Crise e Crítica
O limite interno do capital e as fases do definhamento do marxismo. Um fragmento.

Robert Kurz


Prefácio


Desde o Outono de 2008 que toda a gente fala de uma “crise secular” do capitalismo. Mesmo se o seu desenvolvimento ou ponto de partida não estão de modo nenhum bem estabelecidos e se as primeiras expressões de um verdadeiro pânico há muito foram novamente misturadas com mensagens de confiança baseadas no curtíssimo prazo, mesmo assim uma coisa parece clara: o abalo económico global aponta para um contexto causal profundo até aqui escondido. Representa um corte qualitativo, em paralelismo fatal com o colapso do socialismo de Estado 20 anos antes. Tal como então, do novo “fim de uma época” sairá um mundo profundamente modificado e tudo menos estável.

Nesta nova situação histórica, a teoria de Marx, já declarada morta repetidas vezes, ganha uma inesperada actualidade; e naturalmente em particular a teoria da crise. No entanto não se pode aqui recorrer a qualquer fundo seguro. A obra de Marx, numa multiplicidade de textos heterogéneos, atravessou uma história de interpretações ou “versões”, sempre mediada com a história do capitalismo e dos movimentos sociais surgidos nos diferentes níveis de desenvolvimento. Cada “fim de uma época” neste processo global exige um corte na interpretação teórica e no posterior desenvolvimento da teoria. Isto aplica-se também à teoria da crise. Por isso a nova crise económica mundial depara com um mosaico intrincado no campo de debate em torno da teoria de Marx que exige um processo de esclarecimento. O que não se consegue sem um conflito teórico, em que os diferentes padrões de interpretação se confrontem a fim de serem sintetizados e explicados na sua condicionalidade histórica.

O texto aqui apresentado está no contexto de uma elaboração teórica que desde os anos de 1980 procura reformular a crítica da economia política e tem assumido uma posição destacada justamente na teoria da crise. Esta abordagem teórica apresentou-se inicialmente com o rótulo de “crítica do valor”. Assim se faz referência às numerosas passagens de Marx que definem o capitalismo fundamentalmente como “o modo de produção baseado no valor”. Daí se conclui que a crítica do capitalismo só pode ser crítica radical do valor; ou seja, uma crítica e suplantação teóricas e em perspectiva práticas do contexto basilar formal e funcional deste modo de produção e de vida, tal como ele se apresenta nas categorias do trabalho abstracto, da forma do valor e da mercadoria, do dinheiro, do capital (valorização do valor como “sujeito automático”), do mercado e do Estado, contexto esse que foi definido por Marx como uma relação fetichista autonomizada face aos actores sociais.

Esta reinterpretação concebe-se como ruptura com o “marxismo do movimento operário” e seus derivados históricos; um entendimento da teoria de Marx que sempre se moveu “para” estas categorias. Tendo por pano de fundo uma reinterpretação do trabalho abstracto como condição humana positiva e trans-histórica, o contexto formal basilar surgia cada vez mais como pressuposto neutro e ontológico da socialidade em geral; até a pretensa suplantação do capitalismo era ainda pensada nas suas próprias categorias, como a mera estatização, comando e moderação destas, situação em que a diferença essencial surgia como a “da classe social” (“libertação do trabalho” em vez da suplantação desta abstracção real capitalista, “Estado dos trabalhadores” etc.). Esta referência truncada a Marx era historicamente condicionada pelo desenvolvimento inacabado e “dessincronizado” do próprio capitalismo. Podemos decifrá-la como “luta pelo reconhecimento” no terreno das categorias capitalistas no decurso da “modernização atrasada”; e isto tanto da parte do movimento operário ocidental, no sentido do seu reconhecimento como sujeito jurídico burguês e cidadão, quanto da parte das revoluções da modernização atrasada dos países da periferia capitalista, no sentido do seu reconhecimento como participantes em igualdade de direitos e independentes no mercado mundial.

Estes pontos essenciais da crítica do valor constituem um campo de debate com as posições a seguir designadas como “marxismo residual” e “pós-marxismo”, que em parte mantêm o velho entendimento e em parte o dissolvem simplesmente em diversas direcções sem o ultrapassarem realmente. Aqui se incluem a esquerda política em sentido estrito, bem como a “nova ortodoxia” académica que surgiu do esforço filológico pela “reconstrução” da teoria de Marx nos anos de 1970 e, não em último lugar, a ideologia do movimento dos tempos mais recentes, no essencial inimiga da teoria, aferida pela falsa imediatidade e fenomenologicamente limitada na sua percepção, em que a crítica da economia política leva uma existência já apenas de sombra. Um papel especial desempenha aqui o pós-operaismo de Antonio Negri, que reinterpretou de modo próprio o marxismo do movimento operário numa versão pós-moderna, na qual o trabalho abstracto e a forma do valor são positivamente “virtualizados” em vez de se criticar radicalmente este contexto.

