Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


Introdução


O ano de 2009 ficará na história como tão marcante quanto o de 1929. Quase exactamente oito décadas após o começo da catástrofe económica do período entre guerras, gravada na memória colectiva, a maior ruptura até então no desenvolvimento capitalista, começou uma nova crise económica mundial. O seu desenvolvimento ulterior e as suas consequências ainda são empiricamente imprevisíveis, mas ela já é considerada como um corte histórico na ciência económica e na ciência social oficiais; pelo menos como grande ruptura estrutural, com uma necessidade ainda indefinida e controversa de revolucionamentos político-económicos que, mesmo na perspectiva de um pensamento puramente afirmativo, limitado às medidas de reparação, tem de ultrapassar o entendimento anterior. Embora o processo de crise também neste nível qualitativamente novo se desenvolva de forma desigual e a primeira queda a pique tenha sido travada de início para uma fase transitória mais de estagnação após as mega-intervenções estatais, de modo nenhum se pode falar em controle do complexo causal da reprodução do capital mundial. Por isso também a comparação feita a medo com os anos de 1930 de modo nenhum é descabida, pelo contrário, é intuitivamente adequada à situação real.

No tempo histórico 80 anos são um curto lapso de tempo. Para a experiência dos contemporâneos, no entanto, parece tratar-se de épocas muito afastadas. A crise económica mundial de 1929/33, a barbárie nacional-socialista, a II Guerra Mundial e Auschwitz, o “milagre económico” do pós-guerra, a nova pobreza após o fim do mesmo nos anos de 1970 e a globalização pós-moderna desde então — este processo histórico no seu conjunto constitui para os nascidos no seu decurso relações de passado e presente percebidas “imediatamente” de modo diferente. No entanto ainda vivem pessoas que já passaram pela anterior grande crise económica mundial em crianças e que agora já idosas são atingidas pelo regresso do terramoto económico mundial. Se o processo global que abrange as épocas não atinge mais que a vida de uma pessoa, então também as épocas já não são aquilo que eram.

Os dois pólos das crises económicas mundiais de 1929 e 2009 estão tão próximos no tempo histórico que em perspectiva surgirão possivelmente como uma única grande catástrofe capitalista, em que o “verão curto” da prosperidade do pós-guerra terá apenas o estatuto de uma nota de rodapé. Embora na percepção do momento presente isso não seja ainda visível hoje, o drama da grande crise entre guerras poderá surgir como fase preliminar de um processo de crise qualitativamente novo que, após o período de incubação da II Guerra Mundial e do “milagre económico, começou desde o fim do século XX num escalão muito mais elevado de socialização mundial negativa e, por isso, na base de um contexto de encadeamento global correspondentemente mais denso, também marca um corte mais profundo de outra dimensão, que já não permite qualquer renovação e prosseguimento sustentáveis do processo de valorização global.

Nesta situação a questão da teoria crítica do capitalismo de Marx e dos seus epígonos já não se coloca num plano meramente filológico de interpretação. Uma “entomologia” marxológica, que não esclarece nada porque não levanta qualquer questão social candente nem pretende ir a lado nenhum, já não pode ser levada a sério.(2) O tempo da acrobacia intelectual sem conteúdo sócio-histórico está tão ultrapassado como inversamente o tempo de um contar feijões positivista a-conceptual que se imagina poder jogar “factos” descontextualizados contra a determinação categorial. A alternativa não está no praticismo inimigo da teoria dos turistas das manifestações, nem nos pescadores politicistas de pessoas ou nos etno-populistas da “idiotice da vida quotidiana”, mas sim um confronto teórico com a “totalidade concreta” (sobre isso ver com mais detalhe Scholz 2009) ao nível do século XXI, através do qual os fenómenos sociais reais são analisados e que constitui o pressuposto para poder renovar a crítica radical prática das relações capitalistas fetichistas num contramovimento social.(3)

