O fim da teoria
A caminho da sociedade sem reflexão

Robert Kurz

9 de julho de 2000


Primeira Edição: Das Ende der Theorie in www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo de 09.07.2000 com o título Filosofia como farsa

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Tradução: José Marcos Macedo

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Não é de modo algum espontâneo que uma sociedade reflita "sobre" si própria. Isso só é possível quando uma sociedade pode comparar-se criticamente com outras sociedades na história e no presente, mas sobretudo em situações nas quais uma sociedade torna-se questionável como que de dentro para fora, carregando consigo um antagonismo que, em sua estrutura e evolução, aponta para além de si mesma.

Isso certamente não vale para todas as sociedades pré-modernas. Essas sociedades ainda não eram planetárias, não possuíam consciência histórica nem dispunham da história como uma série de processos de evolução e formações económico-sociais. E tampouco estavam em conflito consigo mesmas, com sua própria forma. Uma dinastia podia suceder a outra, mas a forma social como tal não podia ser posta em dúvida; para tanto faltavam critérios. Tais sociedades eram capazes de reproduzir-se por períodos incrivelmente longos (no caso do antigo Egito, por vários milénios) sem ruírem a partir de dentro; seu declínio, pois, era condicionado antes de tudo por causas externas.

A sociedade, sob tais pressupostos, aparecia sempre como "sociedade em geral", não como forma específica que também poderia ser totalmente diversa. E mesmo quando teve início relativamente tarde na Antiguidade a reflexão sobre diversas "formas de governo" (monarquia, oligarquia, democracia, tirania), tal distinção permaneceu indiferente aos corpos econômico-sociais da sociedade; ela não se apresentou, assim, como, por exemplo, uma história evolutiva linear da própria sociedade, mas como eterno ciclo de formas de dominação meramente extrínsecas que surgiam sempre umas separadas das outras. O mesmo vale para a idéia do "Estado ideal" (Platão), que só representava uma figura idealizada da sociedade já existente, pensada como inexcedível.

Contudo essas culturas agrárias pré-modernas não se esgotaram cegamente em seu "funcionamento"; elas deram à luz uma reflexão que ultrapassava o seu ser imediato. Mas essa reflexão não fazia "crítica da sociedade", antes era uma reflexão "imediata sobre Deus" ou sobre o universo, sobre a posição do homem no cosmos, sobre o enigma da morte. Era necessariamente, portanto, uma reflexão em forma religiosa e com conteúdos religiosos. Tal espécie de pensamento "sobre" si próprio, embora como pensamento do homem e de sua sociedade não em relação a si mesmo, mas em relação a Deus e ao cosmos, permaneceu vinculada à estrutura socioeconômica pressuposta sem crítica. Isso porque, apesar de sua inquestionabilidade, essa estrutura não era "muda" em sua cega positividade, mas plenamente legitimada pela reflexão; embora não como objeto próprio, mas como componente secundário da ordem divina do universo.

Reflexão religiosa, estudo da natureza e relações econômico-sociais constituíam, pois, uma unidade indissolúvel, representada e reproduzida em formas rituais tanto do pensamento quanto da atividade e das relações sociais. Por isso, nos tempos remotos, a inteligência funcional e a inteligência reflexiva (ou, em termos sociológicos, as elites funcionais e as elites reflexivas) eram imediatamente idênticas (reis-deuses, monarcas-sacerdotes). Só relativamente tarde separaram-se função e reflexão em esferas distintas. Instalou-se com isso o germe de um conflito que a princípio, no entanto, só se manifestou esporadicamente (por exemplo, na "querela das investiduras" entre o imperador e o papa na Idade Média), sem exceder uma disputa sobre as competências superiormente determinadas dentro de uma ordem universalmente partilhada.

À medida que o pensamento reflexivo nessas sociedades libertava-se dos severos rituais religiosos (como na filosofia antiga e medieval), voltou-se ele ou diretamente para a natureza  em sua origem, aliás, a ciência natural era parte integrante da filosofia  ou para o ser humano como um ser "seminatural". Como a forma e a ordem sociais não podiam, como tais, estar à discussão, a reflexão "sobre" o homem social cingiu-se basicamente a dois temas. Primeiro, à "ética", a doutrina das "virtudes" e da conduta moralmente correta, que forneceria ao homem um padrão de seu comportamento, sem discutir criticamente os "fundamentos últimos" da sociedade. Para essa metafísica, o nexo entre suas noções normativas e as formas econômico-sociais permaneceram às escuras; ela visou sempre ao homem isolado, claro que não ainda ao indivíduo abstrato simplesmente, mas ao homem em sua determinação socialmente "petrificada"  no fundo, tratava-se de uma reunião exclusiva de "homens com poder de mando": o destinatário (e portanto "o homem") era em geral o pater familias proprietário de terras.

