinado de modo puramente negativo, como a natureza predatória do homem a ser domesticado. O homem ideal capitalista ainda aparece aqui como uma besta monstruosa, enquanto o lado positivo pertence apenas ao domador estatal, que, por sua vez, tem de assumir os traços de um monstro para poder cumprir a sua missão. Se, no entanto, essa relação fosse revertida e o próprio sujeito da concorrência fosse determinado positivamente, então as qualidades que até então sempre foram consideradas más, maliciosas e inferiores na história da humanidade teriam de ser elevadas ao estatuto de nobreza moral. Nesse sentido, o liberalismo realizou a "transvaloração de todos os valores" muito antes de Nietzsche.

A grande brecha no muro de todas as concepções morais anteriores foi feita por um dos mais brilhantes cínicos do pensamento moderno, um duro panfletista e ousado publicista, que, no entanto, nem sempre é admitido de bom grado como grande inspirador. Bernard Mandeville (1670-1733), inglês de origem holandesa, médico, filósofo do Iluminismo e conhecedor das condições do capitalismo inicial no Continente e nas Ilhas Britânicas, forneceu uma orientação cuja clareza e acuidade nunca mais foi alcançada. Com razão, porque Mandeville renunciou a qualquer branqueamento ideológico. Sua rigorosa justificação da economia de mercado respira um cinismo tão corrosivo que ainda hoje existem dúvidas se ele não quis realmente escrever uma sátira sombria sobre a maravilhosa modernidade capitalista. É provavelmente da natureza das coisas que qualquer justificação aberta e sem verniz deste sistema social pode também ser lida como uma crítica devastadora. Karl Marx, que amava cínicos desse tipo, chamou Mandeville de "cabeça brilhante", "mais honesto que os filisteus apologistas da sociedade burguesa".

Mandeville começou a expor os seus pensamentos em 1705, com a ajuda de versos de quatro sílabas tónicas, num poema panfletário que até 1723 não só teve várias edições, mas também cresceu para formar um livro, com notas explicativas e comentários do autor, tendo sido traduzido muitas vezes e conseguido obter impacto no interior do discurso do Iluminismo. A chamada Fábula das Abelhas, no entanto, nada tinha a ver com a antiga e tranquila imagem das abelhas como "animais diligentes"; ou, no máximo, no sentido da amarga caricatura que viria a tornar-se a marca registada do autor. Já o subtítulo Vícios Privados, Benefícios Públicos revela do que se trata. Todas as características desagradáveis do egoísmo, da ganância pelo dinheiro, do engano mútuo e da concorrência, até sanguinária, são supostamente as únicas que acabam por fazer de uma sociedade (e Mandeville pensa expressamente na sociedade inglesa sua contemporânea) uma "comunidade florescente". Como algumas passagens decisivas mostram, a imagem de uma colónia de abelhas amorais serve para espelhar esta ideia básica:

Assim, cada parte estava cheia de vício,
O todo, porém, era um paraíso;
Aduladas na paz e temidas nas guerras,
Eram estimadas pelos estrangeiros.
Pródigas na riqueza e no modo como viviam
Equilibravam todas as outras colmeias.
Tais eram as benesses daquele Estado.
Seus crimes conspiravam para torná-las grandiosas:
E a virtude, que, com a política,
Aprendera milhares de truques ardilosos,
Foi, graças à feliz influência,
Tornando-se amiga do vício: desde aquele dia,
O pior tipo de toda a multidão
Para o bem comum contribuía...
Assim o vício cuidava do engenho
Que se juntou ao tempo; e à indústria
Propiciava as conveniências da vida,
Os verdadeiros prazeres, confortos e comodidades...
Gozar das comodidades do mundo,
Afamar-se na guerra e viver no conforto,
Sem grandes vícios, é uma vã
Utopia inculcada no cérebro.
A fraude, o luxo e o orgulho devem viver,
Enquanto usufruímos dos benefícios…
Assim o vício torna-se benéfico,
Quando aparado e limitado pela justiça;
Ora, quando um povo quer engrandecer,
O vício é tão necessário ao Estado,
Quanto a fome que nos faz comer.
A virtude sozinha não pode fazer as nações viverem
Em esplendor; os que querem reviver
A idade de ouro devem se libertar
Das bolotas de carvalho, assim como da honestidade.

