Não há Leviatã que vos salve
Teses para uma teoria crítica do Estado

Robert Kurz


Primeira parte


Nota prévia

A crítica da economia política de Marx já no título implica a estatalidade e a esfera política com ela relacionada, como componente essencial que simultaneamente remete às origens da relação de capital. Não obstante, o desenvolvimento sequencial das categorias económicas permanece incompleto na exposição marxiana, precisamente neste aspecto. O marxismo do movimento operário historicamente tornado obsoleto é também herança, expressão e consequência desse deficit. A nova elaboração teórica da crítica do valor e da dissociação, por sua vez, continua aquém da pretensão de actualizar a crítica do capitalismo, enquanto a transformação teórica se centrar nas categorias económicas do "trabalho abstracto” e da forma do valor, sem incluir sistematicamente a relação destas com a estatalidade. Isso é tanto mais válido quanto o Estado, com a crise capitalista qualitativamente nova, se desloca outra vez para o centro das contradições. A esquerda pós-modernizada supera-se a si mesma, até uma redutora crítica do valor pobre e de pé-descalço, com abordagens eclécticas duma reflexão sobre a teoria do Estado que, em grande parte, consistem em embalagens ideológicas enganadoras, também neste ponto não revendo suficientemente o marxismo tradicional. A extensão da crítica do valor e da dissociação à teoria do Estado já há muito deveria ter sido feita. Optou-se por dar ao texto que se segue a forma de teses para possibilitar o carácter de uma intervenção que ainda assim não renuncia à argumentação sistemática. As citações, circunscritas ao indispensável, são indicadas em estilo ensaístico, referindo apenas o autor e o título. Dado que a amplitude do tema, ainda que sob a forma de teses, teria excedido os limites de um número da revista, o texto é publicado em duas partes. A segunda parte, na EXIT! nº 8, há de conter em apêndice um índice da bibliografia utilizada e citada.

1. O Estado como “última instância” e as formas de desenvolvimento da crise capitalista mundial

Depois da crise é antes da crise. Esta figura retórica da gíria do futebol relaciona-se ambíguamente com o seu objecto. Ela refere-se aos sinais de uma sucessão cada vez mais compacta de rupturas económicas e aos pressentimentos de que a crise, ao contrário do seu entendimento habitual, veio para ficar. E sobretudo assinala também um singular deslocamento, ou mesmo inversão, tanto nas razões objectivas como nos modelos de interpretação. O Estado, supostamente “cancelado” e podado nas suas funções na era neoliberal, ressurgiu, por assim dizer da noite para o dia, como “última instância”, sendo invocado como demiurgo e deus ex machina. Todos os precipitados discursos tranquilizadores se referem ao esperado êxito das intervenções estatais de resgate.

Tanto antes como depois, a percepção geral apresenta-se como uma percepção ideológica. O neoliberalismo, radicalizado desde a década de 1980, sempre foi na verdade um programa estatalmente induzido; e fora a própria classe política que através de medidas administrativas tinha posto em marcha aquela abrangente desregulamentação e privatização neoliberal, os chamados radicalismo de mercado e imperialismo da economia, actualmente deplorados por todos. O Estado sempre participou do jogo, sendo que a desregulação nunca foi outra coisa senão uma determinada forma de regulação. Como sempre, o ilusório modelo ideológico de legitimação, que prometia uma nova era de prosperidade capitalista com o desencadeamento das “forças do mercado”, era em sua essência real completamente diferente. Na verdade tratava-se desde o início de uma reacção à insuficiente valorização real do capital global. A regulação por meio da desregulamentação constituiu uma manobra histórica objectivamente condicionada, pondo em funcionamento mecanismos que adiaram por mais de duas décadas a “barreira interna do capital” (Marx), por meio de uma economia de bolhas financeiras sem precedentes e das conjunturas de deficit por ela alimentadas.

Esta acumulação aparente de capital, cada vez mais insubstancial, foi acompanhada não só por uma rápida desvalorização da força de trabalho global, mas também (como o reverso do mesmo desenvolvimento) por uma série de crises financeiras que, no entanto, durante muito tempo ficaram limitadas a determinados sectores e regiões mundiais. Já na superação temporária dessas crises os Estados e as instâncias supra-estatais voltaram a desempenhar um papel decisivo. Pelo menos desde a passagem do século, elementos essenciais da doutrina neoliberal foram abandonados e substituídos por medidas estatistas. Aqui se incluíam, em especial, a política de juros baixos e a enxurrada de dinheiro dos bancos centrais estatais dela resultante. Mas essa política monetária deixou de ser suficiente quando, no outono de 2008, a explosão das bolhas financeiras pôs em curso uma reacção em cadeia global, levando a um desabamento dramático da conjuntura mundial. Em poucos meses, os Estados ergueram pacotes de resgate e programas de apoio à conjuntura numa dimensão nunca antes vista.

A reviravolta assim consumada teve outra vez uma interpretação ideológica. De súbito, a política de desregulamentação, até então festejada e apoiada por todos os partidos, foi declarada como um enorme erro; tal e qual como se nunca tivesse tido quaisquer razões objectivas. O Estado e a sua classe política lavaram daí as mãos e não foram eles que foram vistos como os agulheiros, mas sim as máscaras de carácter do sistema financeiro, os banqueiros de investimento e os apostadores da especulação. Tem-se fomentado desde então o “preconceito popular” (Marx) contra o capital monetário que rende juros, enquanto os actores públicos, dos agentes do Estado, passando pelos média, os gestores e o Papa, até à ATTAC, negam cuidadosamente o nexo interno entre o sistema financeiro descontrolado e o caráter deficitário da chamada economia real.

Em menos de um ano já o retorno ao estatismo se expôs ao ridículo. A meio do discurso tranquilizador, que pretendia apressadamente festejar o êxito das medidas estatais tidas como prudentes, irrompeu a nova e assustadora notícia da ameaça de falência estatal da Grécia, bem como de outros Estados da zona euro. A crise daí resultante da união monetária europeia, porém, é apenas o prenúncio de uma crise universal das finanças públicas; não só na periferia enfraquecida de capital (como, por exemplo, no leste europeu), mas também nas velhas e novas metrópoles do capitalismo. Isso vale tanto para os países centrais da Europa, a Alemanha e a França, como para a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, o Japão e a China. Tudo indica que a segunda onda da crise global terá como ponto de partida as finanças públicas, tal como a primeira se iniciou nos mercados financeiros. Com isso se torna evidente que o problema subjacente da falta de valorização real não foi superado, mas apenas deslocado das bolhas financeiras de volta ao crédito público.

O deslocamento nas formas de desenvolvimento já indica que o Estado não tem qualquer competência autónoma para superar as crises, permanecendo ele próprio, pelo contrário, subordinado às contradições internas do sistema capitalista. Ele não é a solução, mas parte integrante do problema. O Estado na crise  – esta expressão possui um duplo significado. A suposta superação estatal da crise converte-se na crise do próprio Estado. Tal situação carece de uma explicação. Não se trata aqui, em primeiro lugar, de uma relação externa entre economia e política, como se por exemplo a globalização da economia empresarial tivesse invalidado a função regulativa do Estado, devendo esta última ser agora revitalizada, possivelmente através de acordos internacionais ou  de uma “governance” transnacional. Esse é apenas um aspecto secundário. Se até agora as declarações de intenção ideológicas nesse sentido fracassaram miseravelmente, isso não se deve apenas à concorrência global, incluindo a concorrência dos Estados pelas “localizações do investimento”. Mesmo no caso de um improvável acordo para uma “governance” meta-estatal face ao sistema financeiro global, tal “governance” estaria à mercê da mesma contradição estrutural entre a inflação do crédito e a massa demasiado pequena da valorização real, contradição que conduziu aos limites das conjunturas de déficit.

2. A insuficiência da teoria do Estado e o debate sobre a teoria radical da crise

A questão decisiva é a questão do carácter do Estado no capitalismo. Aqui surge uma lacuna, quer na ciência social e na doutrina económica burguesas, quer na crítica radical do capitalismo. Isso se aplica tanto à teoria do Estado como à teoria da crise. Na crítica da economia política de Marx, o problema da crise não é tratado de forma continuada mas sim fragmentária. Ao mesmo tempo é frequente a queixa pelo facto de Marx não ter deixado uma teoria do Estado explícita e coerente. Essas falhas foram mais escassamente tapadas do que conceptualmente superadas pelo marxismo tradicional. Enquanto o debate sobre a teoria da crise após a Segunda Guerra Mundial desempenhou um papel cada vez menos importante, vendo-se praticamente emudecido na era neoliberal, a antiga teoria do Estado “marxista” continuou a desenvolver-se nas variantes pós-modernas, mas sem nunca alcançar o nível da crítica da economia política.

Isso deve-se sobretudo ao facto de as abordagens da teoria do Estado se terem mantido sem excepção limitadas ao ponto de vista sociológico (teoria de classes), falhando sistematicamente os planos categoriais do contexto da forma capitalista e particularmente a mediação com a teoria da crise. Inversamente, a nova elaboração teórica da crítica do valor, ou da crítica da dissociação e do valor, desenvolveu desde meados da década de 1980 uma teoria radical da crise, a partir da reformulação da crítica da economia política e contra tanto o marxismo tradicional como o culturalismo pós-moderno. A sua tese central consiste, como é sabido, na ideia de que, na terceira revolução industrial da microeletrónica, a dinâmica capitalista depara-se historicamente com aquele “limite interno” objectivo e absoluto fragmentariamente esboçado pela teoria marxiana, sobretudo nos Grundrisse e no volume III de O Capital. Essa tese não foi de modo nenhum refutada pelo desenvolvimento empírico.

A teoria radical da crise é rechaçada pelas esquerdas tradiconal e pós-moderna, não em último lugar com a fundamentação de que lhe faltaria uma teoria do Estado e que seria “economicista”. O Estado capitalista teria plena competência para dominar a crise e para voltar a pôr em funcionamento a valorização do valor com a sua intervenção. É precisamente esse postulado que terá de ser posto à prova nos próximos anos, não só teórica mas também empiricamente. Mas com isso simultaneamente também se mostra que as teorias do Estado da esquerda contêm, no contexto de sua redução sociológica, uma crença na estatalidade, em parte explícita e em parte velada, que permanece categorialmente não declarada, ou cuja fundamentação surge de preferência implícita. Trata-se aqui, por um lado, da relação de poder ou de dominação estatalmente institucionalizados e, por outro, da objectividade negativa do “sujeito automático” (Marx); em sentido estritamente económico, trata-se da relação entre Estado e dinheiro. A discussão a esse respeito irá revelar se a palavra de ordem corrente da esquerda radical “contra o capital e contra o Estado” permanece um mero chavão, ou se poderá ser de novo definida do ponto de vista do seu conteúdo actualizado.

3. Desenvolvimento capitalista e historicidade da teoria. A "herança" do iluminismo burguês afirmativo na esquerda da modernização

Um elemento essencial da teoria crítica do valor e da dissociação consiste na sua fundamentação e auto-localização históricas. À dinâmica capitalista corresponde uma história interna ascendente dessa “socialização negativa” e da sua reflexão teórica. Todas as teorias possuem um “núcleo temporal” (Adorno), o qual não as pode deixar permanecer inalteradas em si mesmas. As contradições teóricas, a reelaborar continuamente, correspondem às contradições internas reais do processo social. No entanto, a relatividade da elaboração teórica nesta base, contrariamente ao “relativismo absoluto” pós-moderno, é uma relatividade historicamente determinada que não renuncia à verdade objectiva.

Desse entendimento decorre uma explicação histórica para a actual paralisia da crítica radical: a esquerda até agora existente foi uma “esquerda da modernização”, cujos programas se limitavam à capacidade de desenvolvimento do capitalismo, sendo por isso categorialmente imanentes, ou seja, pressupunham ontologicamente o contexto basilar da forma do trabalho abstracto, da forma do valor, do sujeito automático, da estatalidade e da dissociação sexual, pretendendo apenas “interpretá-lo de maneira diferente”. Essa interpretação pôde entroncar numa contradição interna da teoria de Marx, a saber, no Marx como teórico da modernização, positivo, do desenvolvimento capitalista não esgotado, ao passo que o Marx crítico categorial foi em grande parte escondido. A teoria “progressista” da modernização não apenas tomou como ponto de partida o “ponto de vista” imanentemente sociológico do “trabalho abstracto”, como trabalho assalariado e sujeito funcional capitalista, mas também permaneceu refém das formas de pensamento e da relação com o mundo da razão capitalista do iluminismo, a qual foi invocada pelo marxismo do movimento operário como “herança burguesa” e ainda assombra, modificada, as suas versões pós-modernas. O entendimento do Estado faz parte dessa herança. Por isso trata-se aqui de se livrar desse “legado” e de submeter a uma nova crítica a constituição do Estado, bem como a sua reflexão burguesa afirmativa.

4. A teoria do contrato de direito natural e o poder absoluto do Estado em Hobbes

Já na mais precoce teoria burguesa do Estado de Thomas Hobbes (1651) se faz notar a contradição interna real. Por um lado, a constituição do Estado baseado na emergente doutrina do direito natural é correspondentemente determinada em termos de teoria do contrato. Os membros da sociedade devem ter delegado de comum acordo a sua liberdade de acção a uma instância agregadora de governo, única à qual é concedida a “soberania” do poder de decisão. Por outro lado, o fundamento para a razão dessa suposta relação contratual parece tudo menos idílico. Hobbes parte de um “estado de natureza” das relações sociais, no qual todos os seres humanos estão investidos dos mesmos direitos. Mas aí estão submetidos à servidão da vontade, devido à causalidade da lei natural. O cerne dessa servidão é o impulso de auto-conservação que dirige toda a acção e conduz à “guerra de todos contra todos”. Para pôr fim a esse estado insustentável e autodestrutivo é necessário renunciar ao próprio direito à liberdade de acção e delegá-lo na instância agregadora da soberania estatal.

Nesta lenda se ilustram obviamente as relações estruturais fundamentais do capitalismo nascente, de imediato afirmativamente ontologizadas. Aquilo que mais tarde Marx dirá ironicamente a respeito de Darwin também se aplica de certo modo a Hobbes: ele reencontra as relações sociais da concorrência universal projectivamente na natureza e na luta pela sobrevivência do mundo animal. A razão de direito natural do contrato firmado de livre vontade deve ter o seu fundamento na servidão da vontade perante a lei natural, na luta pela autopreservação. Daí a relação contratual ser desde logo uma relação de submissão a um poder central, a uma relação de poder. Não por acaso, Hobbes ilustrou o resultado do suposto contrato com o nome do monstro bíblico “Leviatã”. O Estado não está para além da concorrência universal, pelo contrário, ele cria o monstro da sua instância agregadora e internamente domesticadora, enquanto simultaneamente prossegue a concorrência nas relações externas com outros meios assassinos.

A função domesticadora do Leviatã no interior deve consistir na garantia pela força da propriedade, que representa uma categoria central da doutrina burguesa do direito natural. Esta propriedade é por sua vez remetida à contribuição pessoal de “trabalho”. O conceito originariamente negativo de “trabalho”, como relação de sofrimento do ser humano no mundo, já reinterpretado na história do cristianismo como abandono metafisicamente fundamentado ao sofrimento, experimentara no protestantismo a sua positivação neste mundo. Não porém como meio para a fruição, mas sim como fim em si mesmo da acumulação de “riqueza abstracta” (conforme a expressão posterior de Marx), representada na forma do dinheiro. A legitimação ideológica a partir de uma ideia originalmente religiosa remete para um contexto real em formação, no qual o trabalho abstracto, o valor e o dinheiro, como forma social de representação, se constituem como uma relação fetichista reacoplada a si mesma, que é “politicamente” sintetizada pelo Estado como instância consciente.

