O livro negro do capitalismo
Um canto de despedida da economia de mercado

Robert Kurz


Introdução à nova edição de 2009
Do fim do socialismo de Estado em 1989 à crise do capital mundial em 2009


capa

A celebração de aniversários de eventos famosos é uma das obrigações mais maçadoras da cena cultural burguesa. No entanto, se o aniversário aponta para contextos controversos, com pouco para celebrar, prefere-se ignorá-lo. Quando este livro foi publicado pela primeira vez, em 1999, havia supostamente algo para comemorar no mundo oficial: o colapso do socialismo de Estado ocorrera precisamente 10 anos antes. A euforia da vitória dos guerreiros ocidentais da guerra fria ainda não tinha esmorecido. A filosofia académica proclamara o "fim das utopias", e o cientista político americano, Francis Fukuyama, o "fim da história"; o desenvolvimento da humanidade teria atingido o seu objectivo, na eterna forma social de "economia de mercado e democracia". O professoral marxismo residual e a esquerda política nunca mais acabavam de abjurar; o reconhecimento do realismo compatível com o mercado tornara-se um ritual. E a "revolução neoliberal" parecia impor imparavelmente a nova imagem humana do radical do mercado. Naquela época, a economia mundial capitalista estava no auge de uma alta sem precedentes nas bolsas de valores. Os gurus do management e os analistas financeiros proclamavam uma new economy que supostamente superara todas as anteriores teorias da ciência económica.

Nesta situação, só havia uma maneira de nadar contra a corrente do espírito do tempo: A consciência dominante tinha de ser confrontada com a sua completa cegueira histórica. O mercado totalitário não conhece a história, mas apenas o eterno retorno cíclico do mesmo. Quanto mais o pensamento consegue mergulhar no horizonte temporal da lógica do mercado, mais incoerente ele tem de se tornar. O Livro Negro do Capitalismo, contra isso, fez alguma coisa para restaurar a dimensão histórica perdida. Não se trata da banalidade de que tudo o que é temporal acaba por chegar ao fim, mas da análise concreta de um processo, em que o capitalismo devora literalmente o mundo e se devora a si mesmo. Há muito se tornou notório que a compulsão de incessante crescimento da "riqueza abstracta" (Marx) está associada a uma destruição progressiva das bases naturais. Quanto mais imparável ameaça tornar-se a catástrofe climática, mais hesitantes são as medidas reais para dominá-la, apesar de todo o palavreado dos políticos, porque as intervenções necessárias são totalmente incompatíveis com a racionalidade económica do modo de produção agora unificado à escala planetária. No entanto, a análise do Livro Negro refere-se principalmente à dinâmica da "valorização do valor" (Marx) e da sua acumulação histórica em si. Aí se torna claro o que escapa à consciência do homem do mercado, fixada nas meras "situações de mudança" da conjuntura económica: o abstracto "sempre mais" do capitalismo esbarra não só num limite externo natural, mas também num limite interno económico.

O que parece ser o retorno do mesmo, ao nível dos fluxos de mercadorias e dinheiro, da eterna compra e venda, é simultaneamente uma história irreversível do que Marx chamou "desenvolvimento das forças produtivas", imposto pela concorrência nacional e internacional. A esse respeito, nunca há o retorno do mesmo, mas as revoluções tecnológicas continuamente estabelecem novos padrões de produtividade, numa escala crescente. Esta história pode ser lida nos museus industriais do mundo. A ideologia de que tudo pode ser feito falha neste desenvolvimento autogerado. Pois há uma coisa que o capitalismo não pode fazer; ele não pode retornar a um nível tecnológico anterior (como a máquina a vapor). Contudo, o desenvolvimento das forças produtivas não segue um plano social baseado em acordos conscientes, que pudesse incluir os riscos, efeitos colaterais e consequências de longo prazo, mas é controlado pela dinâmica cega da concorrência. Esse é o mecanismo da máquina económica, que em Marx aparece como "sujeito automático", ao qual também as elites estão sujeitas. Portanto, as repercussões sociais só podem ser tratadas depois e inadequadamente. Mas isso cria contradições que se acumulam, tal como se acumula o capital monetário. A história do capitalismo é a história do seu tratamento da contradição, que se agudizou dramaticamente no final do século XX.

Como o capitalismo é uma relação social, ele também tem de reproduzir a sociedade, material e socialmente. Isso está no conceito de relação social e não tem nada a ver com considerações morais. Mas a finalidade de toda a organização não é a reprodução material e social. Pelo contrário, a finalidade é um fim em si "irracional", surgido de processos históricos inconscientes, ou seja, a necessidade de fazer incessantemente de um euro, ou dólar, dois. Este fim em si automático não tem nenhum sensor para o conteúdo específico do que é movimentado. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas revela-se simultaneamente como desenvolvimento das forças destrutivas, que atinge os limites da resiliência, não só ecológica, mas também social. Na era moderna, o dinheiro mais não é do que a forma social de representação da força de trabalho abstracto despendida, que produz a famosa mais-valia, além do seu próprio custo de reprodução. Do ponto de vista da economia empresarial, a produção de lucro, como necessidade de sobrevivência, mostra ter tanto maior sucesso quanto mais baixos são os custos da quantidade de força de trabalho em cada caso espremida. Dado que os produtores não produzem para as necessidades comuns, mas para o pressuposto fim em si capitalista, juntamente com a "riqueza abstracta" eles geram a sua própria pobreza relativa, ou mesmo absoluta.

Esta descrição da paradoxal lógica da relação de capital ainda provoca sempre o mais violento protesto. Não levou o aumento da produtividade também a um aumento da "prosperidade para todos"? Mas, já em 1999, o milagre económico da época do pós-guerra era apenas uma lembrança. O socialismo de Estado burocrático, ao ir ao fundo, não deixou seus filhos num paraíso de consumo ocidental, como muitos esperavam, mas na "nova pobreza", com cortes na Segurança Social, baixos salários e precarização. Essa tendência de queda nos centros ocidentais tinha começado nos anos 80 e só fora encoberta pelo desastre do Leste. O processamento da contradição social, aparentemente pacificada, perdeu cada vez mais força. Na década de 90, aumentaram as vozes que achavam que agora o capitalismo regressava precisamente ao seu feio "estado normal", dado que já não precisava de legitimação, como durante o conflito sistémico da Guerra Fria. O problema da legitimação certamente depende de quanta privação e sofrimento as pessoas, degradadas a unidades de trabalho in spe, estão dispostas a suportar da administração da pobreza. As condições capitalistas de existência e seus critérios foram internalizados num processo secular, desde o final do século XVIII. Se a pessoa não consegue imaginar outra coisa, tem de se render incondicionalmente às circunstâncias, e desperdiçar a vida tentando lutar pela "competitividade". O triunfo do neoliberalismo foi acompanhado por crescente individualização e dessolidarização. Poderia a valorização do capital, emancipada dos problemas da legitimação social, iniciar agora realmente um novo voo de grande altitude?

