Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos

V. I. Lênin


3. O antigo Sul escravista


Os Estados Unidos, escreve o Sr. Guimmer, "nunca conheceram o feudalismo e ignoram suas sobrevivências económicas" (p. 41 do artigo mencionado). Afirmação absolutamente contrária à verdade, pois as sobrevivências económicas do escravismo não se distinguem em nada das do feudalismo, e são ainda mais fortes, até o presente, no antigo Sul escravista dos Estados Unidos. Não valeria a pena deter-se no erro do Sr. Guimmer se fosse possível considerá-lo como um mero erro de um artigo escrito às pressas. Mas a literatura liberal e a literatura populista da Rússia provam que, no tocante ao sistema russo de pagamento em trabalho (nossa sobrevivência do feudalismo), comete-se sistematicamente um "erro" absolutamente idêntico e com uma extraordinária persistência.

O Sul dos Estados Unidos foi escravista até que a guerra civil de 1861 - 1865 extinguisse a escravidão. Até o presente, o número de negros, que não ultrapassa 0,7 a 2,2% da população das regiões Norte e Oeste, representa no Sul 22,6 a 33,7% do total da população. A proporção de negros é de 10,7% para o conjunto dos Estados Unidos. È inútil falar da situação degradante a que são submetidos: sob este aspecto, a burguesia americana não é melhor que a de outros países. Após haver "libertado" os negros, ela se esforçou, com base no capitalismo "livre" e republicano-democrático, por restabelecer tudo o que fosse possível ser restabelecido, por fazer o possível e o impossível para oprimir os negros da maneira mais descarada e vil. Para caracterizar seu nível cultural, basta mencionar um pequeno fato estatístico. Enquanto o número de analfabetos entre a população branca dos Estados Unidos (com idade acima de 10 anos) elevava-se, em 1900, a 6,2% da população, para os negros esta percentagem era de 44%!! Superior em mais de sete vezes!! No Norte e no Oeste, existiam 4 a 6% de analfabetos (em 1900); no Sul, 22,9 a 23,9%!! É fácil imaginar o complexo de relações jurídicas e sociais correspondente a este vergonhoso fato pertencente ao domínio da instrução pública.

Sobre que base económica cresceu e repousa esta simpática "superestrutura"?

Sobre uma base tipicamente russa, cem por cento russa, a do sistema de pagamento em trabalho ou, mais precisamente, da parceria.

O número de farms pertencente aos negros alcançava, em 1910, 920.883, ou seja, 14,5% do total. Do número total de farmers, 37% eram arrendatários e 61,1% proprietários; os 0,9% das farms restantes estavam em mãos de administradores. Entre os brancos, a percentagem de arrendatários é 39,2%, enquanto entre os negros ela é de 75,3%! Na América, o farmer branco típico é aquele que é dono de sua terra e o farmer negro típico é o arrendatário. No Oeste, a percentagem de arrendatários não ultrapassa 14%: é a região de colonização, a região das terras novas, livres, o Eldorado (um Eldorado efêmero e frágil) do pequeno "agricultor independente". No Norte, a percentagem de arrendatários é de 26,5%; no Sul, de 49,6%! A metade dos farmers do Sul são arrendatários. Mas isto não é tudo. Não tratamos aqui de arrendatários no sentido europeu, civilizado, capitalista e moderno da palavra. Estamos, sobretudo na presença de parceiros ou de uma espécie de semi-escravos, o que é a mesma coisa do ponto de vista económico. No Oeste "livre", os parceiros constituem minoria entre os arrendatários (25.000 em 53.000). No velho Norte, há muito povoado, em 766.000 arrendatários, 483.000 são parceiros, ou seja, 63%. No Sul, em 1.537.000 arrendatários, é possível enumerar 1.021.000 parceiros, isto é, 66%.

Na América livre, republicana e democrática, existiam, em 1910, 1 milhão e o número de parceiros em relação ao número total de farmers não se reduz, mas aumenta continuamente e com rapidez. Em 1880, seu percentual em relação ao número total de farmers dos Estados Unidos era de 17,5%; em 1890, de 18,4%; em 1900, de 22,2%; e em 1910, de 24,0%.

"No Sul", as conclusões dos estatísticos americanos sobre o recenseamento de 1910, "as condições foram sempre um pouco diversas daquelas do Norte, e muitas das farms de arrendatários fazem parte de plantações com importantes dimensões que datam de antes da guerra civil". No Sul, "o sistema de exploração por meio dos arrendatários, sobretudo negros, substituiu o sistema de exploração através do trabalho de escravos", "O desenvolvimento do sistema de arrendamento é particularmente acentuado no Sul, onde as grandes plantações, outrora cultivadas pelos escravos, foram muitas vezes divididas em pequenos lotes (parcelas), e alugadas a arrendatários. . . De fato, em muitos casos, estas plantações ainda são cultivadas como unidades agrícolas, pois os arrendatários são submetidos, até certo ponto, a uma vigilância que recorda mais ou menos aquela a que são submetidos os operários nas farms do Norte" (op. cit., V, 102-104).

Para caracterizar o Sul, é preciso acrescentar ainda que sua população o abandona para dirigir-se a outras regiões capitalistas e às cidades, da mesma forma que, na Rússia, o campesinato foge das províncias agrícolas do Centro, as mais atrasadas e onde as sobrevivências da servidão são ainda muito fortes, foge do poder dos Valiai-Markov, para atingir as regiões mais capitalistas da Rússia, as capitais, as províncias industriais e o Sul (Ver O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia(1*) ) Tanto na América quanto na Rússia, a região onde predomina a pareceria é a que apresenta um maior atraso, a maior degradação, a maior opressão das massas trabalhadoras. Os imigrantes que vêm para a América, e que desempenham um papel tão importante na economia do país e em toda a sua vida social, evitam o Sul. Em 1910, a percentagem da população dos Estados Unidos nascida fora do país era de 14,5%. Mas no Sul esta percentagem era de apenas 1 a 4%, conforme a região, enquanto nas outras regiões do país nunca existiam menos de 13,9% e até 2 7,7% de imigrantes (Nova Inglaterra). O isolamento, a falta de cultura, a falia de ar fresco, uma espécie de prisão para os negros "libertados": tal é o Sul americano. A maior sedentariedade da população, o maior "apego à terra": excetuando-se a região onde existe uma importante colonização (o Sudoeste Central), pode-se constatar que, nas duas outras regiões do Sul, 90-91% dos habitantes nasceram na própria região em que vivem, enquanto para o conjunto da América esta percentagem é de 72,6%, ou seja, a mobilidade da população é muito maior. E no Oeste, que é essencialmente uma região de colonização, apenas 35 a 41% dos habitantes nasceram na mesma região em que vivem.

Os negros fogem das duas regