Do livro Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática

Vladimir Ilitch Lênin

Julho de 1905


Primeira edição: Escrito em junho/julho de 1905. Publicado, pela primeira vez, em um folheto, em Genebra, em julho de 1905. V. I. Lênin, Obras, 4ª ed. em russo, t. 9, págs. 32/45; 60/69; 74/85

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 179-207

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

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6. De que lado o proletariado é ameaçado pelo perigo de ver-se com as mãos atadas na luta contra a burguesia inconsequente?

Os marxistas estão absolutamente convencidos do caráter burguês da revolução russa. Que significa isto? Isto significa que as transformações democráticas no regime político e as transformações econômico-sociais que se converteram em uma necessidade para a Rússia, não somente não implicam por si sós minar o domínio da burguesia, mas, pelo contrário, abrirão pela primeira vez, de forma apropriada, o terreno para um desenvolvimento amplo e rápido, europeu e não asiático, do capitalismo; pela primeira vez tornarão possível o domínio da burguesia como classe. Os socialistas revolucionários não podem compreender esta ideia porque desconhecem o a-bê-cê das leis do desenvolvimento da produção mercantil e capitalista, não vêem que mesmo o êxito completo da insurreição camponesa, mesmo a redistribuição de toda a terra no interesse dos camponeses e de acordo com seus desejos (a «repartição negra» ou algo neste sentido) em nada destruiria o capitalismo, e sim, pelo contrário, daria um impulso a seu desenvolvimento e aceleraria a diferenciação de classe dos próprios camponeses. A incompreensão desta verdade converte os socialistas revolucionários em ideólogos inconscientes da pequena burguesia. Insistir sobre esta verdade tem para a social-democracia uma importância imensa, não só em teoria, como também na política prática, pois daqui se conclui o caráter obrigatório da independência completa de classe do Partido do proletariado no presente movimento «democrático geral».

Mas disto não se conclui, de modo algum, que a revolução democrática (burguesa por seu conteúdo econômico-social) não represente um interesse enorme para o proletariado. Disto não se conclui, de modo algum, que a revolução democrática não se possa realizar, tanto de forma vantajosa sobretudo para o grande capitalista, para o magnata financeiro, para o latifundiário «esclarecido», como de forma vantajosa para o camponês e o operário.

Os neo-iskristas interpretam de maneira inteiramente errada o sentido e a significação da categoria revolução burguesa. Em seus raciocínios, enxerga-se constantemente a ideia de que a revolução burguesa é uma revolução que só pode beneficiar a burguesia, e somente a ela; entretanto, nada há mais errado do que esta ideia. A revolução burguesa é uma revolução que não vai além do marco do regime econômico-social burguês, isto é, capitalista. A revolução burguesa exprime as necessidades do desenvolvimento do capitalismo não somente sem destruir suas bases, como, pelo contrário, ampliando-as e aprofundando-as. Esta revolução exprime, portanto, não só os interesses da classe operária, como também os de toda a burguesia. Uma vez que a dominação da burguesia sobre a classe operária é inevitável nas condições do capitalismo, pode-se dizer com pleno direito que a revolução burguesa exprime os interesses não tanto do proletariado como da burguesia. Mas é completamente absurda a ideia de que a revolução burguesa não exprime em medida alguma os interesses do proletariado. Esta ideia absurda se reduz ou à ancestral teoria populista de que a revolução burguesa se acha em conflito com os interesses do proletariado, de que não temos, portanto, necessidade de liberdade política burguesa, ou então se reduz ao anarquismo, que nega toda participação do proletariado na política burguesa, na revolução burguesa, no parlamentarismo burguês. Teoricamente, esta ideia representa, por si só, um esquecimento das teses elementares do marxismo, relativas à inevitabilidade do desenvolvimento do capitalismo à base da produção mercantil. O marxismo ensina que uma sociedade baseada na produção mercantil e que estabeleceu a troca de mercadorias com as nações capitalistas civilizadas, ao chegar a um certo grau de desenvolvimento, também ela, se coloca inevitavelmente no caminho do capitalismo. O marxismo rompeu irrevogavelmente com as elucubrações dos populistas e anarquistas, segundo os quais a Rússia, por exemplo, poderia evitar o desenvolvimento capitalista, sair do capitalismo, ou saltar por cima dele, por algum meio que não fosse o da luta de classes, à base e dentro dos limites do próprio capitalismo.

Todas estas teses do marxismo foram demonstradas e repetidas com todos os detalhes, tanto em geral como especificamente em relação à Rússia. E destas teses se conclui que é uma ideia reacionária procurar a salvação da classe operária em alguma coisa que não seja o maior desenvolvimento do capitalismo. Em países como a Rússia, a classe operária sofre não tanto pelo capitalismo como pela insuficiência do desenvolvimento do capitalismo. Por isso, a classe operária está absolutamente interessada no desenvolvimento mais amplo, mais livre, mais rápido do capitalismo. É absolutamente benéfica à classe operária a eliminação de todas as reminiscências do passado que entorpecem o desenvolvimento amplo, livre e rápido do capitalismo. A revolução burguesa é, precisamente, a revolução que de modo mais decidido varre os restos do antigo, as reminiscências do feudalismo (às quais pertence não só a autocracia como também a monarquia) e que de modo mais completo garante o desenvolvimento mais amplo, mais livre e mais rápido do capitalismo.

Por isso, a revolução burguesa é extremamente benéfica para o proletariado. A revolução burguesa é absolutamente necessária aos interesses do proletariado. Quanto mais completa e decidida, quanto mais consequente for a revolução burguesa, tanto mais garantida estará a luta do proletariado contra a burguesia pelo socialismo. Esta conclusão pode parecer nova, estranha ou paradoxal unicamente aos que ignoram o a-bê-cê do socialismo científico. E desta conclusão, diga-se de passagem, depreende-se igualmente a tese de que, em certo sentido, a revolução burguesa é mais benéfica para o proletariado do que para a burguesia. Eis aqui justamente em que sentido esta tese é indiscutível: à burguesia convém apoiar-se em algumas sobrevivências do passado contra o proletariado, por exemplo na monarquia, no exército permanente, etc. À burguesia convém que a revolução não elimine completamente todas as sobrevivências do passado, e sim que deixe de pé algumas delas: isto é, que esta revolução não seja inteiramente consequente, não seja levada até o final, não seja decidida e implacável. Os social-democratas exprimem frequentemente esta ideia de maneira um pouco diferente, dizendo que a burguesia trai a si mesma, que a burguesia trai a causa da liberdade, que a burguesia é incapaz de uma democracia consequente. Ã burguesia convém mais que as mudanças necessárias no sentido democrático-burguês se realizem mais lenta, mais gradual, mais cautelosamente, e de modo menos firme, por meio de reformas e não por meio da revolução, que estas transformações se façam do modo mais prudente possível em relação às «honradas» instituições da época do feudalismo (tais como a monarquia), que estas transformações desenvolvam o menos possível a ação independente, a iniciativa e a energia revolucionárias do povo simples, isto é, dos camponeses e principalmente dos operários, pois de outro modo será muito mais fácil para estes últimos «mudar o fuzil de ombro», como dizem os franceses, ou seja, dirigir contra a própria burguesia a arma que a revolução burguesa colocar em suas mãos, a liberdade que esta lhes der, as instituições democráticas que brotarem no terreno revolvido do feudalismo. Pelo contrário, à classe operária convém mais que as transformações necessárias no sentido democrático-burguês sejam introduzidas não por meio de reformas, e sim pela via revolucionária, pois o caminho reformista é o caminho das dilações, dos adiamentos, da agonia dolorosa e lenta dos membros podres do organismo popular, e os que mais e primordialmente sofrem com este processo de agonia lenta são o proletariado e os camponeses. O caminho revolucionário é o caminho que consiste na operação mais rápida e menos dolorosa para o proletariado, na eliminação direta dos membros podres, o caminho de concessões mínimas e cautela em relação à monarquia e às suas instituições repelentes, ignominiosas e podres, que envenenam a atmosfera com sua decomposição.

É por isso que nossa imprensa liberal burguesa, não só por medo da censura, não só por medo das autoridades, deplora a possibilidade de um caminho revolucionário, teme a revolução, assusta o tsar com a revolução, se preocupa em evitar a revolução, se humilha e se prosterna servil ante reformas mesquinhas como base do caminho reformista. Sustentam este ponto-de-vista não só Russkie Viedomosti, Sin Otetchestva, Nasha Jhizn, Nashi Dni,(1) como também a livre e ilegal Osvobojdenie. A própria situação da burguesia, como classe, na sociedade capitalista, engendra inevitavelmente sua inconsequência na revolução democrática. A própria situação do proletariado, como classe, obriga-o a ser democrata consequente. A burguesia, temendo o progresso democrático, que ameaça com o fortalecimento do proletariado, olha para trás. O proletariado nada tem a perder, exceto suas cadeias, e adquire, com a ajuda da democracia, todo um mundo. Por isso, quanto mais consequente é a revolução burguesa em suas transformações democráticas, menos se limita ao que beneficia exclusivamente à burguesia. Quanto mais consequente é a revolução burguesa, tanto mais garante as vantagens do proletariado e dos camponeses na revolução democrática.

O marxismo não ensina ao proletariado a ficar à margem da revolução burguesa, a não participar nela, a entregar a direção dela à burguesia, e sim ensina, pelo contrário, a participar nela da maneira mais enérgica e a lutar com a maior decisão pela democracia proletária consequente, para levar até seu termo a revolução. Não podemos ir além do marco democrático-burguês da revolução russa, mas podemos ampliar em proporções colossais este marco, podemos e devemos, nos limites dele, lutar pelos interesses do proletariado, pela satisfação de suas necessidades imediatas e pelas condições de preparação de suas forças para a vitória completa futura. Há democracia burguesa e democracia burguesa. O monárquico dos zemstvos, partidário de uma Câmara alta, que «reclama» o sufrágio universal e termina por firmar um compromisso com o tzarismo para obter uma Constituição mutilada, é um democrata burguês. O camponês que com as armas na mão se levanta contra os latifundiários e funcionários e, por «republicanismo ingênuo», propõe «derrubar o tsar»,(2) também é um democrata burguês. Há regimes democrático-burgueses como o da Alemanha e como o da Inglaterra, como o da Áustria e como o da América ou da Suíça. Bom marxista seria o que na época da revolução democrática deixasse passar esta diferença entre os graus de democracia e entre o caráter de tal ou qual forma desta e se limitasse a «discorrer com grande talento» a propósito de que, apesar de tudo, isto é uma «revolução burguesa», fruto de uma «revolução burguesa».

Pois bem, nossos neo-iskristas são precisamente sabichões deste tipo, que se vangloriam de sua miopia. Os neo-iskristas limitam-se precisamente a raciocinar sobre o caráter burguês da revolução, quando o de que se necessita é saber estabelecer uma diferença entre a democracia burguesa republicana revolucionária e a monárquico-liberal, já sem falar da diferença entre a democracia burguesa inconsequente e a democracia proletária consequente. Contentam-se como se se tivessem convertido realmente em «homens enfronhados»(9) — com especulações melancólicas sobre o «processo de luta recíproca das classes antagônicas», quando o de que se trata é de dar uma direção democrática à revolução atual, de acentuar as palavras-de-ordem democráticas de vanguarda, para diferenciá-las das palavras-de-ordem de traição do sr. Struve & Cia., de indicar de forma direta e clara as tarefas imediatas da luta verdadeiramente revolucionária do proletariado e dos camponeses, em contraposição às farsas liberais dos latifundiários e industriais. Nisto consiste agora, senhores, o fundo da questão que não soubestes apreender: em que nossa revolução se veja coroada por uma verdadeira e grandiosa vitória, ou somente por uma transformação mesquinha; em que chegue até a ditadura revolucionário-democrática do proletariado e dos camponeses, ou que «perca suas forças» numa constituição liberal a la Shipov!(10)

À primeira vista pode parecer que ao colocar esta questão nos afastamos inteiramente de nosso tema. Mas isto só parece assim à primeira vista. Na realidade, é exatamente nesta questão que reside a raiz da divergência de princípio que se delineou até agora de modo completo entre a tática social-democrata do III Congresso Operário Social-Democrata da Rússia e a tática fixada na Conferência dos neo-iskristas. Estes deram agora não apenas dois, e sim três passos atrás, ressuscitando os erros do economismo ao resolver as questões de sua tática incomparavelmente mais complexas, mais importantes e mais vitais para um partido operário no momento da revolução. Eis por que é necessário determo-nos com toda atenção no exame do problema colocado.

Na parte da resolução dos neo-iskristas reproduzida por nós, indica-se o perigo de que a social-democracia se encontre com as mãos atadas na luta contra a política inconsequente da burguesia, de que se dissolva na democracia burguesa. A ideia deste perigo constitui o Leitmotiv de toda a literatura especificamente neoiskrista. Esta ideia é o verdadeiro eixo de toda a posição de princípio na cisão de nosso Partido (desde que os elementos de baixa discussão ficaram completamente relegados a segundo plano ante os elementos de reviravolta para o economismo). Reconhecemos, igualmente, sem titubeios, que este perigo existe realmente, que exatamente agora, no apogeu da revolução russa, este perigo assumiu um caráter particularmente sério. A todos nós, os teóricos, ou, no que me concerne, diria melhor, os publicistas da social-democracia, incumbe a tarefa inadiável e extremamente responsável de analisar de que lado, na realidade, ameaça este perigo. Com efeito, a origem de nossa divergência se encontra não no debate a propósito de se existe ou não o referido perigo, e sim em saber se ele é engendrado pelo chamado reboquismo da «minoria», ou pelo chamado revolucionarismo da «maioria».

Para eliminar interpretações deturpadas e mal-entendidos, assinalaremos, antes de mais nada, que o perigo de que falamos reside não no aspecto subjetivo da questão, e sim no objetivo, não na posição formal que a social-democracia ocupe na luta, e sim no desenlace material de toda a luta revolucionária atual. A questão não consiste em saber se tais ou quais grupos social-democratas querem diluir-se na democracia burguesa, se percebem que se diluem; disto nem se fala. Não suspeitamos de que exista semelhante desejo em nenhum dos social-democratas; além do mais, não se trata aqui de desejos, longe disso. A questão não consiste tampouco em saber se tais ou quais grupos social-democratas conservarão sua autonomia formal, sua fisionomia própria, sua independência em relação à democracia burguesa em todo o transcurso da revolução. Não só estes grupos podem proclamar tal «independência», como também podem mantê-la formalmente e, apesar disto, as coisas podem ocorrer de tal modo que eles se vejam com as mãos atadas na luta contra a inconsequência da burguesia. O resultado político definitivo da revolução pode ser que, apesar da «independência» formal, apesar de que a social-democracia conserve plenamente sua fisionomia própria, como organização, como partido, de fato não seja independente, não se ache com forças para imprimir na marcha dos acontecimentos a marca de sua independência proletária, se veja tão débil que, em seu conjunto, no fim das contas, no balanço definitivo, sua «diluição» na democracia burguesa seja, não obstante, um fato histórico.

Eis aí em que consiste o perigo real. E agora vejamos de que lado nos ameaça: do lado do desvio da social-democracia no sentido da direita, personificado pela nova Iskra, como acreditamos, ou em seu desvio para a esquerda, personificado pela «maioria», por Vperiod, etc., como acreditam os neo-iskristas?

A solução deste problema, como indicamos, é determinada pela combinação objetiva da ação de diversas forças sociais. O caráter destas forças acha-se teoricamente determinado pela análise marxista da realidade russa, e no presente é determinado praticamente pelas ações abertas dos grupos e das classes na marcha da revolução. Pois bem, toda a análise teórica realizada pelos marxistas muito antes da época que atravessamos, e todas as observações práticas sobre o desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários nos mostram que são possíveis, do ponto-de-vista das condições objetivas, dois cursos e dois desenlaces para a revolução na Rússia. A transformação do regime econômico e político da Rússia no sentido democrático-burguês é inevitável e inelutável. Não há força no mundo capaz de impedir esta transformação. Mas da combinação da ação das forças em presença, criadoras desta transformação, podem resultar dois desenlaces ou duas formas para esta transformação. Das duas, uma:

  1. ou terminará com a «vitória decisiva da revolução sobre o tzarismo», ou
  2. não haverá forças suficientes para a vitória decisiva, e a transformação levará a um ajuste entre o tzarismo e os elementos mais «inconsequentes» e «egoístas» da burguesia.

Toda a infinita variedade de detalhes e combinações, que ninguém pode prever, se resume, em suma, justamente a um ou outro destes dois desenlaces.

Analisemos agora estes desenlaces: primeiro, do ponto-de-vista de sua significação social e, depois, do ponto-de-vista da situação da social-democracia (de sua «diluição», ou de que se veja com as «mãos atadas») em um e outro casos.

Que é a «vitória decisiva da revolução sobre o tzarismo»? Já vimos que, ao empregar esta expressão, os neo-iskristas não a compreendem nem mesmo em seu sentido político imediato. Menos ainda se observa neles a compreensão do conteúdo de classe deste conceito. Pois nós, marxistas, não devemos em caso algum deixar-nos seduzir pelas palavras «revolução» ou «grande revolução russa», como agora se deixam seduzir por elas muitos democratas revolucionários (do tipo de Gapon). Devemos ter em conta de modo exato as forças sociais reais que se enfrentam com o «tzarismo» (força completamente real e compreensível para todos) e que são capazes de obter a «vitória decisiva» sobre ele. Estas forças não podem ser a grande burguesia, os latifundiários, os industriais, a «sociedade» que segue o pessoal de Osvobojdenie.(11) Sabemos que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva. Sabemos que são incapazes, por sua situação de classe, de uma luta decisiva contra o tzarismo: para empreender uma luta decisiva, a propriedade privada, o capital, a terra são um lastro demasiadamente pesado. Têm muita necessidade do tzarismo, com suas forças policial-burocráticas e militares, contra o proletariado e os camponeses, para que possam aspirar à destruição do tzarismo. Não, a força capaz de obter a «vitória decisiva sobre o tzarismo» não pode ser senão o povo, isto é, o proletariado e os camponeses, se se tomam as grandes forças fundamentais, distribuindo a pequena burguesia rural e urbana (igualmente «povo») entre aquele e estes. «A vitória decisiva da revolução sobre o tzarismo» é a ditadura revolucionário-democrática do proletariado e dos camponeses. Nossos neo-iskristas não poderão escapar a esta conclusão indicada já há muito tempo por Vperiod. Não há mais ninguém que possa obter a vitória decisiva sobre o tzarismo.

E esta vitória será, precisamente, tuna ditadura: isto é, deverá apoiar-se inevitavelmente na força das armas, nas massas armadas, na insurreição, e não nestas ou naquelas instituições criadas «por via legal», «por via pacífica». Só pode ser uma ditadura porque a implantação das transformações imediata e absolutamente necessárias para o proletariado e os camponeses provocará uma resistência desesperada da parte dos latifundiários, da grande burguesia e do tzarismo. Sem ditadura será impossível abafar esta resistência, rechaçar as tentativas contrarrevolucionárias. Mas não será, naturalmente, uma ditadura socialista, e sim uma ditadura democrática. Esta ditadura não poderá tocar (sem passar por toda uma série de graus intermediários de desenvolvimento revolucionário) nas bases do capitalismo. Poderá, no melhor dos casos, levar a cabo uma redistribuição radical da propriedade latifundiária a favor dos camponeses, implantar uma democracia consequente e completa até chegar à república, erradicar, não só da vida do campo, como também do regime da fábrica, todos os traços asiáticos de servidão, iniciar uma séria melhoria na situação dos operários e elevar seu nível de vida e, finalmente, last but not least,(3) fazer com que a fogueira revolucionária se acenda também na Europa. Semelhante vitória ainda não converterá, longe disso, nossa revolução burguesa em socialista; a revolução democrática não sairá propriamente do marco das relações econômico-sociais burguesas; mas terá, não obstante, uma importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro. Nada elevará a tal altura a energia revolucionária do proletariado mundial, nada diminuirá tão consideravelmente o caminho que conduz à sua vitória total como esta vitória decisiva da revolução que já se iniciou na Rússia.

Até que ponto é provável esta vitória já é outra questão. Não somos absolutamente propensos ao otimismo insensato a este respeito; não esquecemos de modo algum as enormes dificuldades desta tarefa, mas, ao ir para a luta, devemos desejar a vitória e saber indicar o verdadeiro caminho que conduz a ela. As tendências capazes de conduzir a esta vitória existem indiscutivelmente. É verdade que nossa influência, da social-democracia, sobre as massas do proletariado ainda é insuficiente em demasia; o impulso revolucionário sobre as massas camponesas é muito insignificante; a dispersão, o pouco desenvolvimento, a ignorância do proletariado e sobretudo dos camponeses são ainda terrivelmente grandes. Mas a revolução une e instrui rapidamente. Cada passo em seu desenvolvimento desperta as massas e as atrai com força irresistível precisamente para o programa revolucionário, como o único que exprime de maneira consequente e completa seus verdadeiros interesses, seus interesses vitais.

A lei da mecânica estabelece que a ação equivale à reação. Na história, a força destruidora da revolução depende também, e não pouco, da força e da duração do período de esmagamento das aspirações à liberdade, da profundidade que alcancem as contradições entre a «superestrutura» antediluviana e as forças vivas, da época atual. E a situação política internacional, em muitos sentidos, vai tornando-se a mais vantajosa para a revolução russa. A insurreição dos operários e dos camponeses já começou; acha-se dispersa, é espontânea, fraca, mas demonstra de modo indiscutível e absoluto a existência de forças capazes de ir à luta decisiva e que marcham para uma vitória decisiva.

Se estas forças se mostrarem insuficientes, o tzarismo poderá acertar um ajuste, que já está sendo preparado, de um lado, pelos Buliguin, e, de outro, pelos Struve. Então, as coisas terminarão por uma constituição mutilada ou até mesmo, no pior dos casos, por uma paródia de constituição. Isto será também uma «revolução burguesa», mas será um aborto, um aleijão, uma geração monstruosa. Á social-democracia não alimenta ilusões, conhece a natureza traidora da burguesia, não perde o ânimo, nem abandona seu trabalho tenaz, paciente e firme para a educação de classe do proletariado, mesmo nos dias mais sombrios de sucesso burguês-constitucional à la Shipov. Este desenlace se assemelharia mais ou menos ao de quase todas as revoluções democráticas da Europa no transcurso do século XIX, e em tal caso o desenvolvimento de nosso Partido seguiria um caminho difícil, duro, longo, mas conhecido e já trilhado.

Cabe agora perguntar: em qual destes dois desenlaces possíveis a social-democracia se veria de fato com as mãos atadas diante da burguesia inconsequente e egoísta? Ver-se-ia de fato «diluída» ou quase diluída na democracia burguesa?

Basta formular de modo claro esta pergunta para respondê-la imediatamente sem dificuldade.

Se a burguesia consegue fazer com que fracasse a revolução russa por meio de um ajuste com o tzarismo, então a social-democracia ver-se-á de fato com as mãos atadas diante da burguesia inconsequente, então a social-democracia ver-se-á «diluída» na democracia burguesa no sentido de que o proletariado não conseguirá imprimir sua marca característica à revolução, não conseguirá ajustar as contas com o tzarismo da maneira proletária, ou como dizia Marx em seu tempo, «à maneira plebeia».

Se se consegue a vitória decisiva da revolução, então, ajustaremos as contas com o tzarismo à maneira jacobina, ou se preferem, plebeia. «Todo o terrorismo francês — escrevia Marx, em 1848, na famosa Nova Gazeta Renana — não foi senão um procedimento plebeu para ajustar contas com os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o filisteísmo.» (Ver: Marx, Nachlass, edição de Mehring, torno III, pág. 211). Por acaso aqueles que intimidam os operários social-democratas russos com o espantalho do «jacobinismo» na época da revolução democrática pensaram uma vez sequer no significado destas palavras de Marx?

Os girondinos da social-democracia russa atual, os neo-iskristas, não se fundem com os elementos de Osvobojdenie, mas, de fato, em consequência do caráter de suas palavra-de-ordem, marcham a reboque destes. E os elementos de Osvobojdenie, isto é, os representantes da burguesia liberal, querem livrar-se da autocracia suavemente, à maneira reformista, fazendo concessões, sem ofender a aristocracia, a nobreza, a corte, cautelosamente, sem romper com nada, amável e cortesmente, de modo senhorial, colocando luvas brancas (como as que usou, tiradas das mãos de um bachibuzuk, o senhor Petrunkevitch(12) na recepção dos «representantes do povo» (?) dada por Nicolau, o Sanguinário. (Ver: Proletari, nº 5).(4)

Os jacobinos da social-democracia moderna — bolcheviques, partidários de Vperiod, congressistas ou partidários de Proletari, não sei bem como indicá-los — querem elevar com suas palavras-de-ordem a pequena burguesia revolucionária e republicana e, sobretudo, os camponeses até o nível da democracia consequente do proletariado, que conserva integralmente os seus traços especiais de classe. Querem que o povo, isto é, o proletariado e os camponeses, ajustem contas com a monarquia e aristocracia «àla plebeia», aniquilando implacavelmente os inimigos da liberdade, esmagando pela força a resistência, sem fazer nenhuma concessão à herança maldita do feudalismo, do asiatismo, do escárnio ao homem.

Isto não significa, de modo algum, que queiramos por força imitar os jacobinos de 1793, adotar suas concepções, seu programa, suas palavras-de-ordem, seus métodos de ação. Nada disto. Não temos um programa velho, e sim um novo: o programa mínimo do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Temos uma palavra-de-ordem nova: a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses. Teremos também, se vivermos até a vitória autêntica da revolução, novos métodos de ação que corresponderão ao caráter e aos fins do Partido da classe operária, partido que aspira à revolução socialista completa. Com nossa comparação, queremos unicamente esclarecer que os representantes da classe avançada do século XX, do proletariado, isto é, os social-democratas, se dividem também nas duas alas (oportunista e revolucionária) em que se dividiam os representantes da classe avançada do século XVIII, a burguesia, isto é, girondinos e jacobinos.

Só no caso de vitória completa da revolução democrática, o proletariado não se encontrará com as mãos atadas na luta contra a burguesia inconsequente; só neste caso não se «diluirá» na democracia burguesa, e sim imprimirá a toda a revolução sua marca proletária, ou, para dizê-lo mais exatamente, a marca proletário-camponesa.

Em uma palavra: para não se ver com as mãos atadas na luta contra a democracia burguesa inconsequente, o proletariado deve ser suficientemente consciente e forte para elevar os camponeses até a consciência revolucionária, para dirigir sua ofensiva, para realizar assim de modo independente a democracia consequentemente proletária.