5. O patriarcado objectivado da modernidade e o carácter androcêntrico do Leviatã

Simultânea e co-originariamente, essa constituição é condicionada por uma relação de género patriarcal objectivada em novos moldes, na medida em que as categorias formais, incluindo a propriedade, são estruturalmente determinadas como “masculinas”, enquanto muitos dos momentos nela imperceptíveis da reprodução são definidos como “femininos” e dissociados do contexto social oficial. Não é por acaso que tal “relação de dissociação sexual” permaneceu sempre escondida no plano categorial, tanto na teoria burguesa como na teoria marxista,  surgindo na reflexão categorial apenas mais tarde, como desenvolvimento da nova crítica do valor pela teoria da dissociação de Roswitha Scholz (2000). O carácter da nova relação de género como relação de dissociação permaneceu na obscuridade, vindo à tona apenas como determinação pejorativa do feminino, já como traço essencial da reflexão que vai do protestantismo até à filosofia do iluminismo. A instância de síntese política, mais tarde trivialmente apostrofada como “pai Estado”, figurando em Hobbes sem rodeios como monstro patriarcal, deveria referir a sua legitimação soberana na base dos proprietários masculinos, por sua vez legitimados pelo “trabalho”. As mulheres, pelo menos em princípio, não podiam ser proprietárias (ainda que tal determinação fosse relativizada pelo direito da família e das sucessões) nem portanto cidadãs do Estado.

Essa relação estrutural de dissociação sexual da reprodução passou por modificações históricas, nas quais só teve efeito um impulso de “igualdade” das mulheres na medida em que a fome do capital por “trabalho abstracto” e acumulação financeira se viu obrigada a mobilizar e integrar também a força de trabalho feminina, num longo processo histórico. No entanto, essa integração puramente negativa permaneceu necessariamente limitada no fundamental, e isso de duas maneiras. Por um lado, o capitalismo não podia renunciar aos momentos da reprodução dissociados e escondidos, porque não absorvidos no “trabalho abstracto”, que continuaram a ser determinados e desvalorizados como femininos, na medida em que ficavam fora do movimento de acumulação. Por outro lado, justamente por isso, essa desvalorização estrutural do feminino prosseguiu no processo histórico de integração das mulheres na reprodução da “riqueza abstracta”, podendo-se comprovar empiricamente a todos os níveis; desde as remunerações eternamente piores, passando pela canalização para as menosprezadas “profissões femininas”, até à ininterrupta predominância masculina nos cargos de chefia e mesmo nos grandes patrimónios monetários da propriedade burguesa.

Apesar de todas as modificações, a relação de dissociação sexual foi no essencial até hoje preservada, pois está inscrita nas próprias categorias capitalistas. Isso também se aplica aos vasos capilares do sistema jurídico e à sua contínua interpretação prática, na qual, apesar de todos os necessários momentos de igualdade no sentido do “trabalho abstracto”, as atribuições sexuais continuam a existir e são periodicamente revitalizadas, na medida em que estão ligadas aos momentos dissociados da reprodução. Nesse sentido também a instância politicamente sintetizadora do Estado, como garantia das formas jurídicas, permanece uma instância patriarcal, mesmo que a primitiva forma protomoderna de tal relação tenha sido modelada por momentos limitados de igualdade abstracta. O Leviatã, tal como as formas do capital com que está relacionado, também não pode despojar-se do seu carácter patriarcal.

6. “Economia política” absolutista e liberdade de concorrência dos burgueses proprietários

A constituição da relação global como totalidade negativa da “riqueza abstracta” (incluindo os momentos dissociados) nunca surgiu enquanto tal na percepção teórica oficial desde a filosofia do iluminismo. Em vez disso, a reflexão instituiu-se desde o início como “tratamento da contradição” imanente da nova relação fetichista, cujo contexto categorial foi pressuposto cegamente como um dado da natureza. O que surgiu primeiro no horizonte foi a contradição entre a determinação do Leviatã pela teoria do contrato e o seu poder soberano em relação aos proprietários masculinos. Essa soberania, originalmente pensada em sentido absolutista como “ilimitada”, passou a parecer disfuncional com o progressivo desenvolvimento capitalista. A teoria jusnaturalista do contrato não pôde manter-se subordinada a uma pré-história fechada e mitologizada, mas teve de ser novamente mobilizada contra o Leviatã, à medida que a produção de “riqueza abstracta”, e com ela a função de seus agentes-proprietários, cresceu para além do absolutismo estatista.

O conceito de “economia política”, criado pelo teórico mercantilista Antoine des Montchretien (1615), referia-se originalmente ao lado estatal da constituição capitalista, no qual o objectivo da “riqueza abstracta” era ainda inteiramente compreendido como um problema da economia interna do Estado, tal como esta era entendida no âmbito da revolução militar protomoderna das armas de fogo, a saber, como produção proto-industrial de canhões, já não representável sob as antigas formas da economia natural, com a expansão da mineração e da siderurgia; daí resultando a “fome de dinheiro” dos príncipes, a monetarização dos impostos, a fundação de manufacturas estatais e de agro-latifúndios como máquinas de obtenção de dinheiro etc. A economia doméstica (Oikos) do príncipe, até então apenas a mais proeminente de todas as economias domésticas independentes, transforma-se na pretensão abrangente de transformar toda a reprodução em multiplicação de dinheiro, a níveis cada vez mais elevados; o que foi ideologicamente flanqueado pelo protestantismo ou pela sua adaptação católica no momento económico do desenvolvimento da contra-reforma. A estatalidade propriamente dita só tem início quando a antiga “oikonomia” pessoal e familiar se converte numa economia “política”, com o que, no entanto, o desencadeamento historicamente sem precedentes da forma do dinheiro toma o seu próprio rumo, que também se torna independente em relação aos objectivos iniciais (revolução militar, ética protestante). Nessa medida, Estado e capital crescem co-originariamente de uma só raiz, condicionando-se mutuamente, como os dois lados da mesma relação.

Na forma embrionária absolutista, essa polaridade estrutural porém não era livre, pelo contrário, a “valorização do valor” no início estava fixada unidimensionalmente ao estatismo e determinada como objectivo estatal, ao passo que, por outro lado, a determinação jusnaturalista da propriedade privada, a qual o Estado tinha apenas de garantir, parecia seguir imediatamente um outro objectivo, e justamente um objectivo privado. Junto com a produção da “riqueza abstracta” tinha surgido, como mecanismo necessário de mediação e realização, um mercado mais abrangente com tendência para a universalização (mercado mundial), o el dorado de uma concorrência igualmente universal dos proprietários masculinos. A relação entre os proprietários e o Leviatã, outrora compreendida como fechada em si mesma, solidificada na ilimitada soberania do absolutismo e simultaneamente ideologizada em termos da teoria do contrato, acabou por se desfazer novamente no sentido dessa “liberdade de mercado”.

Em primeiro lugar, os proprietários, na qualidade de cidadãos, não deviam ser abandonados a qualquer arbítrio do Leviatã, mas deviam ter também direitos face a essa instância agregadora, e os seus representantes deviam poder mesmo apresentar queixas perante tribunais independentes. Em segundo lugar, como pagadores de impostos, os cidadãos também deviam adquirir uma função de controle sobre a utilização dos seus tributos, sob a forma política de uma representação própria (parlamento). Nesse sentido, a relação contratual determinada em termos jusnaturalistas passa a ser compreendida, na filosofia mesma do iluminismo, como uma relação não fechada, mas ainda actuante. O Leviatã deveria assumir um papel de mero árbitro perante os cidadãos e o seu poder devia ser repartido por diversas instâncias independentes entre si, tal como foi formulado primeiro por John Locke (1689) e, na sequência deste, por Charles Secondat de Montesquieu (1748).

Essas modificações conflituosas correspondiam à auto-consciência crescente dos portadores funcionais imediatos da “riqueza abstracta” como proprietários burgueses, os quais, para a produção desencadeada dessa riqueza, precisavam não apenas de uma margem de manobra jurídica face ao Leviatã, mas sobretudo de uma “liberdade” de concorrência de mercado que, como espaço funcional essencial da valorização, não podia permanecer “absolutamente” circunscrita à definição de objectivos estatais. O Estado devia garantir as novas relações da máquina de valorização emergente, mas não regulá-las arbitrariamente de modo disfuncional e cada vez mais anacrónico. Nesse contexto, a contradição interna emergente entre a concorrência de mercado, como forma de mediação da produção de “riqueza abstracta”, por um lado, e a instância estatal agregadora dessa riqueza, por outro, foi inicialmente interpretada como uma contradição meramente subjectiva, como tratamento da contradição entre as necessidades de concorrência dos proprietários “livres” e a pretensão de soberania do “seu” Leviatã ou da respectiva personagem.

7. Do liberalismo teológico à forma transcendental da “vontade geral” em Rousseau

Apesar disso, a objectividade negativa da lógica do valor, tornada independente como relação de fetiche, também se fez valer nas reflexões afirmativas do pensamento iluminista, ainda que apenas indirecta e inconscientemente no que concerne ao seu próprio carácter. Já em John Locke, no segundo Treatise of Government de 1689, vem à tona a curiosa determinação segundo a qual todo o homem teria uma “propriedade sobre a sua própria pessoa”. Assim se equipara implicitamente num plano abstracto a propriedade material ou monetária dos proprietários burgueses e a propriedade dos trabalhadores assalariados sobre a sua “mercadoria força de trabalho”. Mas em Locke os indivíduos, enquanto “proprietários de si”, constituem pessoas autónomas de direito apenas em relação uns aos outros. Não, porém, face ao único proprietário verdadeiramente soberano, Deus, a cuja “propriedade” eles todos continuam a pertencer. A formulação em conceitos religiosos deixa transparecer o “sujeito automático” da máquina de valorização em desenvolvimento, o qual começa a ocupar o lugar de Deus. Na medida em que Locke funciona como precursor do pensamento liberal, poder-se-ia falar de um “liberalismo teológico”, o qual esboça a objectividade negativa e transcendental do capital.

O primeiro a dar expressão a esse problema explicitamente e com mais precisão foi Jean Jacques Rousseau, em seu famoso Contrato Social (1762), o qual, como vértice e conclusão das teorias contratuais jusnaturalistas, põe em questão de modo peculiar a aparente obviedade da “livre” vontade subjectivamente determinada dos outorgantes do contrato. O constructo de Rousseau da “volonté générale”, da “vontade geral”, não é de modo nenhum derivado de uma decisão autónoma dos participantes. Esta “vontade geral”, mais tarde banalizada e vulgarizada sob a forma de um conceito abstracto de “bem comum”, que ainda hoje assombra os manuais de estudos sociais, é determinada, pelo contrário, de modo claramente transcendental. Tem de tratar-se de um princípio desde logo pressuposto por todos os membros da sociedade, incluindo os representantes do Leviatã.

Por isso Rousseau também distingue estritamente a “volonté générale” [vontade geral] da “volonté de tous” [vontade de todos], da mera vontade da maioria entendida como soma ou resultado dos interesses particulares. A “soberania popular” de Rousseau só na aparência contitui a superação da delegação por Hobbes de um poder de decisão ilimitado à instância estatal, para além das vontades individuais, constituindo sim a sua fundamentação agora transcendental, portanto muito mais profunda. A liberdade de decisão dos diversos portadores individuais e empíricos de vontade já não é delegada num único portador individual e empírico de vontade, mas sim num princípio racional abstracto, que se encontra para além de todas as expressões empíricas da vida. Por isso tal princípio não deve proceder da soma das relações de vontade empíricas, ou de uma decisão da maioria, mas tem de ser “instituído” independentemente de tais relações.

Rousseau não consegue derivar o problema da objectividade negativa da nova forma de sociedade emergente, mas vira-se para  um deus ex machina como pai fundador, um taumaturgo exterior ou “legislador divino”. É a mitologização da abstracção do valor, como forma de reprodução e “princípio racional” capitalista, pensado a partir da perspectiva estatal. O valor objectivado é o “legislador divino”, o qual constitui uma “forma universal de vontade” que, por sua vez, é sintetizada formalmente pelo Estado. O “povo” só é “soberano” na medida em que se submeta a priori a essa “vontade geral” e tome as suas decisões “livres” exclusivamente nessa forma de vontade pressuposta e de acordo com os seus critérios, ou seja, como reacção à situação por ela imposta. Diferentemente da mera delegação exterior da liberdade de decisão a uma vontade individual destacada, a “liberdade” e a “soberania” estão ligadas a esta forma de vontade pressuposta, que apenas por isso deixa de ser arbitrária e passa a envolver activamente todos os cidadãos. Pela mesma razão está excluída qualquer determinação segundo os conteúdos das necessidades humanas, sendo estes pelo contrário submetidos ao princípio da vontade abstracta. Rousseau diz sem rodeios que todos os cidadãos têm de ser coagidos a essa “liberdade” da vontade abstracta da razão geral. Liberdade é necessidade – eis a primeiríssima versão do princípio orwelliano.

8. O "imperativo categórico" kantiano e a automenorização esclarecida

Uma reflexão semelhante encontra-se na ética de Immanuel Kant, que aponta para o mesmo problema objectivo. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) de Kant inclui o célebre “imperativo categórico” que deve representar o fundamento de todo o direito e de toda a estatalidade. Diz o imperativo categórico de Kant: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal". Uma tal determinação é estritamente “sem conteúdo”, ou seja, o conteúdo é a forma abstracta de uma “lei em geral”. Nesta famosa “forma vazia” o que se exprime não é senão a “vontade geral” de Rousseau. A “máxima” nesta “forma vazia” universal naturalmente que não pode ser uma máxima subjectiva, sendo, pelo contrário, como em Rousseau, dada a priori como princípio da razão transcendental e, portanto, inegociável e objectivo, princípio que, segundo Kant, tem de ser válido não apenas para a humanidade, mas para todos os seres inteligíveis de todos os mundos imagináveis. O conteúdo verdadeiro só pode ser a abstracção social transcendental do valor do capitalismo em desenvolvimento, que exclui como critério qualquer conteúdo das necessidades e, pelo contrário, submete estas à produção de “riqueza abstracta”. Esta submissão é executada pela forma geral e abstracta do direito, em cuja fundamentação se ergue a estatalidade, como garante da “obrigação”.

Só aparentemente e num entendimento superficial é que a submissão de todos os conteúdos das necessidades e a degradação dos indivíduos burgueses a executores do princípio transcendental da forma são relativizados pela ulterior determinação do “imperativo categórico” de Kant: "Age de modo que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na de qualquer outro, sempre como objectivo, nunca como simples meio". De facto, a arbitrariedade na luta capitalista pela sobrevivência com isso apenas é excluída na medida em que o carácter dos indivíduos como puro “meio” deva ser mantido reciprocamente livre de qualquer determinação subjectiva e subordinado a um “fim superior”, de cuja forma as “pessoas” empíricas se limitam a ser dependentes. Este “fim” tem de ser o da “vontade geral” objectiva, livre, desacoplada de quaisquer conteúdos das necessidades, ou seja, a autofinalidade tácita da “riqueza abstracta”, que em Kant recebe o título mistificatório de “humanidade” (em oposição às pessoas individuais).

Uma vez que os indivíduos burgueses apenas são “livres” segundo o critério da submissão a priori ao princípio racional capitalista da valorização, eles têm de se considerar a si mesmos em primeiro lugar como “meio” do fim em si superior e, correspondentemente, na relação recíproca, não “simplesmente” como “meio” recíproco, mas sim também como “meio” apenas secundário, no quadro da finalidade pré-estabelecida na forma comum da vontade geral. Com isso apenas se desenvolve a fórmula de John Locke de que os seres humanos têm de ser em primeiro lugar “propriedade de Deus”, antes que possam passar a proprietários de si mesmos independentes uns dos outros. Apenas podem ser uma finalidade como pessoas tornando-se sujeitos da acção do fim em si social do automovimento do “sujeito automático” e só nesse sentido são também sujeitos jurídicos e cidadãos do Estado.

Deste modo é possível desde logo decifrar a muito esforçada resposta de Kant à questão de saber o que é o “esclarecimento” (1784), designadamente a “saída da menoridade de que o próprio é responsável” a fim de “se servir do seu próprio entendimento sem a tutela de outro”. Kant não deixa qualquer dúvida de que esta fórmula, que desde então tem servido de topos ideológico prático do moderno conceito de liberdade, realmente não visa de modo nenhum uma autonomia “anti-autoritária” dos indivíduos e do seu pensamento social. Bem pelo contrário, só é “sujeito” quem no seu auto-entendimento se torna objecto da razão da valorização e da sua forma jurídica universal. A questão, portanto, é que o fim exterior definido estatalmente é suprido por uma “internalização” do princípio racional capitalista e desde logo tornado supérfluo num certo grau. “Emancipado” neste sentido é quem já por si pensa e age nas categorias do fim em si a priori, sem para isso precisar sequer da “tutela” de uma autoridade externa. Isto não é a abolição do princípio da autoridade, mas sim a sua objectivação transcendental.

