A sociedade do espectáculo trinta anos depois

Robert Kurz

1999


Primeira Edição: Prefácio à edição brasileira do livro de Anselm Jappe Guy Debord¸ Vozes, Petrópolis, 1999

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Guy Debord e os outros situacionistas franceses estão na moda. É o pior que lhes poderia acontecer. Pois a moda é o oposto da crítica. Crítica radical não pode virar modismo sem perder a alma. O que está na crista da onda é a maneira como ideias são transformadas em lixo de praia. Na leitura pós-moderna em voga, a declaração de guerra situacionista à ordem dominante parece uma crítica aos meios de comunicação, tão ao gosto da própria mídia, no melhor estilo de um Neill Postman, ou uma manobra culturalista para esquerdistas "criativos" que gostam de surfar, aparentemente de modo radical, nas ondas da indústria da consciência. Mas Guy Debord não merece ser confundido com Baudrillard e ser reduzido ao formato de um póster pop cultural.

Nessa situação, o estudo de Anselm Jappe sobre Debord chega em boa hora. Pois Jappe não tem nada em comum com aquela leitura da Crítica da Sociedade do Espectáculo, cujos promotores, por muito tempo, não quiseram nemsaber se Debord, e apenas ele, tinha sido o seu real fundador. Se o precursor situacionista precisava primeiro ser silenciado pelo seus falsificadores para apagar seus rastos, hoje ele parece ser instrumentalizado como ícone pop ou verbete para um "discurso" ralo e conformista, bem ajustado ao mercado que ele detestou profundamente. Jappe rejeita esta afronta desde o início, restaurando sem concessões a memória do verdadeiro Debord, do qual o mundo até hoje não quer saber. O livro de Jappe concentra-se justamente naquele marxismo sólido, que faz da obra de Debord uma crítica social radical e, exactamente por isso, tem sido recalcada sistematicamente pelas actuais reinterpretações culturalistas.

É bem verdade que não se trata de um marxismo compatível com aquela ideologia legitimadora da "modernização retardatária" que afundou juntamente com os regimes capitalistas de estado. Contra a corrente do marxismo de partido, Debord se concentrara, há três décadas, e na época totalmente isolado, no tema central da teoria marxista, com o qual o marxismo do movimento dos trabalhadores nunca soube o que fazer: a crítica radical do fetichismo da mercadoria, tal como se apresenta no modo de produção e dominação capitalista. Com este leitmotiv, Debord já podia descrever a União Soviética, muito antes da sua decadência, como uma forma derivada e subalterna do moderno sistema produtor de mercadorias, que no fim das contas precisava novamente desembocar na corrente principal capitalista.

O mérito do livro de Jappe é tornar mais nítida a importância decisiva da crítica radical à economia moderna no pensamento de Debord. Uma crítica cuja cotação continua em queda livre, apesar de todos os apelos aos situacionistas feitos pelo actual espírito do tempo. Qual adepto dos "discursos" desarmados da crítica económica hoje gostaria de se lembrar que a intervenção situacionista em 1968 culminou na reivindicação da extinção do dinheiro e do Estado? Foi aquela crítica radical do valor de troca, que seguia o Marx desconhecido e obscuro, que se tornou a crítica da "sociedade do espectáculo". A redução da realidade ao fim em si mesmo da valorização capitalista do valor — a inversão que ocorre em seu interior entre abstractum concretum, entre meio e fim — transforma as potencialidades sociais num poder estranho e hostil que se contrapõe aos indivíduos. As relações entre os seres humanos parecem relações entre coisas mortas. Debord desenvolve esta ideia para mostrar como a relação fetichista posta pelo capital alcançou no pós-guerra um grau de abstracção ainda maior, na medida em que as coisas produzidas sob a forma mercadoria foram recobertas por imagens produzidas também sob a forma mercadoria: são essas imagens que medeiam, desde então, as relações sociais como uma realidade aparente compensatória que está à frente dos homens de maneira tão isolada como força alheia quanto as forças sociais nela inseridas. Não se trata de nenhuma "teoria da mídia", mas de uma crítica incompatível com o capitalismo na época da mídia — o espectáculo não é outra coisa do que a "economia enlouquecida".

A partir desta análise Debord podia, como Jappe demonstra, também desenvolver dois temas inerentes à critica do fetichismo, que apenas hoje, trinta anos depois, lhe dão actualidade eminente: a crítica do trabalho e a crítica da política. Pela primeira vez, germina a ideia de que o abstractum "trabalho" não representa nenhuma categoria supra-histórica, mas é a forma específica de actuação do sistema do fim em si mesmo capitalista — mesmo quando Debord formula esse reconhecimento de uma maneira influenciada pelo existencialismo. E na medida em que ele integra a política de forma geral no espectáculo, isto é, no modo capitalista de desrealização da vida, denuncia já a "democracia de mídia" no fim do século XX, suas encenações sem conteúdo, o apartheid social e as guerras sangrentas da nova ordem mundial, andando de mãos dadas.

Guy Debord antecipou em vários aspectos uma crítica categorial do sistema produtor de mercadorias, como ela hoje, com outros acentos mais teórico-críticos, está sendo sistematicamente desenvolvida por uma escola, ainda em formação, de crítica radical do valor e contra o Espírito do Tempo. Acontece que a crise objectiva das categorias sociais dominantes amadureceu tanto que uma nova investida contra o fetichismo da mercadoria, o trabalho abstracto e a política do espectáculo poderia estar entrando na ordem do dia. Neste sentido, é do maior interesse tentar uma articulação entre a crítica de Debord à "sociedade do espectáculo" e a teoria radical da crise a partir de uma nova crítica do valor.

Ninguém mais indicado do que Anselm Jappe, alemão com raízes francesas que vive em Roma, fazendo parte hoje dos poucos intelectuais que buscam um intercâmbio transnacional para uma crítica social emancipatória ampliada por esta dimensão decisiva. E não sem êxito. A ruptura categorial com a forma "mercadoria" e sua emanação social não aparece mais tão desesperançadamente incompreensível e impossível, como há alguns anos. Fortalecer os fios mais finos dessa rede, para um "outro discurso", pode ser com certeza um dos bons serviços da tradução brasileira deste livro, que já foi editado na Itália e na França, mas infelizmente ainda não na Alemanha.


Inclusão: 30/10/2020