Exige-se, portanto, uma determinação e esclarecimento teóricos do novo capitalismo global de crise em que os anteriores padrões de interpretação têm de mostrar o que valem. Como é sabido, a elaboração teórica aqui representada da crítica da dissociação-valor já há mais de 20 anos desenvolveu e procurou fundamentar a tese de um limite interno absoluto da valorização que historicamente entra no campo de visão na terceira revolução industrial da microelectrónica. A discussão sobre isso desempenhou um certo papel nos anos de 1990 e certos momentos da nova elaboração teórica penetraram nas discussões da crítica social. Mas na maior parte dos casos a discussão foi conduzida contrariadamente e o mais possível de passagem justamente pelos porta-vozes das antigas correntes e escolas de esquerda; e sempre com o propósito de que esta nova formulação da teoria da crise de Marx, vivenciada como tão estranha quanto incompatível com o “ser de esquerda”, fosse se não liquidada (o que inicialmente foi tentado), pelo menos arredada do discurso “crítico do capitalismo”. Para a maioria da esquerda de orientação tradicional ou pós-moderna ela era considerada quase como assunto arrumado pouco antes do novo grande desabar da crise.

Esta factualidade carece ela própria de explicação. Ela aponta para o estatuto do marxismo na história do capitalismo. Decisivo aqui é, por um lado, o problema do horizonte de percepção e da sua amplitude. A questão é saber se e em que medida as interpretações da teoria de Marx poderão referir-se à dimensão do tempo histórico no desenvolvimento capitalista global, ou se e em que medida devem ser mantidas no processo interno da história de cada desenvolvimento e acontecimento com horizonte temporal reduzido. Por outro lado, este problema de percepção está mediado com o entendimento da relação entre crise e crítica, que se apresenta como dialéctica capitalista sujeito-objecto e (justamente também na sociologia burguesa) se apresenta como dualismo entre teoria da estrutura e teoria da acção. Já no fim dos anos de 1920 Bertold Brecht e Walter Benjamin planearam a edição de uma revista com título Crise e Crítica que então não chegou a materializar-se. O problema abordado por este título nunca largou a esquerda inspirada pela teoria de Marx.

Este contexto vai ser abordado de seguida de forma não exaustiva, mas sim exposto na discussão havida desde os anos de 1990 em torno da nova teoria radical da crise da crítica da dissociação-valor, bem como do padrão de percepção e interpretação de esquerda da nova crise económica mundial. Neste aspecto só agora se embateu nela, perante o desenvolvimento real da crise económica mundial “amadurecida” da terceira revolução industrial. Por isso é preciso radiografar em perspetiva, em termos de crítica da ideologia, o cânone de figuras de argumentação acumulado em duas décadas contra esta posição, e também caracterizar como na actual esquerda já apenas se podem encontrar as ruínas do antigo debate marxista sobre a teoria da crise e da acumulação.(4) Essa é a condição para apurar e desenvolver o instrumental da nova teoria da crise.

Aqui também tem uma certa importância o tempo histórico no estreito horizonte do discurso teórico de esquerda desde o fim de uma época em 1989, cujo prosseguimento no plano do mercado mundial justamente presenciamos. A geração hoje ocupada com a conclusão do curso superior ou apenas simplesmente a entrar na idade adulta em grande parte nem sequer conhece as discussões sobre a teoria radical da crise nos anos de 1990 e na passagem do século, as argumentações e polémicas com que ela era então elaborada. Tanto mais se afigura necessário trazer à memória a história desses debates recentes, porque deste modo se torna claro tanto o carácter do modo de pensar ajustado ao entendimento do capitalismo e do seu potencial de crise quanto a essência das oposições teóricas(5). O não resolvido exige o seu direito e ninguém pode proceder como se não tivesse havido uma corrida eliminatória discursiva involuntária e desagradável que foi mergulhada numa nova luz pelo desenvolvimento real.

Os adversários da teoria radical da crise talvez gostassem de não ser recordados agora de algumas coisas por si expostas em sentido contrário, embora procurem se afastar delas com rapidez perante a alteração da situação. De resto é preciso assinalar que parte da esquerda, na mesma medida em que fez valer de forma qualitativamente nova a firmeza da constituição capitalista na segunda fase do fim de uma época após 1989, pretende agora podar o discurso com “suavidade”. A falsa cortesia pós-moderna no trato, enquanto etiqueta “da política discursiva”, põe trancas na porta da polémica. Pretende-se que seja o mais possível ignorado o facto de a discussão sobre a teoria radical da crise ter sido desde o início cheia de invectivas ideológicas (ao centro estava a acusação de “objectivismo” ou “economismo”), desonestidades intelectuais e mesmo denúncias pessoais.

