A Substância do Capital
O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização

Robert Kurz


Primeira parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção "trabalho"
O que é abstracto e real no trabalho abstracto?


Evidentemente os marxistas tradicionais, na discussão com a crítica do valor, perceberam entretanto que aqui há coisa, e entenderam que com a sua conceptualidade facilmente lhes poderia ser provada uma limitação da crítica do capitalismo à esfera da circulação, quando sempre pensaram ter uma concepção clara do capitalismo como "relação de produção". Na sua aflição tentaram uma vez mais esconder-se atrás do "Marx marxista do movimento operário", ou seja, o Marx ontológico do trabalho, embaraçado numa aporia. Gallas, por exemplo, tenta evitar a crítica da ontologia do trabalho procedendo a uma paráfrase. Segundo esta, embora exista a dimensão transhistórica, "antropológica" do trabalho, isso de modo nenhum positiva ontologicamente o processo de produção capitalista, diferentemente da esfera da circulação. Tal suposição revela-se "injustificada face à existência de um Marx em "O Capital" que pensa em conjunto dimensões transhistóricas e historicamente específicas no conceito de trabalho. Esse Marx distingue entre a ‘forma social’ e o ‘conteúdo’ ‘material’, isto é, antropológico (O Capital, vol. I, p. 50) de fenómenos da convivência humana. Assim ele observa que ‘o trabalho... é uma condição existencial do Homem, independente de todas as formas de sociedade’ (O Capital, vol. I, p. 57) para logo colocar em destaque a sua especificidade no capitalismo: ‘O operário trabalha sob o controlo do capitalista, ao qual o seu trabalho pertence’ (199). Com isso, Marx demonstra o entrosamento funcional entre realidades naturais e relações devidas a contextos históricos: a produção no capitalismo também tem uma função antropológica..." (Gallas, ibidem, p. 15). Segundo Gallas, a crítica do valor aqui mistura alhos com bugalhos, supondo que a posição tradicional, por atribuir um estatuto antropológico ao trabalho, tem "um entendimento dualista do objecto. Tal, no entanto, não é compatível com o conceito de trabalho do Marx supracitado. A forma capitalista e o conteúdo antropológico do trabalho, segundo ele, não existem independentemente um do outro. Nesse caso, porém, está excluído que o trabalho e o capital sejam percebidos como princípios estruturais sociais mutuamente contraditórios" (Gallas, ibidem, p. 16). Assim seria incorrecta a opinião dos críticos do valor, "segundo a qual com os ataques a um entendimento dualista do objecto foram atingidas todas as formas de crítica da economia política cujo conceito de trabalho não corresponda ao preconizado pela crítica do valor" (ibidem, p. 16); com isso teriam construído "um ‘espantalho’ chamado ‘marxismo tradicional’..." (ibidem, p. 17).

Segundo Gallas, portanto, podemos ter um conceito de trabalho ontológico e transhistórico ou "antropológico", e ainda assim entender com Marx o "trabalho no capitalismo" como historicamente específico; os elementos "antropológico" e historicamente específico teriam simplesmente de ser "pensados em conjunto" no cruzamento. E isso então não seria de modo nenhum um "entendimento dualista do objecto", no sentido de uma ontologia da produção ou do trabalho concreto, por um lado, e de uma especificidade histórica da circulação ou do trabalho abstracto, por outro.

Ora acontece que, em primeiro lugar, já ficou demonstrado que não só um marxismo do movimento operário de uma proveniência especialmente grosseira, por exemplo social-democrata ou leninista, releva de semelhante entendimento "dualista", mas também precisamente o exigente marxismo ocidental e até marxistas académicos de hoje como Heinrich, com a sua explícita teoria da circulação do trabalho abstracto e do valor. Em segundo lugar, também a argumentação do próprio Gallas, com a qual ele tenta justificar um entendimento não dualista da ontologia do trabalho e da especificidade histórica, em grande medida representa a prova do contrário. É que, se Gallas diz que Marx distingue entre a "forma social" e o "conteúdo" "material", isto é, antropológico de "fenómenos da convivência humana", afinal estamos precisamente perante esse dualismo, porque se o conteúdo material da produção e da reprodução é "antropológico", o momento historicamente específico da "forma social" já apenas pode referir-se ao modo de distribuição e à esfera da circulação.

A única coisa que Gallas indica de facto com referência a Marx, como característica historicamente específica da própria produção, é a referência ao facto de o operário "trabalhar sob o controlo do capitalista", ao qual "o seu trabalho pertence". Mas precisamente com isso ele não aponta qualquer lógica interna da própria produção material, mas apenas uma relação de dominação regida pela vontade subjectiva e de apropriação jurídica, entendidas de modo meramente exterior. Ou seja, tudo como dantes; o suposto cruzamento não dualista de momentos "antropológicos" com outros especificamente históricos no próprio processo de produção dissolve-se no ar, e o que resta é justamente esse entendimento "dualista" de uma dominação da classe capitalista, mediada apenas exterior e subjectivamente, neste sentido reduzido jurídico e circulatório, sobre a "eterna" e positivada produção material, de "conteúdo material". Trata-se, portanto, de publicidade enganosa quando, com um entendimento assim reduzido, se faz de conta que este implica uma crítica do trabalho no sentido de uma relação historicamente específica.

Neste sentido, de resto, também é típico o operaismo, que desligou por completo as características especificamente capitalistas do trabalho da determinação da forma abstracta e da fetichização e as ligou de modo extremamente reduzido à pura e simples relação de vontade de uma pretensão de controlo meramente exterior da "classe dos capitalistas"; e esta atitude vai até à desistência total da crítica da economia política, em benefício de uma relação de dominação pretensamente já apenas "política" sobre a produção (o que é especialmente evidente em Antonio Negri).

Agora põe-se evidentemente a questão, de que modo o trabalho abstracto se manifesta então na prática como apriori social no processo de produção. No processo de troca é a abstracção do carácter sensível e material das mercadorias, o seu tratamento prático como coisas de valor na compra e na venda, como abstracção não meramente conceptual, mas como acção social prática, o que perfaz a abstracção real. Ora, como é que se apresenta esta abstracção real no próprio processo de produção? Afinal aqui não parece existir outra coisa senão o trabalho concreto, a transformação programada de substâncias naturais; no entanto, e como já se demonstrou, o conceito é paradoxal e uma contradição em si mesmo.

Marx fala, neste contexto material e sensível, da "forma" do trabalho como trabalho de marceneiro ou de tecelão. Mas esta forma referida à matéria é outra que não a forma social. O trabalho concreto como "forma", por exemplo, do trabalho de um marceneiro, refere-se ao fabrico de, por exemplo, móveis de madeira. Mas a forma social do trabalho é, neste contexto, forma abstracta, isto é, o trabalho despendido na forma concreta e referida à matéria como trabalho de marceneiro é válido socialmente apenas como uma determinada massa de trabalho abstracto, de energia humana em geral (de "nervo, músculo e cérebro"). Esta "validade", porém, não se encontra apenas na circulação, sendo também decisiva como determinação abrangente para o próprio processo de produção; e nem se trata de uma mera "validade" no sentido de uma percepção formal (como na circulação), mas de uma marcação prática.

O fantasmático da objectividade do valor já se encontra no processo da sua produção, como a fantasmagoria do próprio processo de produção. Tal como na mercadoria acabada a sua objectividade de valor ainda não é "palpável" de modo imediato e sensível, porque não passa de uma determinação da forma social abstracta, também no processo de produção como tal a sua função de processo de constituição de valor não é "palpável" de modo imediato e sensível, pelo menos não à primeira vista, nem para um indivíduo socializado no interior desta forma social. "Há" aparentemente apenas o trabalho concreto, a transformação determinada em termos materiais e sensíveis da matéria. Mas esta não é o que parece ser, sendo apenas expressão ou forma de aparência de algo diferente. Trata-se aqui essencialmente não do fabrico de móveis com a finalidade da habitação, mas sim da constituição de valor com a finalidade da valorização.

