Carta a I. I. Skvortsov-Stepanov

Vladimir Ilitch Lênin

16 de dezembro de 1909


Primeira edição: Publicado, pela primeira vez, em 1924, na revista Proletarskaia Revolutsia, nº 5 (28) V. I. Lênin, Obras, 4.ª ed. em russo, t. 16, págs. 100/105

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 293-298

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


capa

16/XII/1909

Querido colega. Recebi sua resposta e me apresso a continuar a conversa.

Você deseja que abordemos a questão mais no terreno da teoria do que no da prática. De acordo. Recordarei unicamente que seu ponto de partida era tático, posto que rechaçava a «colocação clássica» da tese tática fundamental. Você apontava esta solução tática (sem expor plenamente as_ conclusões táticas que derivam dela) a propósito da negação da «possibilidade americana». Por isso, não considero acertada a exposição de nossas divergências, que é formulada com as seguintes palavras: «Você (isto é, eu) sublinha o fato do movimento do campesinato. Eu reconheço o fato do movimento do campesinato em processo de proletarização». A divergência não consiste nisto. Não nego, com efeito, que o campesinato se proletarize. A divergência consiste em saber se o regime agrário burguês se consolidou a tal ponto na Rússia que tome objetivamente impossível a passagem brusca do desenvolvimento «prussiano» do capitalismo agrário ao seu desenvolvimento «americano». Se é assim, perderá sua validade a formulação «clássica» da questão fundamental da tática. Se não é, esta formulação manter-se-á.

Sou partidário de que ela se mantém. Não nego a possibilidade do caminho «prussiano»; reconheço que um marxista não deve nem «responder» com um destes caminhos, nem aceitar exclusivamente um deles; reconheço que a política e Stolipin dá um novo passo adiante no caminho «prussiano», e que neste caminho, num grau determinado, pode produzir-se uma reviravolta dialética que dissipe todas as esperanças e perspectivas do caminho «americano». Mas afirmo que agora, segundo todas as possibilidades, esta reviravolta ainda não se deu e que, portanto, é absolutamente inadmissível para um marxista, é absolutamente errôneo, do ponto-de-vista teórico, renunciar à formulação «clássica» da questão. Nisto consistem nossas divergências.

Teoricamente se reduzem, se não me engano, a dois pontos principais:

  1. Devo aniquilar seu «aliado» V. Ilin(7) para justificar minha posição. Em outras palavras, esta posição contradiz os resultados da análise marxista da economia pré-revolucionária da Rússia.
  2. A formulação «clássica» pode e deve ser confrontada com o oportunismo agrário dos revisionistas (David & Cia.), pois não existe qualquer diferença essencial, de princípio, radical, na formulação da questão da atitude do operário em relação ao «mujique» na Rússia e na Alemanha.

Considero que estas duas teses são absolutamente errôneas.

Ad 1) (Para não me referir à «tática», deixo de lado o ataque de Martinov a Ilin e me ocuparei unicamente da formulação da questão teórica feita por você).

Que demonstrava e demonstrou Ilin? Que o desenvolvimento das relações agrárias na Rússia segue o caminho capitalista tanto na exploração latifundiária, como na camponesa, tanto fora, como dentro da «comunidade». Isto em primeiro lugar. Que este desenvolvimento já determinou de maneira irrevogável exatamente o caminho do desenvolvimento capitalista, exatamente o agrupamento de classe capitalista. Isto em segundo lugar.

Isto foi motivo de discussão com os populistas. Tinha que ser demonstrado. Foi demonstrado. Continua sendo demonstrado. Agora se coloca (e o movimento de 1905/1907 a colocou) outra questão; uma questão posterior, que pressupõe a solução do problema resolvido por Ilin (e não só por ele, naturalmente), mas que pressupõe não somente isto, mas algo muito maior, mais completo, algo novo. Além do problema, quo foi resolvido definitivamente e com acerto em 1883/1885 e em 1895/1899, a história do século XX na Rússia nos colocou uma questão ulterior, e nada há mais errôneo do ponto-de-vista teórico do que retroceder diante dela, desembaraçar-se dela, subtrair-se a ela reportando-se ao resolvido anteriormente. Isto significa converter as questões por assim dizer de segunda classe, isto é, superior, em questões de primeira classe, inferior. É impossível persistir na solução geral da questão do capitalismo quando novos acontecimentos (e acontecimentos de importância histórico-universal como os de 1905/1907) colocaram uma questão mais concreta, mais detalhada: a disputa entre dois caminhos ou métodos de desenvolvimento agrário capitalista. Quando lutávamos contra os populistas para demonstrar que este caminho era inevitável e irrevogavelmente capitalista, tínhamos toda razão e não podíamos deixar de concentrar toda a força e toda a atenção neste problema: capitalismo ou «produção popular». Isto era natural, inevitável e legítimo. Mas agora, este problema está resolvido pela teoria e pela vida (pois o caráter pequeno-burguês do trudovique en masse(1) foi demonstrado pela moderna história russa), e se coloca na ordem-do-dia outra questão, uma questão mais elevada: capitalismo tipo A ou capitalismo tipo B. E estou profundamente convencido de que Ilin tinha razão quando assinalava, no prefácio da segunda edição do livro, que deste se depreende a possibilidade de dois tipos de desenvolvimento agrário capitalista e que a luta histórica destes dois tipos ainda não terminou.(2)

