Pacotes de resgate ideológicos
Carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de ano 2010/2011

Robert Kurz

Janeiro de 2011


Primeira Edição: IDEOLOGISCHE RETTUNGSPAKETE in www.exit-online.org.

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Crise, qual crise? O mundo capitalista mais uma vez se coloca esta pergunta retórica, com plena consciência de que a vitalidade renovada é o que ele gostaria de se auto-atribuir. Mas nem de longe está tão confiante como nos anos anteriores a 2008. Em vez disso, pode notar-se um certo espanto, por ter conseguido safar-se da situação mais uma vez, ao que parece. A queda da economia mundial foi demasiado profunda e a vergonha das previsões científicas foi demasiado grande para que agora pudessem ser oferecidas, com ingenuidade secundária, mais promessas dum novo "milagre económico". O optimismo oficial ecoa ainda com maior estridência na Alemanha, que parece cambalear de um "sonho de verão" [“Sommermärchen”] para outro, só interrompido pelo obrigatório "sonho de inverno" [“Wintermärchen”]. Depois do futebol, agora é a economia que está em alta. Embora sendo vencedor apenas em segundo ou terceiro lugar, imagina-se mesmo assim como campeão mundial dos corações e da gestão da crise. Mas, atrás do mais recente chauvinismo alemão da exportação, sentido com sobranceria democrática, esconde-se o medo. O ar de festa enganador não consegue disfarçar que a “recuperação”, apresentada como surpreendente sucesso do campeão europeu na modalidade de baixos salários, baseia-se numa fraude.

Apesar de ser um facto bem conhecido, mesmo assim volta a ser escamoteado que o carácter deficitário da conjuntura económica não está dominado, mas foi simplesmente transferido das bolhas financeiras para o crédito público e para os bancos emissores. Embora essa política monetária já uma vez se tenha afundado num nível muito mais profundo de crise, após o fim da prosperidade fordista, há quem gostaria de ver nos seus representantes actuais novos curandeiros. Já se fala do carácter "auto-sustentável" de uma recuperação global. Na realidade, a relativa estabilização alimenta-se apenas da inundação desenfreada de dinheiro dos bancos centrais e de programas de investimento público. O suposto sucesso alemão assenta num duplo efeito da intervenção pública de curto prazo. Primeiro, as injecções conjunturais internas evitaram uma queda ainda maior da economia interna, há muito relativamente fraca. Segundo, foram programas públicos semelhantes e às vezes ainda maiores em todo o mundo que permitiram às exportações alemãs evitar a queda a pique e voltar a subir. É apenas esta mudança brusca que cria a ilusão óptica de um boom exorbitante, quando, na verdade, nem sequer o nível pré-crise voltou a ser atingido.

Nem o fluxo de dinheiro dos bancos centrais, nem o consumo público financiado a crédito se podem prolongar arbitrariamente. As elites da Alemanha parecem esperar que a mudança no sentido de uma renovada política de poupança pública, prevista também neste país, seja ainda assim suportada macroeconomicamente pela economia de exportação, mesmo com o aprofundamento da divisão social, que já constitui opção política. Mas estão a fazer contas de merceeiro, no que respeita ao mercado mundial e aos seus contextos de mediação. O problema do deficit não pode ser externalizado numa economia globalizada, devido à interdependência recíproca. Os famosos "desequilíbrios" repercutem-se nos países com superavit logo que o respectivo financiamento, agora apoiado pelo Estado, encontra os seus limites nos países com deficit. Na UE, em particular na zona euro, esta situação já foi atingida. Os encargos dos "pecadores do deficit" são na verdade o reverso dos excedentes de exportação alemães, dos quais quase metade recai nos países vizinhos. Logo que os governos locais realizem aí os programas de poupança suicidas, que lhes foram impostos precisamente pela Alemanha, em nome da salvação do euro, uma parte significativa das exportações alemãs vai cair a pique. Já por esse motivo só pode ser descrito como equívoco grotesco o facto de neste país se festejar autocraticamente um "milagre especial", enquanto a crise da dívida está grassando por toda parte, o desemprego aumenta para níveis record e a recessão se mantém ou está regressando rapidamente.

A ideia de que a economia da Alemanha, baseada em excedentes de exportação unilateral, poderia “desacoplar-se” da miséria de outras regiões, especialmente das vizinhas, também não tem qualquer base viável na esperança nos mercados da China e dos EUA. A desenfreada inundação de dólares do banco central dos EUA é praticamente ineficaz para a expansão do investimento, dado o real excesso de capacidade instalada. Mas faz subir as cotações das acções por todo o mundo, assim como faz subir o consumo interno financiado a crédito, embora a taxa de desemprego tenha passado para mais do dobro. A China, por outro lado, após uma pequena pausa, só conseguiu salvar as suas elevadas taxas de crescimento através dum duplo efeito, tal como na Alemanha. Enquanto a queda dos excedentes de exportação foi amparada com a ajuda dos programas públicos de todo o mundo, ao mesmo tempo o Estado chinês, ao contrário dos EUA, promoveu enormes expansões de investimento financiado a crédito e, desta forma, a construção de máquinas alemã foi de novo puxada para cima, após a queda em 2009. Este investimento de fuga para a frente, porém, acumulou capacidades excedentárias, que a prazo não poderão ser duradouramente aproveitadas, nem pelo mercado interno chinês, nem pelas exportações. Tanto a inundação da economia mundial com dólares como a bolha de investimento chinesa contêm um potencial inflacionário que a médio prazo obriga a correcções severas da política monetária. Está pré-programada a segunda onda da crise económica global e não uma "década de ouro".