O conceito de relação social, porém, não se esgota na legitimação ideológica. Pelo menos até certo ponto, o capitalismo tem de reproduzir a vida material e social, para poder reproduzir-se a si mesmo. Ele depende do poder de compra social para o consumo de bens e serviços, pois de outro modo não pode ser mantido o ciclo de transformação em mais-valia do capital monetário adiantado. A este respeito, a racionalidade da economia empresarial, ao reduzir os custos da força de trabalho, está em contradição com as condições de reprodução do capital total. Se a pobreza monetária produzida pela lógica paradoxal da valorização excede um determinado limiar de dor, torna-se um problema da própria valorização. As chamadas crises não são, de modo nenhum, resultado de as pessoas lutarem pelos seus interesses preformados em termos capitalistas, ou mesmo por já não quererem este sistema, como os teóricos de esquerda gostam de acreditar. Nem a pobreza capitalista, que se espalha de novo rapidamente desde os anos 80, resulta de decisões ideológicas da vontade das elites, como também aparece no repertório padrão de uma crítica do capitalismo de muito curto alcance. Embora os padrões ideológicos de interpretação e suas mobilizações possam moldar os processos políticos, eles não podem provocar crises económicas. O limite do capital é o próprio capital, como disse Marx, designadamente o desenvolvimento da sua autocontradição interna. Portanto, a história do capitalismo é não só a história do seu processamento da contradição social, mas também a história do seu processamento da contradição económica.

Visto superficialmente, trata-se sempre da falta de poder de compra social. Mas isso é apenas a manifestação de um problema mais profundo, a saber, a falta de produção da própria mais-valia social. O valor, representado na forma do dinheiro, nada mais é do que a forma de representação do "trabalho abstracto" (Marx), a massa de dispêndio de energia humana abstracta nos espaços funcionais da economia empresarial, que se agrega numa massa social total. A indiferença da valorização, em relação ao conteúdo material da produção da economia empresarial e aos seus efeitos sobre as bases naturais, deriva justamente do facto de ser o "trabalho abstracto" que forma o seu conteúdo real, ou a sua "substância". O fim em si de fazer do dinheiro mais dinheiro baseia-se no propósito de fazer do "trabalho" cada vez “mais trabalho”. Na concorrência, entretanto, o capital individual não se apropria da mais-valia produzida dentro das suas quatro paredes, mas da parte da mais-valia social que consegue puxar para si, através da sua oferta. Para oferecer mais barato e conseguir impor-se na concorrência, é necessária uma "política de corte de custos" na empresa, realizada justamente pelo aumento da produtividade. Mas isso de modo nenhum é uma questão meramente tecnológica, pelo contrário, com isto se criam constantemente novas condições económicas para a valorização do capital total. Como pode isso resultar na falta de produção social de mais-valia?

A compulsão de cortar custos da economia empresarial não apenas leva à pressão sobre a renda salarial, mas o desenvolvimento conexo das forças produtivas também torna a força de trabalho supérflua. Ora, como a força de trabalho é a fonte de mais-valia, a sua gradual racionalização enfraquece o propósito da valorização, num processo secular. São justamente as empresas que se apropriam da maior parte da mais-valia social, que, ao mesmo tempo, mais contribuem para a sua redução, ao "libertarem" uma grande quantidade de força de trabalho. Esta é a verdadeira autocontradição do capitalismo. Apesar das crises periódicas, esta contradição pôde ser sucessivamente compensada no passado, pois o barateamento dos produtos levou a uma grande expansão dos mercados, que aumentou fortemente a produção e, portanto, o uso adicional de força de trabalho, enquanto se reduzia a força de trabalho na produção de cada produto. A economia fez disso uma lei geral, e só por isso foi possível celebrar o desenvolvimento das forças produtivas como um motor da valorização bem-sucedida e da crescente prosperidade. Mas isso é uma falácia. Pois, na Terceira Revolução Industrial da microelectrónica, desde os anos 80, pela primeira vez na história capitalista, tornou-se supérflua mais força de trabalho do que pode ser reabsorvida pela expansão dos mercados. O desenvolvimento capitalista atinge o seu limite absoluto, numa irreversível "dessubstanciação do capital" e numa "desvalorização do valor" histórica. Esta é a principal tese do Livro Negro, no último capítulo.

Essa culminação podia ser lida no desemprego e subemprego estrutural, em constante crescimento à escala global. A correspondente queda da massa real de mais-valia social manifestou-se à superfície como um declínio constante do real poder de compra de massas. No entanto, inicialmente isso parecia afectar pouco os lucros nominais. Estes, porém, alimentavam-se cada vez menos da produção real de mais-valia, e cada vez mais da imponente montanha de dívidas, com sempre novas reestruturações, e de uma economia de bolhas financeiras "sem substância", a partir dos preços das acções em franca explosão. O sistema de crédito e de especulação dos mercados financeiros já nas anteriores crises periódicas desempenhara o papel de simular temporariamente a valorização real que já não ocorria suficientemente; as bolhas do crédito e da especulação, contudo, tinham estourado sempre, passados alguns anos, para dar lugar ao subsequente surto de valorização real, numa nova base tecnológica. Mas como, nas condições da Terceira Revolução Industrial, este surto não apareceu, a economia das bolhas financeiras floresceu como uma suposta condição estrutural permanente de um crescimento "impulsionado pelas finanças".