E assim que se coloca a questão, resolvida de forma tão infeliz pelos neoiskristas, em relação ao perigo de que a social-democracia se veja com as mãos atadas na luta contra a burguesia inconsequente. A burguesia será sempre inconsequente. Não há nada mais ingênuo e estéril do que as tentativas de traçar as condições ou pontos(5) cuja realização possibilitaria considerar a democracia burguesa como amiga sincera do povo. Só o proletariado pode ser um combatente consequente pela democracia. Mas, ele só pode lutar vitoriosamente pela democracia com a condição de que as massas camponesas se unam à sua luta revolucionária. Se o proletariado não conseguir forças para isto, a burguesia se porá à frente da revolução democrática e dará a esta um caráter inconsequente e interesseiro. Não há outro meio de impedi-lo a não ser a ditadura democrática do proletariado e dos camponeses.

Assim, pois, chegamos à conclusão indubitável de que é justamente a tática neoiskrista que, por sua significação objetiva, faz o jogo da democracia burguesa. A pregação da difusão orgânica, que chega até os plebiscitos, até o princípio de acordos, a separar do Partido a literatura de partido; o rebaixamento das tarefas da insurreição armada; a confusão entre as palavras-de-ordem políticas populares do proletariado revolucionário com as da burguesia monárquica; a adulteração das condições da «vitória decisiva da revolução sobre o tzarismo»: tudo isto, tomado em conjunto, dá precisamente como resultado a política do reboquismo nos momentos revolucionários, a qual desorienta o proletariado, desorganiza-o e leva a confusão à sua consciência, rebaixa a tática da social-democracia, ao invés de indicar o único caminho da vitória e agrupar em torno da palavra-de-ordem do proletariado todos os elementos revolucionários e republicanos do povo.

Para confirmar esta conclusão a que chegamos, à base de uma análise da resolução, abordaremos esta mesma questão sob outros aspectos. Vejamos, em primeiro lugar, de que maneira um bolchevique ingênuo e sincero ilustra a tática neoiskrista no jornal georgiano Sotsiail-Demokrat. Em segundo lugar, vejamos quem recorre, de fato, na atual situação política, às palavras-de-ordem da nova Iskra.

10. As «comunas revolucionárias» e a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses

A conferência dos neo-iskristas não se manteve na posição anarquista a que tinha chegado a nova Iskra (somente «de baixo», e não «de baixo e de cima»). O absurdo de admitir a insurreição e não admitir a vitória e a participação no governo provisório revolucionário, saltava demais à vista. Por isso, a resolução introduziu reservas e restrições na solução do problema colocado por Martinov e Martov. Examinemos estas reservas, expostas na seguinte parte da resolução:

«Esta tática («continuar sendo o partido da oposição revolucionária extrema»), naturalmente não exclui em nada a conveniência da tomada parcial, episódica, do poder e da formação de comunas revolucionárias em tal ou qual cidade, em tal ou qual região, com o interesse exclusivo de contribuir para estender a insurreição e desorganizar o governo.»

Se assim é, quer dizer que em princípio se aceita ação, não só de baixo, como também de cima. Quer dizer que a tese sustentada no conhecido artigo satírico de L. Martov na Iskra (n.9 93) é rechaçada, e se reconhece como justa a tática do jornal Vperiod: não só «de baixo», como também «de cima».

Ademais, a tomada do poder (ainda que parcial, episódica, etc.) pressupõe, evidentemente, a participação não só da social-democracia e não só do proletariado. Isto se deve a que não é somente o proletariado que se interessa pela revolução democrática e que participa ativamente na mesma. Isto se deve a que a insurreição é «popular», como se diz no princípio da resolução em análise, que nela participam também «grupos não proletários» (expressão da resolução dos conferencistas sobre a insurreição), isto é, também a burguesia. Desta maneira, a conferência jogou fora, como queria Vperiod, o princípio segundo o qual toda participação dos socialistas, juntamente com a pequena burguesia, no governo provisório revolucionário é uma traição à classe operária. A traição não deixa de ser traição pelo fato de que a ação que a determina seja parcial, episódica, regional, etc. Portanto, a conferência jogou fora, como queria Vperiod, essa equiparação entre a participação no governo provisório revolucionário e o jauresismo vulgar. O governo não deixa de ser governo pelo fato de que seu poder se estenda não a muitas cidades, e sim a uma cidade, não a muitas regiões, e sim a uma região; e tampouco deixa de sê-lo pelo nome que tenha. Assim, pois, a conferência rechaçou a colocação do problema que a nova Iskra tentou fazer em consonância com os princípios.

Vejamos agora se são razoáveis as limitações que a conferência impõe à constituição, aceita agora em princípio, de governos revolucionários, e a participação neles. Não sabemos em que se diferencia o conceito de «episódico» do conceito de «provisório». Tememos que, neste caso, uma palavra estrangeira e «nova» esteja servindo apenas para ocultar a ausência de uma ideia clara. Isto parece «mais profundo» quando, na realidade, só é mais obscuro e confuso. Em que se diferencia a «conveniência» da «tomada» parcial «do poder» em uma cidade ou região, da participação no governo provisório revolucionário de todo um Estado? Acaso entre as «cidades» não está Petersburgo, onde teve lugar o 9 de Janeiro? Acaso entre as regiões, não está o Cáucaso, que é maior do que muitos Estados? Acaso as tarefas (que em certa ocasião inquietavam a nova Iskra) em tudo o que se refere aos cárceres, à polícia, ao Tesouro, etc., não se colocam também ante nós com a «tomada do poder» mesmo numa cidade, sem falar de uma região? Ninguém negará, naturalmente, que se as forças são insuficientes, se o triunfo da insurreição não é completo, se a vitória não é decisiva, então são possíveis governos provisórios revolucionários parciais, de cidades e outros. Mas, a que vem isto, senhores? Não são os senhores mesmos que falam, no princípio da resolução, da «vitória decisiva da revolução», da «insurreição popular vitoriosa»? Desde quando os social-democratas assumem a obra dos anarquistas: dispersar a atenção e os fins do proletariado, orientá-lo para o «parcial» e não para o geral, único, integral e completo? Ao pressupor a «tomada do poder» em uma cidade, os próprios conferencistas não falam da necessidade de «estender a insurreição» a outra cidade? — ousamos acreditar nisso — a todas as cidades? — é de se esperar que sim. Essas conclusões, senhores, são tão vacilantes e casuais, contraditórias e confusas, como o são suas premissas. O III Congresso do POSDR deu uma resposta exaustiva e clara à questão do governo provisório revolucionário em geral. Esta resposta se estende também a todos os governos provisórios parciais. Em troca, a resposta da conferência, separando de modo artificial e arbitrário uma parte da questão, não trata senão de evitar (sem êxito, porém) a questão em seu conjunto, e semeia a confusão.

Que significam essas «comunas revolucionárias»? Distingue-se esta noção da de «governo provisório revolucionário», e, em caso afirmativo, em que? Os próprios conferencistas ignoram-no. A confusão nas ideias revolucionárias os conduz, como acontece habitualmente, à tagarelice revolucionária. De fato, o emprego do termo «comuna revolucionária» na resolução dos representantes da social-democracia é uma simples frase revolucionária e nada mais. Marx condenou mais de uma vez semelhante frase, na qual se ocultam, por trás de um termo «sugestivo» de um passado caduco, as tarefas do futuro. O caráter sugestivo de um termo que desempenhou um papel na história se converte em tais casos em ouropel inútil e nocivo, em um entorpecente. Precisamos dar aos operários e a todo o povo uma noção clara e inequívoca do por que queremos a constituição de um governo provisório revolucionário, de quais são exatamente as transformações que realizaremos se amanhã exercermos uma influência decisiva sobre o poder, caso a insurreição popular já iniciada tenha um desenlace vitorioso. Estas são as questões colocadas diante dos dirigentes políticos.

O III Congresso do POSDR responde a estas questões com toda a clareza, dando um programa completo destas transformações: o programa mínimo de nosso Partido. Ao contrário, a palavra «comuna» não dá resposta alguma, e não faz senão encher a cabeça com conceitos difusos... ou com frases vazias. Quanto mais cara é para nós a Comuna de Paris de 1871, tanto menos se torna admissível que a invoquemos sem justificativa, e sem examinar seus erros e as condições especiais que conduziram a ela. Fazer isto significaria reproduzir o absurdo exemplo dos blanquistas, ridicularizados por Engels, os quais se prosternavam (em 1874, em seu Manifesto) diante de qualquer ato da Comuna. Que dirá o «conferencista» ao operário que lhe perguntar sobre esta «comuna revolucionária» de que fala a resolução? Só poderá dizer que a história registra sob este nome um governo operário que não sabia e não podia naquela época distinguir os elementos da revolução democrática e da revolução socialista, que confundia as tarefas da luta pela república com as tarefas da luta pelo socialismo, que não soube solucionar as tarefas de uma ofensiva militar enérgica sobre Versalhes, que cometeu o erro de associar-se ao Banco da França, etc. Em uma palavra, quer se refiram, em sua resposta, à Comuna de Paris, quer a outra comuna qualquer, esta resposta será: este foi um governo como não deve ser o nosso. Boa resposta, não resta a menor dúvida! Isto não é prova do verbalismo racionalista do exegeta e a impotência de um revolucionário, quando se silencia sobre o programa prático do partido e, inoportunamente, se começa a dar lições de história numa resolução? Isto não demonstra exatamente a existência do erro que em vão queriam imputar a nós: a confusão entre a revolução democrática e a socialista, entre as quais nenhuma «comuna» estabeleceu distinção?

