O matriarcado

Paul Lafargue


Primeira Edição: ....

Fonte: ''O matriarcado'' (Obras escolhidas) por Paul Lafargue, Coleção ''Era'' - Vol. 8, páginas 9-57. Série Precursores (Seção Sociologia), Editora Intermundo, 1947. Buenos Aires, Argentina.

Tradução: William W. Marchi

HTML: Fernando Araújo.

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Vivemos sobre o regime da família patriarcal; ao redor do pai, reconhecido pelos costumes e pela lei como chefe da pequena sociedade familiar, se agrupam a mulher e os filhos; somente seu nome é recorrente dentre as gerações: em outro tempo, a propriedade era transmitida de varão para varão. 

A Bíblia, os livros sagrados do Oriente e a maior parte dos filósofos e homens de Estado têm admitido como verdade indiscutível que este formato familiar presidiu a origem das sociedades humanas e que subsistiria pelos séculos a porvir, sem observar nada mais que modificações insignificantes.

Para as pessoas comuns e também para os espíritos cultivados, a família patriarcal ainda é o único formato familiar de acordo com a razão e a natureza. Os jurisconsultos romanos pensavam da mesma maneira que o  jus gentium (direito que emana de uma razão natural), que era a expressão jurídica do direito natural. A fim de dar uma autoridade moral às suas instituições civis, políticas e religiosas, a seus costumes e a seus trajes, eles têm sempre apresentado os homens como manifestações da lei natural e como emanações da divindade. Os deveres e os direitos religiosos, morais e políticos da mulher, baseiam-se sobre esta noção de família, que nasce com a história.

O axioma social.

O pai é o chefe natural da família monogâmica ou poligâmica. Reputação mais inquebrantável que a rocha, seu poder se desvanece, não obstante, ao sopro ímpio da ciência, como tantas outras verdades veneradas pela antiguidade.

Faz muito tempo que esta verdade eterna haveria sido posta em dúvida, se os filósofos não houvessem se deixado cegar pelos prejuízos sociais, se houvessem dado conta do valor real dos fatos conhecidos, se não houvessem desprezado, por caprichos individuais e sem transcendência as opiniões emitidas pelos cínicos, pelos estóicos, pelos gimnosofistas e pelos discípulos de Platão sobre a comunidade das mulheres e sobre os bens, ou não houvessem ridicularizado as teorias dos socialistas modernos sobre a comunidade dos bens e a liberdade do amor.

Fora necessário esperar até o ano de 1861 para que viesse um homem com vasta ciência e de inteligência atrevida a demonstrar que nas sociedades primitivas havia existido outros formatos familiares: em 1861 foi quando Bachofen publicou '' O direito materno'', seu importante descobrimento, que ocultava uma nuvem mística, acaso haveria passado desapercebido se alguns anos adiante escritores ingleses como Mac Lennan, Lubbock, Herbert, Spencer, Taylor, etc, reconhecendo as ideias confusamente emitidas nos numerosos relatos de viajantes ingleses, não houvessem chamado a atenção acerca dos povos que não conheceram a existência da família paternal.

Não obstante, a honra de haver estabelecido de uma maneira científica que as sociedades humanas começaram pela promiscuidade sexual e não pertenceram à família patriarcal sem depois haver-se estabelecido uma série graduada de formas familiares, deve-se ao profundo pensador americano, Lewis H. Morgan. Ele foi o primeiro a colocar uma ordem razoável no intrincado labirinto de fatos curiosos, estranhos e com frequência contraditórios coletados por historiadores da antiguidade, pelos antropólogos do homem pré-histórico e pelos viajantes dos povos modernos. Sua grande obra,  Sociedade Antiga, publicada em Londres em 1877, é o resumo de trabalhos inseridos nas publicações pela Sociedade Smithsonian de Washington, nas que havia consagrado quarenta anos, coletando dados áridos, pacientes e conscientes. Friedrich Engels completou os trabalhos de Morgan com os estudos econômicos e históricos de Karl Marx, e pelas suas próprias exposições, de forma breve, límpida e previsora que lhe é peculiar, com as investigações feitas sobre as origens da família, do Estado e da propriedade privada.

Ao filho de Dumas, em um de seus prefácios escreve que é difícil, senão impossível, reproduzir na cena as relações entre homens e mulheres da vida mundana, por temor de ofender o pudor tímido das mulheres, que são castas apenas de ouvir dizer.

Porém, o pudor dos homens, o de Dumas sobretudo, é mais tímido. 

Têm as ideias tão estereotipadas sobre o pudor nativo da mulher, regras tão preciosas para sua conduta privada e pública, que todo feito, toda ideia que não leve o selo da moral civil e social lhes ofusca. Não podem admitir que haja no mundo coisas que não necessitam de sua filosofia, como dizia Hamlet a Horácio.

Porém, os fatos coletados por todos os povos antigos e modernos são tão numerosos e as teorias que têm contribuído a elaborar são tão positivas, que se quiser formar um conceito claro da evolução da espécie humana, é necessário se depor perante as portas da ciência histórica das ideias proudhonianas que abrigam as cabeças civilizadas.

I A Família Naire 
(naire = entre os hindus de Malabar, indivíduo nobre de cuja casta se recrutava a tropa do rajá)

No final do século XV, quando Vasco da Gama chegou às costas de Malabar, os portugueses desembarcaram no meio de um povo notável pelo estado avançado de sua civilização, o desenvolvimento de sua marinha, a força e organização de seu exército, suas belas cidades, que canta Camões, o luxo de suas habitações e a cultura que refletiam seus costumes perante a posição social da mulher e a forma familiar mudaram suas ideias vindas da Europa. Bachofen havia reunido em ''Cartas antiquárias'' documentos sobre a origem da família naire, dos mais diversos nativos, dos escritores árabes, portugueses, holandeses, italianos, franceses, ingleses e alemães, desde a Idade Média até a época moderna.

A família naire havia dado provas excepcionais de vitalidade; soubera resistir ao cristianismo, à opressão da aristocracia bramânica e a revolução muçulmana. Esta tenaz instituição familiar se manteve nos povos de Malabar até a invasão de Hyder Ali em 1766. 

Os naires, o elemento aristocrático do país, formavam grandes famílias de centenas de indivíduos levando o mesmo nome, análogos ao costume céltico, à gens romana, ao genos grego. Os bens imobiliários pertenciam em comum a todos os membros da gens; a igualdade mais completa reinava entre eles.

O marido, ao invés de viver com sua mulher e filhos, vivia com seus irmãos e irmãs da casa maternal; quando a abandonava o fazia sempre em companhia de sua irmã predileta, e após sua morte seus bens não passavam aos seus filhos, mas eram distribuídos entre os filhos de suas irmãs.

A mãe, ou na falta disso, sua filha primogênita, era a chefe da família; seu irmão mais velho administrava os bens; o marido era um hóspede; não entrava em casa além dos dias determinados, como jamais se sentava ao lado de sua mulher ou de seus filhos. Os naires, disse Barbosa, tinham um respeito extraordinário para com sua mãe; dela recebiam bens e honras; respeitavam igualmente sua irmã mais velha, que era quem sucedia à mãe na direção da família.

A dama naire possuía vários maridos substitutos, dez ou doze, e às vezes mais, se assim pedia o seu coração. Estes maridos se sucediam por turno, pois cada um tinha seu dia conjugal indicado, durante o qual deveria custear os gastos da casa, e ao entrar nela pendurava na porta sua espada e seu broquel para indicar que o lugar estava ocupado.  

A glória e o renome da dama se sucediam pelo número de maridos que esta tinha. Para o marido não estar ocioso durante os dias que não lhe correspondia passá-los ao lado de sua mulher, tomava parte em outras sociedades matrimoniais; poderia a seu gosto retirar-se de uma associação conjugal para entrar em outra, e a mulher tinha o direito de repudiá-lo se não se cumpria perfeitamente seus deveres. A mulher naire era poliandra e o homem polígamo.

Os filhos pertenciam à mãe; ela se encarregava de sustentá-los. 