No fundo, a reprodução simulada do capitalismo através de bolhas de crédito já tinha começado na década de 1970, no fim do milagre económico, então sob a forma de um crédito público insuflado de acordo com a doutrina económica do keynesianismo. O dinheiro a crédito do Estado, já não absorvido da produção real de mais-valia por via das receitas fiscais, fluiu para investimentos em infraestruturas na educação e na saúde, bem como para gratificações do Estado social. Com isso se gerou já então poder de compra que não tinha base substancial. Uma vez que este poder de compra simulado foi alimentado directamente nas respectivas áreas monetárias nacionais, estimulou a inflação com taxas de dois dígitos no Ocidente e a hiperinflação nos países periféricos. Este desenvolvimento de uma "estagflação" (aumento da inflação com taxas de crescimento em queda), relativamente pouco tematizado no Livro Negro, foi o que deu o sinal de partida para a "revolução neoliberal". Mas o neoliberalismo não reconheceu a falta de produção de mais-valia real como causa, pretendendo antes responsabilizar apenas a actividade estatal, em sua opinião saída dos limites, e preferindo desencadear os supostos "poderes de auto-regeneração do mercado." A subsequente desregulação radical dos mercados de trabalho apenas intensificou a queda do poder de compra, através da criação de sectores de baixos salários, com a continuação de elevado desemprego, enquanto a desregulação igualmente radical dos mercados financeiros apenas deslocou a formação de bolhas sem substância do crédito público para as bolsas de valores.

Essa forma de "capital fictício" (Marx) atingiu o seu auge no final dos anos 90. Não só os bancos de investimento e os fundos de capital monetário, mas também os grupos industriais, participando da economia das bolhas financeiras, levaram os lucros simulatórios a níveis sem precedentes. A redução do emprego foi, assim, um pouco travada, mas a aplicação real de força de trabalho apareceu apenas como um efeito colateral da new economy. Ao mesmo tempo, o poder de compra igualmente simulatório, apesar da queda dos salários reais, foi trazido já não principalmente pelo crédito do Estado, mas por um rápido aumento da dívida privada e pela relativamente ampla disseminação da titularidade de acções. A sociedade dividiu-se entre uma crescente pobreza em massa dos caídos fora e dos trabalhadores de salários baixos, por um lado, e uma participação parcial directa ou indirecta no crescimento "impulsionado pelas finanças", por outro. O pequeno especulador e o pequeno artista da dívida transformaram-se num modelo de individualização. O Livro Negro termina com a descrição dessa situação, e com a previsão aparentemente ousada de que toda esta falsa maravilha iria dissolver-se em fumo e escombros, depois de uma incubação não exactamente determinável.

O público intelectual alemão tomou o Livro Negro como uma espécie de mau presságio (afinal, no mundo do capitalismo virtualizado, era preciso uma pessoa mostrar-se sempre desprendidamente "aberta" a todo o tipo de "pensamento criativo" esotérico), mas sem tomar a sério o prognóstico apresentado. Os tempos eram demasiado dourados para o pensamento a-histórico da febril consciência de classe média, no boom da bolsa de valores, para que aí se quisesse ver mais do que o valor de entretenimento de um comboio fantasma sociofilosófico. Apenas três anos após a publicação do livro, a new economy entrou em colapso, num crash global. O capital accionista das pequenas empresas da Internet com poucos funcionários, que tinha atingido a capitalização bolsista de grandes grupos industriais, em grande parte desapareceu de cena; os segmentos dos "novos mercados" com ele relacionados nas bolsas de valores foram dissolvidos. No conjunto, os índices globais de acções caíram entre metade e dois terços do seu valor fictício. O resultado foi uma recessão igualmente global, à medida que o poder de compra das bolhas financeiras começou a secar.

O capitalismo correu o risco de ficar reduzido às suas bases reais de valorização, com consequências imprevisíveis. A fim de protelar mais uma vez o limite interno da valorização posto à vista, os bancos centrais dos Estados entraram em cena, especialmente a Reserva Federal dos Estados Unidos, sob o comando de Alan Greenspan. Com uma drástica redução concertada da taxa de juro básica, as bolhas financeiras enfraquecidas deviam voltar a encher. O sucesso foi, de facto, retumbante. Dado que os bancos centrais abriram as comportas da criação de dinheiro, pôde ser evitada uma crise do crédito em todo o mundo, e as bolsas de valores começaram a recuperar, embora a falta de produção de mais-valia substancial continuasse. A fim de salvar o crescimento "impulsionado pelas finanças", assim foi dito nos EUA, é preciso, se necessário, “lançar de helicóptero" dinheiro em quantidades brutais.

No entanto, essas medidas já foram a queda do neoliberalismo no pecado, que trouxe de volta a expansão inflacionária do crédito público do final do boom do pós-guerra numa "política de dinheiro barato" através dos bancos centrais. A doutrina neoliberal do chamado monetarismo queria pôr fim a isso e limitar a criação de dinheiro dos bancos centrais a uma quantidade que não excedesse a quantidade de bens determinada pela procura solvente. O que era adequado, desde que com isso se conseguissem justificar as restrições sociais contra os desempregados e subempregados. Mas agora a doutrina monetarista foi jogada fora, porque se esgotara o poder autónomo do sistema de crédito e da especulação de criar "capital fictício". A salvação da economia das bolhas financeiras só teve sucesso na medida em que foi alimentada pela criação de dinheiro dos bancos centrais. Assim, o "factor Estado", na forma de uma política monetária expansiva dos bancos centrais, tornou-se novamente a instância decisiva.

Nem a insuflação autónoma dos mercados financeiros com a ajuda da desregulamentação neoliberal nem a sua regeneração com a inundação de dinheiro dos bancos centrais desde 2001 produziram valores reais, com substância de trabalho. Esta “asset inflation” (inflação de activos) apenas não apareceu como uma rápida desvalorização do dinheiro porque, diferentemente do crédito público, não fluía como poder de compra directamente para as áreas monetárias nacionais, mas era mediada pelo contexto de encadeamento global do capital financeiro; por exemplo, como exportação de crédito e de capital especulativo entre as várias áreas monetárias. No entanto, dessa maneira a realização do potencial inflacionário só foi adiada.