Nos anos de 1990 a crítica do valor começou por se alargar para lá da tematização do contexto da forma da economia política e isto em três aspectos. Em primeiro lugar, a teoria da dissociação sexual de Roswitha Scholz (1992, 2000) forneceu uma modificação decisiva, em que a moderna relação de género já não surge como “contradição secundária derivada”, mas como determinação real fundamental da moderna constituição de fetiche. No capitalismo, os momentos da reprodução não absorvidos no sistema do trabalho abstracto e da valorização do valor, ou seja, insusceptíveis de representação ou só dificilmente representáveis na forma do dinheiro, são dissociados da socialidade oficial, historicamente delegados nas mulheres e definidos como inferiores. Nesse sentido a relação de dissociação sexual é “igualmente original” e sediada no mesmo plano de abstracção que as categorias funcionais vigentes, justamente porque constitui o seu reverso “obscuro”. Este contexto foi negligenciado e omitido tanto pelo marxismo do movimento operário e seus derivados como também pelo feminismo recente (apesar as suas pesquisas meritórias). Uma vez que a crítica do valor assumiu esta determinação essencial reprimida, ela alargou-se a crítica da dissociação-valor. O carácter pesado deste termo duplo aponta para o problema de exprimir sequer este contexto na linguagem conceptual da razão burguesa, a partir da qual tem de ser primeiramente elaborado um novo entendimento da crítica categorial.

Em segundo lugar, o assumir desta dimensão levou não por acaso a uma crítica radical e consequente historicização da moderna razão iluminista (incluindo o seu contrapolo imanente irracionalista) que apenas sintetiza conceptualmente a relação geral mundial desta constituição de fetiche no sentido de um universalismo androcêntrico. Aqui se inclui também a crítica do “sujeito” da forma de pensar e de agir socialmente abrangente, como “forma de execução” e simultaneamente como “forma de digestão” ideológica da socialização negativa através do capital, que justamente a partir de si estabelece a objectivação destrutiva do mundo e a auto-objectivação repressiva dos homens (Kurz 1993). De certa maneira aqui também entram no campo de visão os fundamentos das ciências naturais modernas (Ortlieb, 1998); não, porém, como banal “crítica das forças produtivas”, mas sim como reflexão sobre a conexão interna do moderno padrão de pensamento das ciências matemáticas da natureza com a lógica abstracta do “trabalho” e da valorização e com a relação de dissociação sexual.

Em terceiro lugar, perante o pano de fundo desta historicização da razão androcêntrica e da forma de sujeito, também a questão da crítica da ideologia pôde ser determinada na sua importância para a nova elaboração teórica. Segundo Marx, as categorias capitalistas são não só “formas objectivas de existência” mas também “formas objectivas de pensamento”. Nesta base ocorre uma elaboração ideológica, por natureza afirmativa e destrutiva; não porém como “reflexo” automático, mas sim como contribuição própria da consciência que processa de forma positivista e auto-afirmativa as suas condições de existência, contribuição essa que entra também na dinâmica objectivada do desenvolvimento capitalista e das suas formas concretas de desenvolvimento. A crítica da relação de fetiche não pode ser reduzida à crítica da ideologia (o que escamotearia o lado objectivado), mas esta tem de constituir um elemento integrante da crítica da relação social (vd. Scholz 2005, Gruppe EXIT 2007).

A teoria crítica da dissociação-valor ergue assim, contra qualquer reducionismo a um campo individual, a pretensão de uma paradigmática reformulação abrangente da crítica social radical que de modo nenhum está fechada nem pode ser entendida como susceptível de ser fechada. A teoria da crise desempenhou aqui desde o início um papel decisivo. Neste sentido a crítica da dissociação-valor entende-se não como reinterpretação filológica a-histórica, mas sim como expressão teórica do limite interno absoluto da relação de fetiche capitalista que no fim do século XX entrou no campo de visão; e isto tanto relativamente ao seu contexto formal político-económico, como também relativamente à relação de dissociação sexual, bem como à razão iluminista burguesa e seus derivados.

É justamente esta faceta da teoria da crise que assume um papel central no campo de debate com o marxismo residual e o pós-marxismo. Formou-se aqui uma oposição não só com a “ortodoxia recente” e com o pós-operaismo, mas também com a reformulação académica da teoria de Marx que se apresenta como Nova Leitura de Marx, a qual também pretende uma reorientação paradigmática, contudo posicionada de forma completamente diferente. O que acaba por se expressar de modo particularmente forte na teoria da crise que no conjunto dos seus fundamentos e pressupostos é interpretada de forma exactamente inversa. Isto aplica-se explicitamente em primeiro lugar à posição de Michael Heinrich (2003, 2004) que assumiu posição de destaque na esquerda.

A Nova Leitura de Marx também surge como referência justamente no que respeita à teoria da crise junto dos chamados “anti-alemães”, que em grande parte entendem a sua posição como “ortodoxia de Adorno”, sendo que eles próprios nunca apresentaram qualquer espécie de nova interpretação sobre o entendimento da crítica marxiana da economia política no sentido da análise categorial. O que para eles é considerado “crítica do valor anti-alemã” move-se apenas no domínio da digestão ideológica, sem recorrer ao lado objectivado da dinâmica capitalista; e de facto concluindo com a declaração de que o capitalismo, como afirmação da razão iluminista burguesa androcêntrica, é afinal um “mal menor” face à barbárie externalizada.

