Conceitos Fundamentais de O Capital
Manual de Economia Política

I. Lapidus e K. V. Ostrovitianov


Livro segundo: A produção de mais valia
Capítulo III - A mais-valia na economia capitalista
16. A força de trabalho como mercadoria. Valor da força de trabalho.


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Este problema só poderá resolver-se se encontrarmos no mercado uma mercadoria que tenha a capacidade de criar valor. O trabalho cria valor. De todas as mercadorias que se encontram no mercado capitalista a força de trabalho é a única que pode trabalhar. Portanto, esta mercadoria é a única que pode estar na origem do valor.

Sabemos que a força de trabalho não é uma mercadoria em todas as relações sociais. Recordemos a escravidão, o feudalismo e, finalmente, a economia mercantil simples que acabamos de examinar; em todos estes cacos; a força de trabalho não é uma mercadoria.

São necessárias duas condições para chegar a sê-lo: primeiro, a operário tem de ser livre, ou seja, ter direito a dispor livremente da sua força de trabalho; nem o escravo nem o servo têm este direito, dependem pessoalmente do proprietário e do senhor. A segunda condição é que o operário seja livre frente aos meios de produção e aos meios de subsistência, que esteja desprovido deles, e então ver- se-á obrigado a vender a sua força de trabalho. Difere dos artesãos e dos camponeses, e em geral dos pequenos produtores de mercadorias que possuem meios de produção: banca de trabalho, ferramentas, habitação, e que, em consequência, não vendem a sua força de trabalho, mas sim os produtos do seu trabalho.

Assim, encontramos no mercado a mercadoria cujo uso pode produzir valor. Esta mercadoria é a força de trabalho. O enunciado do problema obriga-nos a explicar a aparição do lucro capitalista em conformidade com a teoria do valor. Ao comprar a mercadoria-força de trabalho, o capitalista deve pagá-la pelo seu valor integral.

O que determina o valor da força de trabalho?

Vimos que o valor de qualquer mercadoria se determina pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção. Quando afirmámos isto acerca de todas as outras mercadorias, vestuário, sapatos, betume, era compreensível, não causava surpresa. Mas como aplicar tal definição à força de trabalho? A força de trabalho não se produz nas fábricas, nasce da vida por uma multiplicação natural. Parece haver razões para admitir que a força de trabalho era uma excepção à regra geral da economia baseada na troca. No entanto, se examinarmos com mais cuidado a exploração do operário pelo capital, tal como existe na fábrica capitalista, damo-nos conta de que a mercadoria- força de trabalho não necessita, em caso algum, de ser diferenciada das outras mercadorias.

Em que consiste o uso que o capital faz na mercadoria força de trabalho? No facto de o operário vender o seu trabalho ao capitalista, durante um tempo determinado determinado por contrato.

O trabalho é a actividade do homem que persegue uma meta definida, a acção do homem sobre a matéria que lhe oferece a natureza, para dar a esta matéria uma forma que a torne apta para a satisfação das necessidades do homem(1).

Quando trabalha, quando actua sobre a natureza exterior, o operário gasta certa quantidade de força muscular nervosa (incluindo a força cerebral), certa quantidade de energia, etc. Para conservar a sua força de trabalho tem de reconstituir, cada dia, a energia despendida. Para isso precisa de consumir certa quantidade de meios de subsistência, precisa duma habitação com alguns móveis, precisa de vestuário, alimentos, etc.

Além disso, é necessário que a força de trabalho aflua constantemente. Este fluxo está mais ou menos assegurado pela multiplicação natural dos operários. Portanto, o operário deve ter os recursos necessários para manter a sua família. Se o mínimo de meios de subsistência que recebe não lhe assegura a manutenção da família, pode acontecer não só que o capital se veja privado do fluxo de força de trabalho complementar, mas, ainda mais, que o operário não possa reconstituir a energia despendida na medida suficiente para continuar a trabalhar para o capitalista. Se o operário tem mulher e filhos e se os meios de subsistência que recebe só dão para reconstituir a sua força de trabalho pessoal, é evidente que compartilhará os seus meios de subsistência com toda a sua família, e não poderá, portanto, recuperar a energia despendida. Por isso é obrigatório incluir no valor da força de trabalho o sustento médio duma família.

Além disso, todo o operário tem um certo número de necessidades que correspondem ao seu grau de cultura.