''Nenhum naire'', disse Buchman, ''conhecia seu pai; cada homem considerava como herdeiros os filhos de sua irmã, aos quais amava como os pais amam seus filhos nas demais partes do mundo. Após a morte de um filho que criara como seu, por causa da semelhança e do largo contato que com a mãe havia tido, mostrava tanto sentimento como na morte de um filho de sua irmã.''

Os naires pareciam haver tomado a marca da desonra as ideias morais dos bravos europeus. O direito de possessão de uma virgem, reservado aos senhores feudais como um dos mais preciosos privilégios, e comprado pelos possuidores do capital a preço baixo, era considerado pelos naires como uma humilhação. Para deflorar as virgens, eles traziam estrangeiros, homens do porto que recebiam um salário anteriormente definido. Barthema conta que na cidade de Tarnassari, os rajás contratavam estrangeiros para fazer companhia às suas mulheres durante as primeiras noites depois da boda. Jorge IV da Inglaterra participava da opinião dos naires; afirmava que aquele era um trabalho de palafreneiro. Barbosa, ao fazer uma mui bela descrição da cerimônia nupcial, exclamava com indignação verdadeiramente cristã: ''Na opinião daqueles pagãos, a jovem que morria virgem não ia para o céu.'' O cadáver das virgens era violado. A virgindade carregava ali um pecado mortal!

Se estes costumes houvessem sido observados entre os selvagens relegados ao último escalão da espécie humana, eles teriam julgado como os espanhóis faziam com os peles vermelhas, os quais destruíam selvagemente. ''Os naires são gente sem razão'', os cristãos de nossos dias, e muitos sábios antropologistas entre eles, poderiam dizer. ''Os naires são povos degenerados; seus costumes abomináveis eram testemunho de sua degradação.''

Os naires, pelo contrário, constituíam a aristocracia indígena de um povo culto, seguramente mais civilizado que os portugueses do século XVI.

Acerca desta questão pode-se perguntar: a família naire, baseada sobre a comunidade dos bens no seio de um clã, da poligamia dos dois sexos, a supremacia da mãe, proprietária soberana da casa, não sendo seu irmão mais velho mais que uma espécie de mordomo sobre a filiação maternal, a mãe transmitindo somente o nome de seus filhos, sua posição e seus bens, será um destes fatos anormais, uma destas monstruosidades sociais geradas por circunstâncias verdadeiramente excepcionais que não pudessem haver existido em outras partes?

Admitindo que em nenhum povo da terra se havia observado depois de tempos históricos costumes análogos, o homem da ciência, titubeando, não deveria dizer: ''Nada é milagroso.'' A teratologia de Geoffroy Saint-Hilaire classifica na série animal o monstro, que não é mais que um organismo ligado a uma de suas bases de desenvolvimento e reprodutor de um tipo inferior da mesma série. A família naire, este fenômeno social, não reproduzia, pois, uma de suas formas familiares primitivas pelo que houvesse passado a humanidade no curso de sua evolução?

Porém os costumes familiares dos naires não constituem uma exceção única: se eles navegarem pelos relatos dos viajantes que hão recorrido os povos selvagens do antigo e moderno mundo, se o espírito despojado de prejuízos civilizados e saturado pelas narrativas dos exploradores modernos aos historiadores, poetas e filósofos da antiguidade, são analisados os livros religiosos e são estudados os livros sagrados, se faz uma colheita abundante de fatos que demonstram que todos os povos da terra tiveram em algum momento de seu passado costumes análogos aos dos naires.

II A Família Maternal em outros países

Viajemos até a África, entre os tuaregues do Norte, e tomemos como guia um viajante francês, Duveyrier.

''O ventre pinta a criatura'', disse um provérbio tarquí usado em Madagascar. O filho tarquí segue a condição de sua mãe; se ela é livre e nobre, livre e nobre ele também será, assim sendo seu pai um escravo.

''Se uma mulher de condição livre se une a um escravo, seus filhos serão nobres renomados'', conta Heródoto. Se ao contrário um cidadão, ainda que pertencendo ao posto mais distinto, se casa com uma estrangeira ou com uma concubina, seus filhos serão menosprezados.  Partus sequitur ventrem era um antigo adágio latino. ''Barriga livre se enobrece'', diziam os costumes do século XII.

Os tuaregues têm duas classes de propriedade: 1, os bens adquiridos pelo trabalho individual, tais como armas, prata, escravos comprados, ganhados, colheitas e provisões; estes são individuais. 2, os direitos percebidos nas caravanas de viajantes, os direitos territoriais em terras de pasto e lavoura, sobre as águas; os direitos sobre as pessoas e as tribos submetidas; o direito de mandar e ser obedecido, são coletivos; não se transmitem pela linhagem masculina, todavia passam ao filho primogênito da irmã mais velha, que administra em interesse de toda a família.

Antigamente, quando se tratava de distribuição territorial, as terras atribuídas a cada família eram inscritas no nome de sua mãe. O direito berbere concede às mulheres a administração de seus bens.

Em Rhat, somente elas dispunham de casas, de jardins, em uma palavra, de toda a propriedade rural do país.

Os tuaregues não possuem mais que um parentesco, o parentesco uterino; a genealogia é feminina. O tarquí conhece a sua mãe e a mãe de sua mãe; desconhece seu pai. O filho pertence à mulher e não ao marido; é o sangue dela e não o de seu esposo, que confere ao filho o alcance que lhe corresponde na tribo e na família.

Se há um ponto na sociedade tarquí que difere da sociedade árabe, é pelo contraste da posição elevada que nela ocupa a mulher comparado com o estado de inferioridade da mulher árabe. Não somente entre os tuaregues a mulher é igual ao homem, mas ainda goza de uma condição preferencial.

Ele tem sua mão, e na comunidade conjugal ele administra sua fortuna, sem ter obrigação de contribuir com os gastos da casa. Também ocorre que, pelo acúmulo dos produtos, a maior parte da fortuna está no poder das mulheres.

A mulher tarquí é monógama; ela houvera imposto a monogamia ao seu marido, embora a lei muçulmana lhe permite possuir várias mulheres. É independente, com respeito ao seu esposo, até tal ponto, que pode repudiar-lhe sob o mais leve pretexto; ela vai e vem livremente. Suas instituições sociais e os costumes que hão seguido têm desenvolvido extraordinariamente a mulher tarquí: sua inteligência e seu espírito de iniciativa maravilham no meio de uma sociedade muçulmana. Distingue-se nos exercícios físicos; montada em um dromedário, percorre 100 km para assistir a um sarau; participa de corridas com os mais ousados cavaleiros do deserto. Distingue-se por sua cultura intelectual; as damas da tribo de Imanan são célebres por sua beleza e talento musical; quando dão concertos, os homens chegam dos pontos mais distantes, atraídos como avestruzes machos. As mulheres das tribos berberes cantam todas as noites acompanhadas por uma  rebaza (violino); improvisam e no pleno deserto fazem renascer as cortes do amor da Provença. A mulher casada é tanto mais considerada a depender de quantos  amigos homens possui; porém, para conservar sua reputação, não deve preferir por nenhum. ''O amigo e a amiga, disse, são para os olhos e o coração, e não para a cama somente, como entre os árabes.''

Porém as damas nobres tuaregues não devem colocar sua conduta em contradição com seus sentimentos, do mesmo modo que as heroínas da Fronda, que platonizavam as relações entre a amante e o amante, e que, segundo a expressão de Saint-Evremond, amavam ternamente seu companheiro e apreciavam muito seu marido sem aversão. O matrimônio dos tuaregues não é indissolúvel; os casais podem desunir-se facilmente e as mulheres podem contrair novas uniões.

As mulheres desempenham papel principal nas lendas do país; o mesmo fenômeno se observa na Grécia homérica; em diferentes períodos elas exercem o comando. Uma delas, Kadiva, a Maria Teresa do deserto, a princípios do século V, reuniu sob seu domínio as tribos berberes e fora a heroína da resistência nacional contra a invasão dos conquistadores árabes, que não conseguiram conquistar o litoral de Atlas até depois de sua morte. Sucumbiu com as armas em mãos, morta pelo general Hassam. Faz alguns anos, a tribo dos Ihehauen era governada por uma mulher, uma chelkha; ainda hoje as mulheres que se distinguem por seus méritos são admitidas nos conselhos da tribo.