Apresenta-se como fim exclusivo do governo provisório (tão inoportunamente qualificado de comuna) a extensão da insurreição e a desorganização do governo. Este fim «exclusivo» elimina, no sentido literal da palavra, qualquer outra tarefa, constituindo reincidência na absurda teoria de «somente de baixo». Tal eliminação de outras tarefas é, mais uma vez, prova de miopia e irreflexão. A «comuna revolucionária», isto é, o poder revolucionário, mesmo que apenas em uma cidade, deverá desempenhar inevitavelmente (mesmo que apenas temporário, «parcial, episodicamente») todas as atividades do Estado e, neste caso, é o cúmulo da obtusidade ocultar a cabeça sob a asa. Este poder deverá legalizar a jornada de oito horas, instituir a inspeção operária das fábricas, organizar a instrução geral gratuita, implantar a elegibilidade dos juízes e constituir comitês camponeses, etc.; em uma palavra, deverá levar a cabo, necessariamente, uma série de reformas. Incluir estas reformas na noção de «contribuir para estender a insurreição» significaria jogar com as palavras e aumentar deliberadamente a confusão onde já existe completa falta de clareza.

A parte final da resolução neoiskrista não fornece novos materiais para a crítica das tendências de princípio do «economismo» ressuscitado em nosso Partido, mas ilustra o que foi dito acima em um outro aspecto um pouco diferente.

A parte final é a seguinte:

«Somente em um caso a social-democracia deveria por iniciativa própria dirigir seus esforços no sentido de assenhorear-se do poder e detê-lo pelo maior tempo possível, a saber, caso a revolução se estenda aos países avançados da Europa ocidental, nos quais as condições para a realização do socialismo já atingiram certa (?) maturidade. Neste caso, os marcos históricos limitados da revolução russa poderiam ampliar-se consideravelmente e surgiria a possibilidade para que ela entrasse no caminho das transformações socialistas.

«Baseando sua tática no propósito de conservar para o Partido Social-Democrata, no transcurso de todo o período revolucionário, a situação de oposição revolucionária extrema em relação a todos os governos que se sucederem no poder durante a revolução, a social-democracia poderá preparar-se de modo melhor também para a utilização do poder governamental, se este cair (??) em suas mãos.»

Aqui, a ideia fundamental é a mesma que foi formulada reiteradamente por Vperiod, ao dizer que não devemos temer (como teme Martinov) a vitória completa da social-democracia na revolução democrática, isto é, a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses, pois uma vitória como esta nos dará a possibilidade de levantar a Europa; e o proletariado socialista europeu, sacudindo o jugo da burguesia, nos ajudará, por sua vez, a realizar a revolução socialista. Veja-se, porém, até que ponto é deturpada esta ideia na exposição dos neo-iskristas. Não nos deteremos em detalhes, como o absurdo de que o poder possa «cair» nas mãos de um partido consciente, que considere nociva a tática da tomada do poder; de que na Europa as condições para o socialismo alcançaram não determinada maturidade, e sim uma maturidade em geral; de que nosso programa de partido não admite nenhuma transformação socialista, e sim apenas uma revolução socialista. Tomemos o principal e fundamental da distinção entre as ideias de Vperiod das da resolução. Vperiod indicava ao proletariado revolucionário da Rússia uma missão ativa: triunfar na luta pela democracia e aproveitar esta vitória para levar a revolução à Europa. A resolução não compreende esta conexão entre nossa «vitória decisiva» (não no sentido neoiskrista) e a revolução na Europa, e, por isso, não fala dos objetivos do proletariado, nem das perspectivas de sua vitória, e sim de uma das possibilidades em geral: «Se a revolução se estender. ..» Vperiod indicava de forma clara e concreta — e estas indicações entraram na resolução do III Congresso do POSDR — exatamente como se pode e se deve «utilizar o poder governamental» no interesse do proletariado, levando em conta o que se pode realizar imediatamente, no grau atual do desenvolvimento social, e o que é necessário realizar primeiro como premissa democrática da luta pelo socialismo. Também neste sentido a resolução se arrasta irremediavelmente a reboque ao dizer: «Poder-se-á preparar para a utilização», sem que se saiba como se há de preparar, como se deve preparar, e em que sentido utilizá-lo. Não duvidamos, por exemplo, de que os neo-iskristas «podem preparar-se para a utilização» da situação dirigente no Partido, mas o que acontece é que até agora sua experiência nesta utilização, sua preparação, não infundem esperança alguma quanto à transformação da possibilidade em realidade...

Vperiod dizia com exatidão em que consiste precisamente a «possibilidade real de manter o poder em nossas mãos»: na ditadura democrático-revolucionária do proletariado e dos camponeses, em sua força de massa conjugada, capaz de superar todas as forças da contrarrevolução, na inevitável coincidência de seus interesses com as transformações democráticas.

A resolução da conferência também não fornece qualquer coisa de positivo neste sentido, limitando-se a evitar a questão. De fato, a possibilidade de manter-se no poder na Rússia deve estar condicionada pela composição das forças sociais da própria Rússia, pelas condições da revolução democrática que se desenvolve atualmente em nosso país. De fato, a vitória do proletariado na Europa (e da extensão da revolução à Europa até a vitória do proletariado ainda existe certa distância) provocará uma luta contrarrevolucionária desesperada da burguesia russa; e a resolução dos neo-iskristas não diz uma palavra sequer sobre esta força contrarrevolucionária, cuja importância é avaliada na resolução do III Congresso do POSDR. Se na luta pela república e a democracia não pudéssemos nos apoiar nos camponeses, além do proletariado, «manter o poder» seria então uma causa perdida. Se não é uma causa perdida, se a «vitória decisiva da revolução sobre o tzarismo» abre uma possibilidade como esta, devemos então indicá-la, estimular ativamente a sua transformação em realidade, dar palavras-de-ordem práticas, não só no caso de que a revolução atinja a Europa, como para que esta extensão se realize. Os reboquistas da social-democracia, ao referir-se aos «marcos históricos limitados da revolução russa» não fazem senão encobrir a concepção limitada que têm das tarefas desta revolução democrática e do papel avançado do proletariado nesta revolução!

Uma das objeções contra a palavra-de-ordem de «ditadura democrático-revolucionária do proletariado e dos camponeses» consiste em que a ditadura pressupõe a «unidade de vontade» (Iskra, nº 95), e a unidade de vontade entre o proletariado e a pequena burguesia é impossível. Esta objeção é inconsistente, porque está baseada na interpretação abstrata, «metafísica» da noção «unidade de vontade». A vontade pode ser unânime em um sentido e não unânime em outro. A ausência de unidade nas questões do socialismo e na luta pelo socialismo não exclui a unidade de vontade nas questões da democracia e na luta pela república. Esquecer isto significaria esquecer a diferença lógica e histórica entre a revolução democrática e a revolução socialista. Esquecer isto significaria esquecer o caráter popular da revolução democrática: se é «popular», isto quer dizer que existe «unidade de vontade» precisamente enquanto esta revolução satisfaz as necessidades e as exigências do povo em geral. Além dos limites da democracia nem sequer se pode falar de unidade de vontade entre o proletariado e a burguesia camponesa. A luta de classe entre eles é inevitável, mas na república democrática essa luta será a luta popular mais profunda e mais vasta pelo socialismo. A ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses tem, como tudo no mundo, seu passado e seu futuro. Seu passado é a autocracia, o regime feudal, a monarquia, os privilégios. Na luta contra esse passado, na luta frente à contrarrevolução é possível a «unidade de vontade» do proletariado e dos camponeses, pois há unidade de interesses.

Seu futuro é a luta contra a propriedade privada, a luta do operário assalariado contra o patrão, a luta pelo socialismo. Aqui a unidade de vontade é impossível.(6) Aqui não nos encontramos em presença do caminho que vai da autocracia à república, e sim do caminho que conduz da república democrática pequeno-burguesa ao socialismo.

Naturalmente, numa situação histórica concreta se entrelaçam os elementos do passado e do futuro, se confundem um e outro caminhos. O trabalho assalariado e sua luta contra a propriedade privada existem também nas condições da autocracia, nascem mesmo sob o regime feudal. Mas isto não nos impede de modo algum de distinguir lógica e historicamente as grandes fases do desenvolvimento. De fato, todos nós contrapomos a revolução burguesa e a socialista, todos nós insistimos incondicionalmente na necessidade de estabelecer uma distinção rigorosa entre elas, mas pode-se negar por acaso que se entrelaçam na história elementos isolados, particulares, das duas revoluções? Por acaso a época das revoluções democráticas na Europa não registra uma série de movimentos socialistas e de tentativas socialistas? E por acaso a futura revolução socialista na Europa ainda não terá muito que fazer no sentido democrático?