Inicialmente, a abertura das comportas do dinheiro criou um poder de compra fictício numa nova dimensão. Além da renovada bolha nas bolsas, uma bolha imobiliária igualmente inédita emergiu em vários países e regiões do mundo; dentro da UE, em Espanha, no Reino Unido e na Irlanda, em partes da Ásia, e especialmente nos Estados Unidos, onde a habitação e a propriedade imobiliária da classe média, amplamente expandidas e financiadas a crédito, puderam servir de base. Como os preços dos títulos de propriedade correspondentes subiam de mês para mês muito mais do que os custos do crédito, o excedente garantido pelas hipotecas pôde ser usado no consumo. Além disso, o dinheiro barato dos bancos centrais foi usado pelos bancos comerciais, na expectativa de um aumento constante dos preços das casas, em hipotecas para os novos construtores de casas sem qualquer capital próprio. Deste modo, tendo os EUA como centro, surgiu um "milagre do consumo" ainda mais desligado dos rendimentos reais. Alan Greenspan foi celebrado como o "mágico" do dinheiro barato.

A massa de poder de compra "lançada de helicóptero" com tais meios era tão grande que conseguiu empurrar uma economia de deficit global duma dimensão surpreendente, após a curta recessão na sequência do crash das Dotcom. Neste contexto, surgiu em fase madura uma peculiar "divisão do trabalho" global, que zomba de qualquer manual de economia. Os EUA, como potência político-militar garante do capital mundial, também se tornaram o centro da globalização. Neste suposto "porto seguro" atracou a maior parte do capital global a crédito e especulativo, à procura de aplicação. Só por isso o dólar manteve a sua posição como dinheiro mundial, embora tivesse tido de acabar a convertibilidade em ouro já em 1973, tendo sido a última moeda a fazê-lo. Assim pôde ser financiado não só o poderoso "complexo militar-industrial" (Eisenhower), mas também um deficit comercial em constante crescimento, apesar das baixas taxas de poupança. À medida que o poder de compra fictício se concentrava nos EUA, estes começaram a absorver o fluxo global de mercadorias. Já nos anos 90, todas as regiões do mundo tinham superavits comerciais contra a última potência mundial. Enquanto em toda a parte os mercados internos estavam a secar e as exportações a crescer, acontecia o contrário nos EUA. O consumo era responsável por 80% da economia, enquanto as exportações continuavam em queda. A inundação de dólares de Greenspan fazia agora transbordar o barril deste "desequilíbrio" económico.

O já antes desproporcionado circuito de deficit do Pacífico, entre os EUA e a Ásia, começou a aquecer. Neste contexto, a China e a Índia ascenderam a novas "estrelas do crescimento". O investimento de empresas ocidentais concentrou-se especialmente nas zonas económicas de exportação chinesas, para a partir daí fornecer em primeiro lugar o mercado dos EUA. A combinação de baixos salários e componentes de produção de alta tecnologia importados gerou milhões de empregos industriais. Para o observador superficial, mesmo de proveniência marxista, isto foi considerado um novo surto de produção de mais-valia substancial; que apenas se teria deslocado dos países industrializados ocidentais para a Ásia. Não será realmente a força de trabalho transformada em nova massa de valor? A produção da indústria de exportação chinesa e de outros países da Ásia é tão "real" como a produção da indústria da construção, na sequência do boom imobiliário. As suas bases e pressupostos não são feitos de poder de compra com base na criação real de valor, mas de poder de compra como subproduto da economia das bolhas financeiras, que agora tem de operar principalmente a partir dos potes de liquidez enchidos de modo cada vez mais barato pelos bancos centrais. Cuja competência para criar dinheiro é puramente formal; só a criação substancial de valor na produção de mercadorias se pode expressar regularmente na forma de dinheiro. Portanto, a inundação recente de dinheiro é irregular e só reforçou a reciclagem de "capital fictício" em procura aparentemente real. A economia mundial assim alimentada tem pés de barro e não pode ser auto-sustentável.

Quando o circuito de deficit do Pacífico começou a arrastar consigo a economia europeia, a partir 2005, quis-se extrapolar a gloriosa recuperação até bem dentro do século XXI. Também a indústria de exportação alemã cavalgou nessa onda; da indústria automobilística, com os seus espalhafatosos carros de luxo cobiçados por todos os novos ricos, até à construção de máquinas, que ganhou muito dinheiro com o fornecimento de componentes de produção à Ásia e a outros campeões da exportação. Que isto não passava de sol de pouca dura já se podia ler em alguns fenómenos. O "desequilíbrio" das exportações unilaterais reflectiu-se nos créditos asiáticos de dólares duma ordem de grandeza astronómica, geridos por fundos soberanos. Esta massa monetária, que é uma bolha financeira sui generis, tem de ser descarregada de algum modo. Ao mesmo tempo, no pico da economia de deficit, voltou o espectro supostamente banido da inflação. Nos EUA e na UE, as taxas de inflação dispararam muito além dos limites estabelecidos; na China, noutros países asiáticos e na Europa Oriental, alcançaram um crescimento de dois dígitos. No plano social, a divisão da sociedade cavou-se ainda mais. As restrições da administração da pobreza foram reforçadas em toda parte, na Alemanha particularmente agravadas pela legislação Hartz IV. Enquanto toda a recuperação regular também chega às camadas inferiores após algum tempo, a nova economia de deficit não chegou à maioria da população. Apenas uma minoritária "aristocracia operária" da indústria de exportação de algum modo se apercebeu dela. A redução muito aclamada do desemprego reflectiu-se principalmente numa expansão forçada de emprego precarizado de baixos salários, ou de trabalho temporário e subcontratado mal pago. Não é de admirar que o mercado interno permanecesse tão seco como antes.