Em segundo lugar, a reflexão filosófica com os mesmos destinatários desenvolveu, ao lado da "ética", uma doutrina da "vida boa", da "felicidade" do homem no interior de uma ordem pressuposta sem discussão. Essa filosofia da "arte de viver" ocupava-se, por exemplo, com diversas formas de prazer, com a relação entre prazer e abstinência (Diógenes!) etc.; e, em último recurso, com a questão do que constitui uma "vida bem-sucedida". Esse aspecto da filosofia antiga visava uma "estetização" da existência, cujo nexo com as relações econômico-sociais permaneceu tão obscuro como na "ética" metafísica. Tornar a si próprio, a própria vida, uma obra de arte, sem abarcar com a vista o conjunto da sociedade e, ao mesmo tempo, seguir o quanto possível uma doutrina normativa da conduta, nisso se esgotava o caráter social desse pensamento.

Só na modernidade teve início a luta pela forma social propriamente dita e surgiu pela primeira vez uma "crítica social", uma consciência de formações econômico-sociais, de crise e transformação da sociedade. Porém essa nova espécie de reflexão não fez com que a sociedade alcançasse consciência crítica de si mesma. Ao contrário, tratava-se apenas de dar um contorno intelectual a uma dinâmica cega liberada pelas injunções da moderna revolução econômica. Nessa inversão, a forma abstrata do dinheiro, até então um fenômeno marginal e limitado a nichos da sociedade, foi reacoplada a si mesma num processo cibernético: a vida social foi submetida ao movimento de valorização do dinheiro, movimento que se tornou um fim abstrato em si mesmo. Na medida em que somente dava expressão a esse processo cego, o novo pensamento reflexivo, tal como o pensamento anterior, permanecia preso à metafísica, metafísica agora secularizada e liberta da religião: em vez da metafísica celeste de um cosmos divino, a metafísica terrestre do dinheiro sem freios.

Mas a metafísica, a exemplo de seu fundamento social, não foi apenas secularizada, foi também dinamizada. Os conceitos de revolução, de processo, de movimento etc. já apontam para a diferença decisiva dessa nova sociedade moderna em relação à anterior: ela não apenas cindiu-se da velha ordem, como também não podia continuar a ser a mesma, não podia repousar sobre si própria como as antigas civilizações agrárias e religiosas. Desde o berço, ela está em contradição consigo mesma, pois o processo de valorização do dinheiro é insaciável e reproduz-se em formas sempre novas, em estágios evolutivos cada vez mais elevados. A máquina cibernética do dinheiro tornado "princípio motor", transforma a sociedade num projétil que se desloca num tempo linear. Em conformidade a isso, o novo pensamento de "crítica social" inventa a história linear e o progresso, o olhar voltado para o futuro e a crítica de cada situação alcançada como mero estágio de passagem para uma situação sucessivamente nova e supostamente "superior". Só nesse contexto contrapõem-se, de maneira sistemática e estrutural, a inteligência funcional e a inteligência reflexiva, já que a reflexão secularizada assume o papel de crítica progressista em relação ao "funcionamento" que se prende ao respectivo estágio de desenvolvimento.

Mas essa crítica sempre permaneceu apegada à moderna metafísica do dinheiro; ela não foi mais que a expressão intelectual da contradição interna da sociedade moderna consigo mesma. Foram criticadas não as formas básicas da sociedade como tal, mas somente a sua respectiva insuficiência e "subdesenvolvimento". Por um lado, a crítica social ocupou-se ainda por um bom tempo com a crescente dissolução dos laços que a ligavam à antiga ordem agrária e religiosa; por outro, ela refletiu sobre o processo dinâmico da nova ordem propriamente dita e proclamou, nesse sentido, a meta do "desenvolvimento". Isso vale também para o marxismo. Marx, é verdade, foi o único teórico moderno a desenvolver rudimentos de uma crítica radical da modernidade, ou seja, uma reflexão "sobre" a metafísica do dinheiro. Mas esse pensamento não foi capaz de sustentar-se. Enquanto avançava o desenvolvimento dinâmico do sistema social moderno, só se tinha olhos para "o que viria a seguir". Objeto de disputa teórica era a fase seguinte do "desenvolvimento", não o princípio metafísico, a essência ou a lógica desse "desenvolvimento".

