A máquina universal de Harry Portter
O conceito de trabalho imaterial e o neo-utopismo reduzido à tecnologia

Robert Kurz

30 de outubro de 2005


Primeira Edição: Original DIE UNIVERSELLE HARRY-POTTER-MASCHINE em www.exit-online.org - Publicado na Folha de S. Paulo de 30.10.2005, em versão ligeiramente reduzida, com o título O COMPLEXO DE HARRY POTTER.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Um aspecto do êxito mundial de "Harry Potter" está talvez no facto de despertar um desejo infantil: em vez do moroso confronto com a matéria eternamente obstinada, anseia-se pela capacidade de invocar o jantar para a mesa ou o sucesso para a vida através de uma fórmula mágica. E em tempos de crise seria sumamente agradável reduzir a nada todos os problemas com uma vara de condão. Assim se compreende porque é que as fábulas da Joanne Rowling são devoradas até pelos jovens pós-modernos já algo esclarecidos. Os turbo-consumidores dos anos 90, cujo dinheiro entretanto se esvaiu infelizmente, andam à procura de fantasias ideológicas, para com elas se escaparem da realidade social agora arriscada.

Depois da miséria por que passou a especulação nas bolsas, surge agora no lugar do "capital fictício" uma espécie de "trabalho fictício", cujos protagonistas se imaginam também para lá de todas as condições materiais. O conceito de "trabalho imaterial" criado por Antonio Negri e Michael Hardt tornou-se a palavra chave deste novo produtivismo virtual. A "ontologia do trabalho" dos marxistas tradicionais é traduzida num discurso pós-moderno de bolhas de sabão. As tecnologias da informação e da comunicação, a analítica simbólica, os media, etc. devem suceder ao antigo paradigma industrial. Hardt/Negri substituem com destreza a antiga classe operária em dissolução pela chamada "multitude", uma multidão ou massa pós-moderna difusa, cuja base forma supostamente o "trabalho imaterial".

Considerado superficialmente, parece tratar-se neste constructo duma versão Harry Potter "desmaterializada" do envelhecido conceito marxista de "luta de classes". Tais ideias passam ao lado da realidade global em todos os aspectos. Em primeiro lugar, nenhum trabalho é "imaterial", nem sequer nos sectores da informação e do "conhecimento"; sempre se trata da combustão de energia humana. Imaterial é a maior parte dos produtos desse trabalho, mas justamente por isso esses sectores não podem sustentar a reprodução social, cuja base continua a ser o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) e, portanto, material.

Em segundo lugar, pelo mesmo motivo, as pessoas ocupadas no comércio a manejar símbolos e informação de maneira nenhuma formam uma "multitude", pelo contrário, são uma pequena minoria. Isso deve-se ao facto de que a microeletrónica, que tornou supérfluo o trabalho industrial anterior, não produz nenhum novo trabalho capitalista em massa. Atrás dos modelos de processamento de informação, de comunicação e de analítica simbólica já não estão encadeados milhões de trabalhos secundários de acabamento, como antes nas indústrias fordistas, mas sim processos tecnológicos automáticos, máquinas de comunicação e media que só necessitam dos seres humanos como consumidores. Hardt/Negri contornam o problema, pois enchem a sua "multitude" com grupos sociais completamente diferentes como migrantes, desempregados, criados, prestadores precarizados de serviços pessoais, etc., que em grande parte não têm nada a ver com trabalho nos chamados sectores do mesmo.

Em terceiro lugar, finalmente, a retórica da luta de classes também é vazia nessa base, pois o carácter da "multitude" de Hardt/Negri não é determinado pela relação de dependência do trabalho assalariado, mas sim pela supostamente nova independência nos sectores do "conhecimento", da informação e das suas redes. Nesse sentido, eles condenam o carácter "parasitário" dos conglomerados financeiros, que, como vampiros, pecariam contra a força criadora da "multitude". Aqui se torna claro que, na realidade, no lugar da antiga luta de classes do trabalho assalariado industrial é posta por uma visão neo-pequeno-burguesa. Hardt/Negri pretendem prosseguir e eternizar a produção de mercadorias que se tornou obsoleta, com o expediente de uma formação de redes independentes que se instauram entre pequenos colectivos informacionais de "autovalorização".