Todavia o campo de debate diferenciou-se também através da cisão da própria crítica do valor a partir de 2003/2004. Depois de conflitos violentos que acabaram com a completa ruptura, uma parte do anterior contexto da crítica do valor em torno da revista Krisis e da Streifzüge de Viena passou-se para uma posição teoricamente regressiva. A teoria da dissociação sexual foi em parte ignorada, em parte abertamente rejeitada e em parte objecto da tentativa de incorporação num entendimento da socialização androcentricamente universalista. Esta regressão está ligada com uma “orientação para a práxis” de vistas curtas, com uma aproximação oportunista ao empreendedorismo dos círculos de esquerda e com o rebaixamento da crítica do valor a uma fútil ideologia da alternativa reformadora da vida, que passa ao lado do problema da síntese social e tomou o lugar da continuação do desenvolvimento teórico. Aqui também a teoria da crise, incluindo a crítica do trabalho, se tornou pouco profunda e foi reduzida ao aspecto fenomenológico.(1)

Ora, o próprio desenvolvimento social, com a ruptura qualitativamente nova e secular da economia mundial, é que colocou inapelavelmente na ordem do dia da crítica radical do capitalismo as contradições na teoria da crise. Após a sua primeira formulação no fim dos anos de 1980, a teoria da crise da crítica da dissociação-valor surgiu sobretudo na forma de análises concretas do colapso do socialismo real (Kurz 1991) e da história das três revoluções industriais (Kurz 1999). Estava e continua a estar em atraso a continuação do desenvolvimento desta teoria da crise no plano da determinação das categorias marxianas da relação de capital na sua dinâmica histórica. Uma primeira abordagem já foi feita num texto de debate em torno do conceito de mais-valia relativa (Ortlieb 2009). A esta tarefa deve ser também imputado um projecto de livro já anunciado com o título Trabalho morto. A substância do capital e a teoria da crise de Karl Marx. A sua elaboração atrasou-se, não só sob a pressão das solicitações e dos debates actuais, mas também por razões de conteúdo. Tornou-se evidente que as questões conceptuais, de teoria da história e epistemológicas ligadas com a teoria da crise categorial (e justamente por isso também radical) não podem ser enquadradas num projecto único. Ou, se o forem, será a custa de uma exposição global inflada, de difícil acesso para um público já não habituado ao desdobramento de uma arquitectura teórica extensa.

Um capítulo do projecto de livro Trabalho Morto estava previsto para expor o estado da reflexão sobre a teoria da crise no marxismo residual e no pós-marxismo, bem como o debate em torno da nova teoria da crise da crítica da dissociação e do valor desde o início dos anos de 1990. Este capítulo, no entanto, tinha extravasado o quadro do projecto, pois torna-se necessário tratar uma multiplicidade de padrões de argumentação, que surgem em planos completamente diferentes e mostram como o problema da crise é filtrado na percepção da consciência “crítica” por arraigados preconceitos ideológicos e teóricos, por avaliações do movimento superficial capitalista ou das respectivas “conjunturas” e por um obsoleto entendimento de fundo da história e da práxis social. Esta grelha de percepção cerca o problema da crise como uma muralha, para atravessar a qual é preciso combater a fim de chegar ao cerne da análise categorial. O correspondente capítulo de Trabalho Morto é agora aqui apresentado em separado como publicação autónoma com o título Crise e Crítica. Pode ser entendido como propedêutica à teoria da crise e à crítica categorial, que em 34 curtos capítulos revê o estado actual da reflexão sobre o tema à luz da crise económica mundial real surgida.


Notas de rodapé:

(1) O termo Krisis representa já no título da revista teórica original o auto-entendimento no contexto de uma ruptura histórica. Esta marca foi usurpada pelos representantes da crítica do valor truncada através de um “golpe” baseado no formalismo associativo. O que seria irrelevante se toda a nova abordagem teórica no campo posterior da crítica social não continuasse a ser designada de modo meramente formal como “teoria da Krisis”(b), embora este nome fosse apenas história do projecto original, devendo a continuação do desenvolvimento da crítica da dissociação-valor desde 2004 ser encontrada sobretudo na nova revista teórica EXIT. Isto também tem algo a ver com o facto de a crítica do valor da Krisis residual, não original e praxeologicamente reduzida, ser frequentemente vista com gosto nas iniciativas congressistas da esquerda residual como parceiro de treino “pouco exigente”. As questões teóricas fundamentais e o confronto de conteúdos associado a elas, no entanto, não podem ser abolidos do mundo e acabarão por determinar o desenvolvimento do debate, o que também se repercutirá cada vez mais na percepção do público interessado na crítica social. (retornar ao texto)

(b) Krisis também se usa ainda em alemão para significar crise, de par com Krise (Nota trad.) (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2020