Por pobre que seja o seu vestuário, não pode deixar de se vestir para ir trabalhar. Se o seu salário não lhe assegura a possibilidade de comprar roupa, alimentar-se-á pior, inclusivamente a pão e água, para comprar roupa, em detrimento da reconstituição das suas forças físicas. Portanto, deve assegurar-se ao operário certo nível de cultura.

É evidente que este nível varia segundo os países. Por exemplo, o operário norte-americano culto precisa de um fato em bom estado, precisa de ler o jornal todos os dias, de ir ao teatro, assistir a conferências, etc. Seriam estas coisas artigos de «primeira necessidade» para o operário russo antes da revolução? Certamente que não. Este operário não podia pretender ir ao teatro, e só os elementos mais conscientes do proletariado sentiam a necessidade de ler o jornal. As condições de existência em que se encontravam milhares de operários russos que viviam em verdadeiros acampamentos aparecem-nos hoje intoleráveis para o operário europeu, e com maior razão para o norte-americano.

Mas se comparamos a vida do operário russo com a do operário chinês, o que vemos(2)? A maioria dos operários chineses não pensa sequer na roupa interior. Mesmo o vestuário nem sempre é uma «necessidade»; um trapo sujo faz, muitas vezes, de roupa. Com frequência, a sua alimentação não é mais que uns biscoitos mal cozidos; muitas vezes dormem na fábrica e o acampamento onde se aloja um certo número de homens é considerado um luxo.

Aparentemente o operário médio russo não poderia conformar-se com semelhantes condições de vida.

Tudo isto se explica, naturalmente, por razões históricas, pelas circunstâncias em que nasce e se desenvolve a classe operária e pelos hábitos que às vezes demoraram séculos a implantar-se.

Pode compreender-se que, quanto mais qualificado é o operário, mais hábitos e necessidades elevados tem e que quase lhe é impossível não os satisfazer, o que aumenta ainda mais o valor da força de trabalho qualificado.

Mas o valor superior da força de trabalho qualificado não se explica apenas pelo maior nível cultural do operário qualificado. Há também que ter em conta o tempo de trabalho socialmente necessário dedicado à aprendizagem. Além disso, a conservação e o posterior aperfeiçoamento profissional também exigem para este operário um nível de cultura mais elevado que o operário não qualificado. Todos os artigos de consumo necessários ao operário para a recuperação da energia gasta no processo de trabalho, para a manutenção duma família média e de certo nível cultural, têm um determinado valor, que, como o de qualquer mercadoria, se calcula pelo tempo socialmente necessário à sua produção. O valor de todos estes meios de existência constitui o valor da força de trabalho.

À primeira vista parece estranho que o capitalista, que habitualmente representamos como um explorador que sonha com os meios de tirar o máximo do operário, nos apareça de repente como um benfeitor que se preocupa em fornecer ao operário os meios necessários para recuperar as suas forças, mantê-las e conservar um certo nível de civilização. Toda a realidade capitalista parece contradizer-nos. Alguma vez vimos um capitalista perguntar, ao contratar um operário, se tem família e preocupar-se em pagar mais a um pai de família que a um solteiro? Mas na realidade, ainda que o capitalista nunca pense em assegurar ao operário o mínimo de meios de existência suficiente para a manutenção da sua família e se esforce, pelo contrário, em diminuir por todos os meios este mínimo, as leis elementares do mercado, que conduzem o preço das mercadorias ao seu valor, obrigam-no a pagar ao operário, em média, uma soma que corresponde precisamente a este mínimo. Se o capitalista baixa o salário do operário abaixo deste mínimo, o rendimento e a qualidade do trabalho diminuem logo, porque o operário subalimentado, esfomeado, não trabalha tanto como o que chega à fábrica descansado depois de recuperadas as suas forças. Não falaremos aqui das variações da oferta e da procura da força de trabalho, nem da acção dos operários, factores susceptíveis de determinar uma diferença entre o preço da força de trabalho e o seu valor. Falaremos disso no capítulo do salário.

Concluímos por agora que a força de trabalho, como as demais mercadorias, tem um valor que está determinado pelos meios de subsistência necessários à sua reprodução, à instrução profissional, à manutenção média duma família e à manutenção dum certo nível cultural.


Notas de rodapé:

(1) KAUTSKY, A Doutrina Económica de K. Marx. (retornar ao texto)

(2) Recordemos que esta obra foi escrita em 1929. (N. do T.) (retornar ao texto)

Inclusão 26/06/2018