A propaganda de uma “multiplicidade de abordagens”(6) ela própria ainda é devida ao enfraquecimento, diluição ou simples ignorância pós-modernas da determinação real das categorias, que tem muito a ver com a virtualização agora chegada ao fim do processo de valorização na era dita neoliberal. O problema da objectividade negativa das relações de fetiche, que não só ele próprio é criado e reproduzido pela subjectividade nestas incluída, mas também promove uma dinâmica destrutiva insusceptível de ser controlada no contexto desta forma social, pôde permanecer recalcado com êxito junto da classe média académica, realmente já apinhada nas margens da precarização, no tempo da cavalaria da fortuna das bolhas financeiras. Isso repercutia-se também nos discursos de esquerda. O marxismo do movimento operário não foi ultrapassado, mas sim dissolvido em momentos díspares e reinterpretado de modo subjectivista ou mistificatório no sentido da ideologia de classe média(7).

Com isto concluímos por agora. A nova dureza das relações exige firmeza e determinação no debate sobre esta objectividade negativa. Já não é possível uma fuga para o notório descomprometimento pós-moderno de um laissez faire também teórico, porque as questões teóricas e analíticas se colocam como questões existenciais. Provavelmente apenas a próxima geração a entrar na consciência social, que definitivamente já não apanha nada da banha da prosperidade fordista nem consegue já criar qualquer ilusão de máquina de jogos, é que vai perceber isto em toda a sua amplitude.


Notas de rodapé:

(2) Com isto não se pretende dizer que a exploração filológica da massa de textos de Marx seja irrelevante. O aspecto filológico, no entanto, tem de ser colocado no quadro de uma análise concreta do desenvolvimento social. Esta ligação foi-se perdendo em grande parte, como de seguida se mostrará. O que hoje é considerado como teoria de esquerda está separado entre “pura” filologia de Marx, por um lado, e análises sócio-económicas superficiais sem remissão categorial, por outro. Deste modo não pode ser honrada a pretensão dialéctica da teoria de Marx. (retornar ao texto)

(3) Num nível de desenvolvimento mais elevado, estamos hoje confrontados com uma situação semelhante à que Karl Korsch formulou no início dos anos de 1920, na sua pesquisa sobre Marxismo e Filosofia (1923) relativamente ao marxismo do movimento operário de então. Korsch fez aí a aplicação da teoria histórico-crítica de Marx ao desenvolvimento do próprio marxismo. Ele colocou o marxismo da II Internacional com os seus conflitos (ortodoxia e revisionismo) no quadro da história social capitalista e mostrou que neste processo tinha amadurecido uma ruptura que teria de conduzir a uma nova determinação do carácter revolucionário desta teoria. Do ponto de vista de hoje, tratava-se de um corte que abrange a época das duas guerras mundiais, bem como a crise económica mundial de entre guerras, e no qual o próprio marxismo do movimento operário no seu conjunto (incluindo mesmo o pensamento de Korsch a ele ainda agarrado) teria de esbarrar nos seus limites históricos. Na história do pós-guerra, as épocas do “milagre económico” de curta duração e da posterior economia pós-moderna de endividamento e bolhas financeiras constituíram uma estabilização aparente do capitalismo que em muitos aspectos apresenta traços semelhantes aos da época anterior à I Guerra Mundial. Tal como então o marxismo do movimento operário se desenvolveu, estagnou no terreno do capitalismo e depois foi esmagado pelo desenvolvimento da crise, também os seus derivados e modelos em fim de linha desde os anos de 1960 puderam ser arrastados no desenvolvimento capitalista do pós-guerra aparentemente ininterrupto e irresistível e são hoje igualmente esmagados pelo novo desabar histórico da crise. É verdade que na chamada nova esquerda inicialmente houve de facto começos de um progresso que foi impulsionado sobretudo pela teoria crítica (Theodor W. Adorno, Alfred Schmidt). Estes começos no entanto foram engolidos pelo paradigma tradicional no mainstream da esquerda e só foram agarrados de novo de maneira diferente com o esforço de elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. O postulado de uma renovação e desenvolvimento da teoria de Marx exige agora, no entanto, diferentemente de para Korsch, já não uma reformulação da “revolução proletária” fundada na ontologia do trabalho e truncada em termos de classes sociais e de “fetiche sexual”, mas sim a “crítica categorial” das formas fetichistas basilares sobrejacentes às classes, incluindo a relação de dissociação sexual e a própria razão burguesa; uma crítica que já não pode ser reduzida ao paralelograma das “relações de forças” no invólucro desta forma. A questão levantada por Korsch há quase 90 anos coloca-se assim de uma maneira completamente diferente. Esta exigência é sentida como insuportável pelo mainstream da esquerda residual. (retornar ao texto)