O social-democrata nunca deve esquecer nem um instante sequer a inevitabilidade da luta de classe do proletariado pelo socialismo, contra a burguesia e a pequena burguesia mais democráticas e republicanas. Isto é indiscutível. Disto se conclui a necessidade absoluta de que a democracia tenha um partido próprio, independente e rigorosamente de classe. Daí se conclui o caráter temporário de nossa palavra-de-ordem de «combater junto» com a burguesia, o dever de vigiar rigorosamente «o aliado como se se tratasse de um inimigo», etc., etc. Tudo isto não dá lugar, tampouco, à menor dúvida. Mas seria ridículo e reacionário esquecer, fazer caso omisso ou subestimar, por causa disto, as tarefas essenciais do momento, ainda que sejam transitórias e temporárias. A luta contra a autocracia é uma tarefa temporária e transitória dos socialistas, mas qualquer esquecimento ou subestimação desta tarefa equivale a trair o socialismo e a prestar um serviço à reação. A ditadura democrático-revolucionária do proletariado e dos camponeses é indiscutivelmente apenas uma tarefa transitória e temporária dos socialistas, mas afastar-se desta tarefa na época da revolução democrática é algo francamente reacionário.

As tarefas políticas concretas têm que ser colocadas numa situação concreta. Tudo é relativo, tudo muda, tudo se transforma. A social-democracia alemã não inclui em seu programa a reivindicação da república. Naquele país, a situação é tal que esta questão dificilmente pode ser separada na prática da questão do socialismo (se bem que, em relação à Alemanha, Engels, em suas observações sobre o projeto de programa de Erfurt, em 1891, alertava contra a tendência a subestimar a importância da república e da luta por ela!). Na social-democracia da Rússia nem sequer surgiu a questão de suprimir do programa da agitação a reivindicação da república, pois em nosso país não se pode nem sequer falar que exista um laço indissolúvel entre a questão da república e a questão do socialismo. Um social-democrata alemão de 1898 que não colocava em primeiro lugar a questão especial da república era um fenômeno natural que não provocava nem surpresa, nem censura. Um social-democrata alemão que em 1848 deixasse na sombra a questão da república teria sido simplesmente um traidor da revolução. Não existe verdade abstrata. A verdade é sempre concreta.

Chegará um tempo — quando houver terminado a luta contra a autocracia russa, quando tiver passado para a Rússia a época da revolução democrática — em que será ridículo até mesmo falar de «unidade de vontade» entre o proletariado e os camponeses, da ditadura democrática, etc. Então, pensaremos de modo imediato na ditadura socialista do proletariado e falaremos dela de modo mais detalhado. Mas na atualidade, o Partido da classe de vanguarda não pode deixar de esforçar-se para conseguir do modo mais enérgico a vitória decisiva da revolução democrática sobre o tzarismo. E a vitória decisiva não é outra coisa senão a ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses.

Observação:

1. Recordamos ao leitor que na polêmica de Iskra contra Vperiod, a primeira aludia, entre outras coisas, à carta de Engels a Turati, na qual Engels chamava a atenção do chefe (futuro) dos reformistas italianos para que não confundisse a revolução democrática com a revolução socialista. A revolução que se aproxima na Itália — escrevia Engels a propósito da situação política da Itália em 1894 — será pequeno-burguesa, democrática, e não socialista. Iskra criticava Vperiod por afastar-se do princípio estabelecido por Engels. Esta crítica não é justa, pois Vperiod (nº 14)(7) reconhecia plenamente em geral a justeza da teoria de Marx sobre as diferenças entre as três forças principais das revoluções do século XIX. Segundo esta teoria, atuam contra o velho regime, contra a autocracia, o feudalismo e a servidão: 1) a grande burguesia liberal;

2) a pequena burguesia radical;

3) o proletariado. A primeira não luta senão por uma monarquia constitucional; a segunda, por uma república democrática; e o último, por uma revolução socialista. A confusão entre a luta pequeno-burguesa pela revolução democrática completa e a luta proletária pela revolução socialista ameaça um socialista de falência política. Esta advertência de Marx é inteiramente justa. Mas, exatamente por este motivo, é errada a palavra-de-ordem de «comunas revolucionárias», pois as comunas que se conhecem na história confundiam a revolução democrática e a revolução socialista. Pelo contrário, nossa palavra-de-ordem de ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses nos preserva por completo desse erro. Nossa palavra-de-ordem reconhece incondicionalmente o caráter burguês da revolução, que não é capaz de ultrapassar imediatamente o marco de uma revolução apenas democrática; ao mesmo tempo, nossa palavra-de-ordem leva avante esta revolução concreta, trata de dar-lhe as formas mais convenientes para o proletariado, trata, portanto, de aproveitar ao máximo a revolução democrática para que a luta ulterior do proletariado pelo socialismo tenha maior êxito.

12. Diminuirá o alcance da revolução democrática se a burguesia lhe der as costas?

As linhas precedentes já estavam escritas quando recebemos as resoluções da conferência caucasiana dos neo-iskristas publicadas na Iskra. Pour la bonne bouche, (para a sobremesa) não poderíamos imaginar melhor documentação.

A redação da Iskra observa com razão: «Na questão fundamental da tática, a conferência caucasiana adotou igualmente uma decisão análoga (é verdade!) à tomada pela Conferência de Toda a Rússia» (isto é, a neoiskrista). «A questão da atitude da social-democracia a respeito do governo provisório revolucionário foi resolvida pelos camaradas caucasianos no sentido da atitude mais negativa ante o novo método preconizado pelo grupo Vperiod e pelos delegados ao suposto congresso que aderiram a esse grupo.» «É preciso reconhecer como muito feliz a formulação que a conferência deu à tática do partido proletário na revolução burguesa.»

O que é verdade, é verdade. Ninguém poderia dar uma formulação mais «feliz» do erro capital dos neo-iskristas. Vamos citar esta formulação completa, destacando primeiro entre parênteses as flores e a seguir os frutos apresentados no final.

Resolução da conferência caucasiana dos neo-iskristas sobre o governo provisório:

«Considerando que nossa tarefa consiste em utilizar o momento revolucionário para aprofundar (sim, naturalmente, só que se deveria acrescentar: aprofundar à maneira de Martinov) a consciência social-democrata do proletariado (unicamente para aprofundar a consciência e não para conquistar a república? Que «profunda» compreensão da revolução!), a conferência, com o objetivo de garantir ao partido a mais completa liberdade de crítica em relação ao regime estatal burguês nascente (garantir a república não é outra coisa! Nossa missão é unicamente garantir a liberdade de crítica. As ideias anarquistas engendram a linguagem anarquista: o regime «estatal burguês»!), se declara contra a formação de um governo provisório social-democrata e contra a entrada nele (lembremos a resolução dos bakuninistas citada por Engels, adotada dez meses antes da revolução espanhola; Proletari, nº 3) e julga que o mais conveniente é exercer de fora (de baixo e não de cima) uma pressão sobre o governo provisório burguês para democratizar tanto quanto possível (??) o regime estatal. A conferência estima que a formação de um governo provisório pelos social-democratas, ou sua entrada neste governo, por um lado, afastaria o Partido Social-Democrata das grandes massas do proletariado, às quais o partido decepcionaria, pois a social-democracia, apesar da tomada do poder, não poderia satisfazer as necessidades vitais da classe operária até que se realizasse o socialismo (a república não é uma necessidade vital! Os autores não percebem, em sua inocência, que empregam uma linguagem puramente anarquista, como se negassem a possibilidade de tomar parte nas revoluções burguesas!) e, por outro lado, obrigará as classes burguesas a virarem as costas à revolução, cujo alcance seria assim diminuído.”

Eis o quid da questão. Eis onde as ideias anarquistas se entrelaçam (como ocorre continuamente também aos bernsteinianos da Europa ocidental) com o mais puro oportunismo. Vejam bem: não entrar no governo provisório porque isto obrigaria a burguesia a virar as costas à revolução e diminuiria assim o alcance da revolução! Temos, pois, diante de nós, por completo, em seu aspecto puro e lógico, a filosofia neoiskrista segundo a qual, posto que a revolução é burguesa, devemos inclinar-nos ante a vulgaridade burguesa e ceder-lhe o caminho. Se nos deixamos levar, mesmo que parcialmente, mesmo que por um minuto, pela consideração de que nossa participação pode obrigar a burguesia a virar as costas à revolução, cedemos, com isso, totalmente, a hegemonia na revolução às classes burguesas. Entregamos assim inteiramente o proletariado à tutela da burguesia (reservando-nos a plena «liberdade de críticas»!!), obrigando o proletariado a ser moderado e dócil para evitar que a burguesia vire as costas. Castramos as necessidades mais vitais do proletariado, exatamente suas necessidades políticas, que nunca foram bem compreendidas pelos economistas e seus epígonos, e as castramos para que a burguesia não vire as costas. Passamos totalmente do terreno da luta revolucionária para a realização da democracia nos limites necessários ao proletariado, ao terreno do regateio com a burguesia, comprando, mediante nossa traição aos princípios, mediante a traição à revolução, o consentimento benévolo da burguesia («para que não vire as costas»).

