O Apólogo de Saint-Simon

Paul Lafargue

1 de março de 1872


Primeira publicação: como «Apólogo de San Simón» em La Emancipación, 1 janeiro de 1872, p.4 (em lingua espanhola).

Fonte: O Pensamento Social, 1 de março 1872.

Tradução: Anónimo.

Transcrição: Graham Seaman.


Nota do transcritor

O artigo original em La Emancipación era anónimo, mas Paul Lafargue o incluiu numa lista de escritos de obra própria contida em A los Internacionales de la Region Española.

Com a epigraphe deste artigo, publica o nosso collega La Emancipacion, de Madrid, as reflexões que lhe suggere o facto da emigração dos trabalhadores portuguezes para Nova-Orleans.

Traduzimos na integra este notável artigo para que os nossos leitores comparem a larga critica, o vigoroso exame, e o superior ponto de vista, que nelle se encontra, com as mesquinhas considerações, e os commentarios muitas vezes ridículos da nossa imprensa diaria, a respeito d'aquelle assumpto. Passámos a transcrever:

«O celebre iniciador do socialismo, Saint-Simon, escreveu um dia o seguinte apologo:

«Se uma noite, os nossos reis, os nossos homens de Estado, os nossos ministros, magistrados, advogados, e ricos burguezes, deixassem de viver, a sociedade não padeceria absolutamente nada com o seu desapparecimento, ao passo que, se morressem todos os trabalhadores da sociedade e do campo, a sociedade subvertia-se numa só noite.»

Ao insolente, que viesse a vossa casa dizer-vos que sois um ser inutil e insignificante, pol-o-hieis no meio da rua. Saint-Simon foi encarcerado por ter ousado dizer a verdade á burguezia.

O natural desenvolvimento da sociedade encarregou-se porém de comprovar o apologo de Saint-Simon.

Todas as relações económicas em que se produz a riqueza capitalista, tendem ã destruição da burguezia. A concorrência que foi e é ainda hoje proclamada pelos economistas como a fonte de toda a prosperidade social, é uma das forças mais destruidoras da sociedade burgueza. A concorrência é a luta dos capitaes: as industrias rivaes lutam para produzir barato, e a que estiver sustentada por maior capital acaba por vencer a menos rica. A industria ingleza, que recebe o seu movimento dos maiores capitaes da Europa, é incontestavelmente a que faz mais terrivel e perigosa concorrência ás industrias das outras nações. Por isso, a industria ingleza pede o livre-cambio em quanto as outras, pelo contrario, reclamam a protecção.

A concorrência expropria o pequeno capitalista e o pequeno proprietario em beneficio do grande capitalista e do grande proprietario.

Se a moderna industria pôde expropriar sem perigo sociai os pequenos proprietários e os pequenos capitalistas, é porque havia préviamente reduzido a nada o valor economico destes ultimos. O pequeno proprietario, agricultor ou artifice, trabalhava com as suas proprias mãos na sua propriedade, e conforme a sua actividade pessoal a fazir produzir mais ou menos.

Mas, com o moderna systema da grande propriedade burgueza, o proprietário faz explorar os seus capitaes por meio de grandes companhias anonymas, banqueiros, etc.; as suas terras por meio de rendeiros, as suas fabricas por engenheiros e administradores; de modo que o proprietário não tem outra missão senão cobrar as suas rendas.

As grandes emprezas industriaes e commerciaes não podem ser dirigidas e exploradas por um só homem, seja qual fôr o seu mérito pessoal. Foi pois necessario crear capacidades para substituir a direcção e vigilanda do proprietario, que por essa mesma razão se tornou desnecessário. Assim vemos nos paizes civilisados as emprezas mais distinctas dirigidas nominaimente por um homem. Os srs. Pereire dirigiam em França e em Hespanha mais de vinte gran­ des emprezas industriaes. Os srs. Pereire desappareceram de muitas das suas emprezas, e não obstante estas continuaram prosperando. Como se vê, pelo seu proprio desenvolvimento a propriedade burgueza tende a expropriar uma parte dos seus individuos, e tornar inúteis muitos mais. E isto o que a condemna, e por isso a burguezia tremeu de medo, quando viu recentemente a classe trabalhadora franceza reunir pela primeira vez nas suas mãos o poder politico, e a administração dos seus interesses.