Nesta medida, aqui no processo de produção, o trabalho não "é valido" como aquilo que parece ser, nomeadamente um processo concreto de fabrico de móveis, mas como um dispêndio de força de trabalho abstracto puro e simples, um processo de dispêndio de nervo, músculo e cérebro (a optimizar económico-empresarialmente). Este é um ponto de vista bem prático, que afecta todo o modo de organização da produção e acaba por dominá-la. É também por isso que os critérios operacionais e o regulamento económico empresarial são abstractos e universais, completamente independentes do conteúdo concreto da produção. Em nome da determinação da forma social abstracta (valor) também se abstrai na prática da forma concreta do processo de produção, no sentido do conteúdo material (conteúdo da produção de móveis = "trabalho" sob a forma da marcenaria, etc.). A coisa concreta, a marcenaria, na prática vale como "trabalho", uma mera expressão do dispêndio de energia humana puro e simples. E esta abstracção real tinge tanto a transformação da matéria em termos concretos como o seu resultado, e de modo destrutivo.

Como já ficou demonstrado, no capital a relação entre o abstracto e o concreto está posta de pernas para o ar; o concreto, o mundo real sensível, variado, já apenas passa por uma forma de aparência do abstracto, nomeadamente da determinação da essência totalitária e única do valor. Seja lá o que for, é sempre valor — ou está destinado a vir a sê-lo. O olhar do sujeito da valorização sobre o Homem e a natureza apenas os vê como objectos da valorização, e é isto que determina a acção prática. O trabalho concreto e o trabalho abstracto são precisamente o mesmo trabalho, reunidos na abstracção "trabalho" como abstracção real: "Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho humano no sentido fisiológico, e nesta qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstracto constitui o valor da mercadoria. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho humano na forma específica da finalidade definida, e nesta qualidade de trabalho útil concreto produz valores de uso" (MEW 23, p. 61). No entanto, em primeiro lugar "todo o trabalho" aqui apenas se refere ao trabalho moderno, que decorre nos moldes do capitalismo, e não "todo o trabalho" em sentido transhistórico (como claramente decorre do contexto em Marx). E, em segundo lugar, o "por um lado — por outro lado" não é de modo nenhum equilibrado. O lado concreto não só não pode ser separado do abstracto, como até lhe está subordinado. Por outras palavras: o valor de uso é apenas uma forma de representação ou forma de aparência do valor, o trabalho concreto é apenas uma forma de representação ou forma de aparência do trabalho abstracto. O que é abrangente é a abstracção "trabalho" como abstracção real (e, para uma vez mais o sublinhar, só no contexto de tal relação real é que a abstracção nominal conceptual "trabalho" faz de algum modo sentido, como conceito de uma generalidade social).

O trabalho concreto, pela sua essência social no fundo "é" trabalho abstracto, embora este não seja imediatamente "palpável" enquanto tal, assim como a forma sensível da mercadoria é autenticamente a objectividade do valor, embora igualmente não de imediato "palpável" enquanto tal. Este conceito de "não palpabilidade", no entanto, não designa mais que a aparência como aparência; afinal trata-se ainda assim e através da sua mediação de "registar", através do esforço de análise, por decifração, o que está oculto no fundo das coisas. No entanto, isto é válido não só no sentido de uma reconstrução teórica, mas ao mesmo tempo como denominação de um facto realmente vivenciado, realizado em termos práticos, cujo carácter contudo não se manifesta de imediato. A crítica como consequência da análise não é outra coisa senão a determinação consciente do há muito vivenciado na realidade e sabido em termos práticos, que agora através da reflexão é mergulhado numa luz reveladora, em que se tornam visíveis as suas mediações.

Ora em que consistem as mediações práticas, nas quais o trabalho concreto pode ser decifrado como mera forma de aparência do trabalho abstracto? Isto diz respeito desde logo ao espaço em que decorre o processo de produção. Tal como na produção aparentemente estamos perante processos de transformação da matéria perfeitamente inocentes, assim no caso desse espaço, por exemplo um pavilhão de fábrica, nos confrontamos aparentemente com um edifício funcional perfeitamente inocente. Mas o espaço de produção não é apenas material no sentido deste edifício funcional, mas é um espaço social, cujo carácter é tão-pouco "palpável" em termos imediatos como o da objectividade do valor.

O espaço social da produção capitalista é o espaço funcional da economia empresarial, um lugar social específico, que não se determina essencialmente pela sua forma material, mas pela sua função social, como espaço da valorização do valor (daí é que decorre a sua forma material, e não ao contrário). A determinação funcional deste espaço "abstrai" de todas as outras realizações da vida e necessidades exteriores à determinação económica de ser um local destinado à realização do processo de constituição do valor; e nesta medida esse espaço constitui uma parte integrante da abstracção real. Trata-se de um espaço totalmente "desvinculado" [heräusgelost] de todo o processo da vida, mais ou menos no sentido em que Karl Polanyi falou, com um termo bem escolhido, de uma "economia desvinculada" (mesmo que o tenha feito em parte com outra conotação, e não referindo-se ao problema do trabalho abstracto).

Esta "desvinculação" foi também um processo histórico, estreitamente ligado à revolução militar dos primórdios da modernidade, à inovação das armas de fogo e à daí decorrente "desvinculação" da máquina militar face à sociedade (exércitos permanentes, absolutismo, estado burocrático unificado, etc.), que por seu lado trouxe consigo a insaciável fome de dinheiro dos primeiros regimes despóticos militares apoiados nas armas de fogo, a monetarização das taxas feudais, e por fim, após passar por vários graus intermédios (manufacturas estatais, indústrias agrárias baseadas em mão-de-obra escrava, etc.), a transformação da população em uma massa homogénea de material de valorização do trabalho abstracto (essa "totalidade da força de trabalho nacional" que também foi ontologizada e positivada pelos marxistas no contexto da modernização recuperadora). A história de disciplinação inerente a tudo isto através de casas de trabalho, casas de correcção e manicómios, ou através de "campos", descritos por exemplo por Marx no capítulo dedicado à "acumulação primitiva" ou nos escritos de Foucault e Agamben, enquadra-se na constituição do desvinculado espaço funcional da economia empresarial.

O que nas palavras de Marx diz respeito ao dinheiro também se aplica à constituição deste espaço desvinculado: "O movimento mediador desaparece no seu próprio resultado e não deixa rasto" (MEW 23, p. 107). O Homem moderno encontra o espaço regido pela economia empresarial como uma forma acabada, cujo carácter desvinculado sente, mas já não sabe denominar. É o espaço em que, como diz o jovem Marx, "não está consigo, mas fora de si"; e não é no sentido exterior e jurídico do conceito de propriedade, mas pela funcionalidade específica deste espaço para o processo de constituição de valor. A separação da produção de todas as outras áreas da vida (por exemplo a residência, a vida conjugal, o acompanhamento dos filhos, o jogo, a cultura, etc.) não é de modo nenhum per se devida ao facto de se tratar de uma produção não destinada ao consumo próprio, mas para outros, ou seja, de produção social. A dissolução do contexto de vida em que a produção estava incluída não se deve à passagem à produção social como tal, mas à passagem à valorização do valor. Somente a usurpação do espaço social pela abstracção real do valor e do trabalho abstracto criou o espaço funcional da economia empresarial desvinculado, como um espaço social fantasmático, para lá de toda e qualquer sociabilidade.

Ao ter-se constituído como espaço funcional abstracto, desvinculado, o trabalho abstracto também apresenta uma conotação sexual. A dissociação [Abspaltung] de todas as outras áreas da vida e momentos de relacionamento (afecto pessoal, sentimentos, etc.) da produção como processo de constituição de valor e de valorização conota como "femininos" tanto os momentos dissociados como a natureza entregue à moldagem [Zurichtung] da economia empresarial, o que conduziu a atribuições e "competências" correspondentes das mulheres (exposto exaustivamente em Roswitha Scholz, Das Geschlecht des Kapitalismus [O Sexo do Capitalismo], Bad Honnef 2000; cf. a este respeito também a observação correspondente de Christian Höner na polémica com Nadja Rakowitz nesta edição da EXIT!). À abstracção real do trabalho abstracto no processo de produção encontra-se portanto ligada a dissociação do feminino, de um modo essencial e não apenas acidental. Tal corresponde igualmente à raiz histórica do trabalho abstracto, nomeadamente ao cruzamento da "economia desvinculada" com a "desvinculada" máquina militar apoiada nas armas de fogo, no processo de constituição primordial da modernidade.

O trabalho abstracto é per se definido como estruturalmente masculino, mesmo que desde o início tenha existido uma inegável participação das mulheres no processo de produção. O facto de as mulheres receberem sistematicamente salários piores, chegarem a posições de chefia apenas em casos extremamente raros, terem de dar muito mais "rendimento" que os homens para serem reconhecidas, etc., todos estes factos, que em média ainda hoje se verificam, não podem ser remetidos para o plano das manifestações históricas e empíricas, nem porventura declarados como meros resquícios de relações pré-modernas, ou como o seu regresso meramente subjectivo e regressivo, mas são expressão da relação de dissociação, como marca essencial do próprio trabalho abstracto e do seu espaço funcional da economia empresarial.

A opinião contrária, que erroneamente interpreta a relação entre a dissociação e a assimetria sexual na modernidade como mero momento histórico e empírico com tendência a desaparecer, está no fundo associada à interpretação errónea da abstracção real como mera "abstracção da troca", que no caso contudo e para variar se apresenta de repente como uma relação positiva e progressiva. É que, com efeito, na circulação observada por si só não existe a dissociação como momento da abstracção real; aqui só conta a solvabilidade, sem olhar a sexo, idade, cor da pele, etc. A circulação é por isso, e como é sabido, o eldorado da ideologia burguesa do progresso e da liberdade, embora esta implique a concorrência e a desumanização dos não solventes. Mas mesmo a concorrência de extermínio e a desumanização dos perdedores são executadas de acordo com a especificidade da esfera da circulação sob a forma do universalismo abstracto: sem ruído, sem olhar à pessoa e com um "reconhecimento" educado, no sentido da igualdade de direitos entre proprietários de mercadorias. As pessoas incapazes de concorrer ou de pagar nem sequer existem para a lógica da circulação. É também aqui que se enquadra o aparente desaparecimento da determinação sexual.

Mas evidentemente a esfera da circulação e do direito nem sequer pode ser observada por si só, e nesta medida a liberdade abstracta que aqui vigora é mera aparência em sentido duplo: primeiro, tem por base as determinações repressivas da actividade reprodutiva no metabolismo da sociedade com a natureza e consigo mesma; e, segundo, com isso ela é também no sentido circulatório apenas "liberdade" no sentido de Orwell, nomeadamente como relação auto-repressiva, como auto-sujeição formal à lógica do trabalho abstracto. Vista em conexão com o trabalho abstracto da esfera da produção, com as respectivas determinações em matéria de sexo e sujeição, e do ponto de vista da totalidade do processo, a esfera da circulação, com a sua "abstracção da troca", é ela própria algo completamente diferente do que parece quando observada em si de modo superficial e isolado, nomeadamente é em termos objectivos a esfera da realização da mais-valia e, em termos subjectivos, a esfera de execução da relação de coacção no plano formal das condições de relacionamento burguesas.

Neste aspecto surge outra contradição gritante do marxismo tradicional: por um lado, ele reduz a relação historicamente específica do capital à regulação pela esfera da circulação (mediação do mercado), o trabalho abstracto a uma mera "abstracção da troca", a relação de dominação a uma relação de distribuição das mercadorias e a "relação de produção" ao conceito jurídico exterior de propriedade. Haveria portanto que abolir a esfera da circulação ou a "abstracção da troca" como forma de mediação especificamente capitalista. Por outro lado invoca, nomeadamente evocando a "herança do Iluminismo", o idealismo da esfera da circulação, do qual nasce o postulado da igualdade, que de algum modo (talvez pela "democratização") deverá ser estendido à produção. Esta aporia encontra-se, de resto, de um modo especialmente vincado em Adorno, que neste ponto permanece inteiramente preso ao modo de pensar do marxismo tradicional.

O que aqui escapa fundamentalmente é o nexo interior da abstracção real, como relação de mediação do trabalho abstracto no processo de produção, e a sua realização ou "representação" como forma do valor ou "abstracção da troca" no processo de circulação, incluindo as determinações jurídicas concomitantes de uma "individualidade abstracta" aparentemente assexuada. Uma coisa condiciona a outra. Assim sendo, nem a circulação pode ser abolida sem se abolir o trabalho abstracto como lógica da produção, nem inversamente a igualdade ideal formal dos sujeitos abstractos pode ser estendida da circulação para a produção e a reprodução, porque aqui o mesmo processo de abstracção real se apresenta necessariamente de outro modo, nomeadamente como comando sobre a força de trabalho com conotação sexual; e o mesmo se aplica, debotando da esfera funcional da economia empresarial "desvinculada", a todas as instituições sociais do conjunto da estrutura da socialização do valor, até ao interior do mundo da vida quotidiana.

Tudo se passa de modo perfeitamente semelhante ao caso do soldado como pessoa civil (o que corresponde ainda à raiz histórica da "economia desvinculada"): nesta última figura ele é um sujeito do direito e da circulação, livre como todos os outros; na primeira, porém, é objecto do comando, peça de uma máquina, sujeito assassino e, se tiver de ser, carne para canhão. E o carácter estruturalmente masculino de toda a organização aqui apenas está mais vincado, com as mulheres ainda mais difíceis de encontrar que no processo de produção, sem falar das posições de comando (da sua parte, apenas funcionais), etc. O exemplo, que remete para a história da constituição, demonstra ao mesmo tempo o pouco sentido que faria querer reivindicar, por exemplo também sob o aspecto sexual, a igualdade abstracta da esfera da circulação para as outras esferas não suplantadas da reprodução capitalista (porventura até para as forças armadas). Semelhante intenção nada pode ter em si de emancipatório; antes tem de se tratar da suplantação da totalidade da relação composta por trabalho abstracto, dissociação sexual e circulação.

O carácter fantasmático do espaço desvinculado da economia empresarial, como uma esfera funcional realmente abstracta situada para lá do contexto de vida restante, muitas vezes foi sentido e lamentado; e repetidamente foram empreendidas tentativas, tanto na história dos sindicatos como também no movimento social-ecológico mais recente, de renovar o contexto de vida perdido, através da propagação de uma unidade de "vida e trabalho" ou (no sentido mais restrito) de "habitação e produção", etc. Mas tais ideias permaneceram sem conceitos, com respeito ao contexto da forma subjacente do trabalho abstracto e do valor. A integração no mundo da vida devia ocorrer com base nas categorias não questionadas da socialização do valor incluindo a circulação; um esforço à partida condenado ao fracasso.

O mesmo se aplica também às tentativas empreendidas "a partir de cima", através de iniciativas de política empresarial ou da burocracia estatal, no sentido de, por motivos ideológicos ou disciplinares, introduzir à socapa ou acoplar outros momentos do mundo da vida no desvinculado espaço funcional da economia empresarial. Da história das grandes empresas é conhecida a institucionalização de "comunidades de empresa", com as quais se tentava, com bairros sociais, jardins infantis de empresa, clubes de tempos livres internos, etc., vincular em termos de mundo da vida e identitários um corpo privilegiado de operários dos quadros da empresa ao respectivo nome e contribuir para a sua motivação. Se deixarmos de parte o carácter funcionalista deste tipo de medidas, no sentido de uma orientação tanto mais intensa para o processo de produção realmente abstracto e correspondente extorsão de rendimento, elas sempre se revelaram como marginais e transitórias; semelhantes instituições sempre sofreram uma decadência dramática em tempos de crise e hoje, no âmbito da racionalização de recursos e da globalização, são levadas ao desaparecimento mesmo em termos estruturais (um caso exemplar a este respeito é o conglomerado Siemens na RFA).

