Capitalismo sem mais-valia?
Um debate insuficiente sobre os limites do crescimento

Robert Kurz

24 de julho de 2009


Primeira Edição: KAPITALISMUS OHNE MEHRWERT? em www.exit-online.org. Publicado no semanário FREITAG de 24.07.2009

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O presente colapso do crescimento económico global levanta a questão das suas consequências. Obviamente que as elites económicas, políticas e científicas foram apanhadas desprevenidas pela crise secular do capitalismo. Após o fim da economia planificada da burocracia estatal no Leste qualquer alternativa social é considerada assunto do passado. Celebrou-se a confiança primordial na eterna capacidade de regeneração das "forças do mercado" em crescimento auto-sustentado. Apesar do choque, as instituições oficiais ainda agora emitem a palavra de ordem: "Fechar os olhos e para a frente é que é o caminho". Com a ajuda de pacotes de salvamento, programas de apoio à conjuntura e um pouco mais de regulação espera-se que o fim da crise chegue rapidamente para, segundo Angela Merkel, "se sair reforçado" dela e voltar a encontrar a velha via do crescimento. Esta opção é de tal modo sem fundamento que já não consegue obter qualquer credibilidade.

Contra tal "evolução na continuidade" e sob o efeito da crise faz-se sentir com mais veemência uma crítica à própria lógica do crescimento. Um crescimento econômico ilimitado duradouro será impossível. Este ponto de vista não é propriamente novo. Já em 1972, o "Clube de Roma" publicou o famoso estudo de Donella e Dennis L. Meadows sobre os "Limites do Crescimento". Os argumentos centraram-se principalmente no consumo das reservas de matérias-primas, no esgotamento do solo através da agro-indústria, já tematizado por Marx, bem como na destruição dos habitats. Num mundo finito não é  possível o aumento infinito da utilização dos recursos. Este penetrante estudo de longo prazo foi ignorado pelos “decisores” da economia, como é sabido orientados pelo curto prazo, enquanto ia sendo invocado pelos movimentos ambientalistas. Tornaram-se entretanto evidentes as limitações da delapidação dos recursos naturais (vejam-se as catastróficas alterações climáticas).

Hoje, no entanto, combinam-se o esgotamento dos recursos energéticos e a crise ecológica com a nova crise económica mundial que, simultaneamente, aponta para uma barreira económica interna do modo de produção dominante. Esta crise dupla exige uma crítica dos pressupostos económicos do crescimento forçado, o que até hoje permaneceu mal esclarecido. Por isso surge agora a idéia de uma "economia sem crescimento". A crise deveria ser entendida como uma "oportunidade" nesse sentido. No entanto é preciso resolver o problema de libertar as necessidades vitais dos 7 mil milhões de pessoas do planeta da lógica do crescimento abstracto, em vez submetê-las cada vez mais, em nome da "escassez dos recursos". Uma vez que o crescimento já vai de par com a pobreza, a sua limitação consciente não pode ser conseguida com mais pobreza ainda.

A questão dos critérios económicos poderia sugerir o regresso à crítica da economia política de Marx, posta fora de serviço. Em vez disso, o programa da "economia sem crescimento" reporta-se, em grande medida, a um aspecto da doutrina keynesiana. Regra geral, Keynes é responsabilizado pela salvação do crescimento económico apenas através de injecções estatais na conjuntura. Contudo, já na década de 30, ele tinha formulado uma teoria da estagnação que previa a diminuição significativa e finalmente a ausência de crescimento do capitalismo "maduro", porque o stock de capital não pode ser arbitrariamente aumentado. Recentemente o economista crítico Karl Georg Zinn, por exemplo, remeteu para essas ideias. No entanto, para Keynes, tal hipótese não era razão para pôr as categorias económicas em causa. Contra a ameaça de desemprego em massa, por falta de crescimento, ele simplesmente sugeriu a redução de horários, a fim de manter os postos de trabalho. Para o capital, porém, não se trata simplesmente do emprego, mas da produção de mais-valia ao nível de produtividade exigido pela concorrência e constantemente acrescido, que (como Keynes bem viu) torna supérflua a força de trabalho numa progressão crescente. A conservação do emprego só é possível através da produção adicional de mais-valia, que pressupõe um stock de capital crescente e, consequentemente, também crescimento econômico, incluindo um consumo de recursos em aumento permanente. De repente, Keynes argumentava com o "bom senso", sem ter em conta a lógica interna da valorização do capital.