Os bancos centrais, incluindo o dos EUA, reagiram ao regresso da inflação com um aumento gradual das taxas de juros. Mas isso não pôde vir a ser invertido, quando a economia prematuramente proclamada auto-sustentável já estivesse florescente. O facto de as condições serem diferentes ficou logo evidente nas consequências imprevistas. O aumento moderado da taxa de juros, repassado pelos bancos comerciais, fez a bolha imobiliária estourar em dois anos. Já em 2006, o boom imobiliário dos EUA diminuiu. Cada vez mais proprietários deixaram de poder pagar os juros das hipotecas. A partir da crescente avalanche de falências desenvolveu-se até ao outono de 2008 uma crise financeira global, que em poucas semanas se revelou a maior de todos os tempos. Através da chamada securitização, os créditos hipotecários podres, que desde o início eram o cerne da questão, tinham sido embalados em pacotes de derivados financeiros, que os próprios banqueiros envolvidos admitiam não perceber. Esses pacotes foram espalhados pelo mundo, alavancando promessas de retornos irrealistas. Só quando colapsou o Lehman Brothers, um dos maiores bancos de investimento dos EUA, veio à tona a verdadeira dimensão do desastre. As ondas de choque espalharam-se, da Islândia ao Cazaquistão, até aos cantos mais distantes do sistema financeiro global.

Desde a desregulamentação neoliberal, um grande número de crises financeiras e crashes nas bolsas tinha acompanhado a economia de deficit global, mas limitados a regiões do mundo ou a sectores específicos, e que em cada caso puderam ser controlados novamente, com grande dificuldade. Mas agora o problema assumiu uma nova dimensão, que vai muito além do crash das Dotcom de 2001 e dos seus efeitos. A crise das hipotecas não pode mais ser limitada a um sector, mas tornou-se o catalisador do "colapso" há muito esperado do sistema global de crédito. A montanha de dívidas que se acumulou ao longo de décadas está a começar a deslizar inexoravelmente pela interconexão global do insubstancial capital financeiro. Não é por acaso que o termo "crise financeira" foi votado "Palavra do Ano 2008". Mas não vai ficar como a simples palavra de um ano, que rapidamente se esquece.

As relações aqui esboçadas, cuja análise continua a linha da argumentação do Livro Negro, aparentemente não foram percebidas pelos media nem pelas elites político-económicas e científicas, ou foram totalmente recalcadas. De outro modo não se podem explicar os julgamentos grosseiramente errados, como os apresentados após as "segundas-feiras negras" em outubro de 2008. Embora os bancos dos Estados federados alemães e os bancos para-estatais das PME já estivessem bem em apuros, a chanceler alemã Merkel e seu ministro das Finanças Steinbrück continuavam a imaginar o problema ainda do lado de lá do Atlântico, por cá ainda se estaria "bem posicionado". Mas tiveram de se corrigir rapidamente. Entretanto, tornou-se claro que uma mera redução concertada das principais taxas de juro e uma enxurrada de dinheiro dos bancos centrais, como em 2001, já não é suficiente. Para isso já é demasiado tarde. Por isso, para lá da queda do monetarismo no pecado, o Estado tem de entrar em acção como "última instância" do capitalismo, na forma da criação monetária expansionista pelos bancos centrais. A economia das bolhas financeiras está finalmente mudando dos mercados financeiros desregulamentados, de volta para o crédito do Estado. Do dia para a noite, o neoliberalismo tornou-se lixo ideológico.

Os pacotes de resgate públicos ao sistema bancário em crise no final de 2008 atingiram nos Estados Unidos 8 biliões de dólares e nos países centrais da UE o equivalente a 2,2 biliões de dólares. Operações de resgate semelhantes começaram também noutros países. Esses pacotes estão estruturados em garantias de empréstimos bancários a particulares, empréstimos públicos directamente a bancos e companhias de seguros, bem como nacionalização parcial de bancos, através da compra de créditos podres e de títulos financeiros desvalorizados. Ainda assim, espera-se que estas somas inimagináveis não venham a ser invocadas, pois a garantia estatal nominal criará tanta "confiança" que as transacções financeiras "normais" voltarão por si a entrar na linha, os preços dos títulos voltarão a subir novamente e os bancos poderão pagar com juros o crédito público reivindicado. Mas isso é completamente irrealista, porque os pacotes de resgate não acrescentam nenhum valor real adicional, cuja falta foi, de facto, a causa objectiva da crise financeira. O gato morde na cauda: o Estado teria que tomar enormes empréstimos no próprio sistema financeiro, cujos enormes buracos no balanço ele deveria preencher dessa maneira. Esta tentativa de quadratura do círculo só pode resultar no colapso das finanças públicas; e justamente na medida em que as somas dos pacotes de resgate realmente vencerem.

O problema verdadeiramente subjacente da falta de produção real de mais-valia, nas condições das novas forças produtivas, está fora da perspectiva oficial. Assim, pôde surgir o repetido e grosseiro erro de julgamento de que a temida "repercussão" da crise financeira sobre a economia falsamente em expansão será leve. Mas essa economia acabara de ser alimentada pela reciclagem do "capital fictício" na procura da "economia real", que assim assumira ela própria um carácter virtual. Juntamente com a acumulação de capital simulada, também o mecanismo do poder de compra simulado paralisa. A carteira de encomendas industriais está desaparecendo a um ritmo de tirar o fôlego, da indústria automobilística e seus fornecedores, passando pela indústria metalúrgica, até à construção de máquinas e serviços secundários. A esperança na China e na Índia, como locomotivas substitutas da economia mundial, também é ilusória. Os investimentos de capital nas faixas das zonas de exportação estavam dependentes e integrados no circuito de deficit com os EUA. O crescimento asiático impulsionado pela exportação unilateral encolhe drasticamente desde dezembro de 2008 e dá uma ideia de distorções que negam qualquer ambição de "potência mundial". A iminente maior crise económica mundial desde os anos de 1930 ameaça desvalorizar os activos em dólares dos fundos soberanos para valores ridículos.

A mesma cadeia de interconectividade do sistema financeiro se executa depois destrutivamente na "economia real" que já não é assim tão real. Também aqui a consciência capitalista invoca o Estado como "deus ex machina". Além dos pacotes de resgate para o sector financeiro, são lançados pacotes de estímulo económico de magnitude similar. Enquanto nos EUA a administração do recém-eleito Obama anunciou, com toda a serenidade, um programa de investimento estatal de mais de um bilião de dólares, enquanto se vai regateando em torno de novos pacotes de resgate para a indústria automóvel dos EUA em bancarrota, e enquanto o presidente francês Sarkozy fala de uma nacionalização de indústrias-chave, o governo federal alemão ainda hesita, e continua a fabular sobre o saneamento das finanças públicas. Mas a indústria automobilística alemã e seus bancos de leasing já anunciam as mesmas reivindicações de resgate.