Os tuaregues são os descendentes daqueles libianos de que falava Heródoto, que tinham suas esposas na comunidade, não vivendo com elas, e cujos filhos eram educados pelas mães. Eles fingiam que Minerva era a filha adotiva de Júpiter, pois não podiam admitir que um homem geraria sem a ajuda de outro sexo; somente as mulheres eram capazes de milagre semelhante.

No vale do Nilo, este berço da civilização, as mulheres do tempo de Heródoto tinham uma situação tão privilegiada, que os gregos chamavam o Egito de ''um país de cabeça para baixo''.

O historiador de Halicarnasso explicava este contraste ''pela natureza do Nilo, tão diferente dos costumes e fantasias de outros povos.''

''Os homens levam seus fardos na cabeça, e as mulheres nas costas. As mulheres vão ao mercado e negociam, enquanto que os homens, trancados em suas casas, costuram. Os rapazes varões não estão sujeitos pela lei a sustentar seus pais; este fardo é incumbido de direito para as filhas.''

Esta condição imposta para as filhas era suficiente para estabelecer que os bens da família pertenciam ao sexo feminino, como se dava o caso entre os naires e os tuaregues; e em todos os lugares onde a mulher desfrutava desta condição econômica deixava de estar sobre a tutela de seu marido e se convertia no chefe da família.

Em virtude dos numerosos favores da deusa Ísis, escreve Diodoro da Sicília, havia-se estabelecido que a rainha do Egito tivesse mais poder e fosse mais respeitada que o rei; o que explica por que entre particulares o homem pertencia à mulher segundo os termos do contrato de doação, e que fosse estipulado entre os esposos que o homem obedeceria à mulher. Fora reconhecido esta observação  de Diodoro dentre as histórias maravilhosas, nas que abundam os viajantes que retornam de terras distantes; afirmando, no entanto, que a associação de rainhas no poder persistiu até os ptolomeus, a despeito das ideias gregas que conquistaram o país. Nas cerimônias religiosas, Cleópatra vestia os atributos de ísis, a mãe santa, e seu esposo Antônio, um general romano, seguia à pé sua carruagem triunfal.

As inscrições funerárias recolhidas no vale do Nilo mencionam frequentemente o nome da mãe, porém não a do pai. ''Alguma vez'', disse Revillout, ''indicava-se pelo paralelismo que o personagem em questão era filho de fulano de tal. Mas esta designação patronímica era muito rara na língua sagrada... acrescentemos que a mulher casada, mãe ou esposa era sempre senhora de sua casa.'' Revillout se escandaliza. 

A análise dos papiros demóticos de Louvre houvera permitido ao sábio egiptólogo poder afirmar que os antigos contratos matrimoniais não mencionam os bens da mulher, por mais numerosos e importantes que fossem, não tendo o marido, portanto, nenhum direito sobre eles, enquanto especifica a soma que ele deve pagar à sua mulher, seja como doação nupcial, pensão anual ou multa em caso de divórcio. A esposa é sempre dona absoluta de seus bens, que administra e dispõe à sua vontade. Compra, vende, empresta, pede emprestado; em uma palavra, executa sem contradição alguma todos os atos dos chefes de família.

Os fatos anotados por Heródoto e Diodoro, confirmados pelos trabalhos de Champollión-Figeac e por vários egiptólogos, demonstram que a mulher egípcia ocupava na família a mesma posição que as senhoras naires e tuaregues.

Ainda existem outras provas: estas de natureza diferente.

As cerimônias e as lendas religiosas conservam mumificados os costumes do passado. A Páscoa católica, esta comida mística na qual os fiéis absorvem um Deus feito homem; a lenda histórica de Abraão, sacrificando um bastardo em vez de seu filho Isaac, é o eco distante de banquetes antropológicos e holocaustos humanos. A cabeça do homem elabora as religiões com os fatos que lhe rodeiam, mas ao decurso dos séculos os fatos se transformam, desaparecem, enquanto que a forma religiosa, que houvera sido sua manifestação na inteligência humana, persiste. Estudando a forma religiosa, pode-se encontrar e reconstituir os fenômenos naturais e sociais que lhe foram servidos como base.

Ísis, a deusa dos antigos egípcios, a mãe dos deuses, veio ao mundo por conta própria; é também a deusa virgem; seus templos em Sais, a cidade santa, tinham esta arrogante inscrição:  Nada jamais me houvera tocado a roupa e o fruto que eu dei fora o Sol. O orgulho da mulher se revela nestas palavras sagradas; proclamávamos independente do homem, não tinha necessidade de recorrer à sua cooperação.

Por esta ousadia, a Grécia replicou que Júpiter, o pai dos deuses, deu à luz a Minerva sem a necessidade de uma mulher; e Minerva, a deusa ''que não havia sido concebida nas trevas do seio maternal'' será a inimiga da supremacia familiar da mulher. Ísis, pelo contrário, é a deusa dos costumes antigos; casou-se com seu irmão, como no tempo da promiscuidade consanguínea. Sobre seus monumentos, declara: '' Eu sou a mãe do rei Hórus, a irmã e esposa do rei Osíris, sou a rainha da terra inteira.'' Seu marido, mais modesto, não se instituía o pai do rei Hórus. Ísis é imortal, fora morto por Tifão; preenchida sua função de genitor, deveria morrer.

A Babilônia celebrava, com cinco dias de orgia popular, as festas da deusa Mitra; era a festa universal da liberdade e da igualdade primitivas. Falo, que fazia os homens todos iguais, era adorado; o rei da festa, escolhido dentre os escravos, depois de haver gozado da rainha da cerimônia, era entregue às chamas; igual ao deus Osíris, uma vez terminada sua função genitora, deveria morrer.

A mulher reduzia o homem a não ser nada mais que um órgão. O antagonismo dos sexos, nascido com a humanidade, ainda dura. O menosprezo que, desde os tempos históricos, haviam tido os homens pela mulher, colocada em tutela ou tratada como cortesã ou ama de governo, as mulheres mantiveram com eles, os ritos religiosos provam, quando elas eram as iguais e de uma vez as superiores do homem.

Nas sociedades animais comunistas, dentre as formigas, as abelhas, o macho é um parasita; depois do ato da fecundação ele é exterminado.

III Os costumes da Família Materna

Não cabe a menor dúvida de que antes de chegar à forma familiar atual, a humanidade houvera passado por uma forma de família ao contrário; a mãe ascendida à chefe; o pai, personagem secundário, não transmite aos seus filhos nem seu nome, nem seus bens, nem seu posto(1). A família, portanto, é a prolongação de mulher a mulher do cordão umbilical, este sinal material da maternidade. Este órgão, que nas famílias reais da Europa cortavam na presença de testemunhas, afim de evitar toda a dúvida sobre a legitimidade do novo ser, ainda está cercado de respeito tal entre certos povos, que, por exemplo, os habitantes do alto Nilo, os fidgienos e também os crioulos das Antilhas, eles o preservam preciosamente e enterram com cerimônia quando à morte do indivíduo; é o laço que une o chefe da família à mãe.

Os costumes que correspondem a esta forma familiar primitiva escandalizam a moral dos civilizados. A castidade monogâmica não é uma virtude; a mulher, pelo contrário, se honra segundo a quantidade de esposos, que se sucedem a dias fixos, o que coabitam com ela durante a revolução lunar; este era o uso nas Ilhas Canárias(2).

Os maridos de uma mesma mulher, seguindo a observação de Herera, à propósito dos selvagens da Venezuela, vivem em perfeita inteligência e sem conhecer ciúme; esta paixão aparece tardiamente na espécie humana.

Os filhos herdam os bens da mãe e dos tios maternos, jamais do pai. O tio ama seus sobrinhos com mais carinho que a seus próprios filhos.

Entre os alemães, disse Tácito, o filho de uma irmã é mais querido de seu tio que de seu pai. Alguns estimam este grau de consanguinidade mais santo e mais estreito; e ao receber reféns, preferem os sobrinhos, como partes mais ligadas e interessantes perante a família. Não obstante, os alemães dos quais descreve o historiador latino haviam já entrado na forma familiar paternal, posto que os filhos herdavam de seu pai; porém conservavam ainda os sentimentos e certos usos da família maternal.

A mulher habita em sua casa ou na de seu clã, e jamais na de seu marido. A observação seguinte, citada por Morgan e referida pelo pastor protestante Séneca, que viveu durante alguns anos entre os iroqueses, é típica. ''Durante o tempo que eles habitaram em suas casas largas, que podiam conter centenas de indivíduos, o clã predominou; porém as mulheres introduziam nele seus maridos pertencentes a outros clãs. Era costume que as mulheres governassem a casa; as provisões foram perolizadas por todos; mas infeliz do marido ou do outro amante; do preguiçoso ou pouco hábil que não contribuía por sua vez às disposições da comunidade! Qualquer que fosse a quantidade de filhos e a quantidade de bens com os quais havia contribuído, podia preparar-se para receber a ordem de enrolar seu cobertor e encontrar uma casa para si: desobedecer sua ordem não lhe valia de nada. O escândalo que se armara seria capital. Não lhe cabia mais outro remédio além de voltar ao seu próprio clã ou, o que acontecia e com frequência, buscar um novo alojamento em outro. As mulheres eram o grande poder dos clãs. Quando as circunstâncias lhe exigiam, não vacilavam em fazer  pular os chifres, sinal de comando da cabeça dos chefes, e deixar estes cargos para guerreiros simples. A eleição dos chefes dependia sempre delas.''

As descrições dos viajantes representam a mulher bárbara como estando abarrotada de trabalho. A divisão do trabalho, tal como explica Karl Marx, começa com a divisão dos sexos. O selvagem é guerreiro e caçador; vive rodeado de inimigos e pode ser atacado a qualquer instante. Deve estar sempre disposto a lutar, sempre sobre as armas; seu trabalho consiste em defender a sua tribo e em prover mantimentos para sua mulher e para os filhos desta. Entre os povos civilizados, o soldado está dispensado de trabalhar. A mulher selvagem, do contrário, está encarregada de todos os trabalhos da casa, do cultivo dos campos, e de levar sobre suas costas os filhos e os objetos mobiliários que são de sua posse. ''Os povos bárbaros que impõem às suas mulheres mais trabalho que o necessário, de acordo com nossas ideias'', disse Engels, ''têm para elas quase sempre uma estimativa mais real que dentre nós europeus.'' A dama da civilização, lisonjeada e alienada de todo o trabalho, ocupa uma posição social infinitamente inferior à da mulher que vive num estado de barbárie e amontoada de trabalho; seu povo a considera uma verdadeira dama, e é, de fato, por causa de seu caráter(3).

A mulher, dona soberana de sua casa, exerce uma ação nos negócios públicos; tomava parte nos conselhos da tribo. Sem pretender estender-me sobre este ponto, mencionarei o papel de árbitro que desempenhava. Em Tasmânia, no começo das batalhas, as mulheres dirigiam ardentemente os guerreiros para o ataque; porém enquanto levantavam três vezes as mãos, o combate cessava e o vencido, prestes a ser degolado, era perdoado. Entre os trogloditas, as mulheres eram invioláveis; enquanto elas interpuseram entre os combatentes, deixavam estes para lanchar suas flechas. As alemãs assistiam as batalhas excitando os guerreiros com seus gritos, empurrando os caídos para a luta e contando e curando as feridas. Os alemães não desdenhavam consultá-las e seguir seus conselhos; temiam muito mais o cativeiro para suas mulheres, que para eles mesmos; aqueles bárbaros acreditavam que tinham nelas algo que era santo e profético,  sanctum aliquid et providum.(4)

Poderia preencher longas páginas citando fatos análogos, provando que todos os povos da terra houveram passado por uma forma familiar bem diferente da que conhecemos hoje em dia. Estes fatos raros, que atrapalham as ideias inculcadas, não haviam sido revelados mais que por raros espíritos céticos, os quais se valeram deles para quebrar as noções da moral corrente. 

Os filósofos moralistas que houveram formado dogmaticamente as leis da moral eterna, eles os ignoraram absolutamente e consideraram que não foram descartados(5). Porém em nossos dias, pensadores atrevidos e profundos houveram classificado e utilizado para recordar as fases da evolução humana.

IV Teoria da evolução da família

Vamos pegar um casal criado a partir do mesmo ser, como Eva e Adão, da tradição bíblica, ou então derivado de uma horda selvagem, quando o homem saíra da animalidade, e vejamos seu desenvolvimento. Este casal, com seus filhos e netos, formará uma tribo de trinta ou quarenta pessoas; a dificuldade de procurar-se mantimentos não lhes deixará exceder esta quantia. No seio deste grupo, as relações sexuais serão completamente livres, como nas famílias galináceas de nossos currais; cada mulher será a esposa dos homens da tribo, e cada homem o marido de todas as mulheres, sem distinção de pai e filha, de mãe e filho, de irmão e irmã.

Esta família promíscua não havia sido encontrada em nenhum povo selvagem, embora tenha sido observada nas grandes capitais da civilização; deve ter existido, porém, em estado de fato geral, quando o homem não era ainda, segundo a expressão latina, um animal que participasse da razão, rationis particeps, que então vivia nu, dormia nas árvores, sustentava-se com os frutos, mariscos e animais que não sabia cozinhar, e que apenas se distinguia do bruto, seu antecessor.

As festas de orgia das religiões asiáticas, durante as quais reinava a liberdade sexual mais absoluta, pareciam ser reminiscências da promiscuidade primitiva.

Estrabão conta que entre os magos, a tradição religiosa prescrevia o matrimônio do pai com a filha, e do filho com a mãe com o objetivo de procriar filhos destinados a funções sacerdotais. No lugar de reconhecer uma origem natural da promiscuidade primitiva, Bachofen a toma como uma instituição religiosa. As festas promíscuas e os costumes que, entre tantos povos, obrigavam as mulheres a prostituir-se, sem escolher qualquer arrivista, eram, segundo ele, atos de expiação para apaziguar a irritação divina; os homens, ao contratar matrimônios individuais, mais ou menos poligâmicos, haviam violado os mandamentos da divindade que prescrevia a comunidade das mulheres.

A restrição da liberdade sexual primitiva deveria ter começado pela interdição do matrimônio entre os indivíduos de diferentes uniões. A primeira união é a dos pais, a segunda a dos filhos, a terceira a dos netos, ou os filhos dos filhos dos pais, e assim sucessivamente.

Todos os indivíduos de uma união com os filhos da união superior, e os pais e mães da inferior, considera-se como irmãos e irmãs, e se tratam como matrimônios, porém lhes está proibido ter relações sexuais com os membros das uniões superior e inferior. De fato, não há matrimônios individuais; quem nasce varão em uma tribo, é o marido de todas as mulheres de sua promoção, sem distinguir a irmã e reciprocamente em relação à mulher. 

''Nos tempos primitivos'', disse Marx, ''a irmã era a mulher, e esta era a moral.'' As lendas religiosas e os costumes dos povos antigos nos dão numerosos exemplos destes matrimônios consanguíneos. Ísis e Osíris, Juno e Júpiter, etc, eram por vez irmãos e irmãs, mulheres e maridos.

Morgan, que houvera se dedicado a buscar as mais áridas notícias na nomenclatura dos términos de parentesco usados entre os povos selvagens, houvera encontrado, nas ilhas Sandwich, uma série de termos de parentesco não relacionados com sua organização social, que deveriam haver nascido no momento em que os indivíduos machos e fêmeas procedentes de uma união se consideravam os filhos de uma união superior, e os pais e as mães da inferior, e ignoravam as distinções de tios, tias, netos, netas e primos. ''A família é o elemento ativo que jamais se estaciona'', disse Morgan, ''progride de uma forma inferior a uma superior, à medida que a sociedade passa de um estado menos desenvolvido para outro que é mais. Os sistemas de parentesco são, pelo contrário, passivos; necessitam de um tempo excessivamente largo para registrar os progressos acumulados pela família; eles não se submetem às mudanças radicais até que a família esteja radicalmente transformada.''

''O mesmo acontece com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos e filosóficos'', adiciona Marx. ''Conforme a família progride, o sistema de parentesco se estaciona e, enquanto continua a existir pela força do hábito, a família o supera.''

