Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


1. A teoria da crise na história do marxismo


Para poder compreender a situação no que diz respeito à teoria da crise é preciso pelo menos um breve olhar sobre a história do marxismo. Salta imediatamente à vista que o auge dos debates sobre a teoria da acumulação e da crise de Marx ocorre na época anterior ao desabar da crise verdadeiramente grande. Podem ser apontados como clássicos os debates em torno do revisionismo de Bernstein e da teoria do colapso de Rosa Luxemburgo ainda antes da I Guerra Mundial, bem como da de Henryk Grossmann no fim dos anos de 1920. A parte de longe preponderante do marxismo do movimento operário, tanto da linha social-democrata como da leninista e mesmo da linha de esquerda ou comunista dos conselhos, recusava no fundo a ideia de um limite interno objectivo da valorização do capital. Parecia-lhes que assim o sujeito ontológico classe operária seria privado da sua competência para a acção, como se verá melhor de seguida.

Eduard Bernstein inventou uma “teoria do colapso”, até ao seu tempo inexistente nos debates marxistas (apoiando-se para isso pura e simplesmente em partes de frases das actas dos congressos social-democratas), a fim de justificar a sua estratégia reformista com a teoria da acção. Apenas Rosa Luxemburgo, no seu livro A acumulação do capital (1912), tentou esboçar a teoria de um limite interno objectivo do capital. No entanto via este limite em última instância apenas como falta de possibilidade de “realização” da mais-valia na esfera da circulação, enquanto a produção de mais-valia em si seria supostamente inesgotável. Grossmann, pelo contrário, na sua obra A lei da acumulação e do colapso do sistema capitalista (1929), parte de facto da produção de mais-valia; no entanto esta não depararia com limites relativamente à posterior acumulação de capital em geral, mas apenas relativamente a um suficiente rendimento para o consumo da classe capitalista.

Perante a chuva de críticas violentas de todas as fracções marxistas, tanto Luxemburgo como Grossmann afirmaram que as suas reflexões eram afinal apenas “ficções teóricas” com referência a uma tendência real; o verdadeiro “fim” do capitalismo seria trazido apenas pela “vontade política” do movimento operário. Tanto na crítica como na anti-crítica, o termo “colapso” acabou afinal por ser reduzido à acção revolucionária (ou mesmo reformista), tendo a fundamentação na teoria da acumulação passado para último plano (para uma discussão crítica aprofundada deste debate histórico ver Kurz 2005, bem como os caps. 7-9 deste livro).

Esta discussão clássica da teoria da crise no marxismo do movimento operário foi engolida pela crise económica mundial, pela barbárie nacional-socialista e pela II Guerra Mundial. Após 1945 reanimou-se de facto numa forma enfraquecida, mas a teoria de um limite interno objectivo foi considerada refutada e não voltou a ser tematizada. A teoria da acumulação desligou-se de uma teoria da crise agudizada, não em último lugar sob a impressão da prosperidade em curso a seguir à guerra. As contradições do movimento de acumulação foram reduzidas teoricamente a meras formas de desenvolvimento de um processo em si inesgotável. No fim dos anos de 1950 escrevia Paul Mattick, um dos mais destacados representantes do antigo comunismo de esquerda e da crítica da economia política marxiana: “Apesar dos períodos intercalares de depressão, cada retoma da produção capitalista atinge um nível mais elevado e uma maior expansão que a anterior… O capital desenvolve-se segundo o método ‘três passos em frente, dois passos atrás’. Mas esta forma de movimento não impede o progresso geral, apenas o atrasa…; se observarmos o desenvolvimento capitalista como um processo contínuo e estável, o seu ritmo apresenta-se como moderado” (Mattick 1974/1959).

