Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


7. Crise e emancipação social


A falsa acusação de que a posição da crítica da dissociação-valor fundamentaria a sua oposição ao capitalismo unicamente nesta falta de funcionalidade reduz toda a abordagem à teoria radical da crise considerada isoladamente, ao mesmo tempo que gostaria de apagar a crítica fundamental (justamente categorial) da moderna relação de fetiche e do carácter desaforado do trabalho abstracto que dela fazem parte. No entanto aqui também salta à vista um quiproquódigno de nota, nomeadamente porque o conceito de crise ou de limite interno é projectado sem mediação na intencionalidade da crítica e da suplantação práticas do modo de produção e de vida capitalista. Aqui se expressa mais uma vez a confusão sobre a moderna dialéctica sujeito-objecto que já marcara os antigos debates sobre a teoria da crise. Essa confusão apresenta-se como falsa identificação da crise com a crítica, ou seja, de limite interno objectivo, por um lado, e vontade de emancipação social, por outro. Tal como nos debates antigos, nem ambas podem coincidir imediatamente (crise em sentido forte apenas como resultado da crítica prática), nem podem constituir uma alternativa exterior da interpretação (crítica em sentido forte como oposição à objectividade da crise).

Aqui reside também a razão essencial da mitologização da “teoria do colapso” do marxismo do movimento operário feita por Michael Heinrich e outros. Rosa Luxemburgo e Henryk Grossmann aproximaram-se, ainda que com fundamentações redutoras, do conceito de limite interno objectivo da valorização do capital. Mas a gritaria geral contra esta fundamentação objectiva a partir do próprio processo de acumulação do capital levou a que ambos os protagonistas isolados fizessem regredir esta fundamentação objectiva para uma mera “ficção teórica”, como se viu, e não apenas isso. Ocorreu também uma reinterpretação subjectiva do conceito de “colapso”, no sentido do “sujeito de classe” da acção: enquanto a corrente social-democrata reprovava este conceito em favor de uma política de reformas sem rupturas, nas interpretações leninista e de extrema-esquerda o “colapso” surgia de repente como resultado da acção revolucionária do proletariado; ou seja, já não como determinação interna, mas plenamente separado da autocontradição interna da valorização. A falta de clareza teórica era no caso metaforicamente inflada, pois um “colapso”, de acordo com o significado da palavra, só pode ser um acontecimento inconsciente, enquanto a ultrapassagem consciente da relação de capital é uma situação completamente diferente. A reinterpretação segundo a qual o capitalismo “colapsa” através dum simples acto de vontade do proletariado dissolve a fundamentação na teoria da acumulação em retórica revolucionária e passa ao lado do problema fundamental. É disso que vive a mitologização histórica de Heinrich, tomando esta redefinição “na teoria da revolução” falsamente como prova do predomínio de uma “teoria do colapso” objectiva no marxismo do movimento operário, que há muito estaria assente. Na realidade foi com isso justamente que se reiteraram os sentimentos do marxismo do movimento operário contra qualquer fundamentação objectiva de um limite interno da valorização.

Deste ponto de vista, tal como nos debates clássicos, é repetidamente imputada à teoria radical da crise uma certa ideia de que o atingir de um limite interno objectivo deveria substituir a crítica ou simplesmente torná-la supérflua. “Fim” ou “limite” objectivo é imediatamente equiparado a “suplantação emancipatória”. Uma vez que esta última, evidentemente, não pode dar-se sem acção emancipatória consciente das pessoas, a valorização do valor só “deve” esbarrar no limite de uma contravontade e não no seu próprio limite interno: “O capitalismo está no fim? Uma sociedade após o capitalismo pressupõe sobretudo uma consciência que a ambiciona e por ela luta… Se a consciência das massas não pretende para si qualquer sociedade libertadora — e de momento não vê nada a seguir — após o colapso do sistema capitalista do valor só pode haver uma coisa: capitalismo ressuscitado das ruínas…” (Ebermann/Trampert 1995, 64).