A particularidade do oportunismo russo no marxismo, isto é, do menchevismo em nossos dias, consiste em que está vinculado à simplificação dogmática, à vulgarização e à traição da letra do marxismo e à traição de seu espírito (como ocorreu também com as correntes de Rabotcheie Dielo e de Struve). Ao lutar contra o populismo como doutrina equivocada do socialismo, os mencheviques deixaram escapar de maneira dogmática e não perceberam historicamente o conteúdo histórico real e progressista do populismo como teoria da luta pequeno-burguesa de massas do capitalismo democrático contra o capitalismo liberal-latifundiário, do capitalismo «americano» contra o capitalismo «prussiano». Daí sua ideia monstruosa, idiota e renegada (que impregnou também o jornal Obschestvennoe Dvijenie) de que o movimento camponês é reacionário, de que o democrata constitucionalista é mais progressista do que o trudovique, de que «a ditadura do proletariado e do campesinato» (isto é, a formulação clássica) está em contradição «com toda a marcha do desenvolvimento econômico» (pág. 661 da recopilação menchevique Obschestvennoe Dvijenie). «Está em contradição com toda a marcha do desenvolvimento econômico»: acaso não é isto reacionarismo?

Sustento o ponto-de-vista de que a luta contra estas tergiversações monstruosas do marxismo serviu de base para a «formulação clássica», e de base correta, embora lamentavelmente, em consequência das condições naturais da época, esta luta tenha sido travada com muito cuidado do ponto-de-vista tático e com insuficiente cuidado do ponto-de-vista teórico. Diga-se de passagem que a palavra lamentavelmente é inexata neste caso e é necessário retirá-la.

E esta questão agrária é agora na Rússia a questão nacional do desenvolvimento burguês. E para não cair na transferência errônea (mecânica) para nosso país do modelo alemão, que tem muito de acertado e é extremamente valioso em todos os sentidos, é preciso ter uma ideia clara de que a questão nacional do desenvolvimento burguês da Alemanha, completamente consolidado, foi a unificação, etc. mas não a agrária, e que a questão nacional da consolidação definitiva do desenvolvimento burguês na Rússia é precisamente a questão agrária (e mesmo, mais estritamente, a questão camponesa).

Eis aí o fundamento puramente teórico da diferença existente na aplicação do marxismo na Alemanha de 1848/1868 (aproximadamente) e na Rússia de 1905/19—.

Como posso demonstrar que, para o desenvolvimento burguês em nosso país, adquiriu significação nacional a questão agrária e não qualquer outra? Não sei sequer se isto é necessário. Creio que é indiscutível. Mas precisamente nisto reside a base teórica, e a isto é preciso unir todas as questões parciais. E, levando em conta que pode haver discussão, assinalo de maneira breve (por ora de maneira breve) que precisamente a marcha dos acontecimentos, os fatos, a história de 1905/1907 demonstraram a significação assinalada por mim da questão agrária (camponesa e, naturalmente, pequeno-burguesa-camponesa, e não comunal-camponesa) na Rússia. Isto mesmo é demonstrado agora pela lei de 3/VI/1907, a composição e o trabalho da III Duma, o 20/XI/1909, e (o que tem singular importância) a política agrária do governo.

Se aceitamos que a história moderna da Rússia, a história de 1905/1907, — questão de detalhe —, demonstrou a significação cardial, primordial, nacional (neste sentido) da questão agrária na consolidação da evolução burguesa de determinado tipo na Rússia, podemos ir adiante. Em caso contrário será impossível.