O mesmo se aplica às comunidades de empresa do "socialismo real", que proliferaram sob o manto protector da burocracia de estado, e nas quais a integração de momentos do mundo da vida foi essencialmente mais forte e mais profundamente enraizada; e tal aconteceu mesmo com ganhos de qualidade de vida e autodeterminação em comparação com o Ocidente, se bem que ensombrados por desaforos burocráticos. Mas foram precisamente estes momentos emancipatórios, de brecha no espaço funcional abstracto da economia empresarial, que tiveram de entrar em conflito com a base real do trabalho abstracto, acabando por conduzir ao fracasso induzido pela manutenção da valorização do valor. No fim de contas estes momentos integradores não estavam concebidos conscientemente como contra-mediação para a suplantação do trabalho abstracto, mas pelo contrário subordinados à sua afirmação; tratou-se, portanto, de meras formas de nicho sob as condições de um sistema dado à modernização recuperadora, onde a regulação dos processos de mercado pela burocracia estatal (que acabaria por não ser viável) em parte abria involuntariamente o espaço funcional da economia empresarial e em parte conferia-lhe a carga ideológica de um território do mundo da vida. Do fracasso foram retiradas consequências, não no sentido de porventura chamar à responsabilidade o trabalho abstracto e encontrar uma perspectiva conducente à sua suplantação, mas pelo contrário no sentido de se compatibilizar o espaço funcional da economia empresarial com a sua definição lógica também em termos práticos e de o "depurar" de todos os momentos do mundo da vida nesse sentido disfuncionais.

Enquanto o trabalho abstracto constituir o apriori da mediação e da reprodução sociais, por si só estabelecerá, sempre de novo e com cada vez maior veemência, o espaço funcional da economia empresarial como um espaço "desvinculado", separado de todos os outros momentos da vida, realmente abstracto. É no fundo este o problema a que se refere Marx no fim do capítulo quarto do primeiro volume de "O Capital", quando define a relação entre a esfera da circulação e a esfera da produção do capital, em relação à mercadoria "força de trabalho": "A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, entre cujas balizas se processa a compra e venda da força de trabalho, foi de facto um autêntico Éden dos direitos humanos inatos. O que aqui vigora é só liberdade, igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade! É que o comprador e o vendedor de uma mercadoria, por exemplo da força de trabalho, são movidos unicamente pela sua livre vontade. Contratam como pessoas livres, iguais perante a lei. O contrato é o resultado final em que as suas vontades se dotam de uma expressão jurídica comum. Igualdade! É que ambos se referem um ao outro apenas como proprietários de mercadorias, trocando equivalente por equivalente. Propriedade! É que cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! É que cada um dos dois está apenas preocupado consigo mesmo. O único poderio que os reúne e faz entrar em uma relação é o da sua propriedade, do seu privilégio, dos seus interesses particulares. E precisamente porque assim cada um apenas se move por si e ninguém pelo outro, todos juntos contribuem, em função de uma harmonia das coisas pré-estabelecida ou sob os auspícios de uma providência sumamente previdente, apenas para a obra da sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral" (MEW 23, p. 189 s.).

O mesmo se diga da esfera da circulação, com seu idealismo do sujeito do direito igual e livre. Na continuação da totalidade do processo de reprodução, porém, há que despedir-se da circulação. Por isso, Marx prossegue: "Na despedida desta esfera da simples circulação ou da troca de mercadorias, de onde o livre mercador retira opiniões, conceitos e critérios vulgares para o seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, as fisionomias das nossas dramatis personae já parecem transformar-se sob alguns aspectos. O antigo proprietário de dinheiro avança como capitalista, o proprietário de força de trabalho segue-o como seu operário; um a sorrir misteriosamente e repleto de zelo empresarial, o outro tímido, relutante, como alguém que levou para o mercado a sua própria pele e que agora não pode esperar outra coisa senão — a fábrica de curtumes." (MEW 23, p. 190 s.).

Após o que se disse até aqui, é possível que tenha ficado claro como o marxismo tradicional tem de ler esta exposição, a saber, não precisamente como a relação entre o trabalho abstracto como "abstracção da troca", por um lado, e a lógica realmente abstracta da produção, por outro, mas apenas como uma relação exterior e jurídica entre o capitalista (proprietário dos meios de produção) e o operário assalariado (proprietário da força de trabalho), que nem sequer atinge o conceito de trabalho abstracto como abstracção real. Esta leitura das palavras de Marx bem poderá ter alguma plausibilidade, mas ainda assim ele circunscreveu aqui a relação jurídica à esfera da circulação. O que agora se segue sob a forma da "fábrica de curtumes", não é exactamente a mera exploração subjectiva de uma pessoa portadora de uma vontade jurídica pela outra, a ser entendida como exterior e do foro da distribuição, mas sim o ingresso na esfera funcional realmente abstracta, "desvinculada", do fantasmático espaço da economia empresarial. De certo modo o mesmo se aplica também ao próprio capitalista ou aos funcionários do comando da valorização (gerência, etc.).

Uma vez que o entendimento tradicional do "carácter explorador" do modo de produção capitalista permanece limitado à grosseira definição da apropriação de sujeitos de vontade jurídicos, escapa-lhe sistematicamente o carácter do espaço funcional da economia empresarial. Assim sendo, porém, também tem de lhe escapar a divisão do moderno sistema produtor de mercadorias em esferas de reprodução e funcionais separadas. É que esta divisão apenas é estabelecida pelo facto de se ter constituído o desvinculado espaço funcional da economia empresarial da valorização do valor, que como tal implica o carácter separado de todas as outras áreas da vida em esferas especializadas, mas que ao mesmo tempo se converte no centro que domina todas essas outras "esferas", conferindo-lhes a aparência de "derivadas". Por outro lado, tudo o que não tiver cabimento na lógica do espaço funcional central desvinculado e das suas "derivações" (sobretudo determinadas actividades da reprodução) é deixado por conta da relação de dissociação sexual e assim socialmente conotado com o "feminino".

Esta conexão também se apresenta como desenvolvimento histórico: "A dissociação do valor... não é uma estrutura rígida, como a encontramos por exemplo em alguns modelos estruturais sociológicos, mas sim um processo. Por isso não pode ser entendida como estática e invariavelmente igual a si mesma" (Roswitha Scholz, Das Geschlecht des Kapitalismus [O Sexo do Capitalismo], p. 118). Este processo parece culminar na crise da terceira revolução industrial. Por um lado, na penúria da crise de acumulação e financeira, a lógica do espaço funcional da economia empresarial, em tempos desvinculado, vai-se impondo a todas as esferas dele derivadas da reprodução social: a política, a cultura, a saúde, a educação, etc. perdem a sua própria lógica e são tratadas segundo os critérios de funcionalidade próprios da economia empresarial, ou seja, são submetidos directamente à lógica do trabalho abstracto, o que até à data apenas acontecia indirectamente e em formas derivadas.

Por outro lado, esta expansão da lógica funcional da economia empresarial para além do seu espaço próprio e específico não pode suster a crise, e muito menos pode substituir as actividades reprodutivas dissociadas como "femininas": "Em vez disso ocorre um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias, em que este se solta das suas amarras institucionais" (Roswitha Scholz, ibidem, p. 133). A dissolução da família tradicional e o desmantelamento das estruturas do estado social não deixam a dissociação de conotação sexual sem objecto, mas antes a agravam. Na mesma medida em que o espaço realmente abstracto, desvinculado, do processo de valorização quer totalizar-se e nisso está necessariamente condenado ao fracasso, os momentos dissociados conotados com o "feminino" estão sujeitos a uma pressão cada vez mais insuportável. O facto de, em resultado, a reprodução social se desmoronar por completo é precisamente a prova prática de que a lógica funcional do espaço da economia empresarial é totalmente inimiga da vida e misantrópica, ou seja, que esse espaço é tudo menos um local neutro, inocente, transhistórico-ontológico de produção "concreta" e material de bens "úteis", apenas desviados para um destino imundo por um poder de disposição jurídico exterior de sujeitos exploradores.

Ao espaço funcional da economia empresarial "desvinculado", realmente abstractificado (separado das necessidades da vida e do mundo da vida), corresponde um tempo igualmente "desvinculado" e abstractificado, por assim dizer o tempo funcional específico do trabalho abstracto. Trata-se aqui de uma forma de tempo ou definição de tempo historicamente específica, que apenas ocorre no moderno sistema produtor de mercadorias. Esta forma de tempo ou definição de tempo é o tempo contínuo [Fliesszeit] astronómico abstracto do Universo mecânico de Newton, em analogia com os idênticos componentes atómicos fisicamente reducionistas desse Universo.