Está aqui implícito o conceito de sujeito, apenas mais tarde tornado enfático, como submissão dos indivíduos sociais àquela lógica da reprodução que Marx designou “sujeito automático”. Assim se torna também claro que a rejeição do pensamento e da acção “meramente subjectivos” aponta precisamente para a objectividade real do “sujeito”, como portador da acção da nova relação fetichista. A razão iluminista não consegue expressar de outro modo senão deste modo paradoxal a contradição entre “liberdade e necessidade” nos seus fundamentos porque já pressupõe estes cegamente. Entende-se por si que o “sujeito” no pensamento iluminista (também precisamente em Rousseau e em Kant) é determinado de ponta a ponta como masculino, sendo ele o único que tem a honra de se objectivar a si mesmo de acordo com a razão categorialmente androcêntrica, enquanto a “feminilidade”, como momento dissociado, é submetida por assim dizer duplamente, ou à segunda potência.

A condenação do “meramente subjectivo” marca o carácter coercivo deste mesmo “sujeito”, precisamente porque os indivíduos não são absorvidos nesta forma e é sempre de recear que os conteúdos das necessidades, submetidos e declarados como nada em si, se façam valer contra a forma de sujeito e apesar dela. Por isso autodeterminação tem de ser igual a autosubmissão – também aqui Orwell manda cumprimentos. O facto de a esquerda sempre ter pensado num conceito positivo de “sujeito” e ter preetendido “libertar” os conteúdos das necessidades precisamente nesta forma do princípio da racionalidade capitalista pertence àquela “herança” do iluminismo que tem de ser repudiada. 

9. Adam Smith e a "mão invisível" da máquina da concorrência como a outra face da "vontade geral"

Se em Kant e em Rousseau a "vontade geral", ou princípio racional a priori objectivamente inegociável da lógica da valorização, é pensada a partir do lado da estatalidade ou da forma jurídica geral, em Adam Smith, representante do iluminismo escocês e fundador da "economia política", o mesmo problema surge no pólo oposto da "liberdade de mercado" dos sujeitos da concorrência. A repressiva razão capitalista, até então mascarada na teoria do contrato e assim emaranhada na aporia de uma decisão "livre", por um lado, e da prévia “imposição” transcendental dum princípio objectivo, por outro, é agora exposta nas próprias categorias económicas subjacentes.

De facto, a sua predeterminação objectiva já está sempre assente, porque o seu devir histórico está escondido e inconsciente; por exemplo, na realidade e na terminologia quotidiana de "trabalho", "mercadoria", "dinheiro" etc. aparentemente inquestionáveis. Mas esta objectividade constitui, precisamente por isso, um mero pano de fundo, como tal não reflectido; e muito menos na sua negatividade. As categorias basilares são assim dados a-históricos inconscientemente pressupostos “nos” quais, precisamente, se deve encontrar o agir económico dos indivíduos orientado por motivações pessoais. Só neste sentido é que o lado económico do pensamento iluminista pré-Smith se fez valer como relativa liberdade de acção dos burgueses proprietários na concorrência de mercado face ao Leviatã. Primeiro no seu trabalho sobre filosofia moral Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e sobretudo depois na sua célebre obra principal A Riqueza das Nações (1776) Smith deu ao problema uma volta completamente diferente. Ele tomou como tema a própria objectividade das categorias económicas até aí aceite irreflectidamente como dado prévio e procurou apresentar um novo conceito da sua lógica própria, para lá das vontades e das acções individuais empíricas.

A intenção de Smith é compreensivelmente afirmativa e apologética no fundamental. Ele pretende, como toda a filosofia do iluminismo, justificar as recém-nascidas “formas de vida objectivas” (como disse depois Marx com intenção crítica) e para isso precisa de encontrar uma base. Assim, ele não pode continuar, como até então, a fazer valer face ao Leviatã a liberdade de acção apenas moderadamente regulamentada dos burgueses proprietários, no sentido do seu desejo de enriquecimento “meramente subjectivo”. Daí que ele já não pensa tematizar simplesmente o agir económico dos burgueses proprietários individuais à medida da sua “liberdade” maior ou menor, mas sim trazer à luz do dia o nexo interno de todas estas acções, das suas combinações e dos seus resultados globais. A liberdade de mercado dos sujeitos da concorrência burgueses proprietários, pensa ele poder provar, não consistiria em qualquer questão de vontade subjectiva, ou porventura de arbitrariedade, mas constituiria um maravilhoso mecanismo automático das relações sociais, por ele aclamado como “máquina” grandiosa, ou como a célebre “mão invisível do mercado”, que criaria um próspero efeito de bem-estar geral. Pois, precisamente através da livre concorrência dos burgueses proprietários seguindo os seus impulsos egoístas, não só se promoveria a repartição geral do trabalho, mas também se evitaria qualquer desperdício de recursos e se construiria uma equiparação geral das grandezas de fluxo desproporcionadas na reprodução material e do valor.

Smith apresenta, portanto, a máquina da valorização como mecanismo social cego e sem sujeito, sendo de notar que o faz não apenas de modo em geral apologético, mas também especificamente limitado ao plano da circulação (uma marca de toda a filosofia do iluminismo), enquanto o conceito radicalmente crítico de “sujeito automático” de Marx, pelo contrário, procura abranger o conjunto da relação de reprodução (ainda assim, obnubilando androcentricamente os momentos “femininos” dissociados). Implícita e involuntariamente, Smith faz valer o mesmo princípio da razão transcendental que Rousseau e Kant; surgindo agora a “forma geral da vontade” como princípio da “mão invisível”, a qual é pressuposta para as decisões “livres” dos sujeitos da economia, tal como a estatalidade e a forma jurídica é pressuposta para os cidadãos políticos. Apenas com a diferença de que a violação deste princípio a priori não é punida no plano económico imediato pelos agentes do Estado, mas sim pela própria “mão invisível” do mecanismo cego da concorrência, que à sua maneira garante a submissão dos conteúdos da necessidade e de todos os recursos materiais, e que apenas externamente tem de ser garantida pelo poder do Leviatã.

Em Smith também se repete, ou melhor, duplica-se a paradoxal rejeição do pensar e do agir “meramente subjectivo”, pessoal e individual, a favor do “sujeito” transcendental universal na forma pressuposta da “mão invisível”; o “sujeito livre” inclui aqui igualmente o seu carácter coercivo, de que os sujeitos singulares empíricos individuais só podem ser meros funcionários. Não por acaso, Smith é considerado também o verdadeiro fundador do liberalismo. Com a sua teoria económica da “vontade geral” ele deu às pretensões dos sujeitos da concorrência proprietários burgueses contra a ilimitada liberdade de decisão “soberana” do Leviatã, no que respeita à lógica própria do mercado, a mesma fundamentação transcendental objectiva que Rousseau e Kant no que respeita à estatalidade e à forma jurídica. Também aqui não se trata de uma efectiva autonomia dos indivíduos sociais, mas sim da objectivação do princípio da autoridade, agora representado pela “mão invisível”. A “liberdade” económica consiste precisamente na auto-submissão às leis do mercado; economicamente “emancipado” é quem internaliza estas leis pseudo-naturais e, por si mesmo e sem “direcção de outrem”, obedece à “coacção tácita” (Marx) da concorrência e respeita os “sinais” da “mão invisível”. Esta é a fórmula orwelliana do liberalismo.

Assim se estabelece, simultaneamente, a polaridade imanente entre estatalidade e economia, entre homo oeconomicus e homo politicus, entre bourgeois e citoyen (determinados “masculinos” como sempre); com certeza que de modo plenamente inconsciente, como duplicação contraditória da “vontade geral” na estatalidade transcendental, ou na “forma vazia” de uma “lei em geral”, por um lado, e na máquina igualmente transcendental da “mão invisível”, por outro. Ambos os momentos da “vontade geral” apontam um para o outro e procedem um do outro. O mecanismo social objectivado da “mão invisível” precisa do poder de submissão política do Leviatã, que force a sociedade a esta forma, e da forma jurídica geral dos “sujeitos”, porque as mercadorias, na formulação posterior de Marx, “não podem ir para o mercado sem os seus guardiões”, e estes últimos têm de agir em relações contratuais reguladas, para poderem ser funcionários da legalidade pseudo-natural. Inversamente, a estatalidade e a forma jurídica têm como seu próprio pressuposto a “mão invisível” do mercado, na realidade o “sujeito automático” da reprodução fetichista no seu conjunto, que lhes determina a moldura do “poder de decisão” e da juridificação.

A necessidade interna desta duplicação, no entanto, não pode ser reconhecida por um pensamento apologético afirmativo, mas apenas por um conceito crítico da totalidade negativa, que rompa finalmente com o princípio transcendental e androcêntrico da razão iluminista do capitalismo. Dado que isso está excluído nas formas de pensar desta mesma razão, a fundação da economia política por Smith deu o tiro de partida para um eterno conflito entre liberalismo e estatismo, no terreno das “formas de vida objectivas” uma vez constituídas. Os actores filosófico-ideológicos, económicos e políticos do “tratamento da contradição” movem-se como hamsters na gaiola da “vontade geral”, cuja polaridade imanente cria sempre novas opções aparentemente contraditórias de acção, de acordo com a situação do processo objectivado, as quais têm igualmente como fundamento o “sujeito automático” e o fim em si autonomizado da “riqueza abstracta”, podendo por isso tornar-se e transformar-se umas nas outras.

10. O idealismo de Estado alemão como superação ideológica aparente da duplicação da "vontade geral"

Com o desenvolvimento progressivo do capitalismo “sobre as suas próprias bases” (Marx) no decurso da industrialização, fez-se valer novamente o pólo estatista, contra o pólo liberal da “vontade geral” que acentuava a “mão invisível” no tratamento da contradição. Filosoficamente, em primeiro lugar o idealismo alemão tardio, sobretudo Hegel, com a sua filosofia do Estado e do direito. Historico-empiricamente este pensamento move-se implicitamente no contexto da “modernização atrasada” da Alemanha face aos estados capitalistas mais desenvolvidos da Europa Ocidental, particularmente da Inglaterra. A correspondente filosofia constitui neste sentido o fundamento da “ideologia alemã”. Esta filosofia estatista reflecte em primeiro lugar dois momentos universais do desenvolvimento capitalista global e do tratamento da contradição nele incluído.

Por um lado, os estatismo alemão tornou-se de certo modo o paradigma da “modernização atrasada” por todo o mundo até bem dentro do século XX. A “economia política” é de certo modo reformulada no antigo sentido absolutista, na  medida em que o Estado surge novamente como sujeito colectivo superior da “vontade geral”; no entanto sob as condições modificadas do começo da industrialização e do desenvolvimento “não sincronizado” do capitalismo à escala mundial. As vestes ideológicas são diferentes; mas o Leviatã torna-se sempre o demiurgo da “imposição do valor”, ou seja, da constituição da “vontade geral” transcendental. Ele tem de constituir a maquinaria de um take off de acordo com a situação do “sujeito automático” já mais desenvolvida noutros sítios, sendo seu objectivo implícito ou explícito “alcançá-la” e estabelecer-se também nela.

Por outro lado, manifesta-se em Hegel o desenvolvimento avançado do capitalismo no seu conjunto, apesar do atraso do ambiente alemão. Ele critica a “forma vazia” abstracta de Kant e insiste em determinações de conteúdo. Mas não se trata minimamente da lógica própria das necessidades concretas. Pelo contrário, Hegel apenas pretende assumir a particularidade dos conteúdos porque já os considera meras formas de manifestação do princípio racional superior, enquanto para Kant eram ainda exterioridades sensíveis que era preciso submeter. Na dialéctica positiva e afirmativa de Hegel todos os conteúdos e objectos do mundo em geral são postos na sua particularidade, reconhecida apenas na aparência, como parte integrante do automovimento do “espírito do mundo” (quer dizer: do “sujeito automático”), como salientou criticamente Adorno mais tarde na Dialética Negativa.

Mas o estádio último e mais elevado deste automovimento, em que ele vem a si histórico-socialmente, é para Hegel o Estado moderno, cujo poder de Leviatã também no seu caso não só se mantém inabalado, mas experimenta mesmo a sua glória filosófica. Nos Princípios da Filosofia do Direito (1820) diz Hegel: “O direito do Estado é… superior a qualquer outro: é a liberdade na sua forma mais concreta, que pertence apenas à verdade absoluta suprema do espírito do mundo”: A “obrigação” garantida pelo Estado seria o “atingir o ser, ganhar a liberdade afirmativa (!)” no mundo moderno do capital, aliás, “sociedade civil”, a qual “é a única que faz justiça a todas as determinações da ideia”. Embora Hegel também critique Rousseau, porque este ainda daria demasiada atenção para o seu gosto à “vontade individual” (apesar de subsumida na “vontade geral” transcendental), agarra e agudiza a sua fórmula avidamente. O Estado seria “a realidade da ideia moral… como vontade substancial, ela própria clara, óbvia, que se pensa e se esclarece…” (destaque de Hegel). Como “realidade da vontade substancial”, o Estado seria “o racional em si e para si (destaque de Hegel) e um “fim em si absolutamente imóvel (!)”.

Uma vez que Hegel pensa o “sujeito automático” e com ele o fim em si da “riqueza abstracta” em última instância como imediatamente estatal, ainda que também como resultado do autodesenvolvimento do “espírito do mundo”, ele subsume ao poder de Estado também o outro lado, económico, da moderna relação de fetiche, nomeadamente a “mão invisível” da concorrência de mercado. Na sua dialéctica positiva afirmativa, a duplicação fetichista da “vontade geral” em “sociedade civil” e Estado, em máquina da concorrência do mercado e máquina do direito e do Estado, é aparentemente superada na estatalidade. Assim desaparece a condicionalidade recíproca de ambos os momentos do princípio racional autonomizado e movendo-se por si mesmo; a “mão invisível”, por sua vez pressuposta no Estado, surge como um momento próprio deste e à sua disposição, em vez de surgir como sua condição indisponível.

É verdade que Hegel, já desde os primeiros escritos de Jena e também na sua filosofia do direito e do Estado, chegou ao conceito de “trabalho abstracto”, como princípio de mediação da “sociedade civil”; mas não era este que constituía a substância material e ao mesmo tempo realmente abstracta da “vontade geral” e do seu automovimento (como em Marx na crítica da economia política), mas sim a “ideia” do Estado, como pretensa “realidade da vontade substancial”. Também o “trabalho abstracto”, como tal na verdade incontornável e negativamente objectivado, deve ser submetido à vontade da razão estatal. Como sujeitos da concorrência, do mesmo modo que como sujeitos do direito e cidadãos do Estado, os indivíduos são considerados meros “exemplares” da vontade colectiva objectiva estatizada; uma vez que o Estado “é espírito objectivo, o indivíduo só tem objectividade, verdade e moral enquanto seu membro”. Por isso, seria “destino dos indivíduos…, levar uma vida pública (!)”.

Em Hegel o carácter androcêntrico da “vontade geral racional” inscrito nas categorias também se entende por si mesmo. Quase sem fundamentação, como simples reconhecimento das relações burguesas, ele assegura que “a determinação da jovem mulher” consiste “essencialmente apenas na relação matrimonial”, e que este é naturalmente um momento inferior à estatalidade, à qual o feminino não consegue aceder. Pois “o homem tem ainda outro campo da sua actividade moral no Estado – mas não a mulher”. De modo igualmente lapidar, diz-se numa das notas estenográficas: “Onde as mulheres… governam o Estado, o Estado é arruinado”. Pois “a mulher absorve-se no que é pessoal – não no em si e para si universal do Estado”. Daí que faça parte dos níveis de desenvolvimento bárbaros que “no Oriente haja mulheres… a governar”.

11. A diferenciação "nacional" anglo-saxónica, francesa e alemã da "vontade geral"

Na filosofia do Estado de Hegel, de certa maneira regressa a determinação absolutista do Leviatã, no entanto correspondendo ao maior desenvolvimento sistémico do capitalismo e na forma mais reflectida de uma dialéctica positiva construída sobre o conceito de “vontade geral” de Rousseau e Kant. O conceito de Estado surge como “superação” afirmativa do automovimento em si contraditório de todas as categorias da “sociedade civil”.