Nunca houve tanto "resgate". Só continua por esclarecer de onde há-de vir o dinheiro para isso. Embora a inflação inicialmente seja retardada pelo colapso da economia global, isso é um pequeno consolo. Mesmo o crédito público, que é despejado no buraco negro dos balanços dos bancos, não consegue aparecer como procura fictícia inflacionária, embora seu financiamento esteja nas estrelas. Mas trata-se fundamental e consequentemente do colapso do poder de compra global. Esse é o dilema capitalista básico. Cortes de impostos, como actualmente no Reino Unido, levam ao absurdo, na medida em que a crise económica mundial em curso pode, simultaneamente, derreter rapidamente as receitas fiscais como base para o crédito estatal. Se o Estado, como "última instância", pretende despertar a procura moribunda, ele tem de pôr a funcionar a emissão monetária, contra todas as intenções. O "lançar dinheiro de helicóptero" não é mais filtrado pelas instituições do capital financeiro, mas os bancos centrais têm de transferir para o Estado dinheiro formal criado directamente do nada.

O debate alemão sobre "cupões de consumo" de 500 euros para cada cidadão adulto dá uma ideia de para onde se caminha. Os obstinados economistas do mercado nem sabem o que dizem quando afirmam, com razão, que tais medidas não dão em nada. Consideradas a longo prazo, terão de desencadear a hiperinflação. Esta é apenas outra forma de "desvalorização do valor", como a desvalorização da força de trabalho supérflua ou das "sobrecapacidades" industriais. No entanto, a alternativa compatível com o sistema só poderia ser negar o capitalismo como relação social, de tal modo que a maioria da humanidade teria de morrer de fome por falta de "capacidade de financiamento". Mas esta opção, que se esconde no critério da "financiabilidade regular", é impossível, e não apenas por razões de legitimidade. O capitalismo permanece dependente de um "trabalho social total" (Marx) interligado, que suporte a sua acumulação. É de facto previsível que a administração estatal da crise dê expressão à contradição até às últimas consequências, e pretenda impor ao material humano tornado inutilizável rações de fome cada vez mais reduzidas, mesmo à custa de revoltas sangrentas. Mas isso não pode resolver a autocontradição económica do capital. A lógica do paradoxo real da "valorização do valor" extingue-se em seu limite interno, que ninguém quer admitir.

Quando a crise histórica do capital mundial se manifesta em 2009, o vigésimo aniversário do colapso do socialismo real já não interessa a ninguém. O fim do capitalismo de Estado do Leste foi apenas uma etapa na crise do mercado mundial. O segundo fim de uma época não nega o primeiro, mas constitui a sua continuação; o Livro Negro apareceu exactamente no vértice entre as duas cesuras históricas. A euforia de vitória dos ideólogos ocidentais foi vítima de uma ilusão de óptica. Não era a modulação feita pela burocracia de Estado da socialização capitalista que constituía o problema, mas o próprio contexto formal basilar desta socialização, que também existia no Leste. Involuntariamente, o capitalismo de mercado "liberal" chegou onde presumira que estava a sua suposta contraparte. Quando se fala em "comunismo de Wall Street" ou "socialismo do mercado financeiro", isso aponta para a ilusão do Estado capitalista, de que também foi vítima a esquerda tradicional. Mas o Estado só pode elevar as contradições imanentes do capitalismo a um nível mais geral do sistema monetário, sem realmente as resolver. Com o retrocesso de volta ao crédito estatal, o capital mundial está de repente numa posição semelhante à da burocracia do plano do capitalismo de Estado, tornada insolvente na RDA em 1989 e na União Soviética em 1991. Mas, em contraste com esse bloco de uma região mundial, o capitalismo ocidental "autêntico" não pode dissolver-se numa ordem superior do sistema mundial produtor de mercadorias, porque é isso mesmo que ele é.

Nos primeiros surtos da grande crise económica mundial iniciada no final de 2008, ainda dominam as ilusões ideológicas que pretendem menosprezar o carácter histórico do limite interno da socialização capitalista. De repente, o ex-"mágico" Alan Greenspan tem de fazer de bode expiatório. Numa inversão de causa e efeito, a desregulamentação neoliberal, por um lado, e o excesso de dólares da Fed, por outro, são responsabilizados pela irrupção da crise. Esta argumentação é grotescamente incoerente, pois, com a crítica da abertura das comportas do dinheiro, toma a palavra mais uma vez a doutrinária "consciência" neoliberal, enquanto, por outro lado, ela própria se desmente com a crítica da política de desregulação de duas décadas. Na realidade, a questão não está na forma política de regulação, mas na falta da própria substância da valorização. Se não tivesse havido a desinibição dos mercados financeiros, o crescimento "impulsionado pelas finanças" teria sido impossível desde o início; e se Greenspan não tivesse desistido do monetarismo, o colapso teria ocorrido alguns anos antes. Em seu desespero, os bancos centrais estão fazendo exactamente o que ao mesmo tempo se repreende a Greenspan.

Dado que nada se modificou nas condições de valorização, na sequência da Terceira Revolução Industrial, todas as previsões dos institutos económicos sobre uma "recuperação", após um ano ou dois de depressão económica, carecem de qualquer fundamento. Na ausência de percepção da autocontradição interna do capital, tais considerações alimentam-se unicamente de um vago horizonte de expectativas económicas. Mas já não estamos perante um ciclo económico clássico, que agora teria de ser novamente administrado, com a ajuda de uma exumada intervenção estatal keynesiana. Que o Estado já não pode endireitar isso torna-se evidente com o abandono dos objectivos, já de si modestos, de limitar as emissões de poluentes, em nome dos empregos que, no entanto, desaparecem. Mesmo Merkel, eleita "chanceler do clima" em 2007, já não quer saber muito das boas intenções ecológicas. O Estado é apenas a instância agregadora do "trabalho abstracto" e da produção de mais-valia; ele não pode escapar à lógica das suas premissas. Se ele tem de falhar em face da crise económica, ao lidar com o limite externo da natureza, o mesmo se aplica ao limite interno da economia. Além disso, a globalização da economia empresarial e a constituição de um capital mundial, na época da Terceira Revolução Industrial e da economia das bolhas financeiras, há muito tempo romperam o quadro formal da regulação estatal. Os aprendizes de feiticeiro da moderna economia vudu também chegaram ao fim com o seu latim, porque não pode haver nenhuma instância agregadora no plano mundial, sob condições capitalistas.