Não admira que tal conceito encontre grande acolhimento entre os náufragos da pós-modernidade. O cerne social desta ideologia é formado, de facto, não por uma nova "classe operária" assalariada, mas por aparentes independentes vítimas do "outsourcing" e novos empresários de miséria, nos âmbitos da produção "high tech", dos media e do processamento de informação, incluindo académicos e professores em situação degradada nas instituições privatizadas de ensino, que como "subempresários" intelectuais têm de pagar a própria segurança social. Esta "classe", se se quer chamá-la assim, digeriu o seu grandioso fracasso no capitalismo de casino de forma meramente compensatória, como afronta do grande capital financeiro considerado fraudulento. Eis a matrix clássica de uma crítica do capitalismo pequeno-burguesa; aliás, não isenta de sub-tons anti-semitas. Já tem algo de penoso a maneira como o ser social irreflectido dos pequenos e decadentes produtores de "conhecimento" e informação reaparece aqui como consciência ideológica.

O conceito de "trabalho imaterial" sedimentou-se também no novo utopismo do movimento internacional do "free software" [software livre]. A "autovalorização" dos pequenos produtores pós-modernos de mercadorias é aqui ligada à ideia de uma "suplantação do dinheiro", que também foi virulenta nas utopias do século XIX. Mas essa crítica do dinheiro não se refere, como em Marx, a todo o modo de produção, mas apenas à esfera da circulação. Deve se realizar um "dar e receber" sem mais mediação do dinheiro, enquanto a lógica subjacente na base da "riqueza abstrata" (Marx) permanece fora do alcance da crítica.

Este neo-utopismo crê ter encontrado seu eldorado no "trabalho imaterial" da produção de informação. Sobretudo a Internet é entendida como o campo central para a realização dessa ideia. Ora, a Internet é, sem dúvida nenhuma, uma criação tecnológica que conduz aos limites internos do capitalismo. Revelou-se impossível fazer desse meio de comunicação universal a base para uma nova era de acumulação de capital. Justamente por isso é que fracassou a new economy. O capitalismo não tira mais-valia real nenhuma do processamento da informação. Por esse motivo, ele precisa tentar conferir aos produtos informacionais preços na forma de dinheiro por meio de licenças jurídicas formais. É a simulação do lucro na esfera da pura circulação, em perfeita sintonia com os "produtos financeiros" do capital fictício.

O movimento designado de "free software" compreende mal essa contradição imanente do desenvolvimento capitalista, ao fazer de conta que já haveria aqui um "território livre", para lá do dinheiro. Porém, a crítica do enriquecimento dos conglomerados mediáticos por meio de licenças legais para software e outros produtos da "informação" permanece superficial porque não toca nas relações sociais de produção. Empola-se unilateralmente um aspecto secundário da crise num pequeno sector e a questão da emancipação é reduzida a isso. A sociedade deve ser transformada não por um grande movimento contra os desaforos da administração da crise, mas por um "modelo" alternativo tirado da esfera virtual, o qual deveria ser apenas estendido. O mundo deve restabelecer-se com o "free software". De novo se trata de inflar em universalidade um pretenso mundo-modelo, sem mediação de toda a sociedade.

Mas essa utopia fracassa justamente por causa do carácter de facto imaterial dos conteúdos que são transportados via Internet. Se o aspecto material do "trabalho abstrato" não pode ser representado nos fluxos de informação da Internet , então menos ainda os objectos reais da necessidade na sua maioria. Não se pode "fazer download" de pão nenhum, nem vinho, nem calças, para não falar de aço laminado ou materiais de construção; e nem sequer um livro, como deve saber quem quer que tenha tentado ler no ecran uma obra literária maior, ou imprimi-la num mar de papéis. Já por isso não se pode tirar só da Internet nenhum "modelo" de reprodução social, que se situe para lá do sistema produtor de mercadorias. Os neo-utopistas querem se iludir sobre esses limites de sua ideia unilateral, declarando que o problema é meramente provisório e pode ser resolvido pelo desenvolvimento tecnológico futuro.