A estatalidade foi pensada em Hobbes e no iluminismo anglo-saxónico e escocês, e também no liberalismo daí saído, como essencialmente funcional, no sentido da propriedade burguesa e afinal no sentido da “mão invisível” da lei pseudo-natural. Na versão francesa de Rousseau e na praxis histórica da revolução burguesa desde 1789, ela já não surge como funcional, mas sim como fim em si mesmo supostamente autónomo, na forma da “soberania popular” e do seu “patriotismo constitucional”, sob o pressuposto compulsivo da “vontade geral” pensada unilateralmente “política”. A estatalidade burguesa política deve ser autónoma face aos interesses económicos individuais, com o que se esconde o princípio da concorrência. Como coroação, no estatismo da filosofia idealista alemã de Hegel, o Estado, sob as condições duma primeira “modernização atrasada”, é considerado o demiurgo da “imposição do valor” e, numa hipóstase ideológica, como fim em si sintetizador do “princípio racional”, para lá da simples forma política: ele já não surge, como em França, como ênfase do político perante o vil interesse económico, mas sim como “superação” afirmativamente dialéctica das próprias categorias económicas em si.

Tendo como pano de fundo as diferenças de desenvolvimento histórico e ideológico, assim se diferencia a contradição entre estatismo e liberalismo no tratamento da contradição da “vontade geral” transcendental, do seu “sujeito automático” e da autofinalidade da “riqueza abstracta”, em referência à estrutura de duplicação imanente de Estado e economia, nomeadamente nestas três versões: primeiro, a redução funcional liberal anglo-saxónica da estatalidade face à “liberdade” do mercado e da sua “mão invisível”; segundo, a colocação autónoma francesa da forma política; e, terceiro, a definição alemã de uma “imediatidade do Estado”, como resultado da totalidade capitalista em si estatalmente mediada. Nestes três paradigmas se movem desde então as opções de tratamento da contradição burguesa, atravessando-se reciprocamente, sem chegarem a um entendimento crítico do seu fundamento fetichista comum.

Já em Hegel o estatismo afirmativamente dialéctico da “ideologia alemã” obteve um traço nacionalista fundamental. A totalidade em si estatalmente mediada e com ela o Estado como princípio racional supremo deve ser a expressão do respectivo “espírito nacional”; uma herança do romantismo alemão no pensamento de Hegel. O fim em si da riqueza abstracta não tem qualquer conceito próprio, mas segue também na forma estatizada a partir da auto-afirmação deste “espírito nacional” e das suas manifestações, como estádio no vir a si do “espírito do mundo” – em que o “germânico”, como já em Fichte, deve constituir o nível superior. Se este pensamento nacionalista em Fichte surge de preferência na forma “culturalista”, em Hegel já encontra um fundamento na ideologia do sangue. A totalidade mediada em si deve conservar este momento do sangue, uma vez que o Estado supera positivamente a “sociedade civil” e esta última por sua vez supera também a associação familiar: “O alargamento da família, enquanto tornar-se num outro princípio, é… o silencioso alargamento da mesma a um povo, a uma nação (destaque de Hegel), que assim tem uma origem natural (!) comum”.

Esta formulação na filosofia do direito de Hegel, como é sabido, desenvolveu-se na Alemanha e na Áustria numa ideologia “nacionalista” de sangue, com consequências catastróficas no século XX, ideologia até há pouco tempo ainda enraizada no direito da nacionalidade da RFA e que continua latente na administração policial e na consciência do quotidiano. A miséria desta ideologia de sangue não se limitou à sua origem alemã. Uma vez que o idealismo estatista da “ideologia alemã” constituiu o primeiro paradigma da “modernização atrasada”, transformada em burocracia estatal com efeitos de longo alcance, o pensamento “nacionalista”, como mistificação da “imposição do valor” e da constituição da “vontade geral”, entrou, não em toda a parte, mas em algumas regiões mundiais, conforme as tradições culturais e as orientações ideológicas, mais ou menos claramente na constituição do Estado e da nação.

12. O "estado de natureza" violento entre os Leviatãs e a sua limitação pelo mercado mundial

Já desde Hobbes que a tarefa do Leviatã de garantir a propriedade pelo direito contratual e domesticar a concorrência no interior é completada pelo seu poder sumário para o exterior, ou seja, contra os outros Estados. Os monstros patriarcais da “vontade geral” têm de continuar a defrontar-se entre si principalmente no “estado de natureza” não contratualizado. O choque violento é inevitável e natural, uma vez que a “vontade geral” tem de se multiplicar com a multiplicação dos Estados; tal como o capital, também os Estados só existem no plural.

No entanto, não demorou a fazer-se valer, tanto no desenvolvimento real como na reflexão filosófica burguesa, um impulso para colocar a multiplicidade estatal da “vontade geral” sob um segundo tecto superior, num metaplano. Se, face à cidadania nacional, se reclamou repetidamente uma cidadania mundial (cosmopolitismo), isso, no entanto, não teve minimamente a ver com a contradição entre uma posição afirmativamente limitada e uma posição transcendentemente libertadora. Pelo contrário, tratou-se apenas da reprodução ideal inconsciente duma contradição interna do próprio “sujeito automático”. Não por acaso, a razão iluminista capitalista, como “mãe de todas as ideologias”, inventou tanto o nacionalismo moderno como o cosmopolitismo moderno, dando assim expressão a essa contradição.

Se a “vontade geral” transcendental, ou “princípio racional” a priori da lógica da valorização, se cinde na estatalidade ou forma jurídica geral, por um lado, e na “mão invisível” do mercado, por outro, no entanto estes dois lados da máquina de fim em si não têm o mesmo estatuto nem o mesmo alcance. O totalitarismo da “riqueza abstracta” e do seu “sujeito automático” é coberto por um Estado apenas num determinado território, em cujas fronteiras termina a sua específica universalidade. Enquanto estatalidade, é universal apenas numa forma não universal; de facto, é geralmente válido, para lá de todas as particularidades e necessidades, mas válido apenas para a área de poder do respectivo Leviatã. Aqui se inclui não só a forma jurídica da “vontade geral”, mas também a garantia pela força da propriedade, como submissão de todos ao fim em si capitalista, através do aparelho de justiça, policial e militar. A “mão visível” estatal da “vontade geral” permanece por natureza territorialmente limitada.

O contrário se passa com a outra, a “mão invisível” da mesma “vontade geral”, que se faz sentir através da concorrência do mercado. Como origem numa forma embrionária de mercado mundial, como tendência para o alargamento progressivo do mercado mundial e finalmente como totalização do mercado mundial no espaço funcional imediato da “riqueza abstracta”, ela é desde o início determinada como universal de maneira diferente, ainda que este universalismo tenha tido de se desenvolver apenas historicamente. A sua universalidade não se submete a qualquer limitação territorial, mas abrange todo o espaço terrestre, passando por cima de todas as fronteiras; e constrói-se precisamente na mesma medida que o “sujeito automático” não apenas através de conquistas militares externas, no plano estatalmente limitado, mas sobretudo através do carácter ilimitado da sua dinâmica interna e da formação de sujeitos, enquanto “vontade geral” global.

Do ponto de vista do poder imediato, o lado estatal do princípio do fim-em-si abstracto parece ser “mais forte”, o que provocou repetidamente a ilusão de um “comando político” sobre o lado da concorrência de mercado. A esta ilusão se submeteram também o idealismo alemão e todos os posteriores expoentes da “modernização atrasada” (até à última palhaçada deste paradigma na figura de um Chavez). Mas nenhum território de nenhum Estado nacional pode reproduzir-se autonomamente sob condições capitalistas; pelo contrário, no plano material está sempre dependente de relações externas no mercado mundial. A dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas imposto pela concorrência não pode ser contida em fronteiras estatais; ela faz do mercado mundial um a priori e impõe por sua vez o princípio da concorrência da “mão invisível” aos contrariados Leviatãs dos monstros estatais. O poder de decisão ilimitado do Leviatã é assim relativizado e contido não apenas no interior, no sentido duma maior liberdade de acção dos burgueses proprietários na concorrência no mercado interno, mas mais ainda nas relações económicas externas, através da “coacção tácita” da concorrência do mercado mundial.

Aqui se extingue completamente a capacidade de controle e de regulação do Estado, pois a concorrência global para lá do Estado corresponde na verdade doravante àquele suposto “estado de natureza” que segundo Hobbes devia ser superado pelo Leviatã; mas apenas no espaço limitado do seu poder de decisão. Provou-se cada vez mais que as “leis naturais” deste “estado de coisas” (de facto, as leis funcionais da relação de fetiche capitalista historicamente constituída) não foram superadas, mas sim agravadas e estabelecidas, também contra o Leviatã, no plano da relação superior do mercado mundial. As forças produtivas podem tão pouco ser militarmente conquistadas ou “roubadas” como os mercados financeiros. O poder transnacional imediatamente global da “mão invisível” do mercado mundial é em última instância “mais forte” do que qualquer poder estatal. Isso, de resto, já decorre do facto de que o próprio aparelho de poder do Leviatã não existe sem pressupostos, mas tem de ser “financiado”. A capacidade para isso, porém, não resulta apenas da economia interna, mas sim, essencialmente, da posição na concorrência global. A potência maior ou menor do Leviatã, tanto para garantir pela força a “vontade geral” para dentro como também para garantir o poder para fora face aos outros Estados, está completamente dependente do seu posicionamento no mercado mundial, posicionamento que, por sua vez, não se consegue com simples poder, mas, bem pelo contrário, limita as possibilidades de poder.

13. A "paz perpétua" kantiana como visão duma instituição meta-estatal da "vontade geral" repressiva e o seu desmentido por Hegel

O problema, porém, é que o mercado mundial, como condição e pressuposto do fim em si capitalista e do próprio Leviatã, de certo modo também precisa de uma garantia, ou “segurança”, para poder funcionar. Como não existe qualquer instância que corresponda ao cosmopolitismo, abre-se neste aspecto outro plano da contradição capitalista e do seu tratamento. A sua primeira formulação encontra-se no escrito tardio de Kant A Paz Perpétua (1795/96). Uma vez que Kant, como todos os filósofos do iluminismo, considera a concorrência, tanto entre os indivíduos como entre os Leviatãs, um “estado natural”, ele procura uma regulação que tenha em conta este estado e no entanto garanta a ”vontade geral”, ou a “forma de uma lei em geral”, num metaplano transnacional.

A interpretação burguesa piegas do sugestivo título A Paz Perpétua enfatiza que aí se pretende destacar o carácter pacífico, assente no “comerciar e viver” da máquina de fim em si capitalista, que deve assegurar uma liberdade de comércio liberal, através da ideia de impor institucionalmente um “direito dos povos” na base dos “direitos humanos” burgueses. Esta nova redução à ideologia da circulação não pode, porém, esconder que aqui se trata em primeira linha da perspectiva de submeter toda a população mundial à “vontade geral”, de acordo com ambos os aspectos da forma jurídica e da “mão invisível”, para lá das garantias do Estado individual. Só com esta finalidade o “estado de natureza” duma relação imediata de poder entre Leviatãs deve ser não superado, mas sim modificado, de tal modo que um “direito da guerra” atenue a irreversibilidade da continuação violenta da concorrência por outros meios e crie uma relação regular de guerra e paz que garanta a capacidade funcional do mercado mundial. Esta ideia é completada com o princípio da “não ingerência”: Nenhum Estado deve meter o nariz onde não é chamado no interior da relação de poder de Leviatã de outro Estado. Numa observação mais de perto a “paz perpétua” parece bastante nojenta, como não podia deixar de ser, sob o ditame do “princípio racional” capitalista.

Na Filosofia do Direito de Hegel, um quarto de século depois, a questão apresenta-se novamente de forma diferente. Aqui o Estado, “como um hieróglifo da razão” não está vinculado a qualquer princípio jurídico superior relativamente ao exterior. Por isso se diz lapidarmente: “A disputa entre Estados… só pode ser decidida pela guerra” (destaque de Hegel). Com mais ou menos violações de relações contratuais, este problema permanece “em si indeterminável” (destaque de Hegel), na medida em que os Estados tenderiam para uma “irritabilidade” “tanto maior quanto mais uma individualidade forte (diga-se: de um “povo”, especialmente o “germânico”) foi levada, graças a uma longa paz interna, a procurar e criar para si uma área de actividade virada para o exterior”. De tempos a tempos é precisamente a “vontade geral” que tem de ser mergulhada em sangue, de modo que permaneça forte e a “razão” se limpe de todas as necessidades vitais particulares.

14. A luta dos Leviatãs imperiais pelo poder nacional mundial da "vontade geral"

Nesta versão hegeliana reflecte-se, por um lado, outra vez o paradigma da “modernização atrasada” da Alemanha e da Europa Central: a “imposição do valor” na sociedade ia de par com uma vontade de auto-afirmação do Leviatã, que se constituia sem olhar a meios face ao exterior, contra os Estados capitalistas já mais desenvolvidos; no exagero ideológico de Hegel, como pretensão de validade de “verdade e liberdade objectiva, que é transmitida ao princípio nórdico (!) dos povos germânicos para ser realizada” (destaque de Hegel) – transmissão feita, naturalmente, pelo “espírito do mundo” em pessoa.

Por outro lado, porém, em Hegel manifesta-se aqui mais uma vez o desenvolvimento do capitalismo no seu conjunto ao nível do século XIX. O problema da garantia do “sujeito automático” e da sua “vontade geral” num plano meta-estatal sob a pressão do mercado mundial não foi transferido para a institucionalização do “direito dos povos” visada por Kant, mas assumiu desde logo a forma de um ímpeto de expansão dos Leviatãs mais fortes (imperialismo). Sob as condições de desenvolvimento da industrialização no século XIX, a figura do meta-Leviatã só podia surgir na forma de uma luta dos Leviatãs mais fortes pela posição de potência mundial dominante. De facto a Grã-Bretanha, devido ao seu avanço industrial, assumiu em primeiro lugar a posição de Leviatã superior. Determinados momentos da “paz perpétua” repressiva, entendidos como mera atenuação e regulação do “estado de natureza” entre Estados, fizeram-se notar como uma espécie de “Pax Britannica”. Mas esta regulação do “estado de natureza” foi desde o fim do século XIX posta em causa pelos Leviatãs da Europa que emergiam como potências, particularmente pelo imperio alemão “nacionalmente” legitimado, após conseguida a sua modernização e industrialização “atrasadas”. A luta pelo poder mundial desaguou desde o início do século XX na época das guerras mundiais.

Torna-se aqui necessária uma definição mais aproximada do carácter desta luta pelo poder mundial. As teorias do imperialismo, tanto burguesas como marxistas, limitam-se essencialmente na sua interpretação ao plano das relações de concorrência económicas empíricas, nas condições de desenvolvimento alcançadas. O ímpeto de expansão imperial surgia como expressão desta concorrência imediata interna e externa: fosse para deslocalizar para o exterior e pacificar a “questão social”; fosse para assegurar áreas de vendas, fontes de matérias primas e possibilidades de investimento para o capital próprio, ou zonas de influência política para lá da área originária do Estado. Esses momentos desempenharam certamente o seu papel, ainda que tenham acabado por fazer uma triste figura no sentido da definição de objectivos económicos imediatos, porque no fim os custos do imperialismo foram sempre maiores do que os proveitos. Mas, abstraindo disso, uma tal interpretação permanece ela própria ainda presa na perspectiva de um cálculo de interesses particulares. A luta imperial pelo poder mundial só pode ser esclarecida num plano muito mais fundamental. Trata-se, em última instânca, do tratamento da contradição entre a forma estatalmente limitada da “vontade geral” e a necessidade da sua garantia meta-estatal no espaço do mercado mundial, como condição para a capacidade de funcionamento deste; ou seja, trata-se precisamente do problema formulado por Kant filosófica e abstractamente.

A necessidade objectiva no fundo subjacente de um poder de garantia meta-estatal, que substitua provisoriamente o Leviatã mundial lógica e praticamente impossível, não foi no entanto como tal reconhecida e reflectida, mas surgiu de modo meramente “natural”, como aquela luta pelo poder mundial em que cada forma estatal da “vontade geral” deveria tornar-se a forma globalmente dominante e reguladora. Tratava-se de saber, na circunstância, que cores nacionais deveria assumir a “Pax” meta-estatal da potência mundial (e o dinheiro mundial, na respectiva moeda). Também nesse aspecto a necessidade objectiva da “forma de vontade geral” da economia política transnacional colidia com os pretensos interesses nacionais no sentido de um mero alargamento do território próprio através de anexações, colónias e zonas de influência. Pois, na realidade, os custos da função de potência mundial, particularmente como poder de intervenção ou “polícia mundial”, ou seja, para além de uma mera ambição de controlar mercados de vendas, matérias primas etc., são em última instância superiores aos ganhos económicos imediatos desta posição. É certo que a dominância na concorrência do mercado mundial é, sob o ditame da “mão invisível”, pressuposto para o poder mundial; porém, uma vez este atingido, torna-se um peso crescente para a reprodução nacional do capital.