Não pode haver maior paradoxo: porque o capitalismo não “deve” esbarrar no limite interno da sua auto-contradição, mas sim apenas num limite externo voluntário da consciência das massas, ele deve portanto sobreviver ao seu próprio colapso (assim involuntariamente admitido como possibilidade implícita), sem que para o efeito tenha havido outra condição do que ele ter continuado a ser “querido”. A possibilidade de existência do capitalismo parece portanto não passar de um problema de consciência e de vontade.

Os crentes na redução da crise à crítica, ao imputarem o inverso à teoria crítica da dissociação-valor, merecem elogios da parte da Gegenstandpunkt: “A sua rejeição das esperanças no colapso e a sua insistência em que nem as suas vítimas nem ninguém eliminam o capitalismo se deixarem de o considerar necessário, é simpática…” (Gegenstandpunkt 1996, 90). O pressuposto desta “simpatia”, naturalmente, é a inveterada pressuposição de que a dedução de um limite interno objectivo seja idêntica à esperança numa espécie de emancipação automática. Nesta imputação sem qualquer fundamento “…Kurz promete a libertação dos seres humanos… através da auto-destruição do sistema de fim em si ao qual eles se adaptaram tão incondicionalmente. A crise final do capitalismo é o papel do iluminista — ou melhor: é atribuída ao destruidor do conformismo…; isto está invertido, não porque a crise seja uma ninharia há muito suplantada, mas sim porque nada se supera por si” (Gegenstandpunkt 1996, 89, 91).

Uma vez que, apesar de todas as diferenças, a “simpatia” entre marxistas residuais e pós-marxistas é tão grande na rejeição comum da teoria radical da crise, os ideólogos “anti-alemães” repetem alguns anos mais tarde a mesma acusação, afirmando acerca desta teoria: “Perfeitamente ao estilo da tradição social-democrata e estalinista… procede-se como se este capitalismo se resolvesse por si mesmo” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 103); a teoria da dissociação-valor “… postularia… um automatismo de crise e libertação” (Grigat 2007, 214). Como de costume é entendida como posição contrária a uma formulação de Rosa Luxemburgo de que a valorização poderia “continuar… de facto até o Sol se apagar, sem que o capitalismo esbarrasse noutro limite que não fosse o facto de as pessoas não o quererem mais” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 71). Já foi esclarecido que justamente “a tradição social-democrata e estalinista” nunca quis saber de um limite interno objectivo; esta argumentação limita-se a reproduzir a falsa atribuição de Heinrich. Abstraindo disso ela nega a dinâmica objectiva e subsume o “limite” na imediatidade de relações de vontade. Onde está verdadeiramente o problema?

Aqui estamos novamente perante a redução da teoria da acção ou “praxeológica” que parte de um facto indubitável: a socialidade não consiste senão num agir voluntário das pessoas; não existe qualquer instância extra-humana acima das nuvens que dirigiria este agir. O que se entendia como determinação transcendente da acção nas constituições religiosas pré-modernas (e também no reverso irracionalista da razão iluminista capitalista), como Deus, Providência, destino etc., dissolve-se na acção temporal e terrena das próprias pessoas. Visto assim, parece não haver quaisquer momentos determinantes no desenvolvimento económico-social. O que, no entanto, escapa notoriamente a esta secularização praxeológica é a “transcendência imanente” terrena da própria relação de capital. A acção voluntária de modo nenhum é simplesmente contingente, mas a vontade condicionante da acção é ela própria transcendentalmente constituída e pré-formada, de tal modo que tanto ela como a própria acção apontam para um ponto cego que produz como resultado uma objectivação e determinação igualmente cegas.

Naturalmente que esta objectivação é ela própria por sua vez um resultado de acções. Para poder entender este contexto, no entanto, é preciso distinguir dois modos de agir diferentes; designadamente, por um lado, aquele agir histórico que constituiu o capitalismo e, por outro, o agir “dentro” desta formação social já constituída. O agir constituinte originário, naturalmente, não deve ser entendido como “vontade de capitalismo” consciente, ainda que ele tenha sido levado a cabo por processos de vontade nas condições de então. O processo de transição “para” o capitalismo teve determinados pressupostos (que devem ser investigados como tais) na dissolução material e ideológica das velhas formações agrárias.