''Se o primeiro grau de organização'', escreve Engels, ''consiste em excluir os pais e os filhos do comércio sexual, o segundo fora a interdição do matrimônio entre irmãos. Este progresso, a causa da maior igualdade dos interessados, foi infinitamente mais importante, porém mais difícil de realizar. Progride-se gradualmente, começando com a interdição das relações sexuais entre irmãos carnais, entre filhos uterinos, para acabar com os matrimônios entre irmãos dos mesmos pais.''

Esta marcha evolutiva da família é ''uma excelente ilustração do princípio de seleção natural.'' As tribos que impediam os matrimônios uterinos deviam desenvolver-se mais rápida e completamente que aquelas em que os matrimônios entre irmãos era o costume e a regra.

Fison e Howitt, em seu importante estudo sobre os kamilaroi e os kumai, duas raças australianas, transcrevem uma lenda que explica a maneira pela qual se fazia a restrição gradual das relações sexuais. ''Depois da criação, os irmãos e irmãs e os parentes mais próximos casavam entre si sem distinção; quando o mal proveniente destas alianças manifestou-se, reuniram-se no conselho dos chefes, afim de buscar a maneira de remediá-lo. O resultado da deliberação foi uma súplica dirigida a Muramuza, o espírito bom, quem ordenou que a tribo fosse dividida em grupos, distinguindo entre eles por nomes tomados dentre objetos, animados e inanimados, como  cachorro, sorriso, comovido, chuva, planta, etc, proibindo estritamente que se casassem os indivíduos que levassem o mesmo nome, porém concedendo-o aos diferentes grupos.'' Este costume é ainda observado em nossos dias; a primeira pergunta de um australiano a um estrangeiro é esta: ''De que mundo?'', o mesmo que dizer: a que grupo pertences?

A lenda murdán contém três fatos notavelmente importantes.

Primeiramente a tribo forma um todo homogêneo, os matrimônios praticam-se indistintamente entre irmãos e ainda entre pais e filhos; depois a tribo divide-se em grupos, que tomam um totem, quer dizer, o nome de um animal, de um fenômeno natural; este objeto, animado ou inanimado, acaba por ser considerado o ancestral do grupo, que corresponde ao clã céltico, à gens romana e genos grega. O gramático Sexto Pompeu Festo supôs que a gens turelia, à qual pertenceu a mãe de César, tomava seu nome emprestado do sol, auriim urere — (traduz-se em algo como ''ouro queimante'').

Diferentes famílias gregas reconheciam os animais como seus ancestrais; verdade é que asseguravam que estes animais eram fantasias adotadas por Júpiter durante suas escapadas amorosas na terra. Plutarco cita uma gens ateniense que lembra uma planta, o espargo. A lenda murdán nos ensina ainda que o bom gênio proibia as relações sexuais entre indivíduos que levassem o mesmo nome, o mesmo tótem, quer dizer, pertencentes ao mesmo grupo.

Como poderia conservar-se a tribo, dividida em grupos, em clãs, em gens, sabendo que para se procurar meios de subsistência se vê obrigada a dividir-se e a subdividir-se constantemente? Pela preservação do nome do ancestral, que será transmitido de geração em geração como um bem sagrado. Os membros que deixavam o clã, levavam consigo o nome; poderiam se estabelecer em terras distantes, através dos mares e das montanhas; poderiam durante o curso do tempo mudar seus costumes e transformar sua língua até o ponto de ser impossível reconhecer sua origem. Não obstante, eram sempre membros do mesmo clã, do mesmo grupo.

E sendo proibido o matrimônio entre os indivíduos pertencentes ao mesmo grupo, a primeira coisa que faziam antes de realizá-lo era descobrir o nome, o totem. Esta interdição era tão formal que na Austrália o guerreiro, que, ainda por ignorância, se unia a uma mulher do mesmo totem, era casado como uma fera e morto por sua própria tribo.

Como se transmitia o nome do ancestral? Pelo pai ou pela mãe?

Em nossos dias, depois dos séculos de moral monogâmica se recorre a um subterfúgio legal para identificar a paternidade; o pai não é aquele que designa a natureza, senão aquele que resulta de uma cerimônia religiosa e civil. Não pode esperar-se mais dos homens primitivos, não educados ainda pelo sábio ergotismo dos legisladores, que encarregavam o pai da função sagrada de transmitir o nome, o totem do clã.

O sentimento paternal não é inato ao homem; para manifestar-se, ainda existindo, requer certas condições externas. O amor maternal está, pelo contrário, profundamente encarnado no coração da mulher; esta se organiza em condições a propósito para ser mãe, para elaborar o filho em seu seio e para alimentá-lo com seu leite uma vez nascido. O sentimento maternal é um dos mais grandes desejos fisiológicos para a conservação e perpetuação da espécie.

A civilização, que com frequência trabalha contra as leis da natureza, desorganizando a mulher até o ponto de fazer sua gestação cansativa, a entrega trabalhosa e com dor e a amamentação perigosa e em infinitas ocasiões ainda impossível, atenua o sentimento maternal, o entorpece no coração das mulheres civilizadas.

As mulheres selvagens amam muito seus filhos; os amamentam durante dois anos. Jamais lhes pune fisicamente. O filho a quem a mãe protege contra a brutalidade dos homens, se abriga perto dela tal como os filhotes que se abrigam ao sinal do menor perigo sob as asas da ninhada.

Os membros de um clã, por numerosos e dispersados que eles são, continuam formando uma imensa família. Circula em suas veias o mesmo sangue; o mesmo cordão umbilical, prolongado de mulher para mulher, os liga ao predecessor, à linhagem materna, e deve-se ajuda, proteção e vingança em todas as circunstâncias. O pai é desconhecido, sendo substituído pelo irmão da mãe. Laços de sangue de estreito afeto unem o tio aos sobrinhos. Os pais e os filhos pertencentes a diferentes clãs são, pelo contrário, considerados como se não fossem consanguíneos; eles não estão ligados por nenhuma outra condição. Podem brigar, matar, se os clãs nos quais houvera nascido declaram guerra, enquanto que é um crime espantoso derramar sangue de seu próprio clã.(6)

Os escrevinhadores de hoje zombam de Homero porque este não tinha o maneirismo deles, e riem de seus heróis que antes de combater se entregavam para declinar sua genealogia. Não obstante, as rapsódias homéricas tinham um sentido mais fino da realidade que a dos escritores da escola naturalista, porque neles se reproduziu um uso que persistiu mesmo depois que a afiliação paterna substituiu a afiliação materna no clã.

Guerreiros pertencentes a campos inimigos podiam ser membros do mesmo clã; daí a necessidade de conhecer antes de atacar, para não cometer o crime horrível de derramar o sangue de seu próprio clã.

Mac Lennan observa que os heróis da litada, cuja genealogia é bem detalhada, não vão além da terceira geração, sem encontrar entre eles um único deus, quer dizer, um pai desconhecido; o qual parece indicar que naquela época a filiação pelo pai era muito recente entre os helenos.

O selvagem, em guerra contínua contra as feras e os homens, não pode viver asilado; não lhes é permitido compreender que pode existir separado de um grupo de seu clã. Expulsá-lo deste, equivale a condená-lo à morte: também o exílio fora considerado durante muito tempo como a pena mais terrível que pode ter afligido o homem das sociedades antigas. O homem primitivo não constitui uma entidade por si mesmo; não existe senão como parte integrante de um todo, que é o grupo, o clã; não é, portanto, o indivíduo quem possui, senão um clã; não é a sua individualidade quem se casa, é um clã.

Esta forma de matrimônio é sem dúvidas a mais curiosa. Para justificá-los, eu retiro do livro de Fison e Howitt o seguinte exemplo: ''os kamilaroi estão subdivididos em quatro grupos ou clãs: Ipaí e Kubí, Kumba e Murí. As relações sexuais são proibidas dentro do mesmo clã; porém o clã Ipaí casava com o clã Kubí, e o Kumba com o Murí, o que significa que todos os homens Ipaí são os maridos das mulheres Kubí, e todas as mulheres Ipaí são as esposas dos Kubí. O matrimônio não é um contrato individual, senão coletivo, um estado natural; o fato de nascer mulher em um grupo, os dá como marido todos os homens de seu clã matrimonial.