Aqui se repete, a nível dos próprios Leviatãs, a subordinação dos sujeitos económicos burgueses proprietários ao “sujeito automático” superior. Eles lutam em certa medida pela duvidosa “honra” de dar mais e melhor satisfação que os outros às exigências objectivas da “razão mundial” capitalista no que respeita à regulação meta-estatal, para poderem gozar dessa situação, ficando, porém, indefinidamente à espera de conseguir embolsar os ganhos previstos. O poder politico-militar de potência mundial torna-se, de facto, de certo modo poder económico imediato, porém não no sentido do interesse particular nacional mais uma vez meramente “subjectivo”, mas sim como função global do “sujeito automático” e do seu automovimento autonomizado. Como todos os “sujeitos” individuais e institucionais, o sujeito do poder mundial (por maioria de razão, estrutural e simbolicamente androcêntrico) consiste exactamente no facto de ele próprio se objectivar; e precisamente na grande escala do sistema mundial. A força propulsora dos interesses dos Leviatãs nacionais é quebrada e desmentida pela própria funcionalidade de garantia da “vontade mundial” capitalista. É portanto uma ilusão confundir o poder económico da posição de potência mundial com um poder de disposição nacional-subjectivo sobre a riqueza abstracta. Cujo movimento e dinâmica interna de fim em si permanecem, também e precisamente para a potência mundial, tão indisponíveis como para todos os outros, como se começou a notar de forma bem prática nos últimos tempos.

15. Duas nações em uma. O entendimento do Estado do burguês proprietário como atraso da modernização

Enquanto o capital no século XIX há muito “processava nas suas próprias bases” (Marx) e a industrialização avançava a passos de gigante, paradoxalmente a ordem dominante estava ainda longe de perceber as suas próprias consequências sociais. A constituição política e jurídica da “vontade geral” tinha ficado muito atrás do desenvolvimento técnico e cientifico das forças produtivas do capital. Enquanto o caminho-de-ferro e o telégrafo ligavam o mundo com as suas redes, o corpo social mantinha-se ainda amplamente na velha pele não descartada das relações corporativas e personalizadamente patriarcais que já não correspondiam às exigências objectivas. A dessincronização do desenvolvimento social intrínseco tinha de levar a falhas ainda mais intensas da estrutura social porque, por outro lado, a “mão invisível” do “sujeito automático” já tinha começado a desencadear-se furiosa e desenfreadamente. As pessoas continuavam amarradas às estruturas do estatuto pré-capitalista, apesar de já estarem simultaneamente entregues à impiedosa concorrência dos mercados anónimos.

Os burgueses proprietários masculinos viam-se no seu auto-entendimento perfeitamente como sujeitos autónomos da vontade, portadores exclusivos do progresso e “senhores do novo tempo”. O verdadeiro carácter da máquina social da valorização, ultrapassando tudo o “meramente subjectivo” que tinha sido focado na reflexão afirmativa da “vontade geral” e da “mão invisível” pela filosofia iluminista, não foi de modo nenhum entendido como autodesmentido. A percepção correspondia perfeitamente à autoconsciência ainda corporativa dos actores. Quer para os filósofos quer para o seu público era claro que tanto o conceito de “vontade geral” como todas as questões com ele conexas na relação interna e externa só podiam dizer respeito a si e aos seus iguais. Era perfeitamente impensável que esta “universalidade” pudesse ir além dos burgueses proprietários e incluir de facto todas as pessoas na sociedade.

A consciência do burguês proprietário estava também ainda prisioneira dos modelos de pensamento tradicional que correspondiam à propriedade fundiária (feudal), com os seus laços pessoais paternalistas e relações de dependência – apesar de também a propriedade fundiária há muito se ter tornado uma coisa capitalista e se ter transformado num objecto de mercado antes impensável. O remanescente das velhas formas de consciência e estruturas de poder tornadas verdadeiramente anacrónicas estava em contradição com as novas condições capitalistas e com o seu exame afirmativo pelos filósofos, que portanto também foram inconsequentes na sua afirmação. A ideia de uma máquina social objectivada com leis próprias inegociáveis foi talvez entendida como versão moderna do “destino”, mas não como uma auto-submissão tal que agora os próprios “senhores” tivessem de ser vistos como “ferramentas falantes” dum fim em si transcendental.

Esta contradição continuou na legitimação pelo “trabalho” (originalmente protestante), mobilizada contra a cambada de preguiçosos da nobreza e do clero, inúteis do ponto de vista capitalista. A simples relação de causalidade entre “trabalho” e propriedade efectiva desmentia-se diariamente a si mesma na realidade da situação, conduzindo a toda uma literatura legitimadora que enchia bibliotecas com contorções ideológicas (a qual foi objecto de escárnio de Marx). A legitimação pelo “trabalho” foi partida em duas, de maneira a reservar o estatuto de “ferramentas falantes” modernas para a massa “desclassificada” da “mão-de-obra” no sistema fabril. O “trabalho diferente” pretensamente autocrático dos burgueses proprietários obscurecia a situação mal percebida de que a própria “propriedade privada dos meios de produção” era apenas uma categoria funcional do superior movimento de fim em si transcendental da “riqueza abstracta” e que os capitalistas tinham o mero estatuto de “funcionários dirigentes” deste “sujeito automático”. Permaneceu escondido o carácter uniformizador da forma universal do “trabalho abstracto” em todos os níveis funcionais, independentemente da sua contribuição substancial para o aumento da “riqueza abstracta”. Por outras palavras: os burgueses proprietários entenderam-se a si mesmos como “classe dominante” e, nesse estatuto, como último fundamento subjectivo das relações. Assim se obscureceu também aquela definição de John Locke de que devia estar subjacente ao conjunto da organização uma “autopropriedade” de todas as pessoas sobre o seu próprio corpo (quer dizer: sobre a sua força de trabalho). Por um lado, a “autopropriedade” já se tinha feito valer no carácter de mercadoria da força de trabalho desde as primeiras formas do “management”; por outro lado, este estatuto não foi completamente reconhecido nas formas jurídicas oficiais, ou foi-o apenas indirectamente.

Esta contradição tinha de se agudizar na forma política da “vontade geral”. A cidadania não foi entendida como generalidade abstracta de facto universal, na base da “autopropriedade” com referência ao “trabalho abstracto”, mas sim cada vez mais identificada com a condição de burguês proprietário dos proprietários dos meios de produção. Também em Rousseau se fazem notar os efeitos desta definição redutora; quando ele reclama uma espécie de igualdade dos cidadãos do Estado, de modo que a “vontade geral” politicamente hipostasiada não fosse deitada a perder pelo impulso do enriquecimento privado, este postulado refere-se de facto apenas às relações entre os burgueses proprietários, enquanto a “massa desclassificada” já não aparece explicitamente. A “democracia” seria entendida quando muito no antigo entendimento tradicional, para lá da “monarquia” e da “oligarquia”, como possível “forma de governo” dos cidadãos plenos (masculinos) “entre si”, não porém no sentido moderno ainda não amadurecido do carácter universal da “vontade geral”. Por isso o liberalismo era estritamente antidemocrático, na medida em que o conceito de “democracia” devesse referir-se a todos os “súbditos” dum Leviatã sem excepção.

A identidade ideológica entre autocracia dos proprietários privados e auto-submissão à “vontade geral” tinha de permanecer politicamente limitada, enquanto a “mão-de-obra” gozasse da honra de tomar parte na repressiva “promessa de felicidade burguesa” apenas pelo lado económico da auto-submissão à máquina concorrencial da “mão invisível”. A “felicidade” da auto-objectivação em “sujeito” ficou reservada politicamente aos proprietários dos meios de produção, de modo que a cidadania ainda formalmente universal foi partida em duas, tal como a legitimação pelo “trabalho”. A representação parlamentar, fosse perante um Leviatã monárquico ou perante um Leviatã burguês considerado mais desenvolvido, foi ela própria rigidamente limitada por um direito eleitoral censitário de cidadãos proprietários conforme as classes fiscais, através de concessões de uma cidadania nacional sobrejacente.

Esta bipartição política reflectiu-se na afirmação de “Duas nações em uma”, na formulação proeminente do escritor britânico e duas vezes primeiro-ministro Benjamin Disraeli no romance Sibila ou as duas nações (1844, portanto já antes do movimento de 1848); afirmações semelhantes encontram-se ainda antes também em Charles Hall (1805) e Alexis de Tocqueville (1835). A oposição, porém, não apenas era percebida num redutor entendimento tradicional entre “pobres e ricos”, em vez da diferença entre suportes funcionais do “sujeito automático” transcendental, mas também era percebida como inultrapassável. O antes de mais conservador Disraeli via aí mesmo uma diferença “étnica” entre diferentes espécies de seres humanos, enquanto o tratamento da contradição aparecia não como necessidade funcional do “trabalho abstracto” universal no automovimento da “riqueza abstracta”, mas sim, quando muito, como tarefa de um cuidado paternalista; quando não acabava mesmo em cinismo perante o “material humano”.

Não ocorreu aos actores políticos e filosóficos da autodefesa e autolegitimação liberal ou conservadora da propriedade burguesa que a necessária consequência da “razão” capitalista por eles afirmada poderia consistir na universalização política de facto da “vontade geral”. Assim também não puderam perceber que a lógica objectivada do “sujeito automático” produz por si a diferenciação entre portadores opostos, “actuando” como representantes do capital e “actuando” como trabalho assalariado. Assim permaneceu também escondido que a “emancipação” na forma de uma cidadania desde logo abstracta era o caminho mais seguro para domesticar as “classes perigosas” da “mão-de-obra desclassificada”, conduzindo-as, precisamente através do reconhecimento político, à repressiva “emancipação” em sentido kantiano. O Leviatã democrático, como forma mais rigorosa de auto-submissão internalizada à “vontade geral”, a única que traria plena garantia ao mecanismo libertado da “mão invisível”, era ainda música do futuro. O capitalismo tinha um forte atraso de modernização no sentido da sua própria “razão”; e os seus representantes empíricos históricos, incluindo os seus inconsequentes filósofos, foram eles próprios um obstáculo ao seu posterior desenvolvimento como sistema social totalitário.

16. O Estado burguês como horizonte de emancipação redutora e a função modernizadora do movimento operário

Com o reconhecimento insuficiente e em muitos aspectos completamente recusado da “mão-de-obra” e das massas de “desclassificados” em geral como sujeitos do direito e da cidadania nacional produziu-se uma grelha de percepção das contradições capitalistas que marcou profundamente a consciência histórica e se manteve determinante até hoje. Assim se fez agulha para um outro desenvolvimento social que havia de aprisionar e marcar por um período indefinido de tempo o auto-entendimento da crítica e da resistência. O sentimento de humilhação que ia de par com a crescente pobreza de massas coseu-se como que por si mesmo ao sonegado carácter universal da “vontade geral” na forma política. A plena cidadania do Estado capitalista constituiu a partir daí o redutor horizonte de emancipação do movimento operário nascente.

Com isto também todas as contradições da “riqueza abstracta” surgiram numa forma invertida, podendo ser percebidas apenas de modo igualmente redutor e distorcido. A bipartição ideológica formulada inibida e enviesadamente pelo iluminismo entre “trabalho”, como legitimação política da propriedade privada capitalista sobre os meios de produção, por um lado, e como atribuição “apolítica” de um simples estatuto de ferramenta à “mão-de-obra”, por outro, levou a que o movimento operário, em oposição a isso, confundisse por sua vez cidadania com legitimação pelo “trabalho”. Em vez de reconduzir a vida negativa no capitalismo ao carácter negativo do “trabalho abstracto” e das suas próprias formas reificadas de representação social, os sofrimentos pareciam estar em primeira linha condicionados pela falta de reconhecimento da cidadania e dos direitos, falta que na realidade era um obstáculo ao pleno desenvolvimento do capital que constituía ele próprio a relação de desaforo. Inversamente surgia então a legitimação burguesa pelo “trabalho” como inconsequente, que de facto era; mas não relativamente ao carácter negativo do próprio “trabalho”, mas outrossim como inadmissível sonegação desta definição positiva para os “verdadeiros” trabalhadores. O movimento operário assumiu assim, na qualidade de oposição social, a autolegitimação dos proprietários burgueses, para a levar até às últimas consequências, como se fosse própria. Aqui se fundamenta em última instância a fatal reclamação da razão iluminista capitalista como “legado” a ser finalmente realizado. A “vontade geral” na forma política não foi reconhecida como a outra face da duplicação do “sujeito automático”, mas sim reinterpretada como forma positiva, a que se teria de chegar a fim de se tornar “senhor” dos desaforos. Plena e igual cidadania como horizonte de emancipação e consequente autolegitimação pelo “trabalho abstracto” condicionam-se reciprocamente.

O movimento operário tornou-se assim inconscientemente o marcador de tendências da modernização capitalista. O conceito de crítica refere-se não às categorias objectivadas da “riqueza abstracta” e do seu “sujeito automático” na sua própria duplicação estrutural, mas simplesmente à sua insuficiente implantação. Os sofrimentos causados pela máquina da concorrência da “mão invisível” deviam ser dominados precisamente através do caminhar para a forma política da mesma “vontade geral”. Por isso a luta pelo direito de voto universal e igual da “mão-de-obra” e pelas correspondentes posições como sujeitos burgueses de pleno direito, assumida pelo movimento cartista inglês, definiu a discussão social e política de todo o século XIX e estendeu-se em muitas regiões mundiais pelo século XX. A dura resistência das elites de burgueses proprietários, eles próprios sujeitos a uma incompreensão relativamente à socialidade pretensamente própria e à sua “vontade geral”, legitimou e alimentou o redutor desejo de emancipação do movimento operário; e assim se foram as pessoas movendo numa auto-ilusão recíproca sobre o verdadeiro carácter do problema.

A auto-ilusão continuou no entendimento redutor do capital como propriedade privada subjectivamente autocrática e como “poder de disposição” pessoal dos burgueses proprietários, que deveriam constituir a última e verdadeira razão das relações de exploração social. Este auto-entendimento redutor dos burgueses proprietários foi também assumido pelo movimento operário, em vez de reconhecer a forma jurídica da propriedade privada como categoria meramente funcional e secundária do superior “sujeito automático”, no automovimento da “riqueza abstracta” reacoplada a si mesma. O que surgia assim como pretensa abolição do capitalismo era a transformação da propriedade privada numa propriedade colectiva nunca definida com precisão, na mesma base transcendental do “trabalho abstracto” e da respectiva “vontade geral”.

Ligada a isto estava a ilusão democrática de que se poderia por assim dizer “rejeitar pelo voto” por maioria o capitalismo redutoramente entendido, logo que fosse estabelecido o direito de voto universal e igual – apesar de Rousseau já ter fixado a diferença objectiva entre a “volonté de tous” empírica e a “volonté générale” transcendental e inegociável. Esta determinação também já não fora percebida em todo o seu alcance pelos próprios filósofos do iluminismo, por causa da sua fixação nas “formas de pensar objectivas” da “razão capitalista”.

A ilusão democrática consiste precisamente em que a forma de vontade transcendental pressuposta e a restrição por ela condicionada da vontade empírica da maioria permanece escondida. A relação de capital reduz-se a uma mera soma de relações de vontade subjectivas empíricas, de acordo com “interesses” imanentes eles próprios constituídos de modo capitalista. Fica assim fora da observação que todas as decisões já são pré-formadas pelos critérios da legalidade pseudo-natural do “sujeito automático”. Uma crítica radical visando a “vontade geral” transcendental e a sua estrutura de duplicação imanente teria de incluir, pelo contrário, a crítica da democracia, como a forma política mais desenvolvida da “riqueza abstracta”. O horizonte de emancipação redutor do movimento operário, pelo contrário, canalizou a crítica para a aspiração de tomar parte na “vontade geral” e, com isso, para a perspectiva de “democratização” das categorias capitalistas, em vez da sua abolição. Assim caiu ele precisamente na armadilha da “emancipação” auto-repressiva filosoficamente formulada por Kant, nomeadamente submetendo a priori os conteúdos das necessidades vitais ao princípio internalizado da forma do “trabalho abstracto”, podendo então apenas pensar e impor-se em geral nessa forma transcendental.