O renovado optimismo profissional da política, dos média e dos institutos económicos completa os pacotes de resgate económicos, criados pelo crédito público sem cobertura, com pacotes ideológicos, igualmente vazios de conteúdo. A promessa de alcançar o "pleno emprego", feita com toda a seriedade, não tem qualquer futuro e mesmo o emprego actual é cada vez mais precário. O emprego industrial continua a diminuir drasticamente, enquanto os serviços baratos, improdutivos do ponto de vista capitalista, só aumentam na sequência da ofensiva de exportação, reanimada pelo dinheiro ainda mais barato. Portanto, este "milagre de emprego" secundário, apenas aparentemente baseado na economia interna, chegará ao fim juntamente com a ilusão das enchentes de dinheiro do Estado e dos programas de estímulo económico.

No fundo ninguém acredita na retórica do controlo duradouro da crise, nem mesmo os seus autores. Atrás da fachada pintada de novo do "mar de rosas" continua a fermentar como antes o darwinismo social da classe média insegura. Se os pacotes de resgate económicos altamente deficitários se revelam um fiasco, e com eles também os pacotes ideológicos, os filisteus de estilo de vida pós-moderno verde e vermelho do "novo centro", que até agora ainda se mostravam abertos ao mundo na moral social e nos média, também fazem uma viragem acentuada à direita. Isso levanta a questão do destino futuro da crítica social de esquerda que, mesmo na sua ala radical, pertence social e habitualmente a esse mesmo meio.

Na verdade, a esquerda não consegue perceber o limite histórico da dinâmica capitalista melhor que os guardiães oficiais da ordem estabelecida, pois ainda está menos preparada para isso. A reavaliação crítica do colapso do socialismo real de há 20 anos foi sistematicamente recusada. Poucos quiseram saber alguma coisa da classificação feita pela crítica da dissociação e do valor, a única consequente em termos históricos e de teoria da crise. Em vez disso, a maior parte da esquerda académica e política, quase suspirando de alívio por estar agora "sem alternativas", deleitou-se a ficar socialmente apenas pela "domesticação" do capitalismo, ou a pretender malhar no ferro frio de uma "economia socialista de mercado". Já antes o marxismo do movimento operário não fora categorialmente transformado, mas sim reinterpretado numa nova ideologia de classe média. O catalisador foi o pós-modernismo em sentido lato, que encontrou a sua expressão mais clara nas cantigas folclóricas pós-operaistas desconceptualizadas e se tornou “adequado ao movimento” para um entendimento da práxis truncado e já apenas simbólico.

Neste contexto, pode ter-se pensado que tal esquerda de corte pós-moderno alinha apressadamente no discurso oficial de fim de alarme, para poder passar à velha agenda habitual. Mas essa esquerda está tolhida pelo susto dos seus membros, sem que se tenha movido nem um milímetro no sentido da teoria da crise. Ela espera, de certo modo baixando a cabeça, pelas próximas pancadas da objectividade negativa há muito negada. A "lei natural" secundária da crise não é assim aguçada para a transformação da crítica, mas é a crítica da ideologia do sujeito, há muito embotada, que é torcida num projecto de auto-preservação da própria existência capitalista. A esquerda, de certa maneira como artista da embalagem, começou a embrulhar-se a si mesma, incluindo todo o seu espectro, como um pacote de resgate ideológico.

Daí que se possa observar não um debate teórico mais rigoroso sobre as questões de fundo tornadas pouco claras, mas, pelo contrário, a aglutinação de todas as diferenças de conteúdo, simplesmente para não cair na zona problemática da crítica categorial, nem sequer por acidente. Embora a base do negócio social do pós-modernismo tenha entrado em colapso juntamente com a economia das bolhas financeiras, a sua metafísica da ambivalência e da contingência festeja o último triunfo na esquerda ideológica do movimento e académica. Está-se quase na iminência do grande congresso partidário de unificação da "diversidade", cuja única conexão consiste na diluição teórica recíproca. Em vez da luta necessária por uma nova verdade histórica, vem a insípida festa travesti, como carnaval das antigas escolas teóricas; um desértico "devaneio colectivo", que não faz qualquer síntese teórica, mas mistura uma mixórdia intragável, cujo “sentido” afirmativo se revela apenas a partir da crítica dessa abordagem.

