O livro negro do capitalismo
Um canto de despedida da economia de mercado

Robert Kurz


A maior felicidade possível para o maior número possível


capa

O liberalismo, como ideologia original e raiz de todas as ideologias modernas, que todas elas começam cegamente a partir da mesma base axiomática de um sistema de produção de mercadorias e de "trabalho abstracto" (emprego remunerado por dinheiro) como sua forma de actividade, já havia reunido suas contradições centrais na época entre Thomas Hobbes e Adam Smith: por um lado, o postulado da individualidade "livre" e incontestada, por outro, o monstro repressivo e coercivo do "Leviatã"; por um lado, o princípio da responsabilidade individual e a negociação de contratos (contratos de trabalho, contratos comerciais, etc.) entre sujeitos supostamente autónomos, por outro, o pressuposto de uma máquina social do capital, sem sujeito e automática, com um mecanismo de preços auto-regulativo; por um lado, a promessa de um efeito benfazejo e de aumento do bem-estar da "mão invisível", por outro, a produção mundial de pobreza em massa que é tão artificial (não mais decorrente de restrições naturais) quanto historicamente sem precedentes.

Especialmente por detrás do postulado liberal da responsabilidade pessoal esconde-se um cinismo sem fundo e provocador, mas ao mesmo tempo sistemicamente objectivado; pois a auto-actividade exigida refere-se a um indivíduo abstracto, despido de todos os meios autodeterminados de cooperação social e de reprodução da sua própria vida. Nestas condições, "auto-responsabilidade" não significa outra coisa senão entregar-se completamente aos "ditames dos mercados", procurar avidamente "trabalho" em todas as circunstâncias (mesmo as mais degradantes) e "tirar o melhor partido" da impertinência permanente, sem nunca questionar nem mesmo em sonho o absurdo constructo social.

Já Leibniz havia classificado este mundo moderno de extraordinárias impertinências como "o melhor de todos os possíveis"; e os discípulos da economia de mercado fizeram disso a engenhosa autoconfiança de que o sistema certamente tinha muitas falhas, sim, em alguns aspectos era absolutamente horrível, mas era simplesmente o melhor de todos os possíveis e até agora conhecidos. Quanto mais as categorias capitalistas do ganho mergulhavam no corpo social e eram gravadas como traços orientadores da vida, mais paradoxal e mais ostensivamente suave se tornava o tom do raciocínio capitalista. Os ideólogos liberais vêem-se agora como amigos da humanidade, que "querem apenas o melhor"; sob as férreas condições da economia de mercado, é claro.

Depois dos cínicos e dos mecanicistas teólogos do sistema, entraram no palco da história da modernização os optimistas profissionais, curandeiros, animadores e apresentadores do bem geral. O primeiro é um incrível "filósofo da felicidade". Jeremy Bentham (1748-1832), advogado inglês, propagou o princípio ético de "a maior felicidade possível para o maior número possível". Esse princípio também remonta ao Iluminismo Escocês, às ideias do filósofo Francis Hutcheson (1694-1747), um professor de Adam Smith. O capitalismo é agora interpretado com um olhar benevolente, como uma sociedade que dá ou deveria dar a cada ser humano o direito de "construir a sua própria felicidade". Sob a fórmula da "busca da felicidade", esse "direito" foi até mesmo incluído na famosa Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776:

“Consideramos como verdades auto-evidentes que todos os Homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”

Bentham foi o primeiro a desenvolver sistematicamente como teoria esta ideologia da felicidade, que reinterpreta a imposição do capitalismo como uma doce promessa. Depois de o mecanismo automático dos preços ter sido introduzido como condição, e de o culto da "mão invisível" ter sido instalado, o lado subjectivo do todo, ou seja, a ética da filantropia sob os aspectos da busca capitalista do ganho, podia ser novamente considerado. Bentham tem uma abordagem lógica em vários passos. Em primeiro lugar, ele afirma que a "maior felicidade possível para o maior número possível" só pode ser entendida como a geração de um "maior benefício possível". Sua filosofia da felicidade, portanto, se vê como uma filosofia da utilidade, como utilitarismo. Trata-se, portanto, de maximizar o benefício social. A questão seguinte é como medir objectivamente este benefício. Bentham não hesita na resposta — o critério é o dinheiro:

"Aqui eu gostaria de concluir uma trégua com um amigo sensível e compassivo quando falo uma linguagem tão orientada para o dinheiro. Faço-o inevitavelmente e gostaria também de exortar a humanidade a fazê-lo inevitavelmente. O termómetro é o instrumento para medir a temperatura exterior; o barómetro é o instrumento para medir a pressão do ar. Quem não estiver satisfeito com a exactidão destes instrumentos deve tentar encontrar outros, ou abandonar a ciência. O dinheiro é o instrumento para medir a quantidade de dor ou prazer [...] Portanto, ninguém deve ficar surpreso ou indignado quando descobre que neste trabalho eu meço tudo em valor monetário" (Bentham 1981/1843, 269).

A maximização da felicidade através da maximização da utilidade e, como sua medida, a maximização do dinheiro — esta construção encantadora poderia talvez tentar mentes ingénuas a assumir que a massa de dinheiro produzida pelo capitalismo deveria agora ser distribuída de acordo com alguns princípios de justiça. O filósofo da felicidade tem de pôr imediatamente termo a isso:

"Portanto, seria preciso tirar a conclusão [...] de que, com a introdução de uma constituição que teria estabelecido como meta a maior felicidade possível do maior número possível de pessoas, haveria causa suficiente para tirar a riqueza dos mais ricos e transferi-la para os menos ricos [...] Mas assim que se consideram os efeitos de segunda e terceira ordem, surge o efeito contrário: em vez da maior felicidade possível, haveria uma destruição completa da felicidade e também da existência. O mal de segunda ordem seria a aniquilação da felicidade por um mal-estar geral e a expansão do perigo até tornar-se certeza; o mal de terceira ordem seria a aniquilação da existência pela certeza de que não se gozará dos frutos do próprio trabalho, pelo que todo incentivo ao trabalho seria extinto. Para além da destruição que seria provocada pela concretização da igualdade — ou melhor, do sistema de igualitarismo [...] — até à sua consequência final — ou mesmo apenas por se ter de considerar que isso aconteceria — o agregado de felicidade também seria diminuído pelo facto de com a abundância desaparecer o fundo criado para ter um stock permanente de riqueza à disposição, que se exige para a manutenção segura dos meios de subsistência necessários" (Bentham, loc. cit., 267).

Numa palavra: a redistribuição para baixo é do mal e vai à substância da riqueza. Os "empreendedores" poderiam retirar-se ofendidos e deixar a humanidade na miséria completa de uma situação "sem empregador". Portanto, o movimento de acumulação de capital, a fonte de utilidade, que se transformou num "agregado de felicidade", não deve ser perturbado em nenhuma circunstância; e, deste ponto de vista, mesmo uma modesta demanda de prosperidade por parte do material humano capitalista pode possivelmente aparecer como pernicioso "igualitarismo" (uma ideia, aliás, que só se torna possível através da forma abstracta da riqueza capitalista). Bentham enfatiza muito rapidamente que com a "maior felicidade possível do maior número possível" a ênfase é bastante acentuada em "possível": isto é, possível, na medida em que compatível com as leis de movimento da "bela máquina". Faz-se o que se pode, mas para o indivíduo (e especialmente para o indivíduo na base da pirâmide capitalista da felicidade) a "felicidade possível" pode ser bem pequena. Mais precisamente — mesmo a fome pode permanecer como a única parte possível da felicidade:

"A consequência do facto de não haver o suficiente para assegurar o sustento de todos é a morte; e tal morte natural (!) é precedida por um caminho de sofrimento que é muito mais difícil do que o sofrimento associado à mais dolorosa morte violenta, que é imposta com o propósito de punição. Em vez de continuar a sofrer de tal aflição, aqueles que têm de suportar algo assim farão natural e necessariamente, na medida em que tiverem oportunidade, tudo o que puderem à custa dos outros para se protegerem; e, na medida em que forem feitos esforços para esse fim, ou na medida em que se presume que são empreendidos, a segurança da propriedade — e provavelmente também a segurança pessoal — de todos os outros irá naturalmente diminuir" (op. cit., 260).

O benevolente filósofo da felicidade, Bentham, tem, portanto, de reconhecer que "directamente a partir do objectivo universal, ou seja, a maior felicidade do maior número", na ordem dos "objetivos especiais" em nº 1, em qualquer caso — se perfila a "segurança" (loc. cit., 255). Bentham está preocupado com o problema da segurança, está quase obcecado com ele. No entanto, ao contrário de um cínico como Mandeville, ele é um filantropo convicto e sincero, pelo que não pode contentar-se com a referência à forca e à falta de compaixão. Além disso, tem de parecer duvidoso que a polícia, os militares, os juízes e os carrascos estejam suficientemente presentes e equipados para garantir a segurança, se a felicidade "possível" do "maior número" descer a mínimos lamentáveis.

Portanto, o liberalismo filantrópico tem um problema: é preciso ensinar o mais suavemente possível ao material humano capitalista que ele deve sempre aderir às regras do jogo, deve perder decentemente e não deve invadir abusivamente o "agregado de felicidade". Por conseguinte, o problema da segurança não é apenas um problema policial, mas sobretudo um problema pedagógico. Mandeville teve de ser corrigido neste ponto; ele tinha ultrapassado a marca, na medida em que tinha considerado a questão das "escola de caridade para pobres" apenas do ponto de vista do conhecimento necessário ou supérfluo (possivelmente até mesmo perigoso). Este aspecto tinha que permanecer "naturalmente" válido, mas agora foi acrescentado o postulado da pedagogia. Isto porque a disciplina do material humano não podia continuar a ser uma mera disciplina externa, baseada puramente na força coerciva. A funcionalização, restrição e controlo do conhecimento era uma coisa, mas outra (e talvez mais importante) era a preparação pedagógica, o adestramento fino para a finalidade capitalista, a prática da disciplina e a familiarização com as imposições. Além do uso da cenoura e do chicote, tornou-se necessária uma sistemática lavagem cerebral.

Portanto, não admira que a pedagogia moderna tenha surgido à medida que a modernização avançou, que a escolarização e a pedagogia popular em geral, bem como a pedagogia industrial tenham experimentado uma inesperada ascensão, e que tenham surgido os grandes pedagogos filantrópicos e teóricos da lavagem cerebral. Jean-Jacques Rousseau já tinha escrito o seu Emile, um romance educativo que, sob o pretexto da pedagogia "natural", propagava o treino nos comportamentos modernos e (como se viu) também nos papéis de género. Em contraste com o liberalismo inglês, Rousseau e a Revolução Francesa estavam mais orientadas para o lado "político" da modernização; Rousseau até desprezava o ganancioso burguês privado e propagou a "virtude cidadã" de um liberalismo estritamente político. Mas essa foi apenas a outra face da mesma moeda, e, na "ditadura da virtude" de Robespierre, o "Leviatã" de Hobbes reapareceu, contra a intenção ingénua de Rousseau, combinando absolutismo e liberalismo como ponto de partida comum — também na forma transformada do jacobinismo francês. E assim não é por acaso que o liberalismo económico inglês e o liberalismo político revolucionário francês se encontrem novamente, apesar de todos os contrastes externos, na questão da pedagogia popular e na elaboração de métodos de lavagem cerebral. Na "natureza" de Rousseau sempre entraram a liberal "ordre naturel" e a capitalista "segunda natureza" (obviamente sem ele mesmo disso ter consciência).

O que era "natural" era entendido pela maioria dos grandes pensadores da modernização no contexto da visão mecanicista do mundo. Assim como a máquina social mundial da economia de mercado de Smith correspondera à máquina física mundial de Newton, o monstro Hobbesiano "Leviatã" transformou-se gradualmente numa máquina estatal, e sua tarefa pedagógica de lavagem cerebral geral, como diz o historiador social Wolfgang Dreßen, foi logicamente apresentada como uma "máquina pedagógica" (Dreßen 1982). E ninguém foi tão inventivo e bem sucedido na construção desta máquina como o filósofo da felicidade e da utilidade, Jeremy Bentham.

Numa visão mecânica do mundo, faz sentido considerar e tratar o próprio ser humano como um objecto mecânico. O filósofo francês Julien Offroy de La Mettrie (1709-1751), um materialista anterior, já tinha publicado um livro intitulado L' Homme-Machine (O Homem Máquina) em 1748. A guilhotina como "máquina da virtude" também pode ser vista neste contexto. E se o Homem, como parte da máquina do mundo, representa ele próprio uma máquina e todos os seus impulsos são "funções", então, no sentido de lavagem cerebral pedagógica, é recomendado um tipo de processamento mecânico (nem sempre tem de ser a guilhotina). Se juntarmos este pensamento ao problema da segurança e à intenção capitalista de adestramento, então resulta dele a tarefa de permanente guarda e observação do objecto pedagógico. O velho Adão "pecador" da preguiça e da busca de prazer, que sempre ameaça recomeçar contra as imposições capitalistas e prejudica sua própria "felicidade", deve estar sob controlo a cada passo e sentir-se supervisionado até que esteja completamente morto e o "homem novo" funcione 24 horas por dia, como um ser transparente e absolutamente razoável. Não esquecer: tudo isso em nome da "liberdade", ou seja, a liberdade total de comprar e vender-se.

Mas seria demasiado dispendioso colocar um polícia e um educador atrás de cada pessoa. Além disso, quem haveria de educar os educadores? Em sua dupla qualidade de filósofo da felicidade e da utilidade, Bentham desenvolveu uma contribuição sustentável para a redução de custos pedagógicos e, ao mesmo tempo, optimizou a lavagem cerebral. A vigilância tinha de ser fácil de cuidar e simples; a longo prazo, o paciente deveria mesmo tornar-se o seu próprio guarda. O mecanismo auto-regulador do mercado tinha de ser completado por uma sociedade auto-reguladora, com indivíduos auto-reguladores. Este é também o secreto significado do imperativo iluminista de Kant de que o ser humano deve deixar a sua "imaturidade por culpa própria" e "usar o seu entendimento sem a orientação de outrem" (Kant 1985/1783, 55). Isto nunca significou outra coisa senão submeter-se ao "sistema da razão" capitalista não apenas externamente, mas internalizá-lo, tornar-se capitalistamente auto-regulador: cada um o seu próprio polícia, educador, guarda prisional e condutor!

Mesmo o grande filósofo da modernização Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que seguiu Kant e estilizou a razão mundial capitalista num espírito mundial total, pode ser reduzido a este denominador, com uma de suas frases mais famosas: "A liberdade é o reconhecimento da necessidade"; uma lamentável afirmação verdadeiramente liberal. Bentham entendeu que isso não era possível por mera persuasão ou punição. Ele teve a ideia simplesmente genial de transferir a observação e o controlo absolutos para a forma organizacional e, acima de tudo, para a arquitectura das próprias instituições de adestramento.

O resultado foi o Panóptico, um edifício engenhosamente concebido com engenhosos princípios e instalações, que Bentham explicou em 1787 em cartas a um amigo, publicado em 1791 com duas adendas. Um "Panóptico" é na verdade um gabinete de figuras de cera, ou de curiosidades; no seu antigo significado original grego, o termo refere-se a um espaço de "visibilidade total", que, como é sabido, se aplica a exposições de todos os tipos. Como Michel Foucault suspeita, Bentham pode ter tido a sua ideia a partir da construção do Jardim Zoológico de Versalhes:

“[…] O primeiro jardim zoológico cujos elementos não estão, como tradicionalmente, espalhados num parque: no centro, um pavilhão octogonal que, no primeiro andar, só comportava um espaço, o salão do rei; todos os lados se abriam com largas janelas, sobre sete jaulas (o oitavo lado estava reservado para a entrada), onde estavam encerradas diversas espécies de animais […] (Foucault 2009, 192).

O Panóptico de Bentham representa um arranjo semelhante. É um "verdadeiro jardim zoológico em que o animal é substituído pelo homem" (Foucault, loc. cit.). E como é? Primeiro que tudo, claro, uma prisão de tipo novo. Mas a opção de Bentham vai muito mais longe. Ele chama à sua construção "The Inspection House", a casa de vigilância e controlo. E logo no título do livro ele indica o alcance das possibilidades do Panóptico. Sua ideia é "aplicável a qualquer sorte de estabelecimento, no qual pessoas de qualquer tipo necessitem ser mantidas sob controlo; em particular, às casas penitenciárias, prisões, casas de indústria, casas de trabalho, casas para pobres, manufacturas, hospícios, lazaretos, hospitais e escolas" (Bentham 2019/1791).

A fantasia utilitária de Bentham funciona a toda a velocidade:

“O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições na forma de raios que saem da circunferência em direcção ao centro […] O apartamento do inspector ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser, de alojamento do inspector. Será conveniente, na maioria dos casos, se não em todos, ter-se uma área ou um espaço vazio em toda a volta, entre esse centro e essa circunferência. Você pode chamá-lo, se quiser, de área intermediária ou anelar. Cerca do equivalente da largura de uma cela será suficiente para uma passagem que vai do exterior do edifício ao alojamento. Cada cela tem, na circunferência que dá para o exterior, uma janela, suficientemente larga não apenas para iluminar a cela, mas para, através dela, permitir luz suficiente para a parte correspondente do alojamento. A circunferência interior da cela é formada por uma grade de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspector. […] As janelas do alojamento do inspector devem ter venezianas altas […] para impedir […] que os prisioneiros pudessem ver, a partir das celas, se há ou não uma pessoa no alojamento” (Bentham 2019/1791, 20s.)

Este engenhoso arranjo racionaliza e aperfeiçoa o controlo: os ocupantes devem estar sempre visíveis, enquanto o "inspector" permanece invisível para eles. Em toda a sua liberal inocência utilitária, Bentham cuida dos detalhes. Ele não esquece um sistema de alarme, nem um sofisticado sistema técnico para a eliminação e reciclagem de excrementos. Inspirado pelo humanismo, ele se opõe à pena de morte, com o argumento de que o "agregado de felicidade e utilidade" perderia assim força de trabalho. Pois a força de trabalho dos reclusos deve ser utilizada de forma optimizada, como um exercício e modelo para toda a sociedade. Assim, Bentham está muito interessado não só em generalizar os moinhos de tambor com degraus, comuns em algumas prisões para a educação dos delinquentes, mas também em ligá-los a máquinas úteis de todos os tipos (cf. Dreßen 1982, 94s.). As pausas devem ser reduzidas ao mínimo. Também isso foi duplamente calculado, em termos de filosofia da utilidade e pedagógicos:

"Seria permitido um máximo de 6 horas de sono para 15 horas de trabalho. O objectivo era não só explorar a produtividade do prisioneiro o mais extensivamente possível, mas também impedir os seus desejos e fantasias. Completamente cansado, escreve Bentham, o prisioneiro deve adormecer imediatamente na cama, caso contrário ele poderia escapar ao inspector e educador em suas ideias" (Dreßen, loc. cit., 94).

Além disso, o trabalho deve alternar de tal modo que a fadiga possa ser repetidamente fintada. Mas mesmo isso não é suficiente. Os detidos não apenas têm de sentir-se expostos à observação constante, sem poderem observar-se a si próprios; não basta serem mantidos em movimento quase continuamente; é preciso também isolá-los uns dos outros o melhor possível. Bentham também inventou a cela solitária. Neste caso, ele até mesmo sugere amarrar máscaras nos olhos dos presos ou colocar pequenas bolas em seus canais auditivos. Em seus Princípios de Direito Penal, ele explica, esfregando as mãos (como se tivesse previsto o tratamento dos prisioneiros da RAF pelo democrático aparelho judiciário alemão):

"Tal confinamento solitário, especialmente quando combinado com escuridão e pouca comida, nada mais é do que tortura, mas sem suscitar sobre si o ódio geral associado a este nome" (Bentham, citado de Dreßen 1982, 95s.).

Mas este princípio também deve ser aplicado de forma modificada fora das prisões, por exemplo, nas escolas. A disposição habitual de uma sala de aulas vem do Panóptico de Bentham: cada aluno tem o seu próprio lugar, os alunos podem ser combinados à vontade, colocando-os juntos ou separados, a mesa do professor é elevada e permite uma visão geral que, semelhante ao alojamento do inspector, pode facilmente registar todos os processos na sala, como Bentham se alegra:

"Cada jogo, cada conversa desacompanhada, cada distração é efectivamente prevenida pela situação central [...] do professor. Divisórias ou biombos entre os alunos também podem ajudar" (Bentham, citado de Dreßen, loc. cit.).

O filantropo Bentham também tenta tornar o espancamento mais razoável e útil do que antes. Em muitas culturas, bater em pessoas indefesas era considerado desonroso, mesmo que a crueldade para com os inimigos derrotados não fosse incomum. No entanto, o hábito de bater nos próprios filhos foi reservado quase exclusivamente à civilização cristã ocidental; e esse belo costume aumentou na história da modernização, até à orgia de uma generalizada pedagogia da pancada nas famílias, nas escolas, nas prisões e nos exércitos, até bem dentro do século XX. Neste ponto a Alemanha prussiana marchou indubitavelmente à frente do progresso; mas o utilitarista liberal Bentham não deixou de pôr em movimento, mesmo neste campo, aspectos da racionalização técnica, nomeadamente por meio de uma verdadeira máquina de bater:

"Deve-se construir uma máquina que ponha em movimento um certo número de varetas elásticas feitas de junco ou de barbatana de baleia. Seu número e tamanho devem ser determinados por lei. O corpo do delinquente é então exposto aos golpes destas varetas, sendo a força e a sequência dos golpes prescritos pelo juiz. Assim, qualquer arbitrariedade é evitada. Um funcionário público [...] deve supervisionar a execução da punição. Se houver vários delinquentes para serem punidos, então pode poupar-se tempo (!) aumentando simultaneamente o cenário de terror [...]" (Bentham, citado em Dreßen, op. cit., 88).

Numa palavra: "a maior felicidade possível do maior número possível"; pois através de todas essas medidas aumenta a segurança e, portanto, a felicidade na sociedade capitalista. Bentham está comprometido com a pesquisa científica neste campo para fins de aperfeiçoamento, e também não deixa dúvidas sobre o contexto em que se insere a lógica social do delicado complexo do "castigo corporal":

"A dor produzida pelo castigo corporal é como um capital que espera o seu lucro [...] A sociedade poderia ser muito servida pelo [...] exame dos efeitos das várias formas de castigo, indicando as várias gradações de dor, tais como as várias consequências de contusões e rupturas de tendões que se consegue com golpes de cordas ou chicotes" (Bentham, citado por Miller 1996, 19).

No entanto, o mundo panóptico ainda não acaba aqui. Bentham também introduz o princípio do controlo de identidade abrangente: Todo o detido deve poder poder ser imediatamente identificado a todo o momento e poder ser capturado, tanto no próprio Panóptico quanto fora dele, no Panóptico social como um todo. Com talento incansável, ele compila exemplos para explicar e refinar o princípio:

"Na capital japonesa, todos têm que usar o nome na roupa [...] Nas universidades inglesas, os estudantes usam um uniforme especial. Nas escolas de caridade, todos têm de usar não só um uniforme, mas também uma matrícula. Já para não falar dos soldados. É provavelmente o mínimo que se possa colocar os pobres num uniforme" (Bentham, citado por Miller 1996,32).

Em carta a Sir Carew, em 1804, Bentham chegou a sugerir que cada cidadão inglês fosse tatuado obrigatoriamente e sem excepção com um número ou um nome válido apenas para a pessoa individual (Miller, loc. cit.). O que resta agora é a grande questão de saber quem deve inspecionar os "inspectores" e educar os educadores. O engenhoso filantropo liberal também tem dois remédios para isso. Por um lado, ele sugere privatizar as instituições panópticas, incluindo as prisões, e permitir que elas sejam geridas de forma lucrativa por capitalistas privados. A Sra. Thatcher manda cumprimentos! Bentham quer que sejam aplicados os mais rigorosos padrões de contabilidade racional. Devem ser celebrados contratos com os inspectores freelancer que estipulem uma "taxa média anual de mortalidade" que não deve ser ultrapassada. Além disso, os directores dos estabelecimentos prisionais devem ser responsabilizados financeiramente por cada fugitivo (Dreßen, loc. cit., 95). O segundo meio é a publicidade rigorosa de todos os eventos, como explica Bentham em seus Princípios de Direito Penal:

"A publicidade é o meio mais eficaz contra o abuso [...] o Panóptico será transparente, por assim dizer, será acessível a funcionários especialmente autorizados a qualquer momento, mas aberto a todos em horários ou dias específicos. O espectador é conduzido para o alojamento central e aqui pode avaliar o interior da prisão, ele testemunha as condições da prisão e pode julgar exactamente a condição dos prisioneiros" (Bentham, citado de Dreßen, op. cit. 84).