Dada a situação, esta orientação pode ter surgido como inevitável; mas não era uma “necessidade natural”, no sentido de determinismo histórico. Retrospectivamente hoje pode apenas ser verificada como facto histórico e seria ocioso estar a postular um passado alternativo não ocorrido. A partir desta perspectiva de emancipação limitada ao interior do capitalismo seguiu-se a bipartição organizativa em sindicatos e partidos políticos “social-democratas” dos trabalhadores. A luta por condições de vida imediatas na forma capitalista dada (salário, condições de trabalho) estava inevitavelmente presa à máquina de concorrência da “mão invisível” nos mercados de trabalho. Esta concorrência pré-determinada entre os “autoproprietários” da sua força de trabalho não foi, porém, transcendida pela perspectiva de uma crítica radical às condições de vida da “riqueza abstracta”, mas apenas parcialmente superada no redutor horizonte de emancipação de uma universalização de facto política da “vontade geral”, que por isso surgia equivocadamente “para lá da concorrência”. A concorrência dos proprietários de força de trabalho entre si, por isso, só pôde ser mantida relativamente em cheque enquanto a orientação comum para participar na “vontade geral” política se mostrou sustentável e não acabada. Foi também a partir deste contexto que a social-democracia se tornou o marcador de tendências e protótipo da miséria da construção de partidos capitalistas e de uma “classe política”, ou seja, também nesse sentido como função modernizadora do capital.

17. A repetição feminista da emancipação redutora

O movimento cartista inglês tinha exigido inicialmente o direito de voto universal e igual apenas para os “autoproprietários” masculinos da sua força de trabalho, tendo assim assumido também neste sentido o entendimento burguês da filosofia do iluminismo. O atraso da modernização do capitalismo face à sua própria lógica, certamente existente, era por assim dizer duplo na relação das mulheres com a forma da vontade e forma jurídica geral transcendental. Aqui se faz notar o mesmo problema de consciência. Uma vez que não se reconheceu que a dissociação sexual e a assimetria a ela associada na relação de género capitalista já estava estabelecida e garantida com as categorias económicas e políticas da própria “riqueza abstracta”, a inclusão das mulheres na “vontade geral” surgia como uma perigosa superação das “obrigações femininas” específicas; tal e qual como em Hegel.

Mas de facto a cidadania formal das mulheres tornava-se exigível na mesma medida em que elas também se transformavam em sujeitos funcionais do “trabalho abstracto” e eram submetidas a este, sem que por isso pudesse ser afectada a submissão à segunda potência aos momentos da reprodução dissociados. A relação de dissociação sexual já está sempre inscrita na cidadania, tal como na máquina concorrencial. Por isso a assimetria hierárquica de género é tão pouco abolida pela inclusão das mulheres na forma jurídica e na cidadania universal formalmente iguais como a qualidade de mercadoria e de capital da força de trabalho é abolida pelo reconhecimento do trabalhador assalariado como sujeito jurídico e cidadão formalmente igual. A “dupla socialização” (Regina Becker-Schmidt) apenas tardiamente generalizada das mulheres de modo duplamente negativo, nomeadamente como simultânea submissão à relação de dissociação, por um lado, e ao trabalho abstracto do fim em si capitalista, por outro, pôde apenas ser mais fortificada pela cidadania feminina.

Em todo o caso a “mão-de-obra” masculina assumiu primeiramente a pretensão da burguesia proprietária relativamente à “autopropriedade” da sua força de trabalho; correspondentemente houve uma forte tendência no movimento operário nascente no sentido de uma constituição “proletária” própria das relações familiares burguesas clássicas, ou seja, contra o “trabalho feminino” fora de casa – e logo também reservas contra a cidadania das mulheres. No decurso do século XIX, o direito de voto universal e igual também para as mulheres foi de facto assumido nos programas dos partidos operários social-democratas, mas continuaram latentes as reservas, por causa dos pressupostos estruturais não objecto de reflexão; de resto perfeitamente à semelhança dos burgueses proprietários masculinos. Neste sentido pode perfeitamente falar-se de uma “associação masculina” não expressa nem entendida atravessando as fronteiras das classes sociais.

Por isso não admira que tanto nos círculos dos burgueses proprietários como também no interior e em volta do movimento operário se tenham constituído elementos de um autêntico movimento de mulheres, que no seu processo histórico até hoje se pode designar com o conceito de “feminismo”. Aqui se repetiu, de certa maneira, o problema do horizonte de emancipação redutor do movimento operário e da auto-ilusão recíproca dos actores opostos. O feminismo, num plano diferente, caiu na mesma armadilha histórica relativamente aos “direitos iguais” abstractos que o movimento operário social-democrata dominado por homens. Sob a impressão das relações de poder e de consciência não amadurecidas do ponto de vista capitalista, a assimetria de género não foi reconhecida como problema da própria relação de dissociação, inscrita nas categorias fundamentais (tal como o sofrimento social universal não foi reconhecido como problema do próprio “trabalho abstracto”), mas foi também reduzida à falta de igualdade jurídica e de cidadania. Tal como no movimento operário oficial relativamente às questões sociais imediatas (direito à greve etc.), também no feminismo reivindicações particulares, em si justas e necessárias (como por exemplo o livre acesso das mulheres à universidade em todas as áreas), foram postas em ligação directa com a grelha de interpretação auto-repressiva da luta pela participação na “vontade geral” transcendental, nela ficando cativas.

O estabelecimento do direito de voto universal e igual, não simultâneo e apenas no século XX realizado em grande parte, pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos, bem como a inclusão na forma jurídica burguesa e o livre acesso a todas as carreiras também para as mulheres, há muito tempo mostraram na prática que a assimetria de género não pode ser assim abolida e que tem de ter outras causas que radicam mais fundo. Apesar disso, também para o feminismo até hoje a percepção da relação de género é filtrada pelo deficit de cidadania das mulheres, questão hoje tornada irrelevante na maioria das regiões mundiais. A desvalorização e menorização das mulheres, empiricamente perceptível tanto antes como depois, deve continuar a ter sempre uma resposta “política”, ou seja, através de programas de igualdade na forma jurídica geral, eternamente repostos e assim entendidos como modificações da “vontade geral” “a que as mulheres têm direito”. Mas, implicitamente, a inconfessada “associação masculina” socialmente transversal pode continuar a produzir efeito, mesmo depois da plena capacidade jurídica e cidadania das mulheres, precisamente porque a “vontade geral”, enquanto forma dupla de Estado e mercado, já está androcentricamente determinada nas suas raízes; é no carácter estruturalmente masculino das próprias categorias que escorrega a igualdade formal e se aponta para a “tácita” relação de dissociação.

Mas esta relação só pode ser rompida e abolida se forem simultaneamente abolidas a forma do valor que lhe corresponde dialecticamente e com ela a “vontade geral” transcendental em geral; mas não no interior deste contexto formal autonomizado. As formas de manifestação elementares da “riqueza abstracta”, porém, são tão “tabu” para as mulheres como para os homens. Daí que a teoria crítica da dissociação e do valor e a tematização por ela mais aprofundada da assimetria de género, que mexe na zona de tabu social, é hoje ainda mais excluída, abafada ou ignorada, para as próprias estruturas androcêntricas da empresa científica burguesa a poderem continuar a manter como “acessório reconhecido” sem perderem a reputação. Mas a simples ignorância não resolve nada. A crise mundial objectiva da “riqueza abstracta” e do seu “sujeito automático” torna-se também a crise mundial objectiva da relação de dissociação sexual, quer a consciência dominante, incluindo a de um feminismo democraticamente domesticado, queira agora perceber isso ou não.

18. O idealismo de Estado alemão como "herança" do movimento operário e a expansão capitalista das funções do Estado

No redutor horizonte de emancipação da obtenção da cidadania e do mero reconhecimento da mercadoria força de trabalho como sujeito jurídico burguês, ao mesmo tempo a estatalidade moderna surge para o movimento operário por assim dizer naturalmente como forma geral do “socialismo”. De certo modo o Estado é aqui percebido, à semelhança do que acontece no iluminismo escocês e anglo-saxónico, como “instância extra-económica”, no entanto não negativamente, como “necessário” monstro do poder, por um lado, e potencial “factor de perturbação” da “mão invisível” vitoriosa, por outro; mas sim positivamente, como pretensa instância de justiça social, na qual a repressiva “vontade geral” se dissolve num “bem comum” ideológico fictício. Através desta inversão, o movimento operário conseguiu assumir também elementos do iluminismo francês, na medida em que o “bem comum” entendido estatalmente surgia simultaneamente como ênfase da “vontade geral” na sua forma concebida unilateralmente política; em última análise, como o “primado da política” sobre a economia vagamente definida, desde então e até hoje repetidamente invocado. A partir desta confusão ergueu-se o imparável moinho de orações da fraseologia de esquerda relativamente ao “ter de ser politicamente”, à “politização”, à “mobilização política” etc., sem jamais reflectir criticamente sobre a origem problemática deste pensamento.  

Apesar da assimilação parcial de elementos reformados da teoria do Estado da filosofia iluminista anglo-saxónica e francesa, a verdadeira “herança” do movimento operário relativamente a este problema consiste sobretudo na adaptação do idealismo de Estado alemão. Esta tendência principal tem uma dupla razão. Por um lado, foi novamente a “modernização atrasada” especificamente marcada na Alemanha que, juntamente com uma industrialização tempestuosa forçada após a fundação do Império em 1871, acentuou de forma particularmente reforçada a questão da cidadania. Sob tais condições o movimento operário alemão rapidamente se tornou o mais forte numericamente e o mais bem organizado na Europa. Por outro lado, o programa de emancipação reduzido à cidadania não só encontrou aqui previamente uma filosofia burguesa do Estado correspondentemente interpretável no próprio espaço linguístico, mas essa capacidade de interpretação também foi para além da francesa. Uma vez que particularmente Hegel tinha formulado aquela “superação” da sociedade civil e das suas categorias económicas na estatalidade, como a “mais alta expressão” do “princípio da razão”, este idealismo de Estado pôde facilmente ser reinterpretado numa ideologia de estatização “socialista”, ou pelo menos fornecer a esta opção maioritariamente dominante no pensamento do movimento operário uma legitimação especificamente “alemã”.

Em virtude da sua força organizativa e da sua ideologia legitimatória particularmente idealista de Estado, o movimento social-democrata alemão tornou-se uma espécie de modelo e “professor” para os partidos operários na Europa e fora dela. O agressivo idealismo de Estado hegeliano, como momento essencial da “ideologia alemã”, entrou assim, relativamente independente da teoria de Marx e por assim dizer à sua frente, na estrutura de pensamento do “socialismo”, assim se espalhando como uma epidemia. Na Alemanha o responsável foi em primeiro lugar o chefe hegeliano dogmático “socialista” e concorrente de Marx, Ferdinand Lassale. Ele assumiu o conceito hegeliano de Estado como princípio absoluto da razão, civilização e justiça social, em si pretensamente superador da economia capitalista e da sua máquina concorrencial; esta qualidade já fora atribuída ao Estado iluminista prussiano, de acordo com seu poder. Como é sabido, Lassale não deixava de estar inclinado para, neste entendimento idealista do Estado como instância superior, encarar uma aliança do movimento operário com a administração prussiana de Bismarck contra os “capitalistas”. Apesar de todos os desmentidos, o estatismo filosófico hegelo-lassaliano penetrou até à medula na social-democracia alemã e não só. Mesmo até na ex-RDA o absurdo culto da Prússia e o “sofisticado” passo de ganso do exército podem ser reconduzidos mais à síndrome ligada ao nome de Lassale do que à teoria crítica de Marx.

O idealismo de Estado alemão manteve também o seu alimento material no funcionamento social e científico oficial, através do posterior desenvolvimento capitalista desde o fim do século XIX. Para lá dos problemas específicos de uma generalização “atrasada” da cidadania (na Alemanha ainda não concluída), o processo de socialização capitalista por todo o lado exigia o alargamento das funções do Estado. À medida que a industrialização se desenvolvia sobre as suas próprias bases, precisava cada vez mais de infra-estruturas e condições de enquadramento institucional dos mais diversos tipos; desde o sistema académico de ciência e educação, passando pelo serviço de saúde, o fornecimento de energia, as redes de comunicações e transportes, até às novas formas de juridificação e de administração das pessoas – não esquecendo a máquina militar industrializada. O estatismo funcional prático amalgamou-se com o idealismo de Estado ideológico.

Particularmente na Alemanha e na França e depois também no resto da Europa continental, constituiu-se simultaneamente uma “política social” imperialista, para pacificar relativamente as contradições sociais internas, estabelecer uma espécie de cuidados vitais públicos face à dinâmica capitalista e enquadrar a “mão-de-obra” com um novo paternalismo de Leviatã. A legislação social de Bismarck, com é sabido, tornou-se paradigmática neste campo. Num longo processo até bem dentro do século XX, momentos desta tendência para um “Estado social” impuseram-se mais ou menos claramente por todo o lado, mesmo no espaço anglo-saxónico. Nunca nem de modo nenhum se tratava aqui de libertação social, mas sempre do tratamento da contradição repressivo, na base do fim em si capitalista. Já Hegel, na Filosofia do Direito, se tinha visto obrigado a conceder, contrariado, que “em caso de excesso de riqueza, a sociedade civil não é suficientemente rica, isto é, a propriedade duma fortuna não é suficiente para tratar do excesso de pobreza nem da alimentação da populaça” (destaque de Hegel). Não se trata da satisfação das necessidades, mas sim de “controlar a populaça”, na qual “o diabo” nasce; e não propriamente através da “pobreza em si”, mas sim através da “disposição que lhe está associada” para um “levantamento interno contra… a sociedade, o governo etc.”.

Embora esta política social capitalista e precisamente na Alemanha estivesse desde logo ligada a uma forte repressão política (“Leis contra os Socialistas”) e embora aqui a imposição da subjectividade jurídica e da cidadania universais e iguais só fosse concluída em 1918, há muito tempo que havia uma aliança entre a estatalidade capitalista oficial e o movimento operário social-democrata sobre a via estatista. Declaradamente ou não, isto é apadrinhado pela “racionalidade estatal” hegelo-lassaliana. A expansão das funções estatais por via legislativa no processo capitalista de socialização negativa e a reinterpretação “socialista” do idealismo de Estado alemão como força de “democratização” e “socialização” da “vontade geral” transcendental levaram a uma convergência ideológica que se repercutiu também nas instituições políticas e abriu caminho para a “capacidade de governo” leviatãnica da social-democracia. O que tinha começado na Alemanha transformou-se, no decurso do século XX, mais ou menos numa ideologia mundial “socialista” e estatista burguesa, com consequências práticas diferentemente marcadas.

19. A crítica do Estado no jovem Marx: as contradições da "vontade geral" transcendental

Coloca-se agora, naturalmente, a questão de saber em que relação está a teoria de Marx com o idealismo de Estado do movimento operário e com o conceito burguês de “vontade geral” transcendental em geral. Esta questão não pode ser respondida sem ambiguidade. É precisamente neste ponto que se faz notar de modo particular a contradição interna do pensamento de Marx, entre a teoria da modernização e a crítica categorial. A falta de uma teoria do Estado explicitamente elaborada não se deve apenas à circunstância de Marx não ter voltado ao assunto durante a sua vida, embora esta temática estivesse incluída no plano de O Capital. Pelo contrário, mostra-se aqui que Marx apenas condicionalmente e sem grande convicção incluiu o conceito de Estado na crítica categorial; este mantém um momento exterior relativamente às categorias económicas. Daí que as afirmações fragmentárias de Marx sobre o Estado em diferentes épocas da sua elaboração teórica são completamente diferentes.

