A Ideologia Anti-Alemã
Do antifascismo ao imperialismo de crise: crítica da novíssima essência sectária alemã de esquerda nos seus profetas teóricos

Robert Kurz

Agosto de 2003


Primeira Edição: DIE ANTIDEUTSCHE IDEOLOGIE. Vom Antifaschismus zum Krisenimperialismus: Kritik des neuesten linksdeutschen Sektenwesens in seinen theoretischen Propheten - ISBN: 3-89771-426-4 EDITORA: Unrast e.V.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Tradução: Boaventura Antunes

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Por uma nova formulação da crítica emancipatória

Contracapa

Não foi só depois do 11 de Setembro e da guerra no Iraque que se manifestou a perplexidade da esquerda radical. Ainda foi há pouco tempo ocorreu o fim do movimento operário tradicional, do socialismo de estado e dos movimentos de libertação nacional. A crítica categorial do sistema produtor de mercadorias e da respectiva história de modernização, até agora feita com unanimidade, descamba num transbordar de apologética da forma capitalista do sujeito e da sua ditadura global de crise. Como exemplar desta tendência, Robert Kurz analisa as contradições de uma ideologia anti-alemã, que faz política histórica com Auschwitz, para salvar a razão burguesa. Pelo contrário, o autor advoga uma nova formulação da crítica emancipatória, que compreende o nacional-socialismo como elemento integrante do desenvolvimento do capitalismo e rompe com a constituição fetichista da modernidade.

Prefácio

Escrever este livro custou alguns sacrifícios. Pois quem já tem vontade de discutir as questões básicas da teoria social e da crítica social na forma velha e relha da luta por distinções e separações no seio da esquerda? Por isso em primeiro lugar uma palavra para todas as leitoras e leitores que não têm que lidar com a ideologia anti-alemã: a questão aqui não é simplesmente uma "sensibilidade de esquerda", mas a questão completamente diversa do problema a colocar de uma nova formulação da crítica radical do capitalismo; trata-se da teoria da história, do estatuto do nacional-socialismo e de Auschwitz, da crítica do iluminismo e do marxismo do movimento operário, da crítica da forma burguesa do sujeito, dos conceitos de teoria e de crítica em geral, da relação entre forma do valor e ideologia, mas também da espécie e do modo das discussões no seio de uma esquerda paralisada. Desde que as discussões aqui expostas estejam também para lá das suas referências ao sindroma anti-alemão do interesse por uma esquerda em luta consigo mesma e com o seu passado.

Se a crítica da ideologia anti-alemã se fizer por meio de uma discussão sobre a necessária transformação da teoria emancipatória, não se limitará a promover a talvez sobrestimada influência daquela corrente. É difícil de calcular quantitativamente o tamanho desta influência, tanto mais que ela não se faz sentir apenas na estridência da cena anti-alemã. A maior parte da esquerda residual é actualmente "cena" no sentido mau, tacanho, desta palavra, e os anti-alemães representam apenas um segmento especialmente forte dela. A sua contraparte "anti-imperialista" não é aliás melhor em qualquer sentido. A falsa polarização entre "anti-alemães" e "anti-imperialistas" mostra apenas a dimensão da desorientação da esquerda; não se trata de qualquer alternativa aceitável, mas apenas do antagonismo entre formas de abandalhamento da consciência tradicional da esquerda radical.

Não há dúvida que a ideologia anti-alemã arranjou para si posições publicísticas para o exterior muito para lá da ordem de grandeza da respectiva cena. A sua influência nas redacções de grande parte da imprensa da esquerda radical da RFA (para chamar os bois pelos nomes: nos jornais e revistas "Jungle World", "Konkret", "iz3w" e "Phase2") não tem evidentemente qualquer relação com o verdadeiro número dos seus aderentes. A maior parte da esquerda radical remanescente permite-se fazer pouco desta corrente, apesar da sua própria complacência com as plataformas publicísticas dos anti-alemães.

Sem dúvida há razões para isso. Na verdade se a contraparte anti-imperialista na RFA na maior parte das vezes argumenta tão bem que já nada reclama teoricamente e se fica apenas no plano do empirismo, da "oral history" e do puro ressentimento, a ideologia anti-alemã compraz-se na pose da reflexão conceptual e no gesto de uma prossecução da teoria crítica de Adorno e Horkheimer. Mas isto significa apenas que a capitulação do marxismo tradicional aceitou nesta a forma de uma pretensão teórica, cujo conteúdo consiste em legitimar a administração capitalista da crise e o colonialismo de crise democrático com os conceitos desvalorizados da antiga crítica radical.

Esta empresa implica uma pérfida estratégia político-histórica, que instrumentaliza o horror de Auschwitz para assegurar a conversão pró-imperial dos anti-alemães e tomar como refém a esquerda radical numa prisão pseudo-moral. Sem dúvida isto só é possível porque também esta esquerda, ao longo de mais de meio século, desde o fim do terceiro reich, nunca conseguiu esclarecer suficientemente o nexo entre capitalismo, anti-semitismo e catástrofe histórica alemã. Porque fracassou nesta tarefa, pretende o aparelho conceptual do pensamento da esquerda tradicional aproveitar-se dos anti-alemães para separar o nacional-socialismo da história da modernização e defender a forma burguesa de sujeito.