Mandeville forneceu assim o padrão básico (que ele mesmo chamou de "estranho paradoxo") para a canonização liberal dos mais baixos instintos anti-sociais. Naturalmente que, se o resultado geral da malícia individual fosse o "bem-estar do Estado", isso não significaria de modo nenhum o bem-estar de todos os seres humanos. Pois foi apenas o próprio capitalismo que conseguiu levar grandes massas de pessoas a uma pobreza tão artificial e socialmente gerada à escala mundial que elas realmente tiveram de "comer bolotas". Em última análise, o bom resultado dos maus instintos deve aplicar-se explicitamente apenas aos "melhores ganhadores", bem como à abstracta conta estatal total. Infelizmente, porém, como diz Mandeville com ironia sem precedentes em suas dissertações sobre a Fábula das Abelhas, a massa do gado humano trabalhador teve de ser forçada a "trabalhar" o mais inteligentemente possível:

“Todos sabem que existe um grande número de diaristas, como fiandeiros, alfaiates, tecelões e outros vinte e tantos ofícios; os quais, se por quatro dias de trabalho numa semana conseguem se sustentar, dificilmente serão persuadidos a trabalhar cinco; e há milhares de trabalhadores de vários segmentos que, mesmo tendo apenas o que lhes permite subsistir, vão inventar cinquenta inconvenientes, desobedecer seus amos, apertar seu cinto, endividar-se, para poder tirar uma folga. Quando os homens demonstram proclividade tão extraordinária ao ócio e ao prazer, que razão temos para pensar que trabalhariam, a não ser que fossem obrigados por uma necessidade imediata? […] O que seria, num tal ritmo, de nossas manufaturas? Se um mercador quiser exportar tecido, ele próprio deverá fabricá-lo, pois o fabricante de tecidos não conseguirá um só homem dos doze que trabalham para ele. […] Do que se demonstra que tudo o que se obtém em abundância barateia o trabalho, onde os pobres são bem manobrados; os quais, assim como se deve evitar que passem fome, não devem receber o tanto que lhes permita poupar. Se aqui e ali alguém da classe mais baixa, por uma dedicação incomum, e apertando o cinto, consegue alçar-se acima da condição na qual foi criado, ninguém deve impedi-lo; ou melhor, é inegavelmente mais sábio que cada pessoa na sociedade e que cada família particular levem uma vida frugal; mas é do interesse de todas as nações ricas que a maior parte dos pobres quase nunca seja ociosa e que, ainda assim, gaste continuamente o que ganha.” (Mandeville 2017/1723, 193s.).

Aqui, pela primeira vez, torna-se clara uma mentalidade que até hoje caracteriza no fundo o liberalismo como ideologia fundamental, o pensamento dos "empreendedores" capitalistas, dos funcionários, executivos, elites, dos herdeiros da riqueza e dos representantes da respeitabilidade, seriedade e solvência burguesas: a saber, o sentimento basicamente provocador e insolente de que se nasceu para o melhor e se é chamado ao "superior", no sentido de "capacidade de imposição" na economia de mercado e no fazer dinheiro, enquanto teria de haver uma massa menos rica de material humano, fatalmente escolhida para o "trabalho", mas por natureza teimosa e preguiçosa de um modo pouco razoável e francamente "imoral", exigindo assim a mão forte de um guardião com potestas para ser levada ao seu destino subalterno. Mandeville realmente não poupa nas palavras. Ele declara a "simpatia e compaixão pela desgraça e miséria dos outros" um sentimento das "mentes mais fracas", especialmente mulheres e crianças, ao qual os homens do mercado não devem ceder:

“Onde a caridade é muito disseminada, raramente deixa de promover a preguiça e a indolência, e numa colectividade só serve para criar zangões e destruir a indústria. Quanto mais construírem colégios e asilos de pobres, mais disso se terá [...] Não tenho nenhum plano que seja cruel nem o menor intuito com cheiro de desumanidade. Ter hospitais em quantidade suficiente para enfermos e feridos, considero um dever indispensável na paz e na guerra: crianças sem pais, idosos sem auxílio e todos os impossibilitados de trabalhar deveriam ser cuidados com atenção e alacridade. Mas assim como, de um lado, eu não gostaria de descuidar nenhum desamparado e realmente necessitado, não sendo responsável por sua própria condição; não gostaria também, por outro lado, de encorajar a mendicância ou a preguiça dos pobres: todos que de alguma forma fossem capazes deveriam trabalhar; mesmo os enfermos deveriam ser escrutinados; empregos poderiam ser encontrados para a maioria de nossos aleijados e cegos [...].” (Mandeville 2017/1723, 275s.).