Os dois clãs podem ser dispersados em todo um continente, e este caso se dá na Austrália. Não obstante, quando dois indivíduos de sexo distinto se encontram e se reconhecem como membros de clãs matrimoniais, podem sem outra cerimônia tratar-se como marido e mulher. Esta forma matrimonial parece-me o sistema de matrimônio comunista mais estendido que se conhece.''

Para resumir: a espécie humana, igual a outras espécies animais, começa pela promiscuidade dos sexos, logo restringe-se gradualmente as relações sexuais, primeiro entre pais e filhos, em seguida entre irmãos uterinos, por fim entre irmãos colaterais, e nesta marcha evolutiva, adapta imediatamente a filiação pela mãe, sempre certa, mais tarde pela filiação do pai, sempre problemática. A filiação maternal coincide com a forma comunista e a forma coletivista da propriedade que, porém, podem continuar existindo ainda quando a filiação paternal substitui a maternal.

Nas tribos selvagens, a mulher pertence teoricamente a um número ilimitado de maridos, embora praticamente, colocando-se sob a proteção de feiticeiros e dos chefes, sabe limitar o número; depois aproveitando-se de circunstâncias diversas reduz-se a uma dezena e por fim a um só marido que renova com frequência.

A filiação pela mãe dá à mulher na tribo uma posição elevada, superior às vezes à do homem; quando a filiação se realiza pelo pai, perde.

A passagem da filiação pela mãe à do pai, que tira a mulher de seus bens e de suas prerrogativas consagradas pelo tempo, os usos e a religião, não se é realizado sempre amigavelmente; sua história está escrita em letras de sangue numa lenda da Grécia, que seus mais grandes poetas dramáticos, por sua vez, moveram-se para a cena.

Vamos analisá-la.

V Transformação do Matriarcado em Patriarcado

Heródoto e os gregos de sua época diziam que o Egito era um país ao contrário, por causa da posição preponderante que ocupavam as mulheres. Ignoravam que alguns séculos antes constatava-se na Grécia o mesmo fenômeno.

Uma antiga lenda, conservada por Varrão e transmitida por Santo Agostinho em 'Cidade de Deus'', conta que: ''Durante o reinado de Cécrope I verificou-se um milagre duplo em Atenas. Ao mesmo tempo em que uma oliveira, nascia da terra e a uma curta distância uma nascente.

O rei, assustado, mandou buscar o oráculo de Delfos para que se esclarecesse o significado do ocorrido e lhe indicasse o que deveria fazer. Deus respondera que a oliveira representava Minerva, e a nascente, Netuno, e que daí em diante foi necessário chamar a cidade com o nome de uma das duas divindades.

Cécrope logo convocou uma assembléia de cidadãos, homens e mulheres, já que o costume, naquela época, admitia mulheres em deliberações públicas. As mulheres votaram em Minerva e os homens em Netuno, e quando mais uma mulher apareceu, Minerva triunfou. Então Netuno, para se vingar, inundou toda a zona rural ateniense.

''Para apaziguar a ira de Deus, os homens se viram obrigados a impor às suas mulheres uma punição tripla: primeiramente foram condenadas a perder seu direito ao sufrágio; depois desautorizaram os filhos para que seguissem levando o nome da mãe, forçando-as finalmente a renunciar ao nome de atenienses.'' 

Assim, elas perderam seus direitos como cidadãs e eram agora apenas as mulheres dos atenienses.

Um fenômeno sobrenatural, com a consequente intervenção de algum deus, foi motivo para que as mulheres de Atenas perdessem as prerrogativas que lhes faziam cidadãs livres.

Outras lendas dizem que crimes espantosos ensanguentaram as famílias antes que a mulher fosse privada dos direitos que lhe faziam ser respeitada em seu povo e em seu clã.

As lendas homéricas são a história do ódio, ganância, rivalidade e lutas que surgiram entre pais e filhos e entre irmãos, quando bens e posição, em vez de serem transmitidos pela mãe, passaram a ser transmitidos pelo pai. Orestéia, a grande trilogia de Ésquilo, preserva até as terríveis paixões que devoravam os corações dos homens e dos deuses homéricos.

Se queres saber sobre a história da lenda de Orestes, deve-se conhecer a genealogia de seus pais: ambos descendiam de famílias conhecidas por suas ações heróicas.

Pélope, filho de Tântalo, teve, entre outros filhos, Atreu e Tiestes, que se casaram com a mesma mulher, Érope. Atreu gerou Agamenon e Menelau, e Tiestes a Tântalo e a Egisto. Agamenon foi o pai de Orestes e de Electra. Clitemnestra, neta de Oebalus e filha de Tíndaro, deu à luz a Orestes, Electra e Erigone.

Tântalo, o ancestral das Atridas, serviu aos deuses num banquete seu próprio filho Pélope, a quem Júpiter cruelmente ressuscitou. Atreu e Tiestes, filhos de Pélope, e Hipocoonte e Tíndaro, filhos de Oebalus, disputaram os bens e autoridade de seus pais. Quando a família paterna substituiu a família materna, e o direito do herdeiro ainda não havia sido estabelecido, os filhos lutavam para apoderar-se da filiação do pai. Ésquilo coloca estas palavras na boca de Egisto; ''Atreu, expulsa, expulsa meu pai de sua terra natal.'' O desgraçado Tiestes volta para casa, invoca a hospitalidade... o ímpio Atreu oferece a seu pai um banquete... e a iguaria que Tiestes serve é a carne de seus filhos! Atreu, sentado ao extremo da sala, devora os dedos dos pés e das mãos que se havia reservado para ele. Os pedaços disformes oferece para Tiestes. Este horrível banquete e outras lendas parecem indicar que pouco tempo antes do período homérico existiam ainda na Grécia casos de antropofagia (canibalismo).

Atreu e Tiestes, os dois irmãos, têm a mesma mulher, Érope, Clitemnestra casara com os três netos de Penélope: Agamenon, filho de Atreu; Tântalo e Egisto, filhos de Tiestes. Helena, irmã de Clitemnestra, junta-se com Menelau, irmão de Agamenon. Estes matrimônios deixam supor que a família de Penélope e a de Tíndaro pertenciam a dois clãs conjugais, análogos aos da Austrália contemporânea.

Examinemos o drama sombrio de Ésquilo. A vingança, ''a sede insaciável de sangue, atormenta as almas dos deuses e dos mortais.''

Clitemnestra e Egisto matam Agamenon; aquele que vingou sua filha, Ifigênia; o outro, para vingar seu pai, Tiestes. "E agora a morte me parece bela — exclamou Egisto diante do cadáver do herói, aprisionado na rede em que se enrolou para não se defender —, agora vejo o inimigo nas mãos da justiça." 

Naquela época, a família ficava encarregada de vingar o dano causado a um de seus membros. A vingança era um dever sagrado, um ato de justiça.

Electra, irmã de Orestes, nunca rezou sobre o túmulo do pai, aumentando ainda mais, por causa dessa circunstância, seu ódio e entusiasmo por vingança. 

''Júpiter, Júpiter'', invocava, ''você é aquela que trouxe a vingança das profundezas do inferno, a vingança que fere o mortal audacioso e perverso; mesmo sendo parente, você sabe como cumpri-lo. Como a raiva do lobo devorador, a raiva que minha mãe deu à luz em meu coração é implacável... Ó mãe odiosa! Oh mulher profana! Você ousou disfarçar meu pai de inimigo; os cidadãos não compareceram ao funeral do chefe; o marido não era digno de pranto!''

Orestes. ''Que ultraje, grande Deus! Ela saberá quanto custa, deixe-me matá-la e morrerei feliz.''

Electra. ''Grave minhas palavras em sua alma; deixe-os penetrar em seus ouvidos até o fundo, para o lugar silencioso do pensamento; você vê o que eles fizeram; o que você deve fazer é pedir por vingança.''