O problema da crise foi cada vez mais subsumido no movimento cíclico “eterno” ou nas rupturas estruturais “sempre em retorno”. Independentemente disso, o ponto fulcral da elaboração teórica no contexto do “marxismo ocidental” deslocara-se progressivamente para as teorias do sujeito e da acção, enquanto o lado objectivado do desenvolvimento capitalista parecia ter ficado quase sem objecto (para a crítica desta tendência unilateral ver Kurz 2007). Esta viragem deveu-se naturalmente sobretudo a uma necessidade, nomeadamente à desacoplagem académica da teoria marxista do campo de referência do movimento operário que, após a derrota perante o nacional-socialismo e o fascismo e na história do pós-guerra, deveria consumar a sua institucionalização capitalista há muito dada.

Também na nova esquerda do movimento de 1968, que ainda se orientou mais fortemente no sentido da teoria da acção ou do sujeito positivo, a teoria da crise já não estava no centro das atenções, embora esta temática continuasse a desempenhar um certo papel e não tivesse desaparecido completamente do campo de visão no contexto do esvaziamento da prosperidade fordista e das manifestações de crise (ainda relativamente moderadas) nos anos de 1970.(8) Mas eram apenas combates de retaguarda da discussão tradicional da teoria da crise. Nem sequer se fez a tentativa de sistematizar conceptual e analiticamente a teoria da crise inacabada que se encontra nos fragmentos de Marx não completamente elaborados. A incoerência dos diferentes momentos da teoria da crise permaneceu também nas abordagens neo-ortodoxas da “reconstrução” da teoria de Marx a partir da massa de textos tornados gradualmente acessíveis desde os anos de 1970, tanto mais que a temática da crise não assumia um peso decisivo.

Mas foi justamente a discussão em torno da teoria da crise e do colapso que se tornou o ponto nevrálgico em que se reproduziu a contradição interna da relação de capital como contradição interna do marxismo. Como numa lente ustória, vem aqui à luz a polaridade indissoluta entre o ponto de vista sociológico das classes e a relação de fetiche socialmente abrangente, entre o sujeito constituído de modo capitalista e a objectividade negativa, tal como a oposição entre o trabalho abstracto e a ontologia do trabalho. Esta conexão com a teoria da crise falhada permaneceu fundamentalmente alheia ao discurso neomarxista da nova esquerda. Uma vez que nem a relação da constituição fetichista da modernidade nem a ontologia do trabalho constituíram o foco da crítica, tendo sido na melhor das hipóteses tocadas apenas superficialmente, o resultado também não pôde ir além de uma fraca reencenação das velhas estruturas argumentativas há muito esgotadas. Mas, se a discussão clássica em torno da “teoria do colapso” tinha em vista pelo menos indirectamente o problema do tempo histórico, ou seja, das tendências de desenvolvimento de longo prazo, a viragem para a teoria do sujeito e da acção caiu cada vez mais no horizonte temporal reduzido da falsa imediatidade e com isso numa percepção positivista.

Também a “reconstrução” filológica neo-ortodoxa visivelmente não deu em nada, não tendo já sequer permitido estabelecer qualquer carreira académica. Aliás o impulso fundamental do movimento de 1968 estava mais numa orientação redutoramente praxeológica e politicista.(9) Quando a mediação mais uma vez tentada com o sujeito-em-si da “classe operária” por via da agitação foi lamentavelmente por água abaixo já nos anos de 1970, este fracasso foi tão pouco reflectido criticamente como o colapso do socialismo de Estado no Leste dez anos depois. Dado que as pessoas se puseram à procura de sub-rogações da referência da práxis politicamente imediata, os restos da teoria da acumulação e da crise foram sobretudo explorados para a sua legitimação.

A partir da década de 1980 consumou-se a história de decadência e desagregação do marxismo. A ausência de mediação com a teoria da crise, que permanecera sem solução, desempenhou aqui um papel decisivo. Constituindo a crítica da economia política de Marx naturalmente o pano de fundo para as discussões da teoria social de esquerda, ela no entanto deveria empalidecer cada vez mais. Entre as discussões do marxismo do movimento operário clássico sobre a teoria da acumulação, da crise ou do colapso e os modos de recepção neomarxista da crítica da economia política nas décadas de 1960 e 1970 ainda tinha havido uma continuidade claramente reconhecível. A ruptura então não estava na transformação dos conteúdos teóricos, embora a teoria da crise tivesse saído do foco da atenção, mas na perda do campo de referência da “classe operária” e do movimento operário que continuava teimosamente. A ligação desta decadência da “base de classe” com um processo de crise histórica qualitativamente novo que ia abrindo caminho não foi objecto de qualquer reflexão. Ligação que se apresenta hoje como decadência da ontologia marxista do trabalho de par com a decadência da “substância do trabalho” do próprio capital e marca um limite interno comum do “marxismo do trabalho” e da valorização do capital.