Em termos sociais, é a forma de tempo do descomedimento, isto é, um tempo ilimitado, indefinido, a nada ligado (a dimensão astronómica serve apenas de medida exterior e arbitrária); um tempo contínuo infinito, que apenas serve a pretensão desmedida do "sujeito automático", de uma incorporação infinita de energia humana abstracta, despendida na medida de unidades de tempo igualmente abstractas (segundos, minutos, horas de "trabalho" desvinculadas de qualquer conteúdo), ou seja, a transformação de todo o tempo de vida em tempo de trabalho. Nesta medida, o tempo astronómico contínuo é a medida paradoxal do descomedimento, um tempo insaciável, já não ligado a qualquer necessidade (sempre finita, condicionada); a medida do tempo de um fim-em-si irracional, que já não afere um movimento limitado no tempo para um determinado fim ou processo, mas que funciona como uma correia de tempo infinitamente reacoplada a si mesma, como forma de tempo do infinito movimento de valorização do valor reacoplado a si mesmo. O "trabalho concreto" do processo de produção capitalista não ocorre apenas no espaço funcional da economia empresarial "desvinculado"; também decorre em termos reais segundo a medida desmedida do tempo contínuo abstracto "desvinculado", e não segundo a medida de uma transformação da matéria temporalmente definida (e por essência limitada).

Moishe Postone interessou-se menos pelo carácter específico do espaço "desvinculado" e mais pelo carácter específico da forma de tempo capitalista e também neste âmbito alcançou conhecimentos pioneiros. Ao longo da história da modernização o lúgubre carácter do "tempo abstracto" foi repetidamente tematizado explicita e implicitamente, mas nunca foi referido ao trabalho abstracto e às formas de mediação categoriais da socialização do valor. Postone, apoiando-se em historiadores sociais como Thompson, Gurjevich, Needham, etc., foi o primeiro a distinguir o "tempo concreto", que foi determinante em termos de qualidade do tempo nas sociedades pré-modernas (e que tem de ser de outro modo essencial para uma sociedade pós-capitalista), do "tempo abstracto" da moderna produção de mercadorias: "Como ‘concretos’ designarei os diversos tipos de tempo que dependem de acontecimentos: estes referem-se a ciclos naturais e periodicidades da vida humana, assim como a tarefas ou processos específicos (por exemplo, o tempo que se demora a cozinhar arroz ou a dizer um padre-nosso) e são entendidos através dos mesmos... Antes do advento e desenvolvimento da sociedade capitalista moderna na Europa ocidental foram várias as formas de tempo concreto a marcar as concepções de tempo prevalecentes. O tempo não era uma categoria autónoma, independente de acontecimentos, e por isso era dado a definições qualitativas, como bom ou mau, como sagrado ou profano... O tempo concreto é uma categoria mais ampla que o tempo cíclico, uma vez que existem concepções do tempo lineares que na sua essência são concretas... O tempo concreto é menos caracterizado pela sua direcção que pela circunstância de ser uma variável dependente" (Postone, ibidem, p. 308 s.).

A concepção usual do tempo pré-moderno como meramente cíclico (ligado a estações, ritmos da vida, etc.), aparentemente limitado à forma de reprodução agrária e às respectivas formas de fetiche, em grande medida apenas dá um contributo à crítica da modernidade produtora de mercadorias num sentido reaccionário; pelo contrário, a concepção mais ampla do tempo concreto de Postone é completamente diferente, como "concepção do tempo orientado por tarefas" (ibidem, p. 329), dependente de acontecimentos, não separado daquilo que são os processos finitos no tempo (seja ele cíclico ou linear). A este opõe-se a outra qualidade do tempo, negativa, da modernidade, isto é, do espaço funcional da economia empresarial desvinculado: "..., o ‘tempo abstracto’, porém, que entendo como um tempo uniforme, contínuo, homogéneo, ‘vazio’, é independente de acontecimentos. A concepção do tempo abstracto, que se foi impondo progressivamente na Europa ocidental entre os séculos XIV e XVII, encontrou a sua expressão mais pungente na formulação de Newton do ‘tempo absoluto, verdadeiro e matemático (que) corre de um modo perfeitamente uniforme sem qualquer relação com algo de exterior’ (Isaac Newton). O tempo abstracto é uma variável independente. Ele constitui um enquadramento independente, em que ocorrem movimentos, acontecimentos e acções. Este tempo pode ser subdividido em unidades iguais, constantes e não qualitativas" (Postone, ibidem, p. 309 s.).

O "enquadramento independente" deste tempo, de que Postone aqui fala, no entanto também pode ser entendido como um "espaço independente", ou precisamente o espaço funcional da economia empresarial "desvinculado". O tempo contínuo, astronómico e abstracto do processo de valorização constitui esse espaço fantasmático, tal como inversamente é constituído por este como tempo fantasmático. Postone chama a atenção para "que esta forma de alienação temporal significa uma transformação do carácter do próprio tempo. Não só o tempo de trabalho socialmente necessário é constituído como norma temporal ‘objectiva’, que exerce uma coacção exterior sobre os produtores, mas mesmo o próprio tempo é constituído como tempo absoluto e abstracto. O quantum de tempo que determina a dimensão do valor de uma mercadoria individual é uma variável dependente. O próprio tempo, porém, tornou-se independente da actividade — seja esta determinada individualmente, socialmente ou pela natureza. Tornou-se uma variável independente, medida em unidades constantes, contínuas, comparáveis e permutáveis, estabelecidas por convenção (horas, minutos, segundos), que serve de referência absoluta do movimento e do trabalho enquanto dispêndio. Os acontecimentos e as acções em geral, assim como o trabalho e a produção em especial, ocorrem agora no seio do tempo e são determinados por ele — um tempo que se tornou abstracto, absoluto e homogéneo" (ibidem, p. 327).

No entanto, o tempo começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas num espaço social determinado, que é precisamente o espaço funcional da economia empresarial desvinculado, em que o que está em causa já não é o tempo "de algo", mas o tempo simplesmente, no sentido do "trabalho" simplesmente, ou da combustão de energia humana simplesmente. O espaço desvinculado e o tempo que no seu seio se tornou absoluto constituem em conjunto um espaço-tempo [Raumzeit] especificamente social, um contínuo de espaço-tempo para lá de todas as necessidades humanas e de todo o mundo da vida social. No processo da história da imposição do capitalismo esta determinação espaço-temporal tinge as esferas derivadas, e por fim mesmo o próprio mundo da vida quotidiana; é a intervenção espaço-temporal usurpatória do "deus estranho" (Marx), do "sujeito automático" (Marx), portanto daquela pretensão totalitária de valorização, que proveio da fome de dinheiro da economia das armas de fogo e da revolução militar dos primórdios da modernidade, e que evoluiu paramáquina social.

A origem e o centro, no entanto, é e continua a ser o espaço-tempo específico do processo de valorização da economia empresarial, do trabalho abstracto, que apenas ao preço da autodestruição completa da sociedade poderia ser estendido a todo o processo da vida; o processo de crise contemporâneo da terceira revolução industrial aproxima-se desse estado de dissolução de uma forma cada vez mais nítida.

Uma vez evidenciado o carácter do espaço-tempo social abstracto da economia empresarial, torna-se claro quão grosseira é a concepção de que toda esta relação pode ser reduzida ao poder de disposição jurídico de meros sujeitos da vontade da exploração. Portanto, o que se passa não é que a "propriedade privada dos meios de produção" constitui o sistema do trabalho abstracto e a constituição espaço-temporal do mesmo, mas exactamente ao contrário é o modo de produção do trabalho abstracto, o fim-em-si do "sujeito automático", que constitui a forma jurídica da propriedade privada dos meios de produção (tal como o movimento de auto-mediação do trabalho abstracto/valor através da esfera da circulação). Portanto, a mera colocação da (jurídica) "questão da propriedade" é tudo menos radical, mas sim põe o carro à frente dos bois: tal não afecta nem o carácter espaço-temporal do processo de reprodução social, nem a forma de sujeito dos seus portadores. Quando, por exemplo, sujeitos do trabalho abstracto, ou seja, sujeitos do espaço-tempo da economia empresarial (e assim da concorrência na mediação através da esfera da circulação) "votam democraticamente" sobre questões da reprodução, deste modo eles apenas podem reproduzir, exprimir e viver as contradições do seu modo de existência social, mas não emancipar-se das leis funcionais desse espaço-tempo abstracto, ou seja, da relação de fetiche que este continua a ter por base.