E enquanto, nesta cena, Electra infiltrava ódio e vingança na alma de Orestes, seu coração, como a voz da consciência pública, se dirigia aos deuses e invocava os antigos costumes.'' Oh, grande destino! Faça a lei da equidade triunfar! A justiça exige o que é devido, ressoa a sua voz e diz-nos: que o ultraje seja punido com o ultraje! Deixe a morte vingar a morte! Mal por mal, diz a frase dos tempos antigos (...) 

Não é justo transformar um inimigo em mau por mau? A lei o quer; o sangue derramado na terra pede outro sangue... a terra que nos sustenta bebeu o sangue dos mortos; aquele secou, mas a pegada continua inacreditável e clama por vingança.'' 

Um deus, Lóxias(7), impõe a Orestes o dever de vingança. ''Ainda posso ouvir o eco da voz formidável de Lóxias. Com o coração cheio de vida, devo submeter-me ao ultrajante ataque do mal, se não perseguir os assassinos de meu pai; se eu não matar, como eles mataram; se eu não me vingar deles pela perda de todos os meus bens. '' 

Não existem bárbaros, como os gregos dos tempos homéricos ou os peles-vermelhas da América, para "sentirem o coração arder violentamente dia e noite, sem intermitência, até derramarem sangue por sangue". Transmitem de pai para filho a memória do assassino de um parente, de um membro do clã, mesmo quando o falecido era uma mulher idosa.(8) 

Cita-se casos de selvagens que se suicidaram por não terem podido se vingar.

Os moralistas, os economistas e mesmo os romancistas ou poetas que têm, no entanto, uma psicologia menos fantástica que a dos filósofos, repetem há muito que o homem sempre foi o mesmo, acabando por admitir que em todos os tempos fizeram bater no coração humano as mesmas paixões. 

Nada mais falso; o homem civilizado tem outras paixões distintas do bárbaro; o desejo de vingança, assim como o do vitríolo, não corrói seu cérebro. 

Os bárbaros torturados pelo desejo de vingança não têm medo de nenhum crime.

Por dez longos anos, Clitemnestra espera o momento de vingar sua filha. 

Tendo assassinado Agamenon, embriaga-se e com grande alegria reproduz a cena da morte. “Duas vezes'' — diz Clitemnestra — ''eu o feri.'' 

Ele dá um grito de pena e seus membros perdem a rigidez. Já no chão, um terceiro golpe acaba com ele...

A vítima morre, as convulsões do corpo fazem o sangue sair das feridas, e várias gotas que, quando caíram, respingaram em mim, foram para o meu coração, uma espécie de orvalho muito mais doce daquele que é para a chuva de Júpiter na estação à qual o pico começa a se desenrolar.

''Aqui está o que aconteceu. Vocês, que encontro nesses lugares, anciãos de Argos, compartilham ou condenam minha alegria, pouco me importa, pois estou satisfeito com minha ação. Se fosse permitido profanar um cadáver com libações, seria a ocasião de agradecer aos deuses por isso... Veja Agamenon, meu marido e aqui está a mão que o matou. O trabalho é de um obreiro digno. Eu disse.''

Clitemnestra não tem consciência do remorso; ''o temor jamais pisará no limiar da porta de seu palácio; ele vingou seu sangue, ele matou o homem que matou o fruto amado de suas entranhas''; são as deusas Até, Dice e Éris quem "houveram ajudado a matar aquele homem". Ele acaba de cumprir um dever sagrado e ostenta sua alegria. A opinião pública ratifica seu ato, deixando-a viver em paz até que o filho de Agamenon tenha idade para vingá-lo. A opinião pública é muito poderosa entre os povos primitivos; é a autoridade que ninguém insulta; persegue implacavelmente aqueles que infligem os costumes, e para escapar-se dela, os culpados deixam o país, são exilados até que seus crimes sejam esquecidos. 

O homem morto por Clitemnestra é um guerreiro célebre, que voltou vitorioso de uma gloriosa expedição. A Grécia homérica estava armada para punir o sequestro de uma mulher, e a morte do maior dos gregos ficou impune. 

O papel das Eumênides acabou. A mulher desceu do posto mais alto que ocupava. O filho não pertence mais à mãe. O pai passou a ser o dono da casa, como dizia Minerva; o filho vai mandar na mãe. Telêmaco mandará Penélope sair do salão de festas para o banheiro feminino.(9)

Jesus, o novo Deus, dirá a Maria: ''Mulher, o que há de comum entre você e eu?'' E acrescentará que veio à terra para cumprir as ordens do pai e não para lidar com a mãe. 

''A família e o culto serão perpetuados pelo pai; só ele representará toda a série de descendentes, sobre os quais se apoiará o culto doméstico, ele quase poderia dizer, como hindu: Deus sou eu; quando a morte vier, será um ser divino que os descendentes invocarão.(10)

“Tratada como menor, a mulher ficará sujeita ao pai, ao marido e aos parentes do marido se este morrer. Ele será despojado de seus bens; os varões e seus descendentes excluirão as mulheres e seus descendentes de herdar a propriedade da família.'' 

Catão, o ancião, formulará assim o Código do Casamento. 

“O marido é o juiz da esposa; seu poder não tem limites. Você pode o que quiser. Se ela cometer algo de errado, ele a pune; se ela bebe vinho, ele a condena; se ela teve comércio com outro homem, ele a mata.'' A lei de Manon, condena uma mulher que realmente violou seu dever para com seu mestre, a ser devorada por cães em um lugar público.(11)

Um novo crime nasceu, o adultério. 

A Clitemnestra de Ésquilo, que, com o conhecimento de todo o povo, vivia com Egisto, o primo-irmão de Agamenon, seu segundo marido, poderia dizer aos anciãos de Argos: ''Eu não violei o selo da modéstia e do sigilo. '' 

Nas 'Eumênides', Orestes e Apolo a acusaram da morte de Agamenon, mas não de ter faltado à fé conjugal. 

No entanto, Ésqulo dramatiza a lenda mais de cinco séculos após a captura de Tróia, perdendo assim sua clareza ao esbarrar em novas ideias e costumes.

Cem anos depois de Ésquilo, Eurípides continua com o mesmo tema. Sua Clitemnestra é assassina e adúltera; "contraiu uma união de culpa... manchou o leito conjugal." Em praça pública, Orestes encontra como defensor “um cidadão de coração corajoso, íntegro, de vida irrepreensível. Este se propõe a coroar o filho de Agamenon, por ter desejado vingar seu pai, matando uma mulher má e ímpia, pois os cidadãos não queriam ir para o combate ou fazer expedições para longe de suas casas, visto que os que permaneceram correspondiam aos guardas de casa e manchavam o leito conjugal.''

Em Electra, Clitemnestra não representa tal dignidade altiva; é uma mulher submissa, que defende a mitigação de faltas e demonstra que Agamenon foi o grande culpado por seu adultério, dizendo que: ''Se o marido se esquece a ponto de negligenciar o leito conjugal, a esposa voluntariamente segue seu exemplo e procura um amante.''

A mulher adquire um novo dever, a fidelidade conjugal, enquanto relegada ao fundo do gineceu, sob a opressão conjugal perde seu papel histórico.

Na época homérica, as mulheres eram a fonte das lendas. Em todos os lugares, mostra o poder de sua ação; no entanto, a tradição, preservada principalmente pelos homens, quase não perpetuou mais do que a memória de seus crimes. Ésquilo ataca-a em Coéforas tal fúria que faz supor que a mulher de seu tempo ainda não estivesse completamente submetida ao jugo degradante do homem.

O coração. Quem é capaz de calcular a raiva de uma mulher sem-vergonha?... 

O amor, no coração de uma mulher, é muito mais do que amor; é um delírio o qual as feras e os brutos nunca alcançam, nem mesmo nos dias da prefeitura.

...recorda a filha de Téstio, a mãe de Meléagro, esta mãe fatal para seu filho...

Ela odeia até mesmo a sanguinária Cila, que libertou a cidade de Mégara, bem como seu pai Nisus, seu amante Minos... 

Mas, de todos os crimes, o mais tristemente famoso é o de Lemnos, 

o assassinato de homens por mulheres.