Nos anos de 1980 rasgou-se consequentemente também o continuum histórico do marxismo. No que respeita ao mainstream das conjunturas de esquerda, entre o esvaziamento do marxismo nos anos de 1970 e a necessidade de uma nova recepção e reformulação que germina timidamente nos últimos anos, abriu-se um buraco negro. É nesse buraco que se precipita a hegemonia discursiva do pós-modernismo na esquerda, como é sabido.

Este campo era completamente inapropriado para a continuação do debate, fosse qual fosse a sua natureza, sobre a teoria marxiana do capital e da crise. A transição pós-moderna, que em muitos aspectos abrangeu também grande parte da esquerda residual em serviço académico ou político, consumou o desacoplamento do nível de reflexão do marxismo do movimento operário que já se manifestara desde os anos de 1960. Na medida em que o discurso pós-moderno, com a repreensão insuficientemente fundamentada ao “economismo” da dogmática do marxismo de partido, removeu o contexto interno da análise categorial do capital em geral, naturalmente que deixou de haver lugar para a teoria da acumulação e da crise; e isto em diversos aspectos.

Em primeiro lugar a dialéctica sujeito-objecto foi aplanada para lá da correspondente tendência do “marxismo ocidental” e do movimento de 1968, e mais ou menos claramente; mas, no conjunto, preponderantemente reduzida ao plano subjectivo, da teoria da acção (ou justamente “praxeológico”). Já não se tratava, no entanto, do entendimento enfático de um sujeito autónomo do pensamento e da acção, que deveria aceder à auto-consciência, mas sim de um conceito de sujeito “estrutural”, que desterrara o portador da acção para uma aglomeração eternamente em mudança de “relações de forças” e estruturas de poder sociais. Este pensamento referia-se sobretudo à metamorfose da “compressão” institucional do paralelograma de forças social nas relações internas capitalistas, a qual permanecia em grande parte sem mediação com o plano categorial das condições capitalistas de existência.

Em segundo lugar, as categorias político-económicas sofreram uma reinterpretação culturalista e estetizante, em extensão diversa, mas claramente reconhecível através de todo o espectro da esquerda; tratava-se cada vez mais sobretudo de “estilos” de reprodução que, justamente, não estavam mais em qualquer relação sistemática com a determinação categorial da teoria de Marx, já apenas tematizada vaga e marginalmente.

Em terceiro lugar, para este pensamento a relação de capital dissolve-se positivistamente em “singularidades e conjuntos” (Foucault) de movimentos particulares de poder, dissolvendo-se consequentemente a crítica do capitalismo em “críticas locais” (Foucault) igualmente particulares (para a crítica desta redução ver Kurz 2007). Com isto a teoria da acumulação e da crise parecia ter ficado definitivamente sem objecto.(10)

Na medida em que o discurso de esquerda não se refugiou completamente na ontologia do poder de Foucault, com as suas referências a Nietsche e Heidegger, a decadência da determinação categorial marxiana tornou-se naturalmente notória justamente nas correntes que moldaram através do pensamento pós-moderno a referência residual feita de passagem ao paradigma não suplantado do marxismo tradicional. Isto aplica-se particularmente ao pós-operaismo de cunho negriano, que até hoje mantém certa influência junto dos movimentos de crítica da globalização. O conceito de crise pôde aqui levar uma vida depois da morte fantasmaticamente pós-marxista apenas porque ele foi arrancado da sua ancoragem na constituição fetichista capitalista e reinterpretado subjectivistamente até à irreconhecibilidade no quadro do pós-modernismo (sobre isto ver em detalhe cap. 9).