A história do capitalismo foi a história da chamada modernização, cujo conteúdo consistiu em aprontar o mundo para os critérios capitalistas, submetendo-o à dinâmica cega de um desenvolvimento das forças produtivas guiado pela concorrência. O desvanecido "socialismo real", vulgo capitalismo de Estado, não foi excepção. Seu modo de regulação especificamente burocrático, baseado nas mesmas categorias económicas, devia-se apenas ao problema da "modernização atrasada", na periferia do mercado mundial. A óptica do "conflito sistémico", que era apenas superficial, tornou-se historicamente irrelevante. O fim da "modernização atrasada" foi apenas a antecipação do fim da história da modernização em si. A industrialização de exportação chinesa já não teve base económica nacional, nem perspectiva de desenvolvimento; foi a amálgama de restos da burocracia de Estado e elementos de um brutal capitalismo neoliberal de baixos salários e de minoria, com a ajuda de investimentos ocidentais, que pôde comemorar o seu sucesso de curta duração apenas no frágil contexto da economia global de bolhas financeiras. O colapso da economia de deficit atinge, na verdade, mais fortemente os estreitos segmentos de exportação dos supostos países emergentes; provavelmente com uma força similar à que atinge a sociedade da RFA, a mais unilateralmente orientada para a exportação de todos os Estados centrais capitalistas. A China não pode transformar-se numa "nação democrática do mercado mundial", como muitos esperavam, porque as condições para fazê-lo estão a desaparecer no orco da história; nem existe a possibilidade de regressar ao capitalismo de Estado nacional, que estava ligado ao paradigma da "modernização atrasada" duma época passada.

Não é o "resgate" do irresgatável que se torna inflacionário, mas o "fim" das concepções da história da modernização. Isso também se aplica ao chamado pós-modernismo, cujo título sempre foi um rótulo fraudulento. O correspondente padrão de pensamento filosófico, estético e político, na academia e nos movimentos sociais mais simbólicos da juventude de classe média, não abandonaram os fundamentos do sistema político-económico da modernidade, mas apenas os esconderam e recalcaram. A crítica da economia política deixou de ser tema. A objectividade fortemente negativa das categorias económicas foi redefinida numa "abertura" subjectiva para toda e qualquer coisa. "Anything goes" era a palavra de ordem. A história devia estar virtualmente disponível. A verdade era considerada "produzível" e "negociável", como se não tivesse uma base inegociável nas circunstâncias.

De um modo geral, a ideologia da "virtualidade" (também em relação à "second life" virtual na Internet), da "contingência" e da "ambivalência" ganhou uma posição hegemónica. A "aparência real" fetichista do moderno sistema produtor de mercadorias transfigurou-se na realidade realmente "imaterial", incluindo a do "trabalho imaterial" dos best-sellers de Antonio Negri. A base económica era a esfera da circulação da eterna compra e venda, enquanto o problema da substância do "trabalho abstracto" parecia obsoleto, apenas no sentido de que já não teria sentido, nas relações ainda capitalistas. O conceito de "substância" sucumbiu geralmente ao veredicto de ser um conceito metafísico ultrapassado. Mas esse "anti-substancialismo", ou "anti-essencialismo”, não contou com o carácter realmente metafísico da economia de fim em si capitalista, que está assente no constante aumento da valorização do trabalho, como base do "crescimento" necessário ao sistema, e dele não se pode emancipar. Esta não é uma questão que pudesse ser negociável no bazar universal do mercado mundial.

A base social estava não só nos especuladores de ocasião e nos pequenos reis do endividamento, mas também nas vidas de downloader, nos rebentos de classe média, sem perspectivas mas com ambições ilusórias, e nos herdeiros esperançosos de activos financeiros fordistas, que agora começam a evaporar-se. O pensamento pós-moderno, tornado reconhecível como óbvio produto do capitalismo virtual das bolhas financeiras, já criticado no prólogo do Livro Negro, envergonhou-se a si mesmo na dura realidade da crise, que agora já não pode ser recalcada por qualquer mediático optimismo profissional. Também o respectivo conceito sociológico da "modernização reflexiva" (Ulrich Beck) ultrapassou o prazo de validade, ao perder o seu pressuposto com a queda do Estado social. O pós-modernismo acaba por ser uma espécie de palhaçada ou farsa, no fim da história da modernização, e não a sua ultrapassagem.

Se a crise do capital mundial não é um fenómeno conjuntural, mas um novo fim de uma época de grau superior, então há mais em jogo do que empregos e renda monetária. Os limites do moderno sistema produtor de mercadorias são também os limites da sua razão, que deve ser historicizada. Não há uma razão trans-histórica que tivesse vindo a si no capitalismo. Cada formação histórica constitui a sua específica forma de razão, que mais não é do que uma sintetização da percepção do mundo e da relação com o mundo, com base no respectivo modo de reprodução. A razão do Iluminismo, da qual vive o pensamento moderno e a partir da qual surgiu o moderno sistema científico, constituiu (com precursores no protestantismo e na filosofia do início da modernidade) aquela grelha básica da reflexão e da acção no mundo, que corresponde, tanto ontologicamente como também epistemológica e eticamente, ao contexto formal do imperativo de valorização capitalista. Essa razão sintetizadora, como "dinheiro do espírito", ficou histórica e desesperadamente fora de prazo, não podendo mais controlar as suas próprias produções.