Enquanto a esposa, degradada, aviltada pela nova organização da família, ridicularizada no teatro pela zombaria insultuosa e atrevida de Aristófanes que os padres da Igreja, os moralistas e os bons espíritos de todos os tempos repetiram servilmente, desapareceu da vida pública, a prostituta, cortejada pelos cortesãos, os ricos e os poderosos, cantada pelos poetas, lisonjeada pelos filósofos, tolerada até presidir a sua mesa, substituiu o lugar onde a mãe de família tinha estado.(12)

Os atenienses, que tiveram a triste honra de se darem a conhecer pela dura escravidão familiar da mulher, não se livraram dos infames costumes que, segundo Heródoto, importavam para todos os países por onde passaram.(13) Júpiter, o ''pai dos deuses '', o ''vingador dos pais '', o ''guardião da fé conjugal'', merecia ser amante de Ganímedes.

VI A Farsa depois da Tragédia

A teoria inventada por Apolo, para explicar o papel preponderante do pai no ato da geração, não conseguiu convencer o espírito positivista do povo, que prefere um fato tangível a todo o raciocínio dos sofistas. Para tanto, empregou outros meios que visam autorizar a substituição da mãe pelo pai na direção da família.

Conheceis a simulação do chamado 'nascimento Vizcaya': a mulher pára, o marido se deita, geme e se contorce, e os compadres e comadres da vizinhança vêm homenageá-lo pelo parto.

Este curioso costume, que Estrabão já havia apontado haver entre os ibéricos, conserva-se até hoje.

Ele acreditava que apenas os bascos eram os amigos para representar um show tão grotesco diante de seus amigos e colegas. Mas quando os europeus descobriram a América, entenderam que seus conterrâneos de Vizcaya e Guipúscoa não eram os únicos em que o homem simulava o nascimento real da mulher.

“Entre os apípores'', escreve um missionário, ''assim que a mulher deu um filho ao mundo, o marido é visto indo para a cama e sendo objeto de todos os cuidados. O homem jejua por algum tempo; você poderia jurar que era ele quem acabou de dar à luz.''

“Entre outras mulheres indígenas”, escreve um viajante, “o marido fica nu na rede; é cuidado pelas mulheres da vizinhança, enquanto a mãe do recém-nascido prepara a comida, sem que ninguém se lembre dela.''

Esse comportamento foi um pouco observado em todos os lugares; na Europa, na África, na Ásia, no velho e no novo mundo, no presente e no passado. 

Marco Polo o encontra em Yunnan no século 13. Apolônio (de Tiana), que viveu dois séculos antes de nossa era, conta que: ''as mulheres do Ponto Euxino trazem seus filhos ao mundo com a participação dos homens, que se deitam, dão gritos agudos, cobrem a cabeça, preparam banhos e são alimentados delicadamente por suas mulheres.'' 

"Os cíprios", diz Plutarco, "vão para a cama e imitam as contorções das mulheres durante o parto." 

Os atenienses celebravam o segundo dia do mês gorpeins — setembro —, uma festa em homenagem a (princesa de Creta na mitologia grega) Ariadne; durante o sacrifício "um jovem, deitado numa cama, imitava os gestos e gemidos de uma mulher ao dar à luz". 

Poderíamos multiplicar as citações, mas as anteriores são suficientes para afirmar que esse costume ridículo tem sido bastante generalizado em toda a terra. Os deuses, aqueles macacos do homem, não acreditavam na comédia do nascimento fingido dos plebeus, mas sim, no deles. Júpiter deitou-se, gemeu e jurou que carregava na coxa o pequeno Baco que sua mãe acabara de trazer para o céu. Por raro privilégio, Baco teve uma mãe dupla; os civilizados se contentavam em serem filhos de pais diferentes. Não foi a primeira vez que Júpiter ''deu à luz'', já tendo dado à luz Minerva.

O falso nascimento dos bascos era apenas motivo de risos e piadas, tanto que se acreditava simplesmente que era uma peculiaridade de um povo tão original; mas o fato de encontrar a mesma ideia em diferentes países e até mesmo no Olimpo, vale muito a pena levar em consideração. O homem mais cruel e o animal mais grotesco às vezes transformam os maiores fenômenos sociais em cerimônias ridículas. 

O referido parto, ou melhor, a grotesca paródia do parto, é uma das maiores artimanhas que os homens usam para privar as mulheres de sua qualidade de chefe de família e de seus bens. 

O parto proclamava em voz alta o direito superior das mulheres na família, e o homem, desajeitadamente, queria parodiá-la para se convencer de que ele era o autor da criança. 

A família patriarcal entrou no mundo escoltada pela discórdia, pelo crime e pela mais degradante das farsas.


Notas de rodapé:

(1) Se você pergunta a um aleijado a qual família pertence, disse Heródoto, ele nos fala da genealogia de sua mãe. Plutarco nos conta que os cretenses se serviam da palavra ''mátria'', em vez de pátria. Ulpiano, o jurisconsulto, dá à palavra ''matrix'' o sentido de metrópole, que preserva a lembrança do tempo no qual o homem não conhecia nada além da família, a raça e o país de sua mãe. (retornar ao texto)

(2) Carver, em seu Tróvéis na América do Norte, observa que havendo perguntado por que uma mulher da tribo dos nandoweries estava rodeada de um respeito tão grande, lhe fora contestado que em certa ocasião solene ela havia convidado os quarenta principais guerreiros da tribo, havia-lhes presenteado com um banquete e havia-lhes tratado todos maritalmente. Havia renascido um velho costume deixado em desuso. (retornar ao texto)

(3) Os panikotk da Índia inglesa reconhecem em suas mulheres uma situação privilegiada que elas legitimam por um trabalho mais ativo e inteligente que o do sexo masculino. Elas cavam, semeiam, plantam, fiam, tecem, produzem cerveja; elas não recusam nenhum trabalho.  (retornar ao texto)

(4) Tácito, Moeurs des Germains, páginas 5 a 7. (retornar ao texto)

(5) Há de se fazer uma exceção sobre Vico, um dos pensadores mais originais da época moderna. Os fatos por ele conhecidos não eram tão numerosos nem tão detalhados para permitir-lhe elaborar uma teoria completa; porém, na 'Scienza nuova'' insiste sobre a promiscuidade primitiva, e fundamenta o estabelecimento do patrício em Roma e sua separação da plebe, na diferença da forma do matrimônio. Os patrícios podiam chamar o seu pai 'patrem cierre'; enquanto plebeus, que conservavam ainda a genealogia materna, eles não o conheciam. (retornar ao texto)

(6) O padre Charlevoix, da Companhia de Jesus, conta que um roques que serviu como oficial nas tropas francesas, acreditava ter dado um exemplo de magnanimidade num combate, parando no momento em que iria perfurar seu pai. Histoire de la Nouvelle France, livro 3, pág 1.774. (retornar ao texto)

(7) Ésquilo, chamado Apolo: Lóxias (tortuoso) a causa da dificuldade com que compreendia os oráculos. (retornar ao texto)

(8) James Adair, 'História dos nativos americanos', citado por Morgan. (retornar ao texto)

(9) Odisséia, canto I. (retornar ao texto)

(10) Fustel de Coulanges, 'A cidade antiga'. (retornar ao texto)

(11) No mês de janeiro de 1886, o tribunal civil de Sena rejeitou o pedido de separação apresentado por uma mulher e, em vez disso, reconheceu o direito de espancá-la "quando a correção for motivada por desvios de conduta que tenham despertado sua legítima indignação". A lei francesa autoriza o marido a prender e assassinar a esposa. Os franceses demonstram dessa maneira galante e humana seu terno amor pelas mulheres. (retornar ao texto)

(12) Hipárquia, em cuja homenagem os cínicos celebravam uma festa, embora filha de uma família abastada da Maroneia, casou-se com o cínico filósofo Crates, pobre e deformado, para não acabar no gineceu e assim possuir a liberdade que as cortesãs. (retornar ao texto)

(13) Sócrates afirmava que ''durante uma expedição ninguém podia recusar o abraço que o guerreiro dava em quem ele mais gostava e fosse de outro sexo, para que eles pudessem contribuir com mais ardor para o triunfo e ostentar o prêmio da coragem.'' (Platão, A República, livro V , página 153.) “Os persas copiaram dos jovens o amor dos jovens” (Heródoto). (retornar ao texto)

Inclusão: 13/04/2021