A intervenção emancipatória tem de começar mais fundo, para romper e destruir o espaço-tempo do próprio trabalho abstracto, enquanto a abolição da propriedade privada dos meios de produção seria apenas uma consequência lógica desta revolução, mas não a revolução propriamente dita. A opinião contrária do marxismo tradicional apenas pode conduzir sempre a que a forma jurídica da propriedade privada, que de modo nenhum está ligada a indivíduos ou famílias, se reproduza sob qualquer forma institucional (burocracia estatal, ditadura partidária, instâncias de democracia empresarial, instituições cooperativas, etc.). A propriedade privada dos meios de produção (e igualmente da força de trabalho como mercadoria) não é um "poder de disposição" subjectivo ou mesmo arbitrário no sentido de um mero "enriquecimento", mas apenas a forma jurídica do sistema do trabalho abstracto e do seu espaço-tempo abstracto específico. Melhor dizendo: é a forma jurídica necessária dos sujeitos funcionais deste espaço-tempo, e não o fundamento social de toda a organização.

No espaço-tempo abstracto da economia empresarial ocorre, de um modo paradoxal, um processo de abstracção triplo, real e prático. Embora sejam eles próprios que "trabalham", os sujeitos funcionais têm de começar por abstrair de si mesmos, de certo modo têm de se apagar a si mesmos como seres humanos, para obedecer aos imperativos do trabalho abstracto. Isso não decorre apenas do carácter no fundo objectivo de por exemplo a produção (social) ser para outros em vez de para consumo próprio, mas da coisa fundamentalmente "estranha" que é o fim-em-si capitalista, a valorização do valor. Não se trata de produzir objectos de uso para si próprio ou para outros, mas trata-se essencialmente de produzir valor e mais-valia, ou seja, de queimar no interior do espaço funcional do espaço-tempo da economia empresarial o máximo da própria energia humana abstracta, de se transformar enquanto ser humano numa máquina de combustão social.

Por isso, os sujeitos do trabalho abstracto como funcionários do "sujeito automático" (incluindo os de gerência) não têm influência sobre o conteúdo concreto da produção (que é ditado pelo fim-em-si da valorização), cujo sentido ou falta de sentido não é da sua competência, nem eles podem organizar a evolução do processo de produção ou o seu ambiente consoante os seus desejos e necessidades. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não permite que uma pessoa se ponha "à vontade" na actividade; não se trata do seu próprio tempo de vida nem do seu próprio espaço vital em que uma pessoa se instale, mas de um espaço-tempo estranho — "estranho" não no sentido da propriedade privada estranha, de outro sujeito de vontade (do capitalista), mas "estranho" no sentido da lógica funcional do trabalho abstracto como tal. O tempo contínuo abstracto deve ser interrompido o menos possível, precisamente porque o que está em causa é o dispêndio máximo de energia humana por unidade do tempo, e não os objectos necessários, nem as necessidades das produtoras e dos produtores; os regulamentos que regem os intervalos, por exemplo, não obedecem ao critério das próprias produtoras e produtores e tendem para a minimização (até à questão de se ainda é lícito ir fazer xixi).

Do mesmo modo os meios de produção, ferramentas, etc. não devem ser utilizados paralelamente pelas produtoras e produtores para fins pessoais, mas um regulamento rígido mantém-nos reservados para o fim da valorização. Também aqui a remissão para a propriedade privada jurídica está longe de constituir uma explicação satisfatória, uma vez que a falta de poder de disposição das produtoras e produtores também neste aspecto não decorre de uma relação de vontades exterior entre pessoas, mas da lógica interna do próprio espaço-tempo da economia empresarial. Onde esta lógica é infringida, por exemplo pelo carácter lacunar e pelo "laxismo" do regime de economia empresarial nas burocracias socialistas de estado, tal é invariavelmente punido pela perda de funcionalidade sistémica. Enquanto a própria lógica do trabalho abstracto e do seu espaço-tempo específico não for conscientemente abolida, a afirmação das produtoras e produtores no âmbito do próprio processo de produção como seres com necessidades apenas pode conduzir a defeitos e quebras funcionais.

Em segundo lugar, os sujeitos funcionais do trabalho abstracto também têm de abstrair uns dos outros na prática, embora ao mesmo tempo tenham de cooperar uns com os outros no processo de produção concreto. No entanto, como Marx o descreveu muitas vezes, esta cooperação não lhes pertence, não é pessoal, e mais uma vez não obedece meramente ao comando exterior do proprietário privado/capitalista como sujeito de vontade, mas é estruturada pelo espaço-tempo abstracto do próprio processo de valorização. O que as produtoras e produtores não podem como indivíduos, não o podem tão-pouco na sua cooperação, nomeadamente determinar o conteúdo e a evolução do processo de produção. Mesmo ao cooperarem, eles permanecem unidades mutuamente isoladas de dispêndio de energia humana abstracta, uma vez que, embora a cooperação obedeça de facto às necessidades de transformação concreta e material de matérias naturais, esta transformação é apenas a "expressão" de algo diferente, nomeadamente do processo de valorização. E o processo de produção capitalista é na essência precisamente um processo de valorização, ao qual o "trabalho concreto" permanece subordinado. O lado cooperativo no plano do trabalho concreto não é portanto essencial; o que é essencial é o lado não cooperativo de um dispêndio quase autista de energia humana abstracta no plano do trabalho abstracto.

Neste sentido, as produtoras e produtores são determinados como concorrentes monádicos mesmo no próprio processo de produção, e não apenas na circulação no mercado de trabalho como vendedores concorrentes da mercadoria força de trabalho. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial reduz o momento cooperativo estritamente ao carácter instrumental dos processos técnicos, enquanto qualquer cooperação social se apresenta como sistemicamente disfuncional e "perigosa". A lógica fundamental do trabalho abstracto tende para a eliminação de qualquer momento de cooperação não funcional; mesmo os mini-intervalos informais para café e conversa se apresentam cada vez mais como "incómodos" e são erradicados. Este facto também é o calcanhar de Aquiles das máximas tão invocadas do "trabalho de equipa" e da "competência social", que na sua redução funcionalista apenas podem reduzir-se a si mesmos ad absurdum. É o próprio espaço-tempo da economia empresarial, em que as produtoras e produtores permanecem separados uns dos outros como por paredes de vidro, que paralisa qualquer comunicação horizontal, e que automaticamente volta sempre a reproduzir estruturas de comando verticais. Também aqui a remissão para a "autoridade" pessoal de proprietários privados jurídicos está longe de constituir uma explicação satisfatória e passa fundamentalmente ao lado do carácter do problema.

O mesmo se aplica à estrutura arquitectónica dos edifícios funcionais do trabalho abstracto, às divisões espaciais e à sua organização. A abstracção dos indivíduos que "trabalham" e da sua cooperação aqui ainda se torna mais palpável. O funcionalismo desesteticizado e ofensivo à vista e à sensibilidade espacial dos edifícios funcionais, das zonas industriais e comerciais (que já há muito também marcou o mundo da vida e as construções habitacionais e culturais) decorre tão-pouco de uma necessidade objectiva do "trabalho concreto" como todos os outros momentos do espaço-tempo da economia empresarial, resultando antes unicamente do carácter do processo de produção como processo de valorização. Que as produtoras e produtores têm de abstrair de si mesmos como seres humanos, que o espaço funcional da economia empresarial não é o seu próprio espaço vital e o tempo funcional da economia empresarial não é o seu próprio tempo de vida, tudo isto também se reflecte no ambiente da sua actividade, que tão-pouco obedece à sua autodeterminação como o sentido, o objectivo e a evolução da própria produção.