Aqui se inclui a transformação protestante na própria constituição religiosa, que proveio das suas contradições internas amadurecidas e elevou o conceito de “trabalho”, até então determinado negativamente (como relação de dependência pessoal), a uma generalidade abstracta, descrita por Max Weber no seu estudo sobre a “ética protestante”. No aspecto material foi a revolução militar proto-moderna das armas de fogo que desencadeou uma “corrida ao armamento” de tipo novo que já não podia ser representada nas “formas naturais” agrárias, mas apenas através do poder abstracto do dinheiro até então marginal. Assim surgiu a desmedida “fome do dinheiro” dos príncipes, pormenorizadamente documentada pelos historiadores. Os impostos feudais em espécie foram transformados em obrigações monetárias (“monetarizados”) e deste modo pouco a pouco todas as relações sociais transformadas em relações monetárias. Com isto, no entanto, estavam associados “efeitos colaterais” imprevistos e amplos que, independentemente da vontade e do objectivo inicial dos actores poderosos, produziram “atrás das suas costas”, em formas de desenvolvimento cegas, aquele fim em si da máquina de socialização negativa do trabalho abstracto e da valorização, que finalmente também devorou os seus pais involuntários na “revolução burguesa” e desenvolveu o capitalismo moderno como formação autónoma (o conceito de capitalismo surgiu apenas no início do século XIX).

Já no processo original de constituição o resultado não pode ser explicado “praxeologicamente” de forma redutora, pelo contrário, a práxis (voluntária) inclui um momento transcendental na passagem das relações de fetiche pré-modernas (de constituição agrária-religiosa) para as relações de fetiche modernas, capitalistas. Nem antes nem depois o agir fica absorvido nos objectivos estabelecidos voluntária e conscientemente pelos actores, nem portanto pode ser determinado meramente em termos de teoria da acção. Por isso não pode ser deduzida qualquer ontologia da transcendência negativa produzida pelos próprios seres humanos e a ser produzida sempre de novo do seu contexto social, mas apenas a factualidade socialmente condicionada de que, nestas determinadas relações e processos de transformação de nós conhecidos, os seres humanos, na expressão de Marx, não “dominam” conscientemente a sua própria reprodução material e social, pelo contrário, esta confronta-os como poder estranho e aparentemente exterior, em formas inconscientes surgidas através das consequências não tomadas em consideração do seu agir.(5)

Uma vez surgida e cada vez mais “em processo sobre a sua própria base” (Marx), no entanto, a máquina de fim em si mesmo da valorização, justamente através do agir de todos os participantes “nesta” relação social nova e autonomizada, estabelece a partir de si as “condições de existência” e “formas de pensamento” por Marx designadas objectivas. Através do agir assim condicionado constituíram-se “leis” aparentemente “naturais” do contexto formal e funcional que por sua vez determinam o agir e levam a resultados objectivos desde que esta espécie de socialização negativa e cega predomina. Foi justamente neste sentido que Marx designou o capital (não confundir com os capitalistas) e a sua lógica de valorização como “sujeito automático”. A novidade nesta espécie de objectivação, comparativamente com todas as formações anteriores, está em que o contexto funcional já não se apresenta estático,mas sim “em processo” das contradições internas, e é executado através de um sistema de concorrência universal nunca antes existente, cuja “coerção muda” (Marx) faz avançar uma dinâmica cega que se sobrepõe aos objectivos (voluntários) imanentes dos actores e um desenvolvimento incontrolado das forças produtivas e/ou destrutivas deste modo de produção e de vida.