A este respeito, também, o "duplipensar" e a "novilíngua" do liberalismo desde o século XVIII fala com uma duplicidade profissional: "Em princípio", confessa-se a crença nos "mandamentos da humanidade", mas apenas "na medida do necessário"; e esta necessidade deve ser reduzida ao menor grau possível, a fim de prender mesmo os velhos, os doentes e os fracos, os cegos e os coxos, na máquina da valorização do capital, e extrair deles as últimas reservas. Esta é a fonte ideológica sombria de que ainda hoje bebem Ronald Reagan e Margaret Thatcher, Newt Gingrich ou Count Lambsdorff. No seu ajuste de contas com a "compaixão exagerada", Mandeville até ataca as "escolas de caridade", que a hipocrisia burguesa e a consciência culpada tinham trazido à existência. E, mais uma vez, os seus argumentos são tão corrosivos que ameaçam cair na sua própria crítica radical:

“O que é preciso considerar em seguida são os costumes e a civilidade que devem ser implantados pelas escolas de caridade nos pobres da nação. Na minha opinião, admito que possuir em algum grau essa qualidade que nomeei é uma frivolidade, quando não um malefício; para o trabalhador pobre, nada pode ser menos necessário. Deles não esperamos cumprimentos, mas trabalho e assiduidade.” (Mandeville 2017/1723, 277).

Isso, na verdade, é o que sempre se pensa por detrás da face suave e liberal, e Mandeville tem o mérito de o ter expressado francamente. Isto é ainda mais verdadeiro em suas perspicazes observações sobre a educação escolar como um luxo ou uma necessidade:

“A partir do que foi dito, é evidente que numa nação livre, onde a escravidão não é permitida, a mais segura riqueza consiste numa multidão de trabalhadores pobres; pois, além de ser um viveiro infalível da marinha e do exército, sem eles não poderia haver nenhum prazer, e nenhum produto de nenhum país teria valor. Para tornar a sociedade feliz e o povo tranquilo, sob as mais humildes circunstâncias, é necessário que um grande número de pessoas seja ignorante e também pobre […] Portanto, o bem-estar e a felicidade de cada Estado e reino exigem que o conhecimento de trabalhadores pobres seja confinado nos limites de suas ocupações, e nunca se estenda (em relação às coisas visíveis) além do que está relacionado à sua profissão. Quanto mais um pastor, um lavrador ou qualquer campónio sabe sobre o mundo e sobre coisas alheias a seu trabalho ou emprego, menos estará em condições de suportar as fadigas e penúrias com alegria e contentamento. Saber ler e escrever e conhecer aritmética são coisas muito necessárias àqueles cujos negócios exigem tais qualificações; mas onde a subsistência das pessoas não depende dessas artes, estas são muito perniciosas aos pobres, que são obrigados a conseguir o pão de cada dia pelo seu trabalho de cada dia. Poucas crianças fazem algum progresso na escola se forem capazes, ao mesmo tempo, de se dedicar a uma ou outra tarefa; de modo que cada hora que essas pobres pessoas passam com seus livros é um tempo perdido para a sociedade. Ir à escola, em comparação com qualquer trabalho, é indolência, e quanto mais os meninos permanecem nessa vida fácil, tanto mais estarão despreparados, quando crescerem, para o trabalho efectivo, tanto em força como em inclinação. Os homens que devem permanecer e terminar os seus dias numa posição social laboriosa, cansativa e penosa, tão logo sejam explorados desde o início, com mais paciência se lhe submeterão para sempre. [...] Um homem que teve alguma formação pode se dedicar à agricultura por gosto e ser diligente no mais sujo e penoso trabalho; mas, num tal caso, o negócio deve ser seu [...] Mas ele não será um bom trabalhador diarista que serve a um fazendeiro por um retorno miserável; ou ao menos não será tão adequado a esse trabalho quanto um diarista que sempre se ocupou com o arado e o carrinho de esterco e que não se lembra se alguma vez viveu de outra forma. Quando a obsequiosidade e a subserviência são necessárias, sempre observamos que elas nunca são executadas de modo tão alegre e voluntarioso do que quando são feitas pelos inferiores para com os superiores; digo inferiores não apenas em riquezas e atributos, mas também em conhecimento e inteligência. Um criado não pode ter nenhum respeito sincero por seu senhor quando tem discernimento suficiente para perceber que serve um tonto. [...] Nenhuma criatura se submete com satisfação a seus iguais, e se um cavalo tiver tanto conhecimento quanto um homem, eu não desejaria ser seu cavaleiro.” (Mandeville 2017/1723, 297ss.)

Se algo fica "claro" aqui, é a verdadeira natureza das "nações livres" capitalistas ocidentais, onde "escravos não são permitidos" (o que nem sempre é a regra, como mostra a história do capitalismo agrário até hoje), mas o liberalismo tem trabalhado nisso por quase 300 anos e conseguiu instalar um novo tipo de escravidão com correntes invisíveis. Ao mesmo tempo, Mandeville abre a visão para a alma do conhecimento capitalista: ele nunca deve ser conhecimento livre, mas deve permanecer sempre um mero conhecimento funcional, de auto-esmagamento para um propósito monstruoso, além de qualquer conhecimento.