Em duas breves linhas, os neo-iskristas do Cáucaso souberam exprimir toda a essência da tática de traição à revolução, de conversão do proletariado a um miserável apêndice das classes burguesas. O que deduzimos acima dos erros dos neo-iskristas como uma tendência é erigido agora ante nós como princípio claro e concreto: a reboque da burguesia monárquica! Como a instauração da república obrigaria (e já obriga: exemplo, o sr. Struve) a burguesia a virar as costas à revolução, que venha então a palavra-de-ordem: abaixo a luta pela república! Como toda reivindicação democrática do proletariado sustentada energicamente e levada até às últimas consequências obriga sempre e em todas as partes do mundo a burguesia a virar as costas, só falta agora que digamos: escondei-vos em vossos casebres, camaradas operário, atuai somente por fora, não penseis em utilizar para a revolução as armas e os procedimentos do regime «estatal burguês» e conservai vossa «liberdade de crítica»!

Aqui se manifesta o erro fundamental na própria compreensão do termo «revolução burguesa». A «compreensão» martinoviana ou neoiskrista deste termo leva diretamente a trair a causa do proletariado no interesse da burguesia.

Quem esqueceu o antigo economismo, quem não o estude e não se lembre dele, dificilmente poderá, tampouco, compreender a atual reincidência no economismo. Recordemos o Credo bernsteiniano. Dos pontos-de-vista e dos programas «puramente proletários.», esses elementos deduziram a seguinte conclusão: para nós, social-democratas, a economia, a verdadeira causa operária, a liberdade de criticar qualquer politicagem, o verdadeiro aprofundamento do trabalho social-democrata; para eles, para os liberais, a política; Deus nos livre de cair no «revolucionismo»; isto obrigaria a burguesia a virar as costas. Quem ler todo o Credo ou o suplemento especial do n? 9 de Rabotchaia Misl (setembro de 1899), verá todo o curso deste raciocínio.

Agora acontece o mesmo, mas em grande escala, aplicado ao julgamento de toda a «grande» revolução russa, envelhecida, ai!, de antemão e rebaixada ao nível de sua caricatura pelos teóricos do filisteísmo ortodoxo. Para nós, social-democratas, a liberdade de crítica, o aprofundamento da consciência, a ação de fora. Para eles, para as classes burguesas, a liberdade de ação, o campo livre para sua direção revolucionária (leia-se liberal), a liberdade de realização de «reformas» de cima.

Estes vulgarizadores do marxismo jamais meditaram nas palavras de Marx sobre a necessidade de substituir as armas da crítica pela crítica das armas. Invocando em vão o nome de Marx, de fato elaboram resoluções táticas absolutamente no espírito dos charlatães burgueses de Frankfurt, que criticavam livremente o absolutismo, aprofundavam a consciência democrática e não compreendiam que a época da revolução é a época da ação, da ação tanto de cima como de baixo. Ao converter o marxismo em verbalismo racionalista, fizeram da ideologia da classe de vanguarda, da classe revolucionária mais decidida e enérgica, uma ideologia dos setores menos desenvolvidos desta classe, que evitam as difíceis tarefas democráticas revolucionárias e confiam estas tarefas democráticas ao sr. Struve.

Se, em consequência da entrada da social-democracia no governo revolucionário, as classes burguesas virarem as costas à revolução, «seu alcance será assim diminuído».

Ouvem, operários russos? O alcance da revolução será maior se ela é feita — a menos que os social-democratas não os obriguem a virar-lhe as costas — pelos senhores Struve, que não querem obter a vitória sobre o tzarismo e sim pactuar com ele. O alcance da revolução será maior se, dos dois desenlaces possíveis assinalados acima por nós, é o primeiro que se realiza, isto é, se a burguesia monárquica chega a se entender com a autocracia à base de uma «constituição» à la Chipov!

Os social-democratas que, em resoluções destinadas a servir como diretiva para todo o Partido, escrevem coisas tão vergonhosas, ou aprovam estas «felizes» resoluções, estão a tal ponto obcecados pelo verbalismo racionalista que retiraram toda a vida do marxismo, que não vêem como estas resoluções convertem em frases vazias todas as suas outras frases excelentes. Tomemos qualquer artigo da Iskra, tomemos mesmo o famoso folheto de nosso ilustre Martinov e encontraremos neles divagações sobre a insurreição popular, sobre a necessidade de levar a revolução até o fim, sobre a aspiração de apoiar-se nas camadas profundas do povo, na luta contra a burguesia inconsequente. Mas todas estas coisas boas se convertem em frases miseráveis desde o momento em que se adota ou aprova a ideia de que o «alcance» da revolução «diminuirá» se a burguesia se desinteressa dela. Das duas, uma, senhores: ou devemos aspirar a fazer a revolução com o povo e obter uma vitória completa sobre o tzarismo, apesar da burguesia inconsequente, egoísta e covarde, ou não admitimos este «apesar», tememos que a burguesia «vire as costas» e então entregamos o proletariado e o povo às mãos desta mesma burguesia inconsequente, egoísta e covarde.

Não interpretai minhas palavras à vossa maneira. Não gritei que se vos acusa de traição consciente. Sempre tendestes a vos afundar no charco, e agora estais afundados nele, com a mesma inconsciência com que os antigos economistas resvalavam irresistível e irremediavelmente pelo declive do «aprofundamento» do marxismo até o pedantismo antirrevolucionário, sem alma e sem vida.

De que forças sociais reais depende o «alcance» da revolução? Pensastes nisto senhores? Deixemos de lado as forças da política exterior e das combinações internacionais, que se voltam agora completamente a nosso favor, mas das quais fazemos caso omisso em nosso exame, e o fazemos com toda a razão, uma vez que o de que se trata é das forças internas da Rússia. Examinemos estas forças sociais internas. Contra a revolução se lançam a autocracia, a corte, a polícia, os funcionários, o exército e o grupelho da alta aristocracia. Quanto mais profunda é a indignação no povo, menos seguro é o exército, maior a vacilação entre os funcionários. Por outro lado, a burguesia, em seu conjunto, está agora a favor da revolução e demonstra sua disposição pronunciando discursos sobre a liberdade, falando cada vez com maior frequência em nome do povo e mesmo em nome da revolução.(8) Mas todos nós, marxistas, sabemos pela teoria e observamos cada dia e cada hora, no exemplo de nossos liberais, da gente dos zemstvos e de Osvobojdenie, que a burguesia está a favor da revolução de maneira inconsequente, egoísta e covarde.

A burguesia, em sua maioria, se colocará inevitavelmente ao lado da contrarrevolução, ao lado da autocracia contra a revolução, contra o povo, quando sejam satisfeitos seus interesses estreitos e egoístas, quando «virar as costas» à democracia consequente (e já agora começa a virar-lhe as costas!). Resta «o povo», isto é, o proletariado e os camponeses: só o proletariado é capaz de continuar firme até o fim, pois vai muito além da revolução democrática. Por isso, o proletariado luta na vanguarda pela república, rechaçando com desprezo os conselhos, néscios e indignos dele, dos que dizem que ele deve ter cuidado para não assustar a burguesia. Entre os camponeses existe, ao lado dos elementos pequeno-burgueses, uma massa de elementos semiproletários. Isto os torna igualmente instáveis, obrigando o proletariado a fundir-se em um partido rigorosamente de classe. Mas a instabilidade dos camponeses é radicalmente distinta da instabilidade da burguesia, pois, neste momento concreto, os camponeses se acham menos interessados em que se mantenha indene a propriedade privada do que em arrebatar aos latifundiários suas terras, que constituem uma das principais formas de propriedade. Sem se converter completamente, por isso, em socialistas, nem deixar de ser pequeno-burgueses, os camponeses são suscetíveis de atuar como os mais perfeitos e radicais partidários da revolução democrática. Os camponeses procederão invariavelmente assim, sempre e quando a marcha dos acontecimentos revolucionários que os educa não se interromper cedo demais pela traição da burguesia e a derrota do proletariado. Neste caso, os camponeses se converterão invariavelmente num baluarte da revolução e da república, já que somente uma revolução plenamente vitoriosa pode dar ao camponês tudo em matéria de reforma agrária, tudo o que o camponês quer, com o que sonha e do que necessita realmente (não para destruir o capitalismo, como pensam os «social-revolucionários», e sim) para sair da abjeção da semi-servidão, das trevas do embrutecimento e do servilismo, para melhorar suas condições de existência, na medida em que isto é possível nos limites da economia mercantil.