Não é apenas um aspecto secundário desta razão historicamente limitada que contém, de uma maneira diferente dos seus antecessores patriarcais, uma forma especificamente "masculina" de pensamento e de acção. As categorias político-económicas do capital, aparentemente universais e, portanto, também sexualmente neutras, e a racionalidade das actividades científicas com elas relacionadas representam, na realidade, apenas um "universalismo androcêntrico". A universalidade do "trabalho abstracto", desde o início determinada como masculina, e a correspondente razão histórica, que atravessa todas as esferas sociais, estão socialmente associadas ao facto de, até hoje, serem em média atribuídas às mulheres posições subalternas, a todos os níveis da economia, da política, da ciência e da cultura, e não é só isso. Ao mesmo tempo, foram delegados na parte feminina da sociedade aqueles momentos da reprodução social que não podem ser absorvidos na lógica do "trabalho abstracto" e da produção de mais-valia (actividade familiar ou "trabalho doméstico", educação das crianças, cuidados e apoio de proximidade, "funções maternais" em geral, etc). Esses momentos são separados da socialidade oficial, não aparecem no sistema de categorias universalista e são considerados inferiores, na medida em que não podem ser representados em dinheiro. A assim constituída "relação de dissociação sexual" (Roswitha Scholz) viveu, juntamente com a dinâmica capitalista, uma história em que é sempre reconfigurada, sem ser ultrapassada na sua essência.

Enquanto, nos breves tempos de prosperidade do pós-guerra e do crédito público em expansão, alguns desses campos sociais foram transformados em instituições públicas de trabalho social, de cuidado e de assistência, que também então foram desproporcionalmente ocupadas por mulheres, o capitalismo neoliberal das bolhas financeiras reduziu e desmontou esses domínios, como pesados factores de custo. O keynesianismo de crise do capital financeiro não pode recomeçar nesse sentido, só pelo facto de o Estado estar a retomar de novo o ceptro. Pelo contrário, são precisamente as instituições sociais "fracas" que correm o risco de ser completamente cilindradas. Embora as mulheres tenham atingido o nível educacional dos homens, a crise desvaloriza muito rapidamente as suas qualificações específicas, no quadro de um Estado social em desintegração, retirando-as de funções públicas pagas, para voltar a delegar estas na muito elogiada "maternidade gratuita". A força de trabalho feminina é encostada à parede de uma maneira nova, não apenas por dever "voltar para a cozinha", mas também (especialmente no caso de famílias monoparentais) por dever fazer de "ganhadora de dinheiro" no sector de baixos salários, para não sobrecarregar a administração da pobreza. Dado que a crise epocal do "trabalho abstracto" é também a crise da masculinidade moderna, regressam por todo mundo, de forma modificada, em diferentes níveis de decadência social, padrões de comportamento militantemente patriarcais, a que até mesmo muitas mulheres se agarram à procura de apoio, embora o duplo papel que lhes é exigido dificilmente possa ser viável.

A agonia do universalismo androcêntrico da razão burguesa é, não apenas do ponto de vista sexual, muito mais do que uma questão no rarefeito ar dos cumes do pensamento filosófico e científico. De acordo com Marx, trata-se de "formas objectivas de existência", a que correspondem "formas objectivas de pensamento", que foram internalizadas num processo histórico pela domesticação capitalista do "material humano", e que, sem reflexão teórica, também determinam a consciência quotidiana. Portanto, não pode haver emancipação social espontânea das imposições absurdas. O limite interno das formas dominantes de existência é primeiro processado nas correspondentes formas de pensamento social. Disso se alimentam tanto as ilusórias concepções de solução que vão grassando, como as projecções ideológicas de exclusão e de busca de bodes expiatórios. Quanto mais dramaticamente se agudiza a situação económica mundial, tanto mais desenfreadamente é saqueado, na concorrência de crise, o destrutivo reservatório ideológico da história da modernização; desde padrões de interpretação sexistas, até nacionalistas, racistas e anti-semitas. Não em último lugar, o "centro decente" esquece todos os superficiais postulados de tolerância, quando ele próprio fica com a corda na garganta.

Daí que o Livro Negro termine de modo um pouco elegíaco, por não estar à vista nenhuma força social de que se possa esperar a emancipação social dessas relações. Dez anos depois, nada mudou. A mensagem principal, no entanto, é que o capitalismo tem um poder objectivo de autodestruição, que pode ser realizado se ninguém quiser romper com ele. Esse é que devia ser o escândalo, para um pensamento "crítico do capitalismo" que já sempre pretende atestar a capacidade de regeneração contínua do sistema social inimigo, na medida em que não surja um sujeito de vontade que mate o dragão. Essa é a convicção básica de uma crítica social ligada à história da modernização, que não se entende bem a si nem ao seu objecto. Ela acredita na vida eterna do capitalismo, especialmente porque ela própria está enredada nas suas categorias político-económicas e na sua razão historicamente limitada. A esquerda até agora existente está tão impotente diante do limite interno da máquina da valorização como as elites capitalistas.

Se a grande crise do sistema mundial parecia ainda distante em 1999, ela tornou-se agora empiricamente palpável. As somas de biliões em apoios estatais já não conseguem absorver a depressão global, devido ao efeito retardado desta. É de facto bem possível que, depois de uma queda grave, a massa de dinheiro formal criado do nada desencadeie uma economia da aparência, aquecida pela inflação. Mas o crescimento fictício, que no futuro próximo estará associado a uma mais rápida desvalorização do dinheiro, não voltará a aguentar-se por mais de uma década. Certamente será necessário um longo e doloroso processo, para deixar as "formas de pensamento objectivas" do moderno patriarcado produtor de mercadorias, e chegar a uma razão diferente. Se se pretende conter a catástrofe social, o novo fim de uma época requer ainda medidas práticas de curto prazo, que vão contra a racionalidade capitalista. Se a General Motors pode tornar-se insolvente, isso também é possível com as grandes empresas de transportes e com as cadeias de venda de alimentos. Já não é impensável que, mesmo nos centros, as pessoas se deparem com as prateleiras vazias dos supermercados. Por falta de "viabilidade financeira", também a assistência médica pode ser cancelada, a água e a electricidade desligadas, ou a habitação para milhões fechada, apesar de todos os recursos materiais estarem disponíveis. Se a humanidade capitalista não quiser condenar-se a si mesma ao destino de Tântalo, de sofrer fome e sede eternas vendo abundantes alimentos e bebidas a serem retirados do seu alcance por magia, ela tem de iniciar uma transformação que liberte a riqueza concreta da sua forma abstracta.

Original: Einleitung zur Neuausgabe. Vom Ende des Staatssozialismus 1989 zur Krise des Weltkapitals 2009 
online: www.exit-online.org/linkgen.php?tabelle=buecher&posnr=6 .
Tradução de Boaventura Antunes


Inclusão: 06/11/2020