Ao que parece, a situação modificou-se radicalmente no final do século 20. Depois de o conceito de desenvolvimento ter perdido há muito o seu fascínio, agora é a própria teoria crítica da sociedade que é vista como obsoleta, não só a marxista, mas a teoria em geral. Seja como for, a pós-modernidade envolveu tudo o que na história da modernização até hoje foi tido como teoria com a suspeita de um "propósito totalitário" das chamadas "grandes narrativas" ou "grandes teorias". Não se quer mais considerar o conjunto da sociedade e por isso repudiam-se "grandes conceitos" em troca do conforto da "indeterminação" teórica. A teoria crítica é substituída pelo jogo intelectual descompromissado.

De onde vem essa surpreendente guinada, esse "desarmamento da teoria"? Impõe-se a suspeita de que a reflexão teórica calou-se porque a dinâmica social a ela subjacente extinguiu-se. Em escala planetária, não há mais qualquer sociedade tradicional da qual seja possível desfazer-se. E parece que também não há mais "lugar" para um novo estágio de desenvolvimento social no interior da modernidade, porque o processo de valorização econômica começa a esgotar-se. O processo segue adiante, mas somente como processo negativo, como processo de crise que não pode mais ser preenchido por esperanças positivas.

O desenvolvimento técnico se torna incompatível com a moderna metafísica do dinheiro. Mas desse nível de reflexão o moderno pensamento metafísico recua amedrontado, porque senão teria de superar os seus próprios limites. Bem no momento em que o totalitarismo do dinheiro domina como nunca a realidade, a própria teoria social é denunciada como totalitária em seus propósitos. Ela cumpriu o seu dever, mas agora deve deixar em paz o conjunto social justamente em meio à crise. A real contradição social, que no atual estágio não é mais contornável, deve simplesmente ser banida do pensamento. O sombrio desfecho do desenvolvimento moderno é absurdamente festejado como transição para um "pragmatismo livre de ilusões". Junto com a crítica social, é o pensamento reflexivo em geral que chega ao fim.

A inteligência reflexiva desaparece. Mas a inteligência funcional não triunfou, só está órfã. Embora ela tenha sido exposta à crítica pela reflexão teórica, também sempre extraiu dela novos rumos e legitimação, e o fim de seu antípoda estrutural levará a sua própria crise. As elites funcionais giram em falso, o seu funcionamento não é mais capaz de conter a crise da realidade e redunda no grotesco. Mas isso não salta aos olhos, porque também a consciência cotidiana acha-se num estágio totalmente irreflexivo. A famigerada capacidade do indivíduo moderno de refletir sobre si próprio, de "sair de sua própria pele" e contemplar como que de fora suas próprias ações esvai-se a olhos vistos. Uma tal capacidade desaparece porque estava presa ao desenvolvimento positivo da sociedade moderna. Justamente em seu fim, essa sociedade ficou inquietantemente idêntica a si mesma. As gerações pós-modernas já não compreendem os conceitos de reflexão, que em poucos anos lhes passaram a soar tão alheios quanto o culto dos mortos do antigo Egito. Elas são o que são e mais nada. São imediatamente idênticas a seu agir banal, por mais impossível que esse agir se torne.

A crise da realidade é recalcada pela pós-modernidade, uma vez que ela tenta substituir a crítica social por uma simulada reciclagem da consciência pré-moderna: a filosofia desarmada gostaria de tornar com toda a candura aos paradigmas da "ética" e da "arte de viver". Mas ela esquece que os pressupostos sociais desse pensamento deixaram de existir. O pensamento pré-moderno acrítico só era possível sob a condição de que a sociedade repousasse estaticamente sobre si mesma e o pensamento reflexivo se reportasse, não ao vazio, mas a uma ordem divina. Não há mais volta a essa condição. Em seu estado terminal, o sistema moderno torna-se, pois, a primeira sociedade da história totalmente sem reflexão. Junto com a capacidade de auto-reflexão, ela perde também uma condição básica da existência humana. Uma sociedade que somente funciona não é mais humana e acaba por não ser mais capaz de funcionar. Num movimento frívolo, que perdeu todo sentido e objetivo transcendentes, o pensamento normativo da "ética" sopra esbaforida e ineficazmente, pois não está mais ancorado em nada. E a filosofia da "vida bem-sucedida", do indivíduo como "obra de arte" de si mesmo, vira uma triste farsa, porque ignora a crise da metafísica moderna. Ela proclama-se pensamento "pós-metafísico", embora a verdadeira metafísica social da modernidade permaneça inviolada. O auto-esteticismo pós-moderno desenrola-se numa casa em chamas.


Inclusão: 30/10/2020