Mais ainda. Os camponeses estão vinculados à revolução não somente pela transformação agrária radical, mas também por todos os seus interesses gerais e permanentes. Mesmo na luta contra o proletariado, o camponês tem necessidade da democracia, pois só o regime democrático é canaz de exprimir exatamente seus interesses e dar-lhe a preponderância como massa, como maioria. Quanto mais instruído for o camponês (e desde a guerra contra o Japão ele se instrui com uma rapidez que muitos nem sequer suspeitam, habituados como estão a medir a instrução unicamente pelo nível de escolaridade), de modo tão mais consequente e decidido estará a favor da revolução democrática completa, porque não têm medo, como a burguesia, da soberania do povo; pelo contrário, vê nela uma vantagem. A república democrática se converterá em seu ideal quando começar a libertar-se de seu monarquismo ingênuo, pois o monarquismo consciente da burguesia traficante (com sua Câmara alta, etc.) promete ao camponês a mesma ausência de direitos, o mesmo embrutecimento, a mesma ignorância, ligeiramente tingidos de um verniz constitucional à europeia.

Eis por que a burguesia, como classe, tende, natural e inevitavelmente, a esconder-se sob a asa do partido liberal monárquico, enquanto os camponeses, como massa, tendem a colocar-se sob a direção do partido revolucionário e republicano. Eis por que a burguesia não é capaz de levar a revolução democrática até o fim, enquanto os camponeses são capazes de fazê-lo, e nós devemos ajudá-los nisso com todas as nossas forças.

Poder-se-á objetar: não há necessidade de provar isto; trata-se de um axioma: todos os social-democratas o compreendem perfeitamente. Não; não compreendem isto os que são capazes de falar da «diminuição do alcance» da revolução no caso de que a burguesia se afaste dela. Essas pessoas repetem frases de nosso programa agrário, aprendidas de cor, mas sem compreender seu sentido; pois,' de outro modo, não teriam medo da ideia da ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses, que se depreende necessariamente de toda a concepção marxista e de nosso programa; de outro modo, não limitariam o alcance da grande revolução russa ao alcance que a burguesia pretende dar a ela. Essas pessoas esmagam suas frases marxistas revolucionárias abstratas sob o peso de suas resoluções concretas antimarxistas e antirrevolucionárias.

Quem compreende verdadeiramente qual é o papel dos camponeses na revolução russa vitoriosa, será incapaz de dizer que o alcance da revolução se reduz se a burguesia lhe vira as costas, pois, na realidade, a revolução russa não começará a adquirir seu verdadeiro alcance, não começará a adquirir realmente a maior envergadura possível na época da revolução democrática burguesa enquanto a burguesia não lhe virar as costas e a massa camponesa atuar como força revolucionária junto ao proletariado. Para ser levada consequentemente até seu termo, nossa revolução democrática deve apoiar-se em forças capazes de contrabalançar a inevitável inconsequência da burguesia (isto é, capazes precisamente de «obrigá-la a virar as costas», o que temem, em sua simplicidade, os partidários caucasianos de Iskra).

O proletariado deve levar ao seu termo a revolução democrática, atraindo para si as massas camponesas, para esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve levar a cabo a revolução socialista, atraindo para si as massas de elementos semiproletários da população, para romper pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena burguesia. Tais são as tarefas do proletariado, que os partidários da nova Iskra concebem de modo tão estreito em seus raciocínios e resoluções sobre o alcance da revolução.

Apenas não se deve esquecer uma circunstância que se perde frequentemente de vista quando se discute este «alcance» . Não se deve esquecer que não falamos aqui das dificuldades do problema e sim do caminho no qual se deve procurar e encontrar uma solução. Não se trata de que seja fácil ou difícil fazer com que o alcance da revolução seja amplo e invencível; e sim de como se deve proceder para que seu alcance seja maior. O desacordo refere-se precisamente ao caráter fundamental da atividade, de sua orientação. Nós o sublinhamos porque elementos negligentes e pouco escrupulosos confundem com grande frequência duas questões diferentes: a questão do caminho a seguir, isto é, da escolha entre dois caminhos diferentes, e a questão da facilidade ou da proximidade do fim a alcançar pelo caminho trilhado.

Não nos referimos a esta última questão na exposição precedente, porque esta questão não suscitou desacordos e divergências do seio de nosso Partido. Mas, é claro, a questão é por si mesma muito importante e digna da maior atenção por parte de todos os social-democratas Seria otimismo imperdoável esquecer as dificuldades implicadas pela incorporação ao movimento não só da massa da classe operária, como também da massa camponesa. Precisamente contra estas dificuldades esbarraram, mais de uma vez, os esforços realizados no sentido da revolução democrática, com a particularidade de que na maioria dos casos triunfou a burguesia mais inconsequente e egoísta, que «acumulava capital» defendendo a monarquia contra o povo e, ao mesmo tempo, «conservava a virgindade» do liberalismo... ou da tendência de Osvobojdenie. Mas dificuldade não supõe impossibilidade de realização. O que importa é estar seguro de ter escolhido o bom caminho, e esta segurança centuplica a energia revolucionária e o entusiasmo revolucionário, que são capazes de realizar milagres.

O grau de profundidade do desacordo existente entre os social-democratas de hoje, a propósito da escolha do caminho a seguir, aparece instantaneamente com evidência quando se compara a resolução dos neo-iskristas caucasianos com a do III Congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. A resolução do congresso declara: a burguesia é inconsequente, procurará forçosamente arrebatar-nos as conquistas da revolução. Portanto, camaradas operários, preparem-se mais energicamente para a luta, armem-se, atraiam para o seu lado os camponeses. Não cederemos sem combate à burguesia egoísta nossas conquistas revolucionárias. A resolução dos neo-iskristas caucasianos diz: a burguesia é inconsequente, pode virar as costas para a revolução. Por isso, camaradas operários, não pensem, por favor, em participar do governo provisório, pois, neste caso, a burguesia virará certamente as costas, e o alcance da revolução, portanto, será menor!

Uns dizem: levem a revolução avante, até o fim, apesar da resistência ou da passividade da burguesia inconsequente.

Os outros dizem: não pensem em levar a revolução até o fim de maneira independente, pois então a burguesia inconsequente lhe virará as costas.

Não se trata de duas rotas diametralmente opostas? Não é evidente que uma tática exclui absolutamente a outra e que a primeira é a única tática acertada para a social-democracia revolucionária, enquanto que a segunda é, no fundo, uma tática puramente peculiar ao estilo de Osvobojdenie?


Notas de rodapé:

(1) Informação Russa, O Filho da Pátria, Nossa Vida, Nossos Dias (Nota da Tradução) (retornar ao texto)

(2) Osvobojdenie, n.9 71, pág. 337, nota 2. (retornar ao texto)

(3) Em último lugar, mas não o menos importante. (retornar ao texto)

(4) V. I. Lênin, “Revolucionários” de Luvas Brancas, Obras. 4.ª ed. em russo, t. 8, págs. 491/495. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(5) Como procurou fazer Starovier em sua resolução, anulada pelo III Congresso, e como tenta fazer a conferência, numa resolução não menos infeliz. (retornar ao texto)

(6) O desenvolvimento do capitalismo, ainda mais vasto e rápido em condições de liberdade, inevitavelmente dará rápido fim à unidade de vontade, tanto mais rapidamente quanto maior for a rapidez com que sejam esmagadas a contrarrevolução e a reação. (retornar ao texto)

(7) V. I. Lênin A Social-Democracia e o Governo Provisório Revolucionário, Obras, 4.ª ed. em russo. t. 8, págs. 247/263. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(8) Neste sentido, é interessante a carta-aberta do senhor Struve a Jaurès, publicada recentemente por este último em L’Humanité e pelo senhor Struve em Osvobojdenie, nº 72. (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

(9) O homem enfronhado: protagonista da história assim intitulada, da autoria de A. Tchekhov. Tipo do pequeno-burguês de alcance limitado, que teme toda novidade e iniciativa. (retornar ao texto)

(10) Lênin refere-se ao programa “constitucional” de D. Chipov, um dos líderes do movimento liberal dos zemstvos no fim do século passado e começo do presente. O programa limitava-se a conservar o regime da autocracia tzarista, ligeiramente restringido por uma Constituição “doada pelo tsar”. (retornar ao texto)

(11) O pessoal de “Osvobojdenie” liberais burgueses, que se agruparam em torno da revista Osvobojdenie (Libertação), editada no estrangeiro sob a direção de P. Struve, de 1902 a 1905. Em janeiro de 1904 fundaram a União da Libertação, de caráter liberal monárquico. Mais tarde, formaram o núcleo central do principal partido burguês da Rússia: o Partido Democrata Constitucionalista. (retornar ao texto)

(12) Lênin refere-se ao seguinte episódio: quando uma delegação da burguesia liberal se apresentou em palácio na audiência concedida pelo tsar, o democrata constitucionalista Petrunkevitch, que se encontrava sem as luvas brancas que a etiqueta determina, apossou-se rapidamente das que lhe forneceu um dos cortesãos. (retornar ao texto)

Inclusão: 03/02/2022