O tapete voador
Nostalgia keynesiana como receita para a crise? Contracrítica a Albrecht Müller

Robert Kurz

19 de setembro de 2008


Primeira Edição: Original DER FLIEGENDE TEPPICH em www.exit-online.org. Publicado em “Freitag”, 19.09.2008

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O texto que segue é parte de uma discussão no semanário “Freitag” sobre a tentativa da esquerda de reavivar o keynesianismo. O artigo “A Miséria da Política Conjuntural” motivou uma dura réplica de Albrecht Müller no número seguinte. Müller foi nos anos 70 director de campanha eleitoral de Willy Brandt e integrou o gabinete de imprensa de Helmut Schmidt. Hoje promove uma plataforma de oposição keynesiana com o portal de Internet www.nachdenkseiten.de. Eis a resposta à crítica de Müller.

Para os crentes católicos, socialistas e liberais de mercado são gémeos. Para os crentes keynesianos pelos vistos também. Albrecht Müller acusou-me nesta revista de, com a crítica ao apelo a favor de programas de conjuntura, estar a apontar na mesma direcção que o ministro das finanças Steinbrück. Pelo contrário, a nostalgia keynesiana é que aponta na mesma direcção em que apontava há pouco o desafortunado ministro da economia Glos. Ao que parece as partes em confronto misturam-se, porque está eminente a fusão nuclear do sistema financeiro global e a queda da conjuntura mundial financiada pelo deficit. Müller é um keynesiano dos antigos, que não participou na viragem neoliberal. Isso só o honra. Em todo o caso põe-se a questão de saber se uma frente keynesiana transversal é hoje apropriada para melhorar a situação dos assalariados e dos “supérfluos” excluídos.

A doutrina keynesiana quis salvar o capitalismo em reacção à crise económica mundial. O seu cerne era constituído por um programa de emprego, a fim de conservar a qualquer preço o crescimento necessário ao sistema. Segundo Keynes, para pôr em movimento o motor da máquina capitalista, se necessário deveria recorrer-se a uma política de endividamento estatal, mesmo que fosse para construir pirâmides, ou para abrir e fechar buracos. Este programa tornou-se um modelo em fim de linha nos anos 70. Pouco adianta imaginar por detrás de tudo isto, em jeito de teoria da conspiração, um putsch neoliberal na ciência económica e na política. Subjacente à referência às taxas de crescimento dos anos 70, confortáveis do ponto de vista actual, há uma ilusão óptica. Estas taxas são sempre meramente relativas, porque estão dependentes do nível de acumulação do capital. Em comparação com o milagre económico anterior, o crescimento não só se reduziu, como também foi obtido através de uma expansão monetária estatalmente induzida, a qual conduziu a taxas de inflação em parte de dois dígitos e à hiperinflação na periferia do capitalismo. Esse foi o motivo pelo qual o keynesianismo fracassou, coisa que infelizmente não merece qualquer palavra de Müller.

Quando em 1991, após a RDA, também a União Soviética entrou em colapso financeiro, o mainstream das esquerdas reagiu em pânico, adaptando-se ao princípio da realidade do capitalismo de mercado. A versão keynesiana de ser o Estado a dirigir, oficialmente afastada, passou a ser o mais elevado sentimento da crítica social de esquerda. Por isso se abre hoje um buraco negro no que respeita à alternativa socialista ao sistema. Colocar em agenda tal alternativa, para lá do capitalismo de Estado, não é nenhum esoterismo. A abertura mais que necessária desta discussão interrompida seria um catalisador, sobretudo para se poder desenvolver um programa de resistência actual. A doutrina keynesiana, pelo contrário, tem de se colocar do ponto de vista de apenas crescimento e emprego, em vez de resistência, para reanimar a “valorização do valor”, e de que com isso poderia surgir, como subproduto, uma melhoria da situação social. Não será esta opção esotérica?

O colapso do capitalismo de Estado já era parte da crise mundial da terceira revolução industrial, que põe em causa a utilização suficiente da força de trabalho humana. Como reverso do desemprego estrutural em massa, do subemprego e da precarização constituiu-se uma economia de bolhas financeiras do “capital fictício”. Assim foram postos em movimento os fogos de palha conjunturais, desde o boom da unificação alemã, passando pelo pico bolsista das dot-coms dos anos 90, até ao mais recente rolo compressor da exportação de sentido único, com base no milagre do consumo dos EUA alimentado pela bolha do imobiliário. O radicalismo neoliberal de mercado levou à mesma expansão monetária insubstancial que 30 anos antes, numa dimensão muito maior. O “keynesianismo das bolhas financeiras” parece actualmente encontrar-se numa situação semelhante à da burocracia soviética do plano em 1991. O tapete da política keynesiana, que Müller não gostaria que lhe retirassem debaixo dos pés, é há muito tempo um tapete voador, sob o qual se abre o abismo.

A política radical de abaixamento de juros do banco emissor dos EUA e a estatização dos seus maiores bancos hipotecários, ambas óptimas medidas keynesianas, até agora não deram resultado. Mais pacotes estatais de salvamento e abaixamentos concertados de juros a nível mundial só podem desencadear de novo o potencial inflacionário latente. Se já tem de se esgotar as munições duma viragem keynesiana a sanear um sistema financeiro essencialmente mais debilitado que nos anos 70, já não resta mais potência em conformidade com o sistema para programas de emprego na base do endividamento. Acresce que projectos de pirâmides estatais sob a presente administração de crise do mercado de trabalho só iriam expandir o sector dos salários de miséria. Também a esperança de uma ilha europeia de felicidade keynesiana não passa de uma ilusão óptica, pois a União Europeia não constitui qualquer espaço económico relativamente autárquico, mas está integrada no contexto encadeado dos mercados financeiros mundiais e da conjuntura mundial.

Uma reanimação do keynesianismo dos anos setenta assemelha-se à experiência de receitar rebuçados para a tosse em caso de cancro do pulmão. Nesta situação não faz qualquer sentido, com a aceitação incondicional das condições de vida capitalistas, afirmar como única possibilidade a via oficial estatal para a reanimação da máquina da valorização. Deve-se, em vez disso, acordar a consciência da necessidade de um contramovimento social, que não permita que a própria vida seja considerada não rentável. Sendo certo que uma alternativa ao sistema não pode ser tirada da cartola sem pressupostos, seria contudo um passo importante fazer valer os interesses vitais inegociáveis, sem atender ao princípio da realidade vigente. A luta directa por aumentos de salários, salário mínimo legal ao nível do Luxemburgo e abolição do programa Hartz-IV não apontaria realmente na mesma direcção que Steinbrück. Uma greve de massas pela salvação da acumulação do capital é que é de facto dificilmente imaginável.


Inclusão: 28/12/2019