Bentham planeia com antecedência uma esfera pública sistematicamente acrítica, uma esfera pública de controlo total, que pode até transformar a tematização da pobreza artificialmente gerada pelo capitalismo em afirmação do sistema dominante. A razão capitalista torna-se pública, e o público torna-se razão capitalista, como o filósofo social francês Jacques-Alain Miller caracteriza a lógica infernal do pensamento liberal panóptico:

"O mundo panóptico emprega assim a regra irrestrita da razão calculadora. Uma regra sobre penitenciárias [...] Visto dessa forma, o Panóptico forma o templo da razão, um templo radiante e transparente [...] O olho público vai monitorizar o olho interno [...] Assim, a prisão é reintegrada no espaço social como lugar de exclusão: Tornar-se-á o seu lugar mais radiante, mais familiar" (Miller 1996,17).

Obviamente, os textos monomaníacos de Bentham são os comentários de um lunático; mas de um lunático capitalistamente racional com consistência interior. E assim o filósofo da felicidade, de acordo com seu ensinamento, terminou em um estado de utilização total dos restos: depois de se propor a usar cadáveres como estátuas em igrejas e teatros, por uma questão de utilidade e economia de custos, ele também legou seu próprio corpo à anatomia. Como se isso não bastasse, amigos, no espírito da utilidade, também puseram seu esqueleto em uso razoável, cercando-o com um corpo ceroso e vestindo roupas neste Bentham, de modo que ele (num armário portátil) ainda hoje pode ser usado de muitas maneiras para fins de ensino e exposição como o "Londrino de 1830". Bentham não só executou a razão totalitária e abstracta da utilidade do capitalismo sobre si mesmo, mas deixou-a com sucesso para a posteridade, como um conceito de auto-educação e auto-submissão.

As intenções desta razão louca podem ser fixadas em quatro pontos essenciais. Em primeiro lugar, o princípio da visibilidade total: "A visibilidade é uma armadilha" (Foucault 2009, 190). Todos estão constantemente sob observação, sem saber se estão realmente sendo observados ou não. E, assim, um comportamento em que o que se crê observado controla o seu próprio comportamento pode tornar-se um hábito (aqui se torna clara a similaridade da normalidade capitalista, que ainda não era evidente no tempo de Bentham, com alucinações esquizofrénicas).

Em segundo lugar, o princípio do isolamento dos indivíduos uns dos outros. Assim que a pista do comportamento é apagada, as paredes celulares e as telas separadoras podem ser removidas sem que os indivíduos deixem de se perceber como seres isolados e de agir em conformidade. O "indivíduo isolado", que só foi postulado ideologicamente a partir de Hobbes, é assim conscientemente produzido por um processo panóptico e gravado a fogo no cérebro como auto-percepção.

Em terceiro lugar, o princípio da objectivação externa da pista do comportamento, através de aparelhos, formas organizacionais, arquitecturas, distribuição dos lugares, etc., de modo que os imperativos capitalistas "numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes e dos olhares" se impõem automaticamente "em um aparelho cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos" (Foucault, loc. cit., 191).

Em quarto lugar, finalmente, o princípio da despersonalização da violência, da dominação, da disciplina, da influência, etc., não só ao nível macro da máquina global de auto-regulação da economia de mercado, mas também ao nível micro do imediatismo quotidiano. A total transparência e simplicidade dos mecanismos, que, além disso, são completamente públicos, tornam até as pessoas sem instrução, e até mesmo estúpidas, capazes de exercer controlo, como observa com orgulho Bentham. "Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do director, sua família, os que o cercam, seus amigos, até seus criados" (Foucault, loc. cit., 192).

A observação de Lenine de que no socialismo de Estado "qualquer cozinheira pode governar o Estado" (ou pelo menos esta possibilidade deve ser o objetivo) assume um significado estranho à luz da lógica panóptica. De repente, torna-se visível que o que se quer dizer aqui não é de todo a emancipação da cozinheira (tal como não é a emancipação do homem dos princípios repressivos, no caso da exigência de maturidade de Kant), mas sim uma independência tão consistente da máquina social de trabalho e valorização face aos indivíduos que não importa se é uma cozinheira ou um especialista a exercer a função de controlo.

Trata-se, portanto, de estabelecer uma identidade auto-repressiva entre sujeito e objecto, como modo funcional geral da "bela máquina". O sujeito-objecto idêntico da "máquina de auto-responsabilidade" liberal equivale a controlar e ser controlado: todos se controlam mutuamente em nome de uma razão sem sujeito, a razão do sistema independente de "trabalho" e "valorização".