Daí também que se exige uma consequente crítica da ideologia anti-alemã, porque neste pensamento vem exemplarmente à tona a decadência conceptual e a insuficiência analítica de uma história da teoria de esquerda tornada obsoleta. Por isso está em questão se na esquerda radical da RFA a agulha aponta para uma renovação da crítica emancipatória, para lá do paradigma marxista do movimento operário, ou para uma queda definitiva na afirmação da "razão" e da "civilização" capitalistas, que nada mais representa que o ponto de vista dos interesses do sujeito metropolitano ocidental masculino e branco, na crise mundial do moderno sistema produtor de mercadorias.

Contando que as discussões com a ideologia anti-alemã não caiam numa das muitas guerras sectárias intestinas, das quais é melhor manter-se de fora. Na disposição para estes actos a história de decadência da esquerda manifesta sobretudo a sua disposição para a modernidade capitalista. Regresso à ontologia burguesa e à metafísica histórica do iluminismo ou avanço para a crítica categorial do moderno sistema fetichista e da sua lógica de destruição, aqui é que está a questão. Superficialmente considerada a corrente anti-alemã é uma originalidade muito alemã, incompatível com os discursos da esquerda em todo o resto do mundo. Mas por trás esconde-se o problema universal do destino da crítica social emancipatória, após o fim das até agora certezas da esquerda, problema que no espaço de língua alemã apenas assume uma forma particular, através da reacoplagem ao nacional-socialismo.

Na cena e no jornalismo influenciados pela ideologia anti-alemã formou-se um determinado estilo, que evita a necessária discussão sobre as questões de princípio. Sob uma vaga cobertura da crítica marxiana do fetiche e da teoria crítica de Adorno, são colocadas a posição crítica do valor firmemente anti-guerra e a posição anti-alemã firmemente belicista, tais como se formaram em torno da revista teórica Krisis por um lado e em torno do órgão de propaganda Bahamas por outro, como extremos dogmáticos acima dos quais uma pessoa deveria elevar-se. Esta atitude tem uma pequena deselegância. Pois o "centro áureo", na cena construtora da objectividade e na sua expressão jornalística, não representa uma terceira posição teórica mais bem reflectida, mas simplesmente a ausência de qualquer posição própria. Porém, quando o exílio teórico só se encontra por referência aos insultados extremos, então é argumentativamente muito fraco o centro auto-considerado objectivo. Por isso mesmo esse centro não é centro nenhum, antes defende por sua conta o conceito central, o modelo de interpretação histórico-filosófico e a avaliação da situação mundial da posição extremista anti-alemã, que papagueia numa formulação redutora e frequentemente ambígua. Assim com certeza ninguém vai longe.

A outra face da ignorância é constituída por aquela esquerda do movimento que já considera o seu ódio à teoria como o melhor dos argumentos. Tão pouco pode a teoria crítica erguer a pretensão elitista do comando, como pode pretender autosuficiência a prática social do movimento na sua composição actual. Este postulado, de perseguir imperturbável os próprios projectos e deixar os samurais da construção de teorias muito para trás, a bater-se uns aos outros em castelos no ar, faz triste figura na prática mesma. Ninguém que queira estar activo no movimento social que aí vem se pode furtar à superação da história da esquerda e da catástrofe histórica do nacional-socialismo. A terceira revolução industrial, a globalização do capital e as guerras imperiais da ordem mundial exigem uma análise teórica e uma arrumação dos aparelhos conceptuais sem as quais nenhuma esquerda do movimento conseguirá pôr os pés na terra. Disso faz parte também acompanhar a disposição para a discussão e a futura orientação da esquerda radical e sobre isso formular um juízo próprio; apesar de todas as deturpações, tensões e enviesamentos.

As três partes deste livro surgem como reacção ao processo de cisão das esquerdas após o 11 de Setembro — processo enervante, aflitivo e que constitui um soco no estômago — e no contexto resultante da guerra no Iraque. Após esta cisão não há mais nada para mediar, mas apenas ainda alguma coisa para esclarecer. Que a posição sobre a guerra imperial não pode ser nenhum tema a diferenciar com moderação, compreende-se por si mesmo. Oposição à guerra e belicismo constituem contudo apenas o aspecto actual de uma oposição que vai muito mais fundo.

Ninguém se admire se perante este pano de fundo a forma de exposição é uma polémica. Quando em livros como este não surge a palpitação da amargura é porque nada valem. Desiluda-se contudo quem estiver à espera de um panfleto literário, de um "chau" às invectivas. O panfleto tem o seu lugar, mesmo quando os hipócritas da objectividade copiam pelo vizinho do lado. Mas não é aqui esse lugar. Há uma ampla crítica imanente a fazer e há que pôr a descoberto as fontes da ideologia anti-alemã nos discursos burgueses e nas simplificações do marxismo do movimento operário. Eu pela minha parte estou por ora farto dos anti-alemães.

Agosto de 2003


Inclusão: 04/11/2020