(4) Esta caracterização refere-se sobretudo ao plano categorial da crítica marxiana da economia política, como se mostrará de seguida com mais detalhe. Abordagens da teoria da crise, como por exemplo a da chamada teoria da regulação, há muito que fizeram desaparecer este plano e pressupõem, tal e qual como a economia política, as formas de existência capitalistas (para a crítica respectiva ver Kurz 2005, 423-452 e também capítulo 16). (retornar ao texto)

(5) A formulação destas oposições já não tem qualquer fundo discursivo coerente nem pode portanto referir-se a um entendimento geral da teoria de Marx como ainda acontecia nos anos de 1970. A geração mais jovem de gente interessada na crítica social emancipatória, que pretenda hoje orientar-se no campo do debate, ou se depara com este como paisagem em ruínas dos marxismos, sem conhecimento da história de vida da sua topografia, e/ou foi socializada individualmente em discursos diversos de correntes e de grupos que há muito correm uns ao lado dos outros. Isto dificulta o acesso aos problemas teóricos centrais e não permite qualquer exposição imediata e naturalmente na sequência de uma leitura de Marx (que apenas lentamente está a recomeçar), exposição para a qual em grande parte faltam as condições. Justamente por isso é importante frisar que não se trata de uma luta identitária de demarcação ou de uma disputa por dá-cá-aquela-palha, mas sim de questões teóricas fundamentais no entendimento da situação histórica, sem cujo esclarecimento também a chamada práxis da crítica do capitalismo já não valerá grande coisa. (retornar ao texto)

(6) Aqui a diferenciação, sem dúvida sociológica, na senda da economia das bolhas financeiras e da globalização que já não consente qualquer determinação de um “sujeito de classe” homogéneo, é percebida apenas positivistamente no seu ser-assim, sem referir estas “diferenças” ao contexto categorial sobrejacente da constituição capitalista e à sua dinâmica interna (mesmo no que diz respeito aos padrões de digestão ideológica, por exemplo, ao longo de linhas de separação étnicas ou pós-religiosas). No pós-operaismo este contexto dialéctico foi substituído pela vaga determinação ontológica da “multitude”, na qual são subsumidas superficialmente situações sociais “multicolores” e posições concorrenciais e que é arvorada em meta-sujeito imaginário. (retornar ao texto)

(7) Na mesma medida em que a referência positivamente ontologizante ao “trabalho” e à “classe operária criadora de valor” se torna ela própria obsoleta através do desenvolvimento capitalista, o paradigma da “luta de classes” transforma-se sub-repticiamente num combate ideológico de rectaguarda pelos interesses da classe média (por exemplo, através da afirmação de um “trabalho imaterial de conhecimento”), em que as novas camadas inferiores marginalizadas surgem mais como massa de manobra. Embora o contexto de “trabalho” e produção de mais-valia real esteja rompido, a velha “luta pelo reconhecimento” do movimento operário no terreno da valorização do capital é deslocada de modo meramente formal para os “produtores de conhecimento” da nova classe média crescentemente precarizada, em vez de se encarar a crítica categorial do contexto sobrejacente da forma capitalista que abrange toda a sociedade. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020