No deserto não há água
Porque é vã a busca de poder de compra

Robert Kurz

18 de novembro de 2009


Primeira Edição: KEIN WASSER IN DER WÜSTE in www.exit-online.org. Publicado no semanário Freitag de 18.11.2009

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O que precisa agora o capitalismo, como precisa de água quem tem sede no deserto? Procura com poder de compra! No entanto a procura secou, devido aos seus próprios mecanismos de funcionamento. É a velha cantiga da contradição interna, entoada em tons cada vez mais estridentes: aqueles que estão sujeitos às leis da lógica da exploração devem trabalhar o melhor possível por uma ninharia até a exaustão, poupando como campeões mundiais para assegurar a velhice e o futuro, ao mesmo tempo que devem gastar dinheiro às mãos cheias enquanto consumidores.

A política neo-liberal de oferta tratou esta contradição à sua maneira, exigindo cortes de custos a qualquer preço. Do embaratecimento da oferta esperava-se crescimento, de acordo com as regras do mercado. Isto devia valer, não em último lugar, para a procura da mercadoria força de trabalho no mercado de trabalho, cuja desregulamentação reduziu os salários reais em toda a parte e obrigou à expansão do sector de baixos salários. A questão da procura foi aparentemente resolvida, na medida em que, apesar da erosão dos salários reais a longo prazo, foi criado poder de compra sem substância a partir das bolhas financeiras (por exemplo, através dos célebres empréstimos hipotecários), para a classe média mais ou menos alargada, nos E.U.A. e noutros países. O resultado foi uma economia de deficit global orientada para a exportação unilateral, especialmente para os Estados Unidos.

Como este constructo começa a entregar a alma ao criador, após o crash financeiro global, parece que se volta a descobrir a política keynesiana da procura. O Estado deve reanimar o poder de compra em quebra através de medidas de política conjuntural. Mas longe vão os dias em que, sob condições muito mais confortáveis, na velha RFA, a "acção concertada" do governo, das associações empresariais e dos sindicatos criou uma onda de procura keynesiana, que acabaria por ser engolida pela inflação. Hoje não há qualquer vestígio de "concertação"; e os conceitos opostos misturam-se como a couve com o nabo.

Com os prémios de abate de automóveis, o Estado subvencionou directamente um segmento dos consumidores da classe média que ainda conseguiu aceitar a oferta. É do conhecimento geral que esta medida não passa de fogo de palha. Os restantes programas de estímulo à conjuntura continuam muito fracos, pois só os pacotes de salvamento do sector financeiro já ameaçam colocar as finanças públicas à beira da ruína; um problema do conjunto do sistema bancário ainda impensável nos tempos do keynesianismo. A miragem da promessa de redução de impostos da coligação preto e amarelo, a fim de criar poder de compra, não tem nada a ver com a política keynesiana de procura, pois nada mais é do que nostalgia neo-liberal. A redução de impostos, principalmente para a classe média superior, foi uma das medidas de flanqueamento da política de oferta, política que deixou de ser eficaz. Primeiramente, já não é financiável e, em segundo lugar, estouraria, porque não fluiria para o investimento nem para o consumo, perante a situação de crise. Por isso, passadas três semanas de governo, grassa a briga familiar entre os ilustres membros da coligação.

Por maioria de razão a busca desesperada de procura com poder de compra é desmentida pela situação nas empresas. Os empregados das empresas em risco de insolvência excedem-se em concessões à gestão, movidos pelo medo de perder o emprego. A renúncia ao salário, às férias e ao subsídio de Natal está na ordem do dia, e não apenas na Opel e na Arcandor. Na Quelle nem isso já serve de nada. E a onda de falências ainda só agora começou. Os cortes salariais negociados pelos conselhos de empresa, a fim de resgatar as empresas, devem continuar a espalhar-se. Ajusta-se a este quadro que os sindicatos, com o seu conhecido sentido de responsabilidade para com os males da sociedade na crise, comecem por apresentar uma proposta de congelamento de salários nas negociações para 2010. Se é melifluamente elogiada esta política, nascida da necessidade, de oferta voluntária da mercadoria força de trabalho, o facto é que tal política está em flagrante contradição com a orientação virada para a procura; mas as relações são o que são.

Nesta situação, a exigência de um salário mínimo suficientemente elevado passa para segundo plano; e menos ainda se fala de um aumento das prestações sociais que caíram abaixo do nível de subsistência. Pelo contrário, com os cortes salariais, os baixos salários começam a grassar entre os trabalhadores efectivos e a classe média baixa evapora-se. O fogo de palha da política pública de apoio à procura é complementado por uma continuação da política de apoio à oferta por outros meios nos mercados de trabalho. Ninguém quer perder este trunfo no jogo da concorrência global. A caravana do emprego cada vez mais barato tem de continuar a arrastar-se, mesmo sem bebedouros. Assim, as elites olham fixamente para a China, como o coelho para a serpente, embora seja mais do que duvidoso que possa começar a partir daí uma nova conjuntura económica global de deficit, como reversão do recente fluxo de exportação de sentido único. Se a fé num milagre tomar o lugar do conceito de procura já não viável, o próximo desabamento económico já está programado. Em seguida, na continuação da espiral descendente, já só haverá rações de emergência.


Inclusão: 31/03/2020