No fundo, com tais considerações aparentemente plausíveis supõe-se, como é costume na ciência económica, que se trata "realmente" da satisfação das necessidades e que as modernas categorias económicas são apenas "leis naturais" desta alegada finalidade, que têm de “ser configuradas” nas suas formas de desenvolvimento. Mas, na realidade, a satisfação das necessidades é um mero sub-produto da "valorização da valor" abstracta, como fim social em si mesmo. A finalidade da produção não é produzir uma quantidade suficiente de bens de uso, pelo contrário, ela é "trabalho abstracto" para a "riqueza abstracta", ou seja, para a transformação de dinheiro em mais dinheiro, como se pode aprender a partir de Marx. E o mercado não serve, portanto, para a troca de bens de uso, mas é apenas a esfera da "realização" da mais-valia, ou seja, da retransformação das mercadorias na forma do dinheiro (aumentado). Todo o emprego, todas as receitas, todos os processos do mercado estão dependentes do sucesso da produção de mais-valia, que está subjacente à necessidade do crescimento. Estas categorias básicas do capital, ao mesmo tempo, não têm qualquer sensibilidade para as qualidades ambientais e sociais. Elas são per se indiferentes a qualquer conteúdo, como também se pode aprender a partir de Marx.

A crítica superficial do crescimento, infelizmente, ignora o contexto funcional capitalista e o carácter destrutivo das suas categorias. Ela pretende um capitalismo sem mais-valia, o que é quase tão promissor como a quadratura do círculo. No entanto, o próprio capitalismo põe fim ao seu crescimento, quando torna supérfluo tanto “trabalho abstracto” que leva à paragem da produção real de mais-valia, e somente consegue manter uma vida fictícia através do crédito e das bolhas financeiras, que acabarão por rebentar. Isto leva, de facto, a uma paragem do consumo de recursos e das emissões poluentes; não, porém, como uma decisão consciente da sociedade, mas sim como um processo cego de crise, tal como ele já se desenvolveu em parte no colapso das indústrias no Leste. O preço é a miséria social em massa. Pois a crise não conduz a produção para caminhos “com sentido”, mas simplesmente paralisa-a, porque já não é capaz de cumprir o fim em si da valorização.

A coerção de crescimento capitalista não dominada e sem crescimento real é apenas um cenário de catástrofe. Para parar esta coerção, sem fazer cair a vida social em agonia, a reprodução teria de ser libertada do ditame da mais-valia abstracta. Isso exigiria, contudo, que deixasse de existir a mercadoria força de trabalho e portanto deixasse de haver mercado de trabalho, que a produção perdesse o seu carácter de "trabalho abstracto" e que o contexto social deixasse de ser produzido nas formas do dinheiro, do mercado e da concorrência. Para que a humanidade não tenha de passar fome sobre as ruínas dessas categorias económicas, apesar de todos os recursos estarem disponíveis, ela terá de se confrontar com a tarefa postulada por Marx da "administração das coisas". Um planeamento social apenas "terá sentido" quando se referir ao conteúdo material e social, deixando de incluir os alimentos e bens culturais na forma do “valor objectivo [Wertgegenständlichkeit]", que se torna inacessível por falta de capacidade de pagamento.

Keynes imaginou o fim do crescimento como um assunto relativamente pacífico. Se o Estado não pode continuar a estimular o crescimento, este tem de ser simplesmente substituído pelos "bens públicos". Keynes deixa na penumbra o facto de que o financiamento destes bens continua dependente da valorização do capital e, portanto, mais uma vez do crescimento, pois ele pelos vistos considerava o crédito do Estado quase inesgotável. O "trabalho abstracto", também conhecido por emprego, os rendimentos em dinheiro e o mercado universal, deveriam prosseguir ininterruptamente por todo o futuro, com o apoio do Estado, mesmo sem a sua condição de possibilidade capitalista. Este programa de vistas curtas ameaça fazer triste figura na nova crise económica mundial. Apesar disso, a crítica ao crescimento forçado é irrefutável. No entanto é preciso concretizá-la na crítica às formas económicas cegamente pressupostas, pois ninguém pode apanhar chuva sem se molhar.


Inclusão: 31/03/2020