Mas, era quanto a burguezia, expropriando uma parte dos seus individuos, que entrara no proletariado, concentra a propriedade em mãos cada dia menos numerosas, o proletariado vê as suas hostes engrossarem dia a dia, e estabelecerem a união no seu seio. Do mesmo modo que na Idade Media o municipio foi o centro de organisação da classe media, as sociedades ou secções de officio são em nossos dias os centros de organisação da classe trabalhadora, e á medida que o proletariado cresce e se organisa, vera a ser uma ameaça para a sociedade legal.

Para pôr a ordem burgueza ao abrigo das reclamações da classe trabalhadora, a burguezia lançou mão dos meios mais violentos. Levou a cabo verdadeiras matanças de proletarios em França e outros paizes. A deportação e emigração em massa fazem também parte do seu systema de solução do antagonismo de classes.

Em França, antes da queda do império, os reaccionarios, que previam os acontecimentos, diziam em alta voz que era preciso fazer ao proletariado uma sangria de 40,000 homens em Paris. A derrota da Commune permittiu-lhes pôr em pratica os seus humanitários projectos. Os soldados da ordem fuzilaram 3,000 homens, e os pontões e calabouços receberam outros 40,000, e mais de 60,000 operarios emigraram de Paris. Por este preço as cortezãs de todas as cathegorias podem exercer hoje tranquillamente o seu honroso commercio, e a burguezia póde fazer em paz a sua laboriosa digestão, mas a população trabalhadora de Paris ficou dizimada, e em consequência disto, secou-se a fonte dos benefícios capitalistas. Os trabalhadodores que permaneceram em Paris impõem, como donos, as suas condições aos seus antigos mestres ou fabricantes.

Em Inglaterra e França, quando se começou a introduzir as crianças nas fabricas, fez-se trabalhar tanto aquellas infelizes creaturas, e alimentavam-se tão mal, que uma espantosa mortalidade assolou os districtos manufactureiros. As crianças que se livravam da morte chegavam a ser miseráveis adolescentes e homens debeis que procreavam filhos rachiticos. Os fabricantes mais previstos comprehenderam que aquella exploração desregrada e sem piedade da infancia ia exterminar a razão e destruir a matéria creadora dos seus benefícios industriaes, e foram os primeiros a pedir leis para regular o trabalho nas fabricas. Hoje mesmo em Paris, vemos os industriaes e proprietários pedir a amnistia, para attrahirem a Paris os operarios emigrados e os que gemem nas prisões, e para terem homens que explorar.

Mas não se acham sempre tão magnificas occasiões de matanças, e nesse caso recorre-se a outro meio que sendo mais doce, é ainda barbaro e cruel: á emigração. Inglaterra, o paiz mais industrial do mundo, onde o proletariado attinge proporções gigantescas, e offerece por isso mais perigo á ordem burgueza, viu seis milhões de seus filhos emigrarem para a America e Australia no espaço de 24 annos, o que dá 230,000 emigrados por anno. Quão mesquinha parece a matança de 30,000 parisenses, ao lado destas exportações britânicas. Esta emigração em massa está salvando, ha vinte annos, a Inglaterra de uma revolução social, porque allivia do seu seio a parte mais viril e intelligente do proletariado inglez. Ainda que a burguezia ingleza favorece em momentos de crise esta emigração, as mesmas necessidades da industria a obrigam a pôr-lhe cobro, passada a crise, havendo até chegado a pedir ao parlamento leis para obstar á emigração.

E não se imagine que estes factos sejam peculiares a um paiz como a Inglaterra; não; d’uma nação visinha, em Portugal, cujas condições sociaes e económicas são as mesmas que em Hespanha, aconteceu ultimamente um facto analogo.»

A Correspondência de Hespanha publicou o seguinte despacho telegraphico:

«A imprensa chama a altenção sobre a emigração dos trabalhadores portuguezes para a America ingleza. O governo, desejoso de sustar a emigração resolveu reunir um conselho que informe sobre a convenienda de dar trabalhos nos terrenos incultos da provincia do Alemtejo.»