Acontece que as reflexões explícitas e incisivas sobre a teoria do Estado estão precisamente nos primeiros escritos e o seu alcance vai além das posteriores discussões do tema. Aqui se mostra, mais uma vez, a inoportunidade de uma leitura limitada à filologia e positivista que, na sequência de Althusser, gostaria de dividir a obra de Marx num corpus inicial “não científico” e num posterior “científico”. A obra de Marx constitui uma unidade contraditória e em processo, na qual se constroem ideias transcendentes de crítica categorial em diferentes níveis de elaboração teórica. Tais ideias em parte ressurgem mais tarde numa nova forma, mas em parte também ficaram inacabadas ou foram cobertas por outras linhas de argumentação. Isto aplica-se precisamente aos fragmentos do jovem Marx sobre a teoria do Estado: nomeadamente o relativamente volumoso Crítica da filosofia do Direito de Hegel, tal como os ensaios A Questão Judaica, Contribuição para a Crítica da filosofia do Direito de Hegel – Introdução e Glosas Marginais de Crítica ao Artigo de um Prussiano. Estes textos estão datados de março de 1843 a julho de 1844. No curto espaço de pouco mais de um ano consumou-se a enorme condensação de um decisivo processo de elaboração teórica e com ele uma viragem na reflexão de Marx, a qual se manteve contraditória e no seu conjunto aponta para a contradição interna do “duplo Marx”. O problema passa fundamentalmente ao lado da filologia de Marx corrente (mesmo a académica de esquerda), que não tem quaisquer critérios para ele, na medida em que não só ela própria se mantém presa nessa contraditoriedade, mas até regrediu para trás da mesma. Nesse ano de 1843 consumou-se em Marx uma transformação do democratismo radical burguês numa crítica qualitativamente nova que, no entanto, se mantém de certo modo acometida pelas escórias da velha concepção. No contexto da reflexão sobre a teoria do Estado, estes momentos de parcialidade a favor da razão iluminista burguesa ainda não vencida fazem-se notar em três planos.

Primeiro, como já referido, Marx pensa categorialmente de modo no fundamental androcêntrico, como os filósofos do iluminismo; esta característica revela-se generalizada e o problema da “emancipação da mulher” está em Marx e Engels, tal como na esquerda até hoje e mesmo no feminismo, limitado à igualdade formal na forma da “vontade geral”, cujo carácter estruturalmente masculino devia continuar a ser completamente desconsiderado ainda 150 anos.

Em segundo lugar, no texto A Questão Judaica, Marx usa metáforas e clichés evidentemente antijudaicos, que também se podem encontrar frequentemente nos filósofos iluministas e conduziram ao moderno anti-semitismo (também neste ponto o iluminismo é a “mãe de todas as ideologias” da modernidade). É verdade que, como verifica Thomas Haury num trabalho sobre A Questão Judaica (2010), faltam em Marx características estruturais essenciais da visão anti-semita do mundo como um todo; mas Marx usa impensadamente o estereótipo de identificar os judeus com a lógica do dinheiro, para ilustrar exemplarmente as suas reflexões sobre a relação entre idealismo de Estado e sociedade civil mercantil. Isso mostra que para ele continua completamente oculto o papel fatídico do anti-semitismo vindo do iluminismo na formação do Estado moderno (e especialmente da “ideologia alemã” por ele próprio tematizada poucos anos depois), apesar de já se ter começado a formar à sua vista desde o Vormärz [período 1815-1848: Nt. Trad.].

Em terceiro lugar, finalmente, Marx, apesar da “viragem” materialista, continua preso à transhistórica metafísica da história e do progresso de Hegel em traços essenciais da sua nova elaboração teórica, de tal modo que resulta um paradoxo na sua argumentação: o capitalismo e as suas determinações formais elementares, embora por um lado sejam o objecto central da crítica, surgem, por outro lado, como “historicamente necessários” e devendo ser em primeiro lugar implantados; e isso aplica-se então afinal também à estatalidade moderna e à esfera política que dela faz parte.

Apesar destes momentos de parcialidade a favor da razão iluminista, as reflexões de Marx do ano de 1843 avançam os traços fundamentais de uma teoria crítica do Estado depois não mais alcançada. Marx verifica que a estranha duplicação em Hegel da sociedade moderna em sociedade civil e Estado só na aparência é superada no Estado; de facto, porém, a “realidade consciente… da questão geral” permanece como estatal “apenas formalmente”; o cidadão do Estado como tal é separado “da sua própria…realidade empírica” e como “idealista do Estado” é um “ser… completamente diferente” do que é na sua efectiva reprodução material (Crítica da filosofia do Direito de Hegel). As “questões gerais” não são as questões comuns da aplicação dos recursos sociais às necessidades vitais concretas de todos, mas são “comuns” num sentido completamente diferente: a saber, como abstracção desses “elementos” da produção real e das necessidades, que são organizados numa forma precisamente não comum e são pressupostos à estatalidade; portanto, “o Estado político… faz valer a sua generalidade precisamente em oposição a estes seus elementos” (A Questão Judaica, destaque de Marx). A verdadeira vida material e social é determinada pela concorrência universal de indivíduos abstractos (socialmente ligados de forma precisamente não consciente); e é justamente esta espécie de socialidade negativa e inconsciente que transforma a “revolução política”, como acabamento da moderna estatalidade, “num fundamento da sua existência… num pressuposto não mais fundamentado, portanto… na sua base natural” (A Questão Judaica, destaque de Marx).

Perante este pano de fundo, Marx critica então também os chamados direitos humanos da revolução francesa e da declaração de independência americana. Em parte trata-se de direitos civis universais, no sentido do simples idealismo de Estado, em parte daqueles “direitos à liberdade” da sociedade civil, que fixa os seres humanos a uma vida como “mónadas isoladas fechadas sobre si mesmas” na concorrência total, do “direito humano à propriedade privada” no sentido de “propriedade de si” e à “segurança” como “mais alto conceito social da sociedade civil”, nomeadamente como “conceito de polícia” (A Questão Judaica, destaque de Marx). A “democracia política”, diz Marx, consiste portanto no facto de que “nela o homem, não um homem, mas qualquer homem, é considerado como soberano, como o ser supremo; mas o homem na sua manifestação inculta e associal, o homem na sua existência fortuita, o homem tal qual se levanta e anda, o homem tal como ele está corrompido, perdido de si mesmo e alienado por toda a organização da nossa sociedade, está entregue à dominação de relações não humanas…” (A Questão Judaica, destaque de Marx).

A cidadania democrática ainda não implantada já é assim radicalmente criticada por Marx, na medida em que ele agarra a sua base pseudo-natural destrutiva, “associal” e “corrupta”; no entanto não o faz conceptualmente, como aquela duplicação imanente da “vontade geral” transcendental, exterior e indiferente às necessidades, mas sim apenas fenomenologicamente, como o desmoronar-se do “idealismo de Estado” (político, democrático), por um lado, e da vil realidade quotidiana de fúrias monadizadas da concorrência, por outro.

O que subjaz de facto a essa contradição aflora apenas em pequenas formulações provisórias (ainda assim cheias de pressentimentos): a miséria da sociedade civil paradisificada no Estado obriga a uma vida real em que cada homem “considera os outros homens como meio, envilece-se (!) a si mesmo como meio e torna-se uma bola jogada por poderes estranhos” (Crítica da filosofia do Direito de Hegel). Estes poderes estranhos não são pessoas, mas sim um poder reificado e impessoal: “O dinheiro é a essência do trabalho e da vida do homem, alienada dele, e essa essência estranha domina-o…” (A Questão Judaica). Portanto não são os capitalistas que dominam os trabalhadores e trabalhadoras assalariados, isso é apenas a aparência superficial de outra essência que é preciso apreender, mas todos os indivíduos são dominados pelo dinheiro (que funciona aqui como símbolo do contexto ainda indefinido do “sujeito automático” da valorização do valor).

Nesta reflexão condensada, ainda inconsciente das suas consequências, a cidadania surge não como horizonte redutor de emancipação, nomeadamente porque socialmente limitada no sentido do burguês proprietário, à semelhança do movimento operário, mas sim como definição em si negativa: é indiferente a quem pertence a cidadania nacional, seja a “todos” ou não – a sua estrutura aporética aplica-se a todos os sujeitos nela abrangidos, independentemente da respectiva função social para o “dinheiro” (capital). Daí a conclusão: “Somente quando o homem individual real recuperar em si o cidadão abstracto e, em seu trabalho individual e em suas relações individuais, se converter, como homem individual, em ser da espécie, somente quando o homem tiver reconhecido e organizado as suas ‘forces propres’ como forças sociais e quando, portanto, já não separar de si a força social sob a forma de força política, somente então se realizará a emancipação humana” (A Questão Judaica, destaque de Marx).

Aqui se diz claramente que a praxis da emancipação social, e já a aproximação a ela, no fundo não pode acontecer na forma da cidadania, nem portanto na forma de uma “força política”, mas apenas em oposição consciente a ela. É o que Marx reforça pouco depois quando constata: “Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram a razão do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar outra forma de Estado” (Glosas Marginais de Crítica ao Artigo de um Prussiano, destaque de Marx). Assim proferiu o jovem Marx uma sentença aniquiladora contra todos os politicastros, “democratizadores” etc. de esquerda e socialistas até aos dias de hoje, que também nunca procuram a “razão do mal” na “essência” do Estado moderno em geral, isto é, dito para além do jovem Marx, na forma política da “vontade geral” fetichista a priori, mas sempre espreitando e ansiando por alternativas aparentes precisamente nesta forma. Estas, porém, rompem-se necessariamente nos seus próprios pressupostos, que o Estado não consegue dominar, porque é a mera expressão política deles: “A administração deve limitar-se a uma actividade formal e negativa, uma vez que onde começa a vida civil e o seu trabalho, exactamente aí cessa o poder da administração” (Glosas Marginais de Crítica…, destaque de Marx). Sem conseguir uma formulação mais exacta, Marx vê, portanto, a indisponibilidade por princípio do trabalho abstracto e do valor para o Estado, precisamente ao contrário da duvidosa “magia da superação” hegeliana.

Assim se completa a sentença contra os beatos de esquerda fixados no que é político: “O entendimento político é político precisamente porque pensa dentro dos limites da política… No entanto, o socialismo, logo que tenha início a sua actividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objectivo, a sua alma, desembaraça-se da capa política” (Glosas Marginais de Crítica…, destaque de Marx). Com estas reflexões de 1843/44 sobre a teoria do Estado, aqui recapituladas, Marx abriu a porta a uma crítica do Estado no plano do “sujeito automático” até hoje não conseguida, crítica que continua a ser absolutamente incompreensível para todo o marxismo. No entanto as razões históricas para este falhanço da abordagem de Marx encontram-se na própria teoria de Marx que, por assim dizer, permaneceu aquém da sua própria investida.

20. O duplo Marx e a dupla definição do político

Marx, obviamente, não estava nada consciente do alcance da sua reflexão crítica, que visava muito para além das linhas de conflito do seu tempo, relativamente ao conceito de estatalidade e à sua relação com a sociedade civil, ou seja, com a reprodução económica do capital. Já foi de facto espantoso ele ter conseguido ir assim completamente além da sua época. A investida num pensamento para além da constelação histórica do “sujeito automático” em processo de implantação já é suficientemente admirável. Quase no mesmo folgo, encontram-se ainda em Marx reflexões que se integram no redutor horizonte de emancipação do movimento operário nascente e que apenas procuram estimular este com um certo refinamento dialéctico.

Assim escreve ele na Primavera de 1843 sobre a reforma eleitoral do movimento cartista: “Com o direito de voto sem restrições, tanto activo como passivo, a sociedade civil ergueu-se realmente pela primeira vez em abstracção de si mesma, em existência política, como sua existência verdadeira, universal e essencial. Mas a consumação desta abstracção é simultaneamente a superação da abstracção. Ao estabelecer a sua existência política como a sua verdadeira existência, a sociedade civil estabeleceu simultaneamente como não essencial a sua existência civil, ao contrário da sua existência política; e com uma, separada, cai a outra, sua oposta. A reforma eleitoral no interior do Estado político abstracto é, portanto, a exigência da sua dissolução, mas também a exigência da dissolução da sociedade civil (Crítica da filosofia do Direito de Hegel, destaque de Marx). Por um lado, Marx não deixa quaisquer dúvidas de que a libertação social tem de incluir, juntamente com a eliminação da duplicação da sociedade em Estado e sociedade civil (aliás, economia capitalista), também a eliminação de cada um de ambos os lados como tal. Por outro lado, em primeiro lugar ele gostaria, como bom hegeliano, de ver a “dissolução do Estado político” precisamente na sua realização ou “acabamento” (democrático); e, segundo, ele considera a fartura da “reforma eleitoral” (direito de voto universal e igual) como o passo decisivo deste “acabamento enquanto dissolução”. Esta rabulice positivamente dialéctica não consegue esconder que Marx argumenta aqui desesperadamente contra os seus próprios pontos de vista sobre o carácter inelutavelmente afirmativo da estatalidade e da política. Ele assume aqui abertamente a ilusão de que se poderia simplesmente “derrotar pelo voto”, por decisão da maioria, o capitalismo e a sua forma estatal.

Este balançar na reflexão, o assustar-se perante as suas consequências, não se deve de modo nenhum só à falta daquela conceptualidade desenvolvida apenas mais tarde na crítica da economia política. Antes de mais Marx faz nolens volens uma inconfessada concessão ao ímpeto do movimento operário em formação, que ele precisava de considerar destinatário da sua teoria e força histórica para a abolição do capitalismo (como seu “coveiro”). Com uma força irresistível impôs-se-lhe portanto a exigência de não estragar à partida as suas relações com este “sujeito” social, de modo que ele não denunciasse definitivamente a sua “missão” histórica de assumir a cidadania, participando na “vontade geral” transcendental a priori. Portanto, Marx teve de relativizar mais uma vez a crítica radical da estatalidade e da “politização”.

Para se afastar desta questão teórica, Marx procura, através de um jogo de palavras formal de dialéctica positiva, consumar uma manobra de diversão na metafísica hegeliana da história e do progresso, virada de modo meramente “materialista”, mas não suplantada: “Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso; embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela é a última forma de emancipação humana no interior da actual ordem mundial” (A Questão Judaica, destaque de Marx). A ideia inicial, de que é precisamente a “revolução política” em si e como tal que desde logo transforma definitivamente a socialização negativa através do capital na “base natural” da vida dos indivíduos, é aqui torcida no sentido de uma “necessidade histórica” precisamente dessa revolução política, ou generalização da cidadania, a qual de repente surge como “progresso” (ainda que limitado). Assim se afasta Marx novamente do ponto de vista de que a entrada nas formas da estatalidade e da política (portanto neste aspecto formal da “vontade geral” transcendental) equivale a enjaular-se naquela falsa “base natural”, forçando a consciência apenas à correspondente “emancipação” afirmativa de que se lembrou Kant. Daí que se torna agora, simultaneamente, uma mera “meia emancipação política” (A Questão Judaica), que supostamente seria para “acabar” enquanto negação dos seus próprios pressupostos e consequentemente de si mesma – uma contradição em si; não, porém, na realidade, mas sim na reflexão de Marx, na qual o cavalo da ideologia da modernização toma aqui o freio nos dentes.

A necessidade ainda assim reconhecida de suplantar a forma político-estatal é pois adiada para um futuro incerto, enquanto a implantação desta mesma forma seria considerada antes de mais como “progresso” provisório, de modo que precisamente por isso a sua afinal negação tem de figurar mais uma vez como seu “acabamento”. Três anos depois, no inverno de 1846/47, Marx já amalgamou em grande medida a crítica do contexto da forma social com o conceito de “luta de classes”, de tal modo que a crítica categorial fica enevoada pela referência positiva à contradição imanente entre dois sujeitos funcionais do fetiche do capital, na qual se inscreve historicamente o movimento de modernização como generalização da cidadania. Agora formula ele na polémica com Proudhon: “Mas a luta de classe contra classe é uma luta política” (Miséria da Filosofia); reforçado novamente, um ano depois, no Manifesto Comunista, onde também se diz: “Cada luta de classes, porém, é uma luta política”. Assim se denuncia involuntariamente a luta de classes no redutor horizonte de emancipação da implantação da cidadania como acção na “base natural” capitalista, no sentido de implantação em vez de abolição dos seus princípios formais e categorias funcionais.

A forma da luta de classes é precisamente a forma política “no interior de cujos limites” desde logo se tem de pensar. Aqui é preciso recordar mais uma vez que deste modo reivindicações parciais imanentes absolutamente necessárias (sobretudo direito à greve, liberdade de reunião, liberdade de associação) já não surgem como simples medidas de luta, para se poder afirmar contra o capital e o Estado em nome de interesses vitais elementares, mas sim, simultaneamente, como codificação jurídica em nome da própria subjectividade jurídica burguesa, que pressupõe um compromisso com o Estado. O sistema de referência positiva da cidadania torna-se decisivo para a luta social, retirando-lhe assim a força explosiva. Imanência e transcendência trocam de lugar; o rebentamento da gaiola política e também estatista é transferido para uma época imaginária, para lá do desaparecimento das classes sociais, embora este desaparecimento tenha de coincidir com o dito rebentamento: “Só numa ordem das coisas em que não haja classes nem oposição de classes cessarão as evoluções sociais de ser revoluções políticas” (Miséria da Filosofia, destaque de Marx). O Manifesto Comunista postula mesmo a “organização do proletariado em classe e em partido político”. Está esquecido o postulado do verão de 1844 de que onde “o socialismo começa a sua actividade organizativa”, onde “a sua alma sobressai”, aí “a capa política é deitada fora”. Agora esta capa já não é um mero custo do progresso imanente burguês, mas já se tornou a própria pele. Nas palavras da metafísica da história da razão iluminista e hegeliana, a crítica categorial de certo modo vendeu a alma à política.