Central é o postulado da culturalização total do social. Enquanto em Marx e Adorno ainda há o pressuposto de que as relações sociais também representam relações naturais (nunca isoláveis como tais), a ideologia pós-moderna apaga o momento natural. A isso corresponde a negação de qualquer determinação da substância, ou da essência, e o culto da superficialidade habitual. É assim que o devaneio desconstrutivista queer nega que as construções histórico-sociais da sexualidade em geral são arranjadas com uma corporeidade masculina e feminina, também válida para as relações homossexuais e transexuais, e por isso não têm nada a ver com "heteronormatividade". Mas, se não deve “existir” o corpo masculino e feminino como superfície de projecção, a relação hierárquica de género dissolve-se em individualidades abstractas arbitrariamente “amovíveis" e torna-se redundante a crítica da dissociação sexual profundamente assente na sociedade. O movimento queer revela-se, assim, como pacote de resgate ideológico do universalismo androcêntrico na crise, por isso mesmo se tornando inflacionário.

Um efeito semelhante ocorre quando o pós-operaismo e a "nova leitura de Marx" denunciam de modo bem pós-moderno a teoria marxiana do valor e do dinheiro como "substancialista" e "naturalista". A abstracção real deve ter lugar apenas como acto da circulação e nega-se o carácter de mercadoria do dinheiro, com o que, no entanto, a quantificação objectiva do valor dá em nada, ou acaba numa convenção institucional baseada simplesmente na teoria da acção. Esta revisão teórica constitui o momento central do desarmamento da crítica da economia política, para incorporá-la também no pacote de resgate ideológico. Está aqui implícito, nomeadamente, que o Estado não tenha como pressuposto (objectivo) indisponível a valorização real e a sua expressão na forma do dinheiro, mas que, pairando como "última instância", deva possuir o comando político e, portanto, a competência para a gestão da crise.

É precisamente neste ponto que se torna clara a convergência das reacções burguesas e pós-marxistas à crise. A situação é grave, mas promissora do ponto de vista capitalista, porque o Estado, como instância de recurso, continua tendo a última palavra. A fé no Estado de esquerda e negativa, que ainda se pode encontrar na teoria crítica anterior, transforma-se numa viragem estatista positiva, que já nem sequer se pode considerar furtiva. Em toda parte os meios da esquerda radical fracassada se exorcizam mutuamente, no sentido de que orientações parlamentares e organizações eleitorais não devam ser "excluídas", porque já se está nessa viagem, um pouco mais discretamente. A festa travesti teórica é também uma festa travesti politicista, ou melhor, o seu veículo. Quase parece que desejariam oferecer-se ao Estado como pacote de resgate ideológico, para repetir a carreira da antiga nova esquerda, até à burocracia ministerial. Ainda que esta opção também possa ser ilusória nas novas condições, mesmo assim a esquerda do movimento, já não propriamente fresca, parece levar a sério, à sua maneira, o slogan neo-liberal da "crise como oportunidade".

No campo da crítica social, no entanto, o primeiro efeito marcante da crise económica continua a ser obviamente a social-democratização pós-moderna, até de grande parte da chamada esquerda radical; e incluindo aqui uma crítica do valor barata e truncada, que já não é crítica do valor nenhuma. A crítica da dissociação e do valor representada pela EXIT! naturalmente que jamais participará nessa tendência, pelo contrário, desenvolverá a polémica teórica contra ela. Não se trata de ir atrás de erráticos círculos de esquerda literalmente entrelaçados [kreuz und queer], mas sim de afirmar o novo paradigma, demarcando-se fundamentadamente da implosão ideológica daqueles. Se a transformação teórica se focou inicialmente na crítica do marxismo do movimento operário, agora está na ordem do dia a crítica das metamorfoses pós-modernas. Nesse sentido, a recente edição da nossa revista (EXIT! nº 7) começou com uma intervenção crítica sobre a teoria do Estado e problemas conexos.

Além disso, não estão congelados os projectos teóricos de desenvolvimento da crítica da economia política ainda não suficientemente amadurecidos, mesmo demorando mais tempo do que o previsto. Com certeza que desde o desabar da crise se coloca mais do que nunca a questão de saber se um contexto de elaboração teórica como a EXIT! consegue nadar por muito tempo contra a corrente no movimento científico e político de esquerda. Em todo o caso, no ano passado registou-se um aumento da actividade e da interconexão dos círculos de leitura e discussão da crítica da dissociação e do valor, que não formam uma comunidade de pessoas agitando bandeiras, mas procuram desenvolver a capacidade de argumentação independente da teoria crítica da dissociação e do valor, especialmente contra o habitual eclectismo e sincretismo. Assim se tornou também possível ensaiar uma expansão e rejuvenescimento da redacção da EXIT!. Ver-se-á se isso resulta numa publicação mais frequente e com maiores possibilidades de intervenção. As pessoas interessadas na EXIT! estão convidadas a ajudar nesse sentido o projecto em 2011, de acordo com suas possibilidades.

Robert Kurz pela redacção da EXIT!, Janeiro de 2011


Inclusão: 31/03/2020