Quem se atreve ainda a fazer seja o que for?
A greve dos maquinistas e os conflitos sociais em tempos de incerteza

Robert Kurz

5 de outubro de 2007


Primeira Edição: Original WER TRAUT SICH NOCH WAS? in www.exit-online.org. Publicado em Freitag, 05.10.2007.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O conflito salarial nos caminhos-de-ferro com o sindicato dos maquinistas parecia já em vias de ser ultrapassado; acalmado e silenciosamente desactivado pelos promotores da boa vontade, Geissler e Biedenkopf(1). Contudo, as relações já não são assim. Nas questões centrais a empresa, Die Bahn-AG, não arredou pé. Os maquinistas não conseguiram uma tabela salarial própria, nem um aumento salarial acima dos 4,5 % negociados com os outros sindicatos ferroviários; só haverá remunerações adicionais contra o aumento do tempo de trabalho semanal. E isto apesar dos turnos irregulares de 12 horas, do trabalho ao fim de semana, de centenas de horas extraordinárias (que na prática não podem ser compensadas) e de nem sequer 2.000 euros líquidos. Quando o sindicato dos maquinistas pretende agora fazer face a isso com a greve, os media reagem irritados. Fala-se de "intranquilidade". Já se instalara o hábito do compromisso aparente à custa dos empregados, segundo o modelo da Telekom.

Não se trata aqui apenas do interesse particular dos maquinistas. O que está em causa é a política de privatização. Não é por acaso que, simultaneamente, os Lander se atravessam contra os planos de cotação em bolsa dos caminhos-de-ferro, pois receiam, não sem razão, uma posterior redução das ligações locais e regionais. "Passar de caminho de ferro a global player" diz a empresa numa brochura publicitária, e aponta, orgulhosa, para a "presença em todo o mundo", com 1.500 localizações em 150 países, "nos domínios da mobilidade, das redes e da logística". A transformação de uma infra-estrutura pública numa empresa de mercado globalizada é necessariamente acompanhada da desactivação dos troços "não rentáveis" e de uma política de salários miseráveis. Não é por acaso que Mehdorn(2) invoca os níveis de pagamento inferiores e as condições de trabalho ainda mais degradadas entre os concorrentes privados. Os neoliberais de linha dura protestam contra os "românticos do caminho-de-ferro" que, com a "conversa da incumbência estrutural e dos cuidados da existência" pretendem tratar a nova candidata à bolsa "como um comboio de póneis no museu rural" (Wirtschftswoche).

Um quadro semelhante se nos apresenta nos correios. Aqui, o salário mínimo por hora para os carteiros, escalonado de 8,00 a 9,80 euros, mal acabado de negociar volta a ser posto em causa, incluindo pelo governo federal, com destaque para o ministro da economia, Glos. A associação dos serviços postais privados, fundada há pouco tempo, exige uma redução do salário mínimo para no máximo 7,50 euros. O que seria uma degradação drástica para os até aqui empregados dos correios. Também no sector clínico se levanta de novo a questão: os médicos empregados reclamam contra os mais recentes acordos salariais, que na prática não trouxeram qualquer melhoria, e parte deles discute novas decisões de greve. Não tarda nada que os "românticos dos correios" e os "românticos da medicina" possam tornar-se também um alvo dos românticos da privatização. A denúncia do ponto de vista dos interesses dos que antes tinham profissões estáveis esconde que estes constituem simultaneamente a última barreira contra a total economificação dos "cuidados existenciais" até aqui existentes, porque os grandes sindicatos fracassaram face à política de privatização. Há muito que não é segredo que os imperativos da redução de custos da economia empresarial, com infra-estruturas "dessocializadas" em combinação com uma política de preços elevados e baixos salários, conduziram à degradação da qualidade. Só falta agora que o facto de as pessoas se escandalizarem perante esta tendência seja apodado de "romantismo da qualidade".

A discussão acalorada das tabelas salariais na sequência da privatização dos serviços públicos tem método, pois este sector foi até aqui um retardatário nas questões da deslocalização e do baixo salário. Agora soltaram-se os freios; a Telekom antecipou-se, mostrando o caminho. Trata-se da equiparação à tendência de empobrecimento social. Também os elogiados efeitos sobre o emprego na indústria, alavancados pela conjuntura de exportação asiática de sentido único e baseada no deficit, são sobretudo à conta de tempo de trabalho mais mal pago e de contratos a prazo. Desde que o céu da conjuntura se nublou com a crise financeira vinda do sector imobiliário, cujo ponto alto apenas deveria vir em 2008, é de esperar a próxima onda de despedimentos com maior pressão sobre o nível geral de salários. É aqui que a resistência séria dos empregados, contra os baixos salários e a pressão do serviço, constitui um argueiro na vista da global player. Os restantes empregados dos caminhos-de-ferro, mesmo em desacordo, não consideram os maquinistas como "traidores". Segundo relatos da imprensa, o sentimento unânime é: "Eles pelo menos ainda se atrevem a fazer alguma coisa". A questão é: quem se atreve ainda a fazer qualquer coisa. Se o sindicato dos maquinistas perder a face, como o Ver.di na Telekom, a barreira seguinte já está derrubada. O que constituiria um sinal para a resignação social em larga escala.


Notas de rodapé:

(1) Políticos destacados pela CDU para pôr fim à greve. (retornar ao texto)

(2) Presidente da empresa dos caminhos-de-ferro. (retornar ao texto)

Inclusão: 28/12/2019