21. O conceito de Estado reduzido à sociologia das classes em Marx e Engels

Obviamente que entre 1843 e 1848 abriu-se em Marx um fosso teórico entre a crítica radical da estatalidade e da política em geral e a sua inversa afirmação como “necessária” determinação da emancipação. O conceito de Estado e de política, no sentido de uma forma em si alienada de generalidade abstracta, que pressupõe o reconhecimento do fim em si capitalista como “base natural” indisponível, é totalmente incompatível com a orientação democrática para o Estado e a “organização em partido político”. A referência a uma metafísica do progresso “dialéctica” não podia por si só colmatar essa divergência. Mas a ambicionada associação da teoria crítica com o movimento operário e a concomitante redução conceptual do problema à “oposição de classes” funcional imanente foram o pretexto para uma orientação no sentido duma solução aparente da contradição em definições conceptuais, onde a crítica a Hegel foi meio reassumida e o problema foi por assim dizer removido para um patamar conceptual mais fundo.

Assim se diz agora no Manifesto Comunista: “O moderno poder de Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Afirmação que é de imediato generalizada de modo transhistórico: “O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”. Aqui se desloca a definição de Estado do conceito da sua essência, como generalidade abstracta negativa, para uma simples “requalificação”, nomeadamente “comissão”, “poder organizado” ou “instrumento” de uma classe social actualmente dominante. A essência de uma forma transcendental, sobrejacente e a priori da vontade social é escondida e desaparece, melhor: é retransformada em simples “qualidade de classe” e faz-se passar esta como definição essencial, embora logicamente já não se fale mais do conceito de Estado, mas apenas de uma qualidade social do Estado.

Marx regride aqui com Engels atrás da sua crítica de 1844, na qual tinha dito que “mesmo os políticos radicais e revolucionários” não procuram a “raiz do mal” na “essência do Estado”, mas apenas numa “determinada forma de Estado”, que pretendem trocar por “outra”. Agora ele próprio se inclui de certa maneira entre os então criticados, uma vez que já não procura a “raiz do mal” na determinação da forma da estatalidade em geral (como duplicação da “vontade geral”), mas sim apenas numa “determinada forma de Estado”, que ele vê caracterizada pela sua qualidade de classe. Assim, porém, já não é suficientemente criticada a definição de Hegel e de Lassalle do Estado, como (pretensa) “superação” da sociedade civil, surgindo a crítica já apenas num plano reduzido e subordinado. Hegel e Lassalle não tinham reconhecido o “carácter de classe” do Estado burguês e é aqui que é vista a diferença fundamental. Num metaplano, no entanto, a estatalidade continua a ser mantida como generalidade em si positiva, que só teria de ser provida de outra “qualidade de classe” ou preenchida com outro “conteúdo de classe”.

Perante esta redução do conceito de Estado, paga-se aqui também pelo facto de Marx, mesmo nas suas continuadas reflexões de 1843/44, não ter submetido explicitamente a uma crítica radical a definição iluminista da “vontade geral” transcendental, tendo-se ficado, pelo contrário, numa fenomenologia das contradições da duplicação de sociedade civil e estatalidade. Evidentemente que ele também precisava da redução conceptual para poder atribuir ao movimento operário nascente e ainda limitado à intenção de obter a cidadania um carácter transcendente e “explosivo”. No fundo Marx, com o seu constructo enviesado, considerava que a pressão imanente para o acesso à cidadania com igualdade de direitos poderia ser interpretada como mudança de sinal da estatalidade “em função das classes”. Por um lado, para isso ele teria de impingir ao movimento operário um objectivo diferente do que de facto impingiu, uma vez que este consistia apenas em conseguir entrar na forma política burguesa. Por outro lado, a ideia de que uma “interpretação” da estatalidade diferente “em função das classes” pudesse significar uma qualidade essencialmente nova já era em si uma ilusão, uma vez que o próprio Marx tinha reconhecido em 1843 que a estatalidade em si significa pressupor inconscientemente a reprodução capitalista como “base natural”.

Com a redução do conceito de Estado a uma “comissão de gestão de negócios” da “classe dominante” o Manifesto Comunista reforçou um desenvolvimento teórico e uma linha de argumentação que havia de levar ao abandono da crítica categorial em favor de uma crítica sociologicamente redutora. Assim foi aberto o caminho pelo próprio Marx para uma interpretação histórica da sua teoria em que a crítica já não visava as categorias basilares do capital, incluindo o Estado, mas ontologizava o Estado, para, em vez disso, pretender simplesmente por assim dizer “inverter a polaridade” da “qualidade de classe” das categorias positivadas. Na sequência da concessão à consciência limitada do movimento operário, complementarmente à redução do conceito de Estado, também já não se trata da forma do valor e da forma do dinheiro da reprodução, mas apenas da “qualidade” da propriedade jurídica inerente a essa forma; os “comunistas”, diz o manifesto, “salientam… a questão da propriedade… como a questão fundamental do movimento”.

O Manifesto também regride muito para trás da crítica de democracia feita por Marx em 1843, quando diz: “O primeiro passo da revolução dos trabalhadores para elevar o proletariado a classe dominante é a luta pela democracia”. Em primeiro lugar, repete-se aqui a ilusão de que através do direito de voto universal e igual (luta pela democracia) o capitalismo poderia ser “derrotado pelo voto” da maioria popular proletária “em função das classes”. Por maioria de razão se deixa de ver que a “vontade geral” transcendental, precisamente na sua forma democrática “completa”, acorrenta a consciência à falsa “base natural” capitalista, e portanto também à concorrência universal, mesmo dos trabalhadores e trabalhadoras assalariados entre si. Em segundo lugar, no entanto, a elevação do proletariado a “classe dominante”, imaginada como “luta pela democracia”, só pode reproduzir a relação de capital na mesma base categorial; os funcionários do capital variável transformar-se-iam apenas em funcionários do capital monetário, ou capital constante, e enfraqueceriam ou até destruiriam a representação do capital variável, sem a abolir como tal.

Finalmente o Manifesto formula também o programa de uma mera nacionalização do contexto capitalista formal e funcional não suplantado: “O proletariado usará a sua dominação política para… centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante…”. Com isso, no entanto, a transformação de funcionários do capital variável em funcionários do capital constante, ou do capital monetário centralizado (os quais, no entanto, simultaneamente se declaram “verdadeiros” representantes do primeiro) seria idêntica à sua transformação em agentes repressivos do Estado. De repente, temos de nos defrontar aqui outra vez com a ilusão hegeliana arqui-alemã de que as categorias da sociedade civil, aliás, da reprodução capitalista, e as suas contradições internas poderiam ser positivamente “superadas” na estatalidade e disponibilizadas como instrumento “político”, em vez de reconhecer o Estado como o lado político formal, geral e abstracto na duplicação da forma da vontade apriorística, a qual exclui precisamente a disponibilidade sobre o contexto funcional interno da valorização do capital pressuposta. Assim se mostra que a redução do Estado e das categorias capitalistas em geral a um sinal “em função das classes” leva na verdade ao antes veementemente criticado idealismo de Estado alemão e particularmente hegeliano; a “definição de classe” sociologicamente redutora não altera o mínimo na definição categorial da essência, pelo contrário, apenas desloca as contradições internas “para” o proletariado, como suporte funcional do capital e das suas formas de representação, de modo que a “representação da classe proletária”, por sua vez, se cinde necessariamente nas diversas formas funcionais do capital e tem de se virar contra si mesma.

22. Trinta anos depois. A reprodução do conceito redutor de Estado no Anti-Dühring de Engels

De certa maneira o Manifesto Comunista assume uma posição intermédia entre o conteúdo de crítica do Estado, da democracia e da política dos primeiros escritos de 1843/44 e a crítica desenvolvida da economia política a partir da década de 1850. Nos citados primeiros escritos, Marx aproxima-se em algumas partes de uma teoria negativa do Estado, que dá a volta criticamente ao conceito de “vontade geral” transcendental da ideologia do iluminismo, ainda que não o analise expressamente como tal. Mas a esta aproximação falta ainda aquele aparelho conceptual da crítica da economia política correspondente à definição crítica essencial que havia de se exprimir nas formulações do conceito de fetiche, da “riqueza abstracta” como fim em si e do “sujeito automático” como máquina funcional da valorização. Precisamente por isso, a crítica da “vontade geral” permanece implícita e inacabada. Inversamente, porém, nos trabalhos posteriores sobre crítica da economia política, Marx já não regressa às primeiras definições negativas de estatalidade, democracia e política, embora ele agora já dispusesse da aproximação conceptual e analítica para poder esclarecer no plano categorial a duplicação do fim em si a priori em Estado e economia. Tanto nos primeiros escritos de crítica do Estado como também nos muitos textos de crítica da economia política encontram-se simultaneamente linhas de argumentação daquela redução à sociologia das classes, como auto-aprisionamento no redutor horizonte de emancipação do movimento operário, que estão em contradição com as abordagens de crítica categorial.

O Manifesto Comunista representa de certo modo uma condensação deste contexto de argumentação reducionista e sociologicamente redutor. Daí que ele também se tornou o texto favorito e vade-mécum de um “marxismo” que até hoje se manteve definidor para uma crítica social de esquerda (mesmo nas variantes pós-modernas) que baixa logo os antolhos perante a referência aos momentos de crítica categorial em Marx, tanto relativamente ao Estado como à forma de mercadoria.

Sobretudo o Anti-Düring de Engels mostra como se ergueu uma barreira inultrapassável entre a primeira crítica categorial da estatalidade, da democracia e da política, por um lado, e a crítica da economia política formulada em O Capital, por outro. Naquele escrito, elaborado poucos anos antes da morte de Marx, no entanto com seu conhecimento e aprovação, e que se tornou para a social-democracia um “curso abreviado” de “marxismo” muito mais lido que O Capital, consolidou-se, trinta anos após o Manifesto, o seu conceito reducionista de Estado, só de forma inessencial e vaga misturado com pontos de vista da crítica da economia política.

As célebres formulações de Engels dizem em primeiro lugar: “O Estado moderno… é apenas a organização de que a sociedade civil dispõe para preservar as condições externas gerais do modo de produção capitalista dos ataques tanto dos trabalhadores como dos capitalistas individuais. O Estado moderno, seja qual for a sua forma, é no essencial uma máquina capitalista, o Estado dos capitalistas, o capitalista colectivo ideal. Quanto mais forças produtivas ele assume como sua propriedade, mais ele se torna realmente capitalista colectivo ideal, mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores mantêm-se assalariados, proletários. A relação de capital não é superada, pelo contrário, é agudizada. Mas, no auge da agudização, há uma viragem. A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução do conflito, mas contém em si o meio formal, a oportunidade da solução”. A contradição conceptual salta à vista: Engels mal se aproximou vagamente da definição de Estado como “generalidade abstracta” face a todos os seus sujeitos funcionais, dificilmente designou o Estado como “máquina essencialmente capitalista” (uma metáfora que poderia ter sido recordada na formulação do “sujeito automático”, entretanto deixada por Marx dez anos antes) – ele detém-se aqui e escapa-se de volta ao terreno do Manifesto, ao identificar a generalidade da estatalidade como “Estado dos capitalistas”. Obviamente que Engels não chegou à diferença entre “capital”, como fim em si da “riqueza abstracta”, e “capitalistas”, como meros funcionários desse fim em si. O que naturalmente por maioria de razão fica completamente desaparecido neste naufrágio é aquele primeiro ponto de vista de Marx, subjacente ao conceito de Estado como tal, de que este tem como sua “base natural” a forma do capital. Por isso Engels diz, de facto, que a estatização não “supera” a relação de capital. Apesar disso, a “forma Estado” há-de ser o “meio formal” e a “oportunidade da solução”.

É evidente para onde Engels se pretende virar: O Estado só não seria a “superação” da relação de capital precisamente porque até agora tem tido de ser “Estado dos capitalistas”. Ele pode tornar-se, portanto, o “meio formal”, na medida em que a estatalidade em si não se desmorona como forma da crítica nem é identificada como o lado político da mesma relação fetichista, mas simplesmente há-de ser carregada com outro conteúdo de classe. Assim prossegue Engels: “O proletariado toma o poder de Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, com isto, suprime-se a si mesmo como proletariado, com isto suprime todas as diferenças de classes e antagonismos de classes, e assim suprime também o Estado como Estado”. Do ponto de visa da reflexão originária de Marx, o caso é precisamente o contrário. Tomar o poder de Estado é, de acordo com a sua forma, o mesmo que assumir a “responsabilidade” pelo sistema do “trabalho abstracto” e, portanto, pelo sistema de fim em si mesmo da “riqueza abstracta”.

De passagem aqui se evidencia o carácter afirmativo do conceito de superação [Aufhebung] na dialéctica positiva de Hegel, pois “superado” [aufgehoben] no sentido de “suplantado” [überwünden] torna-se aqui apenas um estado de agregação ou estádio histórico de passagem do “sujeito automático” que, através e para lá de todas as metamorfoses e desenvolvimentos, se mantém em si eterno como tal, como essência (“superado” [aufgehoben] no sentido de “conservado” [bewahrt]), e que apenas há-de vir “a si” no sentido de uma consciência afirmativa de si mesmo, através do “saber absoluto” da razão iluminista capitalista completada e tornada conscientemente auto-reflexiva. A afirmação de Engels, na verdade, traduz-se em que “o proletariado” não se abole a si mesmo nem ao Estado, mas “supera-se” auto-afirmativamente na estatização das categorias capitalistas não suplantadas, reproduzindo portanto o fetiche capitalista em si mesmo. A transformação dos meios de produção em propriedade do Estado supera o Estado enquanto Estado apenas na medida em que pressupõe o poder lógica e praticamente impossível de dispor sobre os seus próprios pressupostos, portanto não o suplantando assim como forma, sobrecarregando, pelo contrário, a sua essência alienada e repressiva. Infelizmente é preciso dizer-se que o Anti-Dühring permaneceu a última palavra do “marxismo clássico” sobre a teoria do Estado. Mostrar-se-á que a argumentação pós-modernista e pós-marxista apenas piorou o conceito de Estado e o afastou ainda mais da crítica categorial.

Antevisão da segunda parte

Após uma crítica da noção anarquista de Estado, que de modo nenhum consegue corrigir o deficit marxista, abordar-se-á em primeiro lugar as teorias do Estado da esquerda “pós-clássica”, que no seu conjunto não conseguiu sair do dilema clássico. As teses sobre a crença positiva no Estado da social-democracia (Hilferding) e a embalagem ideológica enganadora da “destruição” da máquina do Estado burguês na versão leninista e da esquerda radical conduzem às aporias da estatalidade do “socialismo real” e ao regresso da constituição do Leviatã através da teoria e da praxis do “estado de excepção” no século XX. A crença negativa no Estado da Escola de Frankfurt aponta para conclusões tão falsas como os mais recentes modelos fora de linha da nova esquerda de teorias do Estado estruturalistas até ao pós-operaismo. Com a nova definição conceptual de estatalidade da crítica da dissociação e do valor voltou-se finalmente de regresso à teoria da crise. Para uma crítica da economia política desenvolvida em torno do conceito alargado de Estado é decisiva a indisponibilidade política do “trabalho abstracto” e do dinheiro. Neste ponto se chega, com a nova crise do capitalismo, ao juramento de fidelidade da esquerda categorialmente afirmativa. A revitalização do idealismo de Estado nunca suplantado jamais poderá ocorrer sem uma revisão fundamental da teoria do valor e do dinheiro de Marx, como a que se encontra na convergência das posições aparentemente contraditórias do pós-operaismo, da “nova leitura de Marx”, da redutora crítica do valor barata etc. e que será submetida a uma crítica também fundamental.


Inclusão: 04/11/2020