Importante aqui é que a resultante objectivada desta dinâmica não provém da mera soma exterior das acções propositadas empiricamente imanentes e não coordenadas (que imediatamente também podem ser diferentemente imanentes, sendo portanto contingentes) dos diferentes actores sociais; isso seria ainda um entendimento redutor do processo. Pelo contrário, a vontade dos suportes da acção, independentemente das suas formas de desenvolvimento empiricamente contingentes, já está presa no contexto funcional pressuposto; ou seja, ela é a priori determinada quanto à forma e esta forma da vontade fetichistamente constituída (nomeadamente viver miseravelmente a sua vida sob o ditame da valorização e ver aí a única forma possível de reprodução pessoal), já é ela própria que produz as “leis” objectivas, que por sua vez levam aos correspondentes resultados objectivos e assim a uma certa determinação do desenvolvimento cego nesta base.(6)

Perante este pano de fundo é preciso distinguir com exactidão entre crise e crítica. A crise, segundo o seu conceito, é completamente determinada pelo lado objectivado e determinado da relação social, o qual produz um agir dos seres humanos que é comandado por uma forma cega e apriorística da sua vontade cujo contexto global inconsciente se apresenta à superfície como o curso de um processo natural ou até de uma máquina. Isto aplica-se tanto às crises de imposição histórica do capital e às crises temporárias cíclicas ou estruturais, como também ao limite interno absoluto que historicamente começa a manifestar-se. Aqui é preciso ter em consideração que apenas a barreira da crise como tal é determinada pela dinâmica das acções imanantes formalmente determinadas, enquanto as condições concretas (por exemplo, a forma específica de desenvolvimento das forças produtivas), as respectivas formas de desenvolvimento e os modos de reacção ideológicos, incluindo os seus resultados, permanecem relativamente contingentes. Determinada é a dinâmica interna enquanto tal, a relação geral entre o desenvolvimento das forças produtivas e as condições modificadas de valorização, enquanto as respectivas tecnologias, as medidas tomadas pelos actores e o comportamento das pessoas na crise de modo nenhum surgem “automaticamente”. Mas isto não altera nada o carácter estritamente objectivo da crise enquanto tal.

As coisas passam-se de modo fundamentalmente diferente com a crítica. Se nem as reações destrutivas e até assassinas da consciência ideológica à crise que irrompe como uma desgraça natural são determinadas, naturalmente que muito menos o é a crítica radical emancipatória da relação de fetiche subjacente. Por isso se pode desde logo retirar a conclusão geral de que não existe nenhuma relação causal imediata entre crise e limite absoluto, por um lado, e crítica emancipatória, por outro. A crise é objectivamente determinada, a emancipação de modo nenhum o é. A relação de fetiche, com o seu absurdo carácter desaforado, pode ser fundamentalmente criticada mesmo sem crise nem colapso. Inversamente, porém, também a crise pode surgir, ou o limite interno histórico ser atingido, sem que se forme a crítica emancipatória e sem que se aspire à ultrapassagem prática das relações determinadas de modo fetichista; o que também acontece quando as pessoas, justamente sob a impressão do desabar da crise, se agarram com toda a força às condições de vida capitalistas e não querem outra coisa.

Hoje, neste aspecto, estamos confrontados com uma dialéctica mortalmente perigosa, justamente na medida em que, por um lado, o limite interno erguido de forma puramente objectiva pela auto-contradição lógica do processo de valorização se torna efectivamente absoluto e histórico, por outro lado, no entanto, os seres humanos internalizaram as “condições de vida” e “formas de pensamento” dominantes tão profundamente como nunca antes, pretendendo portanto, apesar das pavorosas distorções sociais, reproduzir-se até às últimas no contexto formal e funcional capitalista que é considerado “sem alternativa”. Daqui resulta uma enorme tensão para cuja solução, no entanto, o entendimento comum de crise e crítica na esquerda em geral já não adianta nada.

O “funcionamento” do capitalismo está tão internalizado, mesmo entre os teóricos de esquerda, que a auto-destruição interna do processo cego de valorização justamente pelo seu próprio contexto funcional surge simplesmente como impensável. Assim questiona retoricamente Michael Heinrich: “Tanto nas antigas teorias do colapso como nos seus novos ressurgimentos é o próprio ‘colapso’ que já é problemático: como se há-de imaginar isso para uma situação social? Miséria e desemprego por todo o lado? Mas qual será então a diferença em relação a uma crise ‘normal’? Ou será realmente o fim da produção de mercadorias?” (Heinrich 1999). Por consequência poder-se-ia imaginar a previsão (por ele não partilhada) quando muito de uma “situação” como de “decadência”, na qual “continuaria (a haver) produção de mercadorias e capitalismo, mas em estagnação e com terríveis efeitos sociais” (ibidem).