Neste tempo do “buraco negro” teórico sobreviveram ainda outros grupos, correntes e escolas marxistas residuais e pós-marxistas, em cujo pensamento a teoria de Marx, no seu conjunto cada vez mais marginal, continua a parecer constituir a referência central e em todo o caso mais que no pós-operaismo. Mas é justamente nas publicações desta banda que salta à vista a ampla ausência de uma teoria da crise, mesmo que apenas rudimentarmente elaborada. Esta é a diferença mais marcante no debate teórico no campo do marxismo do movimento operário, incluindo as suas histórias de fim de linha neomarxistas, o que aponta para o facto de as abordagens de uma elaboração crítica terem ficado completamente de fora e terem ido numa direcção errada. Em vez de suplantar a incoerência da teoria da crise marxista, a temática em geral foi empurrada para o que é secundário e para a letra miúda. O lugar vazio(11) da teoria da crise apresenta-se não apenas nas escolas do marxismo residual, como a que se agrupa em torno da revista Argument de Haug, do círculo em torno da Prokla mais academicamente plural ou da revista Sozialismus saída dos esforços de “reconstrução” da teoria de Marx, as quais ligaram amplamente a sua reflexão a interesses académicos, ideologias do movimento, conjunturas políticas ou tendências sindicais, mas também nas posições não imediatamente académicas ou redutoramente praxeológicas ou politicistas.

Assim, por exemplo, o agrupamento da Nova Esquerda estabelecido há muito tempo, que hoje está presente com a revista Gegenstandpunkt, publicou ao longo de anos toda uma série de brochuras divididas em secções com a suposta “verdade definitiva” sobre a crítica da economia política de Marx; desde o conceito de capital, passando pelo Estado burguês e pelo imperialismo até à psicologia do individuo burguês. Mas será em vão que se procura a correspondente proclamação da verdade sobre a teoria da crise.

Por outro lado, a Nova Leitura de Marx de Helmut Reichelt e Hans-Georg Backhaus, desenvolvida desde os anos de 1970 a partir do contexto do debate neo-ortodoxo da “reconstrução”, nos “anos de chumbo” da hegemonia ideológica pós-moderna tematizou de facto em elevado nível de reflexão alguns dos pontos nevrálgicos no debate do marxismo tradicional, como a questão da teoria monetária do valor ou o problema da constituição fetichista sujeito-objecto. Mas esses esforços permaneceram sem acutilância justamente porque faltou completamente a mediação com a teoria da crise.(12) Na continuação do seu desenvolvimento de base positivista por Michael Heinrich a teoria da crise é considerada marginal(13); mas ela fica verdadeiramente sem jeito, em parte nenhuma sai do contexto tradicional e antes é posta de lado uma vez que com a revisão do conceito marxiano de substância ela já ficara desvirtuada(14).

Os publicistas ditos “anti-alemães”, por sua vez, fiéis à sua falsa ortodoxia de Adorno, não trataram à partida de uma nova abordagem da teoria da acumulação e da crise. O problema da crise surge apenas em formulações crípticas e afoga-se em grande parte num reducionismo à crítica da ideologia (para a crítica ver Kurz 2003).(15) Também a meritória pesquisa de Postone (2003), se é verdade que leva à crítica do trabalho, no entanto também obnubila sistematicamente a teoria da crise e por isso fica a meio caminho.

Por muito que as posições do marxismo residual e do pós-marxismo se odeiem reciprocamente de morte, têm em comum a completa ausência ou a pouca exposição da teoria da crise. É precisamente aqui que se revela particularmente que todas no seu conjunto não deixaram de ser afectadas pela passagem pós-moderna desde os anos de 1960; quer o admitam agora ou não. Por maioria de razão a nova teoria radical da crise, na transformação da crítica da economia política de Marx pela crítica da dissociação-valor, teria de embater contra todas elas por igual.