O engenheiro britânico Adrian Bowyer (Universidade de Bath) quer construir, nesse sentido, uma "máquina universal" que, diferentemente do computador, reproduza os objectos já não apenas de forma virtual, mas também material. Esta "máquina ‘rapid prototyping’" (RepRap) do tamanho de um frigorífico deve replicar-se a si mesma e, além disso, produzir praticamente qualquer outro objecto a partir de conjuntos de dados modelos. Ela deve funcionar segundo o princípio das máquinas de copiar, como as que são empregadas no design industrial para modelar protótipos. Factualmente, trata-se de impressoras que podem produzir objectos tridimensionais a partir de amido de milho, plástico ou ligas que derretem a baixas temperaturas. Os Internet-freaks esperam que essa "máquina universal" possa produzir tudo após uma "evolução darwinista" de sua auto-replicação, desde a câmara digital até pãezinhos. Pinta-se um futuro em que as pessoas poderão "fazer download" comodamente de todos os bens imagináveis em geral. Não se trata de uma "máquina de Marx", como se afirma, mas antes de uma máquina de Harry Potter.

Essa ideia grotesca remete para o carácter simplista tecnicista de todo o constructo. O objectivo aqui não é obter relações sociais diferentes e uma outra relação com a natureza, para lá do sistema produtor de mercadorias, a fim de ter em conta a qualidade própria de cada um dos diversos âmbitos da vida. Bem pelo contrário, a reprodução social total tem de ser subsumida precisamente apenas sob uma única "lógica funcional". O "trabalho abstracto", com seu alcance universalista-negativo e destrutivo sobre o mundo, não é suplantado, mas sim prosseguido, como fantasma de um agregado cibernético inteiramente automático. O herói é o consumidor de mercadorias, como o "verdadeiro ser humano", desembaraçado de todas as condições materiais. Se nas alucinações da esquerda pós-moderna dos anos 90 o consumidor era "dissidente", agora é "produtor imaterial" dissidente.

Na realidade, a Internet é um meio de comunicação de facto universal, mas meramente na circulação, pressupondo sob todos os pontos de vista a produção noutro lado. Mesmo o software precisa de ser desenvolvido primeiro, antes de poder ser introduzido na circulação mediática. Se o consumo lúdico de "utilizadores" pode possibilitar um certo desenvolvimento no caso especial dos programas de computador, o mesmo colectivismo anónimo de produtores consumidores é uma ilusão no caso de produtos culturais. Pois a cultura em sentido amplo pela sua essência não segue o esquema da lógica de "0" e "1", não se pode desenvolver como mera combinação de módulos de informação.

O déficit dessa ideia torna-se particularmente evidente quando o "dar e receber" sem dinheiro tem de ser aplicado, na qualidade de pseudoprodução de software, aos conteúdos artísticos e teóricos. O que ocorre menos a expensas dos conglomerados mediáticos do que a expensas dos produtores culturais imediatos, que sob condições capitalistas não podem viver sem rendimento monetário. Abstraindo disso, os textos literários e teóricos exigentes só surgem por reflexão e elaboração individual de experiências sociais. A troca com outros e o desenvolvimento não se efectuam por "download" e reconfiguração mecânica.

Se o pensamento emancipador deve consistir justamente em que os indivíduos se entendam apenas como "pontos de contacto no intertexto", como se expressa o filósofo alemão Peter Sloterdijk, então a individualidade abstracta do capitalismo não é suplantada, mas sim radicalizada. "O gesto do downloading", escreve Sloterdijk, seria "a libertação da injunção de fazer a experiência". O filósofo pós-moderno de forma alguma se refere a isso de maneira crítica; para ele esse desenvolvimento deve ser "saudado quase sem restrições". Em vez da ideia de Marx de uma "associação de indivíduos livres" aparece um colectivismo desmaterializado na circulação em espaço virtual. Isso não é resposta nenhuma à crise social e intelectual do movimento emancipador.


Inclusão: 28/12/2019