Portanto, o acesso ao conhecimento "superior" em todos os estágios da modernização tem sido repetidamente sujeito a restrições; e a mesma autocompreensão burguesa, fundada em nada, de que da classe média para cima mesmo a criança mais estúpida "de sua própria carne e sangue" sofra tortura, com milhares de injecções ao longo do ensino obrigatório, é sempre a primeira disposta, perante a escassez das finanças públicas, a cancelar a frequência gratuita das escolas superiores ou universidades, e até mesmo a tirar a "igualdade de oportunidades" capitalista aos "filhos dos pobres" (ou submetê-los antecipadamente a uma "selecção de talentos" para o conhecimento da dominação).

Além disso, o conhecimento foi reduzido tão sistemática e perfeitamente quanto possível ao "domínio do necessário" no sentido capitalista da palavra e imbuído de formação em obediência, na medida em que se sentiu a necessidade de comunicá-lo "para baixo" desde o século XIX por razões funcionais de valorização do capital. O que o poeta Rainer Kunze formulou apropriadamente, mas apenas com referência à experiência da ditadura estatal socialista do conhecimento, aplica-se na verdade a todo o estúpido conhecimento escolarizado do sistema moderno de produção de mercadorias: "Ignorantes, para que continueis ignorantes, vamos escolarizar-vos". Além disso, o capitalismo tem tido sucesso no treino de indivíduos para internalizar esta forma de conhecimento como auto-estupidificação; isso mesmo testemunham os actuais estudantes de economia, aerodinamicamente conformistas e conscientes da carreira, que já por si não amam o conhecimento e querem apenas absorver, o mais endovenosamente possível, o conhecimento funcional de sucesso para de algum modo estupidamente "ganharem dinheiro". O que quer que alguém possa estudar hoje em dia, é sempre apenas uma variação da economia empresarial.

Mandeville não deixa dúvidas, finalmente, de que a comunidade canina (já literal em Hobbes) de uma sociedade que instalou "vícios privados como benefícios sociais" para um propósito estatal absurdo, e está impiedosamente preparada para sacrificar os interesses vitais da maioria por isso, só pode ser mantida com dureza impiedosa; o que nos traz de volta ao Leviatã. O mesmo sofisma que quer vender a malévola e gananciosa capacidade individual de se afirmar no terreno do mercado como uma virtude da sociedade como um todo tem de amar, tal como a "liberdade" do mercado, também a prisão e a forca para a delinquência inevitável em tal sociedade:

“E esse é um dos maiores inconvenientes de cidades grandes e populosas como Londres ou Paris, que abrigam velhacos e vilões como insectos nos celeiros […] E quando são capturados, se as provas não são muito claras, de algum modo insuficientes, e os testemunhos não são muito convincentes, os jurados e juízes são tomados de compaixão; os promotores, embora de início sejam enérgicos, frequentemente se compadecem antes que se inicie o julgamento […] Um homem de bom coração não se reconcilia facilmente consigo mesmo por tirar a vida de outro, ainda que este tenha merecido a forca. Ser a causa da morte de quem quer que seja, ainda que a justiça o exija, é o que mais assusta a maioria das pessoas, especialmente os homens de consciência e probidade, quando lhes falta juízo ou resolução; e tal é a razão pela qual escapam milhares que merecem a pena capital, como também para que existam tantos delinquentes que ousadamente se aventuram, na esperança de que, se forem apanhados, tenham a mesma sorte de conseguir escapar. Mas se os homens imaginassem e estivessem plenamente persuadidos de que, tão certos de que cometeram algo que merece a forca, seriam também seguramente enforcados, as execuções seriam muito mais raras, e o gatuno mais desesperado praticamente se enforcaria assim que arrombasse uma casa.” (Mandeville 2017/1723, 279s.)

Este afirmar da ilusão da dissuasão tornou-se também o arquétipo do pensamento liberal: Não são as causas sociais do crime que têm de ser eliminadas, mas tem de se mostrar força policial e legal. A pobreza gerada pelo capitalismo é redefinida como um "problema de segurança". No meio da miséria, os vencedores devem poder desfrutar de todos os frutos da assertividade na economia de mercado, sem entraves e despreocupadamente. Mandeville completou assim o cânone "ético" da doutrina liberal. Pela cruel honestidade com que o fez, merece um agradecimento histórico e um lugar de honra no panteão do engenhoso cinismo capitalista.

Fragmento de O Livro negro do capitalismo, 1999.
Original Die schwarze Utopie der totalen Konkurrenz. Eine Gesellschaft von Ungeheuern.
Private Laster als öffentliche Vorteile
. Pags. 18-28 de Schwarzbuch Kapitalismus.
Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft
.
Integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. 
Tradução de Boaventura Antunes


Inclusão: 06/11/2020