Este raciocínio reiteradamente aduzido pretende determinar os efeitos sociais negativos apenas na sua dimensão quantitativa, continuando fora da capacidade de imaginação uma ruptura qualitativa produzida pela dinâmica interna. Neste aspecto já não se consegue formular a transformação de quantidade em qualidade. Assim, por exemplo, o conceito de “desemprego em massa” só faz sentido se, por outro lado, continuar a haver “emprego” numa dimensão tal que haja capacidade de reprodução. Se faltar a possibilidade, disponibilizada pelas condições da valorização, de utilizar força de trabalho viva numa ordem de grandeza capaz de reprodução social, ocorre uma transformação de quantidade em qualidade: todo o contexto de reprodução determinado pela lógica da valorização começa a paralisar.

O que nas crises “normais” (sendo que o conceito de normalidade deve aqui ser posto em questão) surge apenas parcialmente, atinge o próprio núcleo do sistema e leva à completa desagregação do modo de produção e de vida capitalista, numa “situação” que faz estalar o verniz da civilização(7) e lança a humanidade numa idade das trevas. Se Marx, afinal, considera possível a queda comum na “barbárie” da humanidade socializada no capitalismo, caso não se realize a ultrapassagem emancipatória da relação de fetiche, ele pega assim num conceito de demarcação ambiguamente na lógica da dominação; mas, uma vez que este (de resto à semelhança do conceito de fetiche) se refere às relações “próprias” e à sua potência de crise, ele pode servir para designar o processo de decomposição destrutivo e violento da formação capitalista.(8)

A queda na barbárie constitui uma metáfora para processos não mais concebíveis teórico-analiticamente (também a própria teoria sob tais condições terá de decair), processos que vão muito para além de um capitalismo que “continuaria” a existir, apenas “em estagnação” e com “terríveis efeitos sociais”. Para se fazer uma ideia disso é preciso apenas prolongar as consequências já observáveis da irrupção da crise e determiná-las na sua própria lógica. Esta lógica consiste na generalidade no facto de que a reprodução social vai sendo progressivamente paralisada por falta de rentabilidade ou de “capacidade de financiamento”. Isto vai desde a paralisação do capital industrial e agrícola, ou das cadeias de distribuição híbridas a nível continental ou transcontinental para abastecimento de bens alimentares e de artigos de consumo diário, passando pelo abastecimento de água e energia, bem como do colapso do serviço de saúde até à dissolução das funções estatais. É próprio da ignorância da visão metropolitana sobre a situação mundial não querer ver que este “estado” já foi alcançado em grandes regiões mundiais; apenas parcialmente amortecido para minorias, através da ligação ainda mantida ao mercado mundial e às suas conjunturas de déficit. Se faltar esta última almofada, e de facto também mesmo para os centros, então também a quantidade de empobrecimento em massa se transformará neste sentido na qualidade de um morticínio global em massa, uma vez que não é possível o regresso a uma economia de subsistência para quase sete mil milhões de seres humanos; para já não falar dos excessos de violência a isso associados, que também já se podem ver a começar e não em último lugar provêm da transformação dos aparelhos de segurança e de violência, eles próprios já sem “capacidade de financiamento”, em bandos de saqueadores.

“Limite interno absoluto” significa, portanto, que a produção de mercadorias é completamente paralisada por falta de poder de compra e de capacidade de financiamento, não sendo no entanto conscientemente suplantada como forma de reprodução; em vez disso começa então a esgotar-se a própria reprodução da vida social juntamente com a sua forma negativa. A miséria da paralisação já não constitui qualquer momento de um funcionamento do capital, mas sim da sua própria miséria, porque justamente de acordo com a sua natureza ele nunca pode parar e tem de reproduzir a sociedade precisamente através da submissão à sua infatigável roda de Juggernaut. Por isso mesmo é que a autodestruição do capital não é idêntica à emancipação.