Até 1905, o desenvolvimento burguês na Rússia já tinha amadurecido plenamente para exigir a destruição imediata da superestrutura caduca: do regime medieval, antiquado, de propriedade da terra (você compreenderá, naturalmente, porque torno neste caso de toda a superestrutura somente o regime de propriedade da terra). Vivemos na época desta destruição, que diferentes classes da Rússia burguesa procuram levar até o fim, arrematar à sua maneira: os camponeses (mais os operários) mediante a nacionalização (dá-me grande satisfação que concordemos você e eu em que a municipalização é um completo disparate; em um de meus trabalhos(3) publicado em pequena parte em polonês, reproduzi trechos de Theorien über Mehrwert(4) a favor da nacionalização); os latifundiários (mais a velha burguesia, a burguesia girondina); mediante o 9/XI/1906,(8) etc. A nacionalização da terra = destruição camponesa do velho regime de propriedade da terra constitui a base econômica do caminho americano. A lei de 9/XI/1906 = destruição latifundiária do velho regime de propriedade da terra constitui a base econômica do caminho prussiano. Nossa época, a de 1905/??, é a época da luta revolucionária e contrarrevolucionária destes caminhos, da mesma forma que os anos de 1848/1871 foram na Alemanha a época da luta revolucionária e contrarrevolucionária de dois caminhos de unificação (= solução do problema nacional do desenvolvimento burguês da Alemanha): o caminho através da república grande-alemã e o caminho através da monarquia prussiana. Somente por volta de 1871 venceu de maneira definitiva (e a isso se refere meu «plenamente») o segundo caminho. E então Liebknecht renunciou ao boicote do Parlamento. E então morreu a disputa dos partidários de Lassalle com os de Eisenach. E então morreu a questão da revolução democrática geral da Alemanha, e Naumann, David & Cia. começaram na década de 90 (vinte anos depois!.) a galvanizar o cadáver.

Em nosso país se trava ainda a luta. Ainda não venceu nenhum dos dois caminhos agrários. Em nosso país, em qualquer crise de nossa época (1905/1909/??) intervirá, e intervirá necessariamente, o movimento «democrático geral» do «mujique». Fazer caso omisso disto seria um erro gravíssimo, que conduziria, de fato, ao menchevismo, ainda que a disputa se colocasse em teoria sobre outro terreno. Não sou eu quem «leva» a disputa para o «menchevismo», e sim é a história de nossa época que leva para o menchevismo se o proletariado faz caso omisso da tarefa nacional do desenvolvimento burguês da Rússia, pois nisto consiste precisamente a essência do menchevismo.

Nebenbei.(5) Você leu o que disse Tcherevanin em Sovrernennoe Polojenie sobre o oportunismo da «formulação clássica» da questão pelos bolcheviques? Leia!

Ad 2) Em essência, já disse quase tudo o que devia sobre este ponto. Na Alemanha, o apoio dos operários aos desejos do «mujique» de receber ele a terra do grande latifundiário, do junker, é reacionário. Não é assim? Não é certo? Na Rússia, é reacionária em 1905/1909/?? a negativa de prestar este apoio. His Rhodus, his salta!(6) A disjuntiva neste caso é: ou renunciar a todo o programa agrário e adotar... quase o ponto-de-vista dos democratas constitucionalistas, ou reconhecer a diferença de princípio na formulação da questão na Alemanha e na Rússia, de princípio não no sentido de que nosso país viva uma época não capitalista, e sim no sentido de que são absolutamente diferentes, diferentes por princípio, as épocas do capitalismo: a época anterior à consolidação definitiva do caminho nacional do capitalismo e a época posterior a essa consolidação.

Termino por ora. Procurarei enviar-lhe recortes sobre o tema de nossas conversas. Escreva quando encontrar um momento livre. Um forte aperto de mãos.

Seu Velho.


Notas de rodapé:

(1) Em massa (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(2) Ver a presente recopilação, págs. 24/27 [Do livro O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia/O Processo da Formação de um Mercado Interno Para a Grande Indústria. (Prefácio da segunda edição)] (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(3) V. I. Lênin. O Programa Agrário da Social-Democracia na Revolução Russa (Obras, 4.ª ed. em russo, t. 15, págs. 135/158 — Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(4) Teorias da mais-valia (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(5) Entre parênteses (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(6) Aqui está Rodes, aqui salta! (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

(7) V. Ilin é o pseudônimo com que V. I. Lênin publicou seu livro O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. (retornar ao texto)

(8) Para criar um ponto de apoio firme no campo entre os culaques, o governo tzarista promulgou a 9 (22) de novembro de 1906 a chamada Lei Agrária de Stolipin, que permitia que os camponeses dissolvessem as comunidades para formar com elas propriedades isoladas. Esta lei destruía o usufruto comunal da terra, propunha que cada camponês tomasse posse pessoal de sua parcela e saísse da comunidade. O camponês podia vender sua parcela, o que antes era proibido. A sociedade estava obrigada a fornecer terra em um lugar (propriedade isolada, parcela) aos camponeses que saíssem da comunidade. Em diversos trabalhos de Lênin, em particular em O Programa Agrário da Social-Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905/0)07, são expostas e examinadas as medidas de Stolipin. (retornar ao texto)

Inclusão: 03/02/2022