A ditadura educativa torna-se assim, na sua conclusão, uma ditadura de auto-educação, e esta autodeterminação negativa é apoiada, moldada e predefinida por uma enorme rede de padrões impressos material, organizacional e sociopsicologicamente nos microcorpos da sociedade, cujo carácter repressivo já não é conscientemente percebido. A "cozinheira" cogoverna animadamente por estar activa e habitualmente envolvida nos mecanismos de controlo público objectivados e por dar corda ao relógio da auto-submissão todos os dias junto com todos os outros; é controlada precisamente porque ela mesma também está no controlo.

Mas a evocação da "cozinheira" de Lenine num sentido bem diferente daquele que tem sido usual até agora não é a única coisa estranha que surge quando se lê Bentham. Pelo contrário, essa estranha qualidade de Bentham só se torna realmente clara quando relacionamos as suas ideias não com as dinossáuricas ditaduras de modernização, mas com a mais desenvolvida economia de mercado livre e democrática. Pois impõe-se a suspeita de que todos os princípios do Panóptico foram estabelecidos há muito tempo no mundo ocidental "livre" (e só neste completamente!), e que hoje só podemos suportar a economia de mercado total porque somos descendentes das antigas vítimas, criados para a auto-regulação automática.

É visível à primeira vista que Bentham antecipa "1984" de Orwell em quase duzentos anos. Mas ele não faz isso apenas como liberal, mas também como democrata (uma combinação sem precedentes na época), porque elogia a democracia representativa dos EUA como modelo. Para ele, a democracia, como verdadeiro autocontrolo, encaixa-se perfeitamente com os princípios panópticos. Para ele, a democracia como verdadeira forma de autodominação dos sujeitos auto-reguladores harmoniza-se sem dificuldade com os princípios panópticos. Democracia é a forma de dominação dos sujeitos auto-reguladores panopticamente atormentados, que anseiam avidamente pelas imposições da economia de mercado, que são aparados como uma espécie de salsicha capitalista e forçados a entrar no espartilho de um ambiente aparativo "livremente" uns com os outros. Pessoas, portanto, que são autodeterminadas precisamente porque, como cães pavlovianos de um sistema auto-regulador, reagem automaticamente aos sinais sonoros dos imperativos do sistema com fluxo de saliva (a verdadeira "segunda natureza" do suposto predador heróico). A democracia nada mais é do que uma ditadura coagulada, a ditadura da felicidade da "mão invisível" desse demónio do sistema de economia de mercado, que Immanuel Kant e Adam Smith invocaram com pomposo esforço teórico como o novo deus secular, e cujo mesquinho e inexorável disciplinador histórico pôde tornar-se uma salsicha espiritual com Jeremy Bentham.

Só o capitalismo avançado é uma ditadura já arquitectonicamente coagulada; em todas as suas instituições os traços panópticos estão gravados a fogo. Os modernos escritórios em open space, abertos e visíveis por todos os lados, onde os empregados se sentam num expositor gigantesco, são tanto um elemento do Panóptico como as cozinhas em grande escala dos restaurantes de fast-food, onde o pessoal está sempre exposto aos olhos do público. As eternas notações, classificações e registos de desempenho ao longo da vida, o sistema de números, crachás, placas de identificação e cartões de identidade, tudo isso são "conquistas" do princípio panóptico.

Devia organizar-se um concurso para encontrar os elementos panópticos ocultos, arranjos, arquiteturas, aparelhos, etc. que se encontram no nosso ambiente democrático, de que já não estamos conscientes (como traços de comportamento gravados ditatorialmente), para tornar visível novamente e compreender criticamente a fase final democrática do totalitarismo liberal; para entender que, desde Bentham, as ditaduras da modernização foram apenas estados prototípicos de agregação da democracia da economia de mercado, ou da própria economia de mercado democrática, e que agora nos sentamos voluntariamente, porque "sem alternativa", numa única casa benthamiana de correcção total. O olho ciclópico, que nos dá a impressão de observação geral e perpétua abaixo do nível de consciência, o olho do "Big Brother", portanto, não pertence a nenhum "inspector" humano, embora mais do que nunca esteja repleto de "inspectores"; é o olho sem sujeito dos critérios do sistema capitalista que internalizámos: o nosso "terceiro olho", por assim dizer, que olha para dentro em auto-observação e vigilância.

Tradução de Boaventura Antunes


Inclusão: 06/11/2020