Em terceiro lugar, por fim, as produtoras e produtores, sob a égide do espaço-tempo da economia empresarial, de certo modo também têm de abstrair dos objectos concretos, materiais da sua actividade, embora sejam estes que são moldados em sentido técnico pelo trabalho concreto. No entanto, no próprio processo de produção a sua actividade concreta afigura-se às produtoras e produtores apenas como uma combustão abstracta e indiferente da sua energia. Por conseguinte, a "matéria" a trabalhar tanto como a sua transformação concreta permanece-lhes essencialmente indiferente e estranha, já não se podem identificar com ela no espaço-tempo da economia empresarial, como o artesão pré-moderno ainda se podia identificar com o seu objecto. As identificações com a actividade já apenas dependem de pontos de vista secundários, na maior parte dos casos socialmente concorrentes, desligados do objecto; por exemplo da posição na hierarquia "militar de empresa", do comando sobre outros, ou do êxito de vendas, do orgulho do rendimento abstracto em unidades de tempo/quantidades de peças, da qualificação em know-how puramente funcionalista, estranha à matéria, e do respectivo reconhecimento, da "aura" do nome da empresa, etc. Apenas em áreas recônditas como por exemplo a arte, que não são profundamente dominadas pelo espaço-tempo da economia empresarial, ainda se encontram, apesar da mediação do dinheiro e da abstracção real no mínimo circulatória daí decorrente, elementos de identificação com a matéria e a sua transformação qualitativa; mas mesmo sobre esta área está a debotar cada vez mais a indiferença do trabalho abstracto no processo de comercialização.

A "abstracção real produtiva" nos objectos do trabalho aparentemente apenas concreto de modo nenhum se deve apenas à considerável indiferença subjectiva das produtoras e produtores em termos individuais face à matéria da sua actividade, que no espaço-tempo da economia empresarial se lhes apresenta essencialmente como um processo abstracto de combustão da sua energia. É muito mais o próprio processo de produção, na sua lógica intrínseca como trabalho realmente abstracto, que estabelece esta indiferença como apriori. Portanto é a objectividade social que impõe o carácter de sujeitos indiferentes ao conteúdo, como portadores de processos abstractos de combustão de energia humana, e não o contrário (e muito menos qualquer "avidez de lucro" dos proprietários).

Esta objectividade social da indiferença face à matéria e ao conteúdo decorre do carácter essencial do processo de produção como processo de valorização. Ocorre aqui uma inversão peculiar na relação entre a abstracção do valor e o chamado valor de uso; melhor dizendo, o famigerado valor de uso revela-se, tal como já se insinuou, como uma mera determinação da forma da própria objectividade do valor e da sua realização como valor de troca.

A inversão, em que o valor de uso se apresenta imediatamente como função de constituição do valor e do valor de troca, é desde logo determinada pelo carácter específico da mercadoria força de trabalho. É apenas o carácter de mercadoria da força de trabalho que torna de todo possível a generalização da produção de mercadorias em forma de reprodução social pelo capitalismo. No caso desta mercadoria tão constitutiva como específica, porém, as determinações da forma da mercadoria ficam, por assim dizer, de pernas para o ar. No caso de todas as outras mercadorias o chamado valor de uso consiste, pelo menos à primeira vista, na sua utilidade material. Não é o que se passa com a mercadoria força de trabalho. O seu valor de uso para o processo de produção capitalista não está precisamente na sua capacidade de produzir determinados bens destinados a satisfazer necessidades materiais ou imateriais. Antes pelo contrário: "A fim de extrair valor do consumo de uma mercadoria, o nosso proprietário de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir, no interior da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possuísse ele próprio a qualidade peculiar de ser fonte de valor, cujo consumo real portanto seria ele próprio objectivação de trabalho e daí criação de valor. E o proprietário de dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica — a capacidade de trabalho ou a força de trabalho..." (MEW 23, p. 181). Portanto, o que é decisivo é "o valor de uso específico desta mercadoria, que consiste em ser fonte de valor, e de mais valor do que ela própria possui" (MEW 23, p. 208).

Na produção e no seu resultado não se trata do valor de uso (material) aparente dos produtos, mas deste valor de uso social específico da mercadoria força de trabalho, que consiste unicamente na imposição do valor e da mais-valia. O valor de uso da mercadoria força de trabalho, porém, pura e simplesmente constitui o conceito de valor de uso no contexto da forma de produção de mercadorias generalizada de modo capitalista. Dito isso, o próprio Marx desmente a sua definição ontológica e antropológica de uma "produção de valor de uso" transhistórica, na qual também a abstracção "trabalho" se deve perpetuar. Tal como o valor de uso da mercadoria força de trabalho consiste socialmente em produzir valor que ultrapassa os custos da própria reprodução, também o valor de uso social dos produtos consiste em "representar" essa mais-valia como fim-em-si processante e de seguida "realizá-la" na venda. Ambos os aspectos são indissociáveis. Portanto o valor de uso social dissocia-se neste sentido da utilidade concreta, material ou imaterial.

O facto de esta utilidade, no sentido concreto palpável de uma objectividade da necessidade, constituir também para a produção capitalista por assim dizer um mal necessário e uma espécie de condição residual não lhe confere ainda assim um carácter em si transhistórico-ontológico, nem mesmo nesta dissociação de valor de uso social. Pelo contrário, a determinação qualitativa abstracta, destrutiva e negativa do valor de uso como fim-em-si social da valorização do valor afecta também a objectividade da necessidade dissociada e a sua própria produção.

Tal diz respeito antes de mais ao "quê" da produção, ao conteúdo objectivo. Como é sabido, por motivos que se prendem com as relações de concorrência e o constrangimento da rentabilidade, tanto aos proprietários do capital, como à gerência e mesmo aos operários assalariados tem de ser indiferente o que produzem ao certo, sejam maçãs ou componentes para bombas nucleares; o que interessa é que se produza e realize o valor de uso social negativo da riqueza abstracta, da mais-valia como fim-em-si. Não existe qualquer instância social que pudesse determinar o conteúdo objectivo da produção conscientemente e segundo critérios de sensibilidade às necessidades. A remissão para o pretenso "poder dos consumidores" não passa de ideologia pura. Na realidade, o apriori do trabalho abstracto e do valor determina também as estruturas das necessidades sociais e submete-as à coacção da sua específica lógica de valor-de-uso abstracto de produção de mais-valia.

Sob o ditado desta produção e realização de riqueza abstracta, todos os dias são descontinuadas produções destinadas mesmo a necessidades elementares por falta de rentabilidade e solvabilidade, enquanto a produção de produtos destrutivos para necessidades destrutivas (não apenas através da indústria de armamentos) até ainda é reforçada. Mas não é só neste sentido que a abstracção do conteúdo das necessidades se afirma massivamente no próprio processo de produção. Também os conteúdos da produção em si aparentemente não destrutivos são destrutivamente moldados no sentido do trabalho abstracto. Se são criados tomates sem olhar ao sabor e em função de normas de acondicionamento para redes de distribuição à escala continental, ou maçãs são tratadas com radioactividade para prolongar a sua duração, ou se de um modo geral alimentos são desnaturados exclusivamente no interesse do objectivo da valorização, e toda a riqueza historicamente acumulada de uma multiplicidade de plantas e animais úteis se perde a favor de uma "pobreza de variedades" reduzida em nome da simplificação económico-empresarial, se na construção de casas sob o ditado da redução de custos imposto pela economia empresarial são utilizados materiais prejudiciais para a saúde, ou surge uma divisão disfuncional do espaço e desaforos estéticos: é o conteúdo material que se orienta pela determinação da valorização, e não o contrário; e, com o crescente desenvolvimento capitalista, numa medida historicamente crescente.

O "sujeito automático" da valorização do valor cria por assim dizer à sua imagem um material humano para o trabalho abstracto também no sentido de uma moldagem das necessidades. A lógica da produção e a lógica do consumo cruzam-se sob o ditado do apriori social do trabalho abstracto. Enquanto por um lado necessidades elementares (até mesmo aquelas que de certo modo poderiam ser definidas como transhistóricas, como por exemplo a necessidade de água potável limpa, espaço habitacional suficiente, etc.) são brutalmente menosprezados, a mesma abstracção real desperta, até ao quotidiano, necessidades destrutivas, puramente compensatórias, agressivas ou simplesmente absurdas e infantis. O sistema do trabalho abstracto inverte assim a relação entre as necessidades e a produção: já não são as necessidades a gerarem a produção como fim, mas o fim-em-si de uma produção desvinculada gera cada vez mais necessidades negativas como seu simples meio. Até nos países capitalistas mais ricos cada vez mais gente se vê condenada a passar fome, enquanto ao mesmo tempo se pretende criar a "necessidade" já difícil de conceber de ao caminhar ver um filme num mostrador do tamanho de um selo postal.