Heinrich & Cª no fundo também partem do princípio de que “na pior das hipóteses” seria possível limitar quantitativamente o alastrar da miséria e que as funções capitalistas prosseguiriam mesmo que travadas. Mas a própria administração repressiva da crise não pode deixar de ser afectada pelo manifesto estado de excepção por tempo indeterminado. Se não surgir qualquer novo potencial de valorização (e Heinrich deve interrogar-se sobre o que acontecerá nesse caso, mesmo que o considere excluído), então também os serviços institucionais da “riqueza abstracta” não poderão manter-se duradouramente para os últimos beneficiários. A consequência seria não apenas um imediato morticínio em massa, mas também, dentro de poucas gerações de sobreviventes, uma queda dos conhecimentos, das capacidades, das técnicas culturais etc., incluindo de resto as redes de informação e as estruturas de comunicação produzidas sob o ditame da valorização. Tudo isto será difícil de imaginar para a humanidade socializada no capitalismo, mas é justamente para aí que tende uma administração do estado de emergência que, ela própria, não quer imaginar isso e pretende executar a qualquer preço a formação social dominante “até que tudo caia em cacos”.

Só uma reflexão aprofundada sobre estas consequências torna claro em que medida começa a agudizar-se a tensão entre crise e crítica. A defesa obstinadamente ideológica de uma eterna capacidade funcional interna do capitalismo não se deve à radicalidade da crítica, mas, pelo contrário, (como se verá mais detalhadamente de seguida) à falta da crítica. Impõe-se a suspeita de que a objectividade do limite interno é minimizada ou negada porque a crítica redutora não inclui justamente a forma de sujeito constituído no capitalismo, mas pensa ela própria nessa forma e consequentemente também gostaria de continuar a agir dentro dela. Só por isso existe aquela identidade entre crise e crítica, pois postula-se que o capitalismo poderia unicamente esbarrar nos seus limites através de uma contravontade imanente cuja própria constituição capitalista permanece escondida. Para pôr fim aos desaforos do trabalho abstracto e da produção de riqueza abstracta a crítica tem de ir mais longe e virar-se contra as próprias “formas de pensamento” dominantes. Só assim o carácter de fim em si fetichista da relação de capital fica posto em questão. O limite interno objectivo coloca para o efeito uma condição que não pode ser ignorada impunemente.

Uma questão estereotípica que na circunstância é posta (mais uma vez denunciatoriamente) à crítica da dissociação-valor por aqueles que fundamentalmente não querem aquela continuação da crítica, ou que pretendem fazê-la recuar em algum ponto (por exemplo, relativamente à razão iluminista capitalista ou ao “ponto de vista de classe” integrado na forma dominante etc.), diz assim: será essa crítica por vós postulada sequer logicamente possível, se todos nós devemos ser criaturas do fetiche?


Notas de rodapé:

(5) Os rastos da constituição capitalista encontram-se a cada passo na “música de fundo” da filosofia clássica do idealismo alemão, em que o problema surge como dialéctica de “liberdade” e “necessidade” e é reflectido tão afirmativa como ontologicamente ou histórico-filosoficamente a partir da base. Assim se diz em Schelling: “Liberdade deve ser necessidade e necessidade, liberdade. Ora a necessidade em oposição à liberdade não é senão o inconsciente; o que é inconsciente em mim é inadvertido; o que está com a consciência está em mim através da minha vontade. Na liberdade deve haver novamente necessidade, ou seja, tanto como isto: através da própria liberdade e uma vez que eu acredito agir livremente, deve nascer inconscientemente (!), isto é, sem a minha cooperação, o que não é minha intenção (!); ou, dito por outras palavras: ao consciente, como actividade a determinar livremente, por nós antes deduzida, deve contrapor-se um inconsciente (!) através do qual a mais ilimitada expressão desconsidera algo de modo completamente inadvertido e, talvez mesmo contra a vontade do acto, nasce o que ele próprio nunca teria conseguido realizar através da sua vontade. Esta frase, por mais paradoxal que possa parecer, não é senão apenas a expressão transcendental da relação geral assumida e pressuposta da liberdade com uma necessidade secreta…” (Schelling 1985/1800, 662). Se a “necessidade inconsciente” em Schellling é ainda fundada numa filosofia da natureza e a-histórica, em Hegel ela é exposta como processo histórico “necessário” e a constituição da objectivação negativa como “astúcia da razão” da história. O marxismo nunca foi além desta contradição fetichistamente condicionada, como “herança” positiva da filosofia burguesa clássica. (retornar ao texto)