Nesta situação, a determinação categorial da crise há muito negligenciada foi não só retomada mas também completamente refundada: já não pelas deficiências e contradições nas metamorfoses da circulação do capital, mas sim pela autocontradição no plano basilar da substância do trabalho. A crítica da abstracção real capitalista “trabalho” e o novo conceito fundamental de crise estão aqui numa conexão interna de condicionalidade recíproca. Esta teoria radical da crise não se entende como reinterpretação meramente filológica da análise das categorias, pelo contrário, coloca-se numa situação histórica modificada: com a terceira revolução industrial, este o argumento com referência às novas condições da valorização do valor postas pelo desenvolvimento das forças produtivas, a auto-contradição central passa o seu ponto culminante e a substância do trabalho diminui em termos absolutos pela primeira vez.(16) Assim o processo de valorização perde a sua condição de possibilidade e, após um período de incubação por meio da circulação no mercado mundial, chega definitivamente ao fim.

Já desde a sua primeira formulação (Kurz 1986) esta tese de um limite interno absoluto da valorização do capital tornado manifesto foi rejeitada de modo notório e suspeitosamente carregado de sentimento, assim se pretendendo fugir ao debate pormenorizado; primeiro em discussões em seminários e na “literatura cinzenta” da subcultura radical da esquerda residual, depois também nas gazetas da esquerda política e nas publicações do marxismo residual e do pós-marxismo académicos, à medida que a crítica da dissociação-valor a partir dos anos de 1990 saía das catacumbas e atingia uma certa visibilidade na esfera pública burguesa. Esta nova abordagem deveria ser abafada à partida como inferior, “manhosa” e quase impossível de ser pensada.(17)

Uma tal rejeição também exprime indirectamente a tentativa de canalizar preventivamente a legitima necessidade que desponta no mundo da esquerda nos últimos tempos de, após uma longa abstinência, utilizar novamente o Marx “autêntico” nos seus textos fundamentais. Antigamente isso chamava-se “formação em O Capital”. Michael Heinrich serve esta necessidade com a sua exposição global “científica” e com textos de “introdução”. Mas esta espécie de tomada de conhecimento assistida é bastante ambígua. Sugere-se assim que a exegese filológica de Marx na sua exposição abstracta poderia oferecer uma espécie de conhecimento fundamental neutro. Isto tem para os receptores a vantagem de que esta “aprendizagem do conhecimento” parece permanecer exterior à sua política de movimento e restantes preconceitos; a “formação heinrichiana” pode assim ser ligada a quase todos os “pontos de vistas políticos” sem que se tenha de recear consequências. Esta “ajuda na aprendizagem”, no entanto, também encobre os momentos ideológicos da interpretação que são igualmente absorvidos como que por si mesmos; e também já caem bem (justamente para a consciência socializada pós-modernamente) sem que tenham de voltar a ser reflectidos.(18)

Assim já não se nota que toda a orientação desta leitura “introdutória” é tudo menos neutra, justamente no aspecto teórico. Ela canaliza o entendimento da teoria de Marx, já a partir dos fundamentos da análise da forma do valor, para uma grelha que deve determinar toda a leitura posterior e em última instância reduz a dinâmica interna da relação de capital. Por isso é apenas consequente que nesse sentido já na “Introdução” seja preventivamente necessária a polémica massiva contra a teoria da crise que não se ajusta de modo nenhum ao entendimento fundamental aí apresentado. Heinrich não deixa ver, ou se o faz é apenas contrariada, difusa e indirectamente, que a sua interpretação específica desde o início opera com conceitos de luta que são camuflados de seriedade académica (diferente das interpretações “não sérias” “nem científicas”); e já nem sequer consegue revelar como esta interpretação está mediada com o desenvolvimento económico-social. Ora apenas o encaixe do entendimento na situação histórica, pelo menos rudimentarmente formulado, permitiria aos receptores, ao “apropriarem-se” da teoria de Marx, reflectirem criticamente sobre o seu próprio ponto de vista, a partir do qual eles desenvolveram a necessidade dessa aprendizagem, e examiná-lo à luz da teoria de Marx.