O apriori social do trabalho abstracto como lógica da própria produção implica, portanto, o menosprezo de necessidades elementares, a produção de bens puramente destrutivos e a redução qualitativa de todos os bens (falta de diversidade, "refugo industrial", produção de usar e deitar fora, normalização estética e desesteticização, etc.), por fim a moldagem geral das necessidades em função dos imperativos do processo de valorização, até à redução ou mesmo destruição da capacidade de fruição. A moldagem da produção em função da lógica do trabalho abstracto, no entanto, não diz respeito apenas ao "quê", à determinação dos bens em termos de conteúdo, cujo carácter material é subordinado e adequado à fantasmática objectividade do valor, mas também ao "como" do próprio processo de trabalho, à forma de intervenção da actividade transformadora sobre a matéria natural ou sobre um semelhante humano (serviços).

O espaço-tempo abstracto da economia empresarial requer uma adequação do "trabalho concreto" ao espaço abstracto e ao tempo abstracto de uma produção contínua infinita, no sentido de uma optimização da lógica da valorização: "Tempo é dinheiro". Tal significa que no processo do trabalho concreto, como processo contínuo do espaço-tempo da economia empresarial, tem de ser negado e eliminado tudo o que de algum modo obstrua este fluxo contínuo de uma combustão optimizada de energia humana e ocasione perdas de fricção. No entanto, o processo do fluxo contínuo corre melhor com objectos de matéria física morta (o que é simbolizado por exemplo na "clássica" linha de montagem da indústria automóvel). Assim sendo, o espaço-tempo da economia empresarial implica um reducionismo específico, que corresponde a um fenómeno muito similar nas ciências da natureza modernas.

Pode-se falar de um reducionismo físico das ciências da natureza modernas, que almeja uma explicação monística do mundo a partir dos componentes atómicos elementares do Universo mecanicista de Newton. Tal significa necessariamente um duplo passo de redução. Num primeiro passo, o mundo social, cultural e histórico do Homem tem de ser reduzido a mecanismos funcionais biológicos; um topos da ideologia burguesa desde o século XVIII. O arco deste reducionismo biológico estende-se desde a pseudo-naturalidade das condições de produção e relacionamento capitalistas na economia política a partir de Adam Smith (ampliada na mais recente pseudo-cientificidade e "matematização" da economia política), passando pela biologização do social (darwinismo social), até à suposta programação e determinação genética da "natureza humana". Num segundo passo, o mundo biológico tem de ser depois reduzido a mecanismos funcionais químicos e físicos, a matéria viva tem de ser reduzida a matéria morta. O descomedimento da procura de uma "fórmula do mundo" total, da qual pudesse ser monisticamente "derivado" tudo o que existe, ainda hoje se baseia sobre este modo de pensar reducionista, e com ele na imagem mecanicista do mundo, embora a física quântica pareça de facto contradizê-la.

O reducionismo físico das ciências da natureza modernas na teoria apresenta-se no entanto no espaço-tempo da economia empresarial como prática universal abstracta, como tratamento real do mundo dos objectos em função de semelhante reducionismo. É só este modo de proceder que permite de todo uma lógica de intervenção universal e abstracta, independente do objecto do processo de trabalho, como processo de valorização. A negação da lógica própria e do tempo próprio de áreas objectivas e de vida qualitativamente diversas pode apenas ocorrer pela via da redução física. Seres humanos são tratados como animais e plantas, enquanto animais e plantas são tratados como pedras e metais. Assim se opera na prática da economia empresarial uma redução abrangente da matéria social e da matéria viva em geral a uma objectividade física morta. A fantasmática objectividade do valor da mercadoria apresenta-se no processo da sua produção como a redução física da sua materialidade. O processo de produção como processo de valorização é no essencial o processo de matar dos seus objectos.

As consequências extremas desta lógica da redução já há muito se tornaram visíveis, por exemplo nas agro-indústrias monísticas, nos horrendos transportes de animais para abate à escala continental, assim como nas práticas do comércio de apoio social e cuidados pessoais, por exemplo quando pessoas idosas e doentes são tratadas segundo o padrão das instalações de lavagem automática de automóveis, ou o "trabalho afectivo" com moribundos está sujeito à gestão de tempo da racionalização económico-empresarial. Em semelhantes práticas de fábricas agrárias, hospitais e gulagues de "cuidados pessoais" que em todo o mundo se vão tornando cada vez mais notórias, e cujo escândalo entretanto já é só cansaço, surge no entanto apenas a ponta do icebergue de uma lógica de redução física, que domina profundamente todo o espaço-tempo da economia empresarial até aos poros do processo de reprodução social.

A este reducionismo pertence também a destruição secundária da biosfera planetária pelos "excrementos (físicos) da produção" (Marx) e a em tudo similar destruição secundária das condições de relacionamento social pelos "excrementos da produção" por assim dizer psíquicos. A indiferença face ao conteúdo qualitativo imediato do "trabalho" implica uma igual indiferença face ao "ambiente" do processo de valorização, tanto em termos biológicos como em termos sociais. O espaço-tempoda economia empresarial "desvinculado" conhece e admite apenas a sua própria lógica interna; é insensível a tudo o que no exterior do seu campo de acção está sujeito a outra qualidade de espaço ou de tempo. É por isso que fracassam não só todos os protocolos do clima e outros esforços de um ecologismo impotente, para por assim dizer reintroduzir os seus "custos externalizados" nas contas da economia empresarial segundo as regras da sua própria lógica, sem romper essa lógica enquanto tal. Igualmente impotentes permanecem também todos os apelos à compaixão, à responsabilidade social, à "sociedade civil", etc., que pretendem reivindicar um comportamento não reducionista em relação às condições sociais, sem pôr em causa fundamentalmente o espaço-tempo da economia empresarial como centro do reducionismo.

Tal como gente totalmente asselvajada em guerras de extermínio já não é capaz de se integrar numa vida "civil", tão-pouco os indivíduos condicionados no espaço-tempo da economia empresarial a modos de comportamento reducionistas podem comportar-se no exterior dele de um modo "socio-ecológico"; isto sem mencionar que esse "exterior" está a ser deglutido e aspirado pelo espaço-tempo da economia empresarial a uma velocidade crescente — sem que este consiga realmente totalizar-se e incorporar os momentos dissociados; pelo contrário, estes "ficam ao abandono". Já é apenas absurdo, quando as instâncias oficiais do capitalismo de crise global invocam, por um lado, a "moral" socio-ecológica e ao mesmo tempo propagam, por outro lado, a extensão do espaço-tempo da economia empresarial e da sua lógica reducionista a todas as áreas da vida. Sermões domingueiros situam descomprometidamente a racionalidade como respeito pelas lógicas próprias da biosfera e do relacionamento social na esfera da responsabilidade pessoal dos indivíduos isolados e por assim dizer no seu "comportamento de tempos livres", enquanto ao mesmo tempo a racionalidade social negativa do espaço-tempo abstracto da economia empresarial determina o processo real de reprodução social em toda a sua amplitude e profundidade, o que até ainda reforça a intervenção reducionista a ela associada.

O resultado é fácil de adivinhar e consiste na transformação do mundo terreno da biosfera e da cultura social humana num deserto físico. A literatura popular da ficção científica já há muito antecipou este resultado no topos do mundo de robôs, em que uma "inteligência" mecânica e auto-reprodutiva de máquinas mortas governa um mundo química e fisicamente reduzido. Talvez o amor à redução física teórica e prática também explique por que a anti-cultura capitalista está tão fascinada pelo planeta Marte, que o torna o alvo predilecto de expedições espaciais com máquinas de combustão e veículos robotizados. Marte é precisamente o deserto físico em que o trabalho abstracto e o seu espaço-tempo ainda têm de converter a Terra. O facto de andar com robôs a vasculhar esse deserto em busca da mais pequena vida bacteriana simboliza involuntariamente a desesperada lógica auto destrutiva de uma humanidade dominada pelo apriori social do trabalho abstracto.


Inclusão: 04/10/2020