(6) É isso que constitui o carácter da relação de capital, como relação de fetiche socialmente abrangente. Este carácter foi escamoteado de diversas maneiras pelas interpretações redutoras da teoria da acção. Em Althusser a recusa do conceito de fetiche vai de par com uma redução “estrutural”, que reduz o problema a resultados meramente institucionais das “relações de forças” da sociologia das classes, os quais devem então, por sua vez, ser analisados nos respectivos dados com um entendimento positivista da ciência. O operaísmo/pós-operaísmo dá mais um passo no abandono do conceito de fetiche, negando qualquer objectivação e determinação em geral, mesmo reduzidas “a estruturas”, e reduz o problema completamente à imediatidade de simples relações de vontade. Numa variante deste pensamento, John Holloway retomou o conceito de fetiche, mas apenas incorporado nesta falsa imediatidade de relações de vontade meramente contingentes (Holloway 2004), de modo que a relação de fetiche surge não como constituição histórica solidificada e interiorizada, mas sim como ocorrência ela própria contingente, fugidia, sempre “contestada” e sendo imediatamente posta em questão em qualquer momento. A definição de Marx como “forma de existência objectiva” e “forma de pensamento objectiva” é simplesmente riscada. A pretensa ultrapassagem da relação é assim mal interpretada, como simples prática que já deve ser aplicada no simples ser-aí dos seres humanos nela subsumidos. (retornar ao texto)

(7) Na história decorrida até ao presente não se pode falar de uma civilização no sentido positivo e enfático do termo. Também o capitalismo não foi constituído como “progresso civilizatório”, como mesmo em Marx aparece ocasionalmente na maneira de dizer da metafísica da história de Hegel, mas sim a partir do estado de excepção e, como também Marx diz em contradição com a sua lenda do progresso, “…escorrendo por todos os poros sangue e sujeira” (Marx 1979/1890, MEW 23, 788). Tudo o que é considerado civilização e conquista do capitalismo (Estado de direito e Estado social, desenvolvimento das forças produtivas etc.) está à partida condicionado pelo sucesso do objectivo da valorização. Quando na crise este fim em si fetichista começa a paralisar, temporária ou mesmo definitivamente, revela-se a brutalidade estrutural desta relação, todas a supostas conquistas revelam o seu carácter de mero subproduto, sendo lançadas borda fora, e manifesta-se o núcleo ditatorial da democracia (ver Kurz 2003 a) (retornar ao texto)

(8) Já nas antigas “culturas” e impérios ocidentais, bem como no império chinês, eram sempre os “outros” que eram considerados “bárbaros”; este conceito foi reformulado eurocentricamente na modernidade no contexto colonial. Ao contrário de Marx, que define a “barbárie” tanto como ponto de partida quanto como possível ponto final do próprio capital, os ideólogos burgueses e também o marxismo tradicional utilizaram este conceito à velha maneira afirmativa, através da continuação da razão burguesa; até chegar aos actuais representantes da ideologia “anti-alemã”, pelos quais a “barbárie” volta a ser externalizada na nova crise mundial como um fenómeno que supostamente parte da periferia e contra o qual a “civilização” do centro capitalista deveria ser defendida como pretensa “condição prévia” para a emancipação “desta” “civilização” negativa. O pensamento emancipatório é assim preso num laço paradoxal, pois a “barbárie” é o cerne desta mesma “civilização”, a qual no seu limite histórico só pode ser contrariada através da sua abolição. Querer “salvar” primeiro o capitalismo para depois o poder ultrapassar em condições supostamente confortáveis, não só é ingénuo como esta opção deve ser ela própria considerada um momento da barbarização (ver Kurz 2003 b). (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020