Notas de rodapé:

(8) Sintomático da relativa marginalização da teoria da crise já no neomarxismo dos anos de 1960 foi o facto de, no centésimo aniversário da 1ª edição de O Capital (1º volume), ter saído na editora Suhrkamp uma coleção de ensaios com o título Consequências de uma teoria. Ensaios sobre “O Capital” de Karl Marx (Hofmann, Mohl e outros, 1967) onde nenhum dos textos incluía explicitamente a temática da crise. Em primeiro plano estavam discussões filosóficas e sociológicas. (retornar ao texto)

(9) O conceito de “praxeologia” foi inicialmente cunhado pelo sociólogo francês Alfred Espinas no século XIX e designava uma teoria geral da acção humana. Pode ser considerado como sinónimo da teoria sociológica da acção. Há aqui uma tendência para entender a acção apenas na sua imediatidade, ou seja, abstraindo da determinação da sua forma na história e da sua constituição fetichista. Por isso a abordagem “praxeológica” também tem uma grande importância na economia política subjectivista (o que é particularmente claro em Ludwig von Mises). No pensamento marxista entrou com o rótulo de “filosofia da práxis” (Gramsci, Bloch). Também aqui as relações formais objectivadas e o seu carácter fetichista foram remetidos para segundo plano através de um conceito de práxis tão geral como difuso. O entendimento das relações sociais reduzido de modo cambiantemente “praxeológico” ou “à maneira da teoria da acção” tem uma longa carreira feita na esquerda (como já se viu e ainda se exporá abaixo). Serve sempre para fazer imputar à acção constituída de maneira capitalista uma tendência já em si transcendente. Aqui em primeiro lugar a caracterização “praxeológica” é entendida como amarrar da teoria a um sujeito da acção imediatamente imanente (classe, partido, sindicato, movimento, economia alternativa pequeno-burguesa etc.). Já neste sentido a crítica da dissociação-valor, enquanto crítica radical da constituição e da pré-formação históricas da acção, é também radicalmente anti-praxeológica, o que não significa que a acção “dentro” do invólucro capitalista seja abstractamente negada. Mas o imperativo da acção não pode restringir a crítica ao interior deste invólucro, como era o caso no marxismo do movimento operário. Nas correntes marxistas residuais ou pós-marxistas a redução praxeológica ainda é reforçada, surgindo as conjunturas sociais, políticas e “do espírito do tempo”, bem como o desenvolvimento capitalista superficial, como critério e campo de referência delimitador da reflexão. (retornar ao texto)

(10) Quase 40 anos após a saída da colectânea comemorativa do centésimo aniversário da 1ª edição de O Capital surgiu novamente uma colectânea de resumos sobre a leitura d’ O Capital (Hoff/Petrioli/Stützle/Wolf 2006) em que a teoria da crise é tão pouco mencionada como antes, embora o problema tenha sido tornado entretanto um tema essencial fora do marxismo residual académico pela crítica da dissociação-valor. Esta nova abordagem, no entanto, surge justamente sob o título “Ler ‘O Capital’ de novo” apenas marginal e pejorativamente no que diz respeito à avaliação metodológica, enquanto a teoria radical da crise é completamente silenciada. A obnubilação da teoria da crise perdeu aqui, por assim dizer, a inocência naïf de 1967. (retornar ao texto)

(11) Não falo aqui de análises parciais mais ou menos empíricas, nas quais um conceito de crise quase sempre sociologicamente reduzido prolonga a sua existência marginal, mas sim do plano categorial da teoria da crise e da acumulação de Marx. A esse respeito encontra-se cada vez menos; os últimos trabalhos significativos, em que a referência é feita acidentalmente e sem conexão sistemática, foram há décadas atrás. (retornar ao texto)

(12) Na extensa monografia publicada recentemente sobre a Nova Leitura de Marx na RFA desde 1965, de Ingo Elbe, não há consequentemente qualquer rasto de reflexão sobre a dinâmica capitalista (Elbe 2008). Embora Elbe na sua exposição faça referência à elaboração teórica da crítica da dissociação-valor (naturalmente sobretudo demarcando-se), também aqui a teoria radical de crise como seu componente essencial é sistematicamente ignorada, com o que, no entanto, são furtadas à sua dimensão essencial as asserções sobre o conceito de substância da teoria do valor e o debate sobre o tema. Em vez disso temos a baixa denúncia retórica; assim Elbe acha que é uma polémica engraçada designar como “marxismo metafórico de folhetim” (ibidem 252) a crítica da dissociação-valor (ignorando também naturalmente “com soberania” androcêntrica a teoria da relação de dissociação sexual) e falar do “estilo dos textos de Kurz que mal dissimulam o seu passado ML”. Não sei que passado tem a história da socialização de esquerda de Elbe, nem isso me parece de interesse; mas em todo o caso no seu “estilo” poderá reconhecer-se aquela complacência académica que começa logo às caneladas com hostilidade aos conteúdos quando se trata de defrontar um conteúdo que ameaça rebentar com o enquadramento dessa complacência filológica. (retornar ao texto)

(13) A pouca importância da reflexão sobre a teoria da crise em sentido estrito e em sentido lato para Heinrich resulta desde logo da curta extensão que ela assume nos seus escritos. Na obra principal de Heinrich Die Wissenschaft der Wert [A ciência do valor] (2003, 3ª edição) o tema concentra-se em 16 páginas e na sua Introdução à crítica da economia política (2004) em apenas 9 páginas. Para a versão de Heinrich da Nova Leitura de Marx a teoria da crise é bem claramente a criança enjeitada da análise marxiana do capital. Pelo contrário são bem extensas em Heinrich as explanações em que ele nega justamente os conceitos de Marx que constituem os pressupostos elementares da teoria da crise (conceito de substância material, queda tendencial da taxa de lucro). (retornar ao texto)

(14) O debate detalhado do conceito marxiano de substância com Heinrich, Postone e outros constitui parte do trabalho da crítica da dissociação-valor para a reformulação da teoria radical da crise; ele será referido de seguida, mas deve ser detalhadamente elaborado no âmbito do projecto de livro designado Trabalho Morto referido no início, porque não caberia nos limites da propedêutica aqui apresentada. Uma primeira abordagem da crítica à revisão do conceito marxiano de substância foi já apresentada (Kurz 2005, 214-234; sobre outros aspectos da discussão com Heinrich ver também Ortlieb 2009). No essencial a questão é que Heinrich rejeita a definição material marxiana de substância do trabalho como dispêndio formalmente determinado de energia humana (“nervo, músculo, cérebro”) e faz com que o conceito de “trabalho abstracto” fique absorvido na abstracção meramente funcional da troca na esfera da circulação; esta abstracção sem conteúdo funcionalmente reduzida, no entanto, não consegue esclarecer a quantificação na forma do dinheiro, que só é conseguida com truques. (retornar ao texto)

(15) A necessária crítica da ideologia, cujo significado é acentuado com razão contra uma ontologia positiva da classe explorada ou simplesmente dos “pobres” e contra um mero relativismo das ideias, já não tem aqui qualquer relação com a dinâmica objectivada do capital. É como se toda a relação consistisse em “ideologia”. Mas a crítica da ideologia torna-se oca se já não conseguir explicar a que se refere verdadeiramente a formação da ideologia. Por isso a crítica da ideologia não pode manter-se por si ou apresentar-se como uma espécie de “especialidade” própria, enquanto posição para além e em contradição com outras posições. Tal reducionismo na crítica da ideologia é ele próprio ideológico ao mais alto grau e tem de ser objecto da correspondente crítica. (retornar ao texto)

(16) O “anti-substancialismo” de Michael Heinrich e a revisão que lhe está associada da determinação basilar da análise marxiana da forma do valor não se limita a estar conforme com a ideologia pós-moderna; ele também é estimado na esquerda porque promete à partida excluir uma teoria da crise que se refira à diminuição absoluta da substância do trabalho real e objectivamente “válida”. (retornar ao texto)

(17) Mais uma vez Michael Heinrich assumiu aqui uma posição de destaque. Embora no caso das análises da crítica da dissociação-valor apresentadas nos anos de 1990, por exemplo sobre o colapso do socialismo real ou sobre a história das três revoluções industriais, se trate claramente de um plano de exposição diferente do da filologia de Marx, Heinrich julga poder afirmar, antes de qualquer argumentação com base no conteúdo, que aí se exprime “um trato superficial com as categorias de Marx”, as quais “frequentemente” surgiriam “apenas como floreados” (Heinrich 2004, 8). O Capital de Marx pelo contrário seria muito mais actual que tal “obra armada em pretensiosa” (ibidem). Naturalmente que esta acusação jamais provada de “superficialidade” (sempre com um olho virado para a teoria radical de crise) tem um carácter preventivo em termos de política teórica, que denuncia uma clara posição frontal. Heinrich aqui não só fala pro domo como fala também por todo o marxismo residual e pós-marxismo universitários que há muito descobriram a crítica da dissociação-valor como inimigo comum. Abstraindo da incompatibilidade dos conteúdos trata-se também de que a scientific comunity de esquerda, seja qual for o seu estado de segurança ou de precariedade, gostaria sobretudo de resolver os problemas teóricos entre si e afastar todos os combatentes que não tenham o iniludível pedigree académico. (retornar ao texto)

(18) Heinrich coloca-se assim na pose do professor não autoritário que não faz valer perante os seus clientes qualquer conhecimento prévio apenas posterior ou diferente das afirmações de Marx. Pois, no que respeita a O Capital, seria grande o perigo de que “tivesse sido lido através dos óculos do comentador e por isso se acreditasse reencontrar no texto justamente aquilo que o comentador tivesse afirmado” (Heinrich 2008a, 28). Contra isso ele recomenda “outra espécie de comentário” que consiste em “referir-se exclusivamente ao texto apresentado” (ibidem) de modo que “os argumentos expostos possam ser imediatamente examinados no respectivo texto pelo leitor, não tenham de ser objecto de fé e o comentador não se torne uma autoridade” (ibidem, destaque de Heinrich). Ora, primeiro, qualquer leitura já é uma interpretação, uma vez que não ocorre sem pressupostos. Segundo, o pré-conhecimento do comentador de modo nenhum é afastado através da introdução ao texto, principalmente se esta vem acompanhada com a autoridade estrutural dos volumes de introdução elaborados. Heinrich impinge assim ao entendimento a sua interpretação das “desfocagens da teoria de Marx” (ibidem, 29) já com base naquilo que os participantes no curso, descontraídos e completamente ignorantes, postos “imediatamente perante o texto” na posição a tomar e antes de mais argumentativamente desamparados, de modo que estes então mais que nunca reencontrem no texto justamente aquilo que o comentador tinha afirmado — no entanto acreditando ser um “pensamento próprio” a que foi dada uma pequena ajuda. Esta espécie de introdução pseudo-anti-autoritária é talvez a mais pérfida espécie de doutrinação, sugerindo uma discussão do desenvolvimento conceptual só aparentemente sem pressupostos, como de resto há muito é habitual nas concepções pós-modernas da pedagogia e da gestão. A “apropriação” supostamente bem cuidada dos conceitos fundamentais de Marx (justamente os relevantes para a teoria da crise) ocorre assim ironicamente na forma da crítica e dissolução especificamente heinrichianas dos seus fundamentos, o que se pode designar como versão pós-moderna do “funil de Nurenberg”(c). Particulamente susceptível a isto é naturalmente uma determinada espécie de inteligência reprodutiva de “animais aprendizes” académicos que supostamente apenas estudam os clássicos “justa e completamente no texto” e não querem ver que assim já se estão a mover num campo minado de interpretação e debate, do qual ninguém pode abstrair impunemente. (retornar ao texto)

(c) Referência jocosa da literatura alemã em que o conhecimento é enfiado na cabeça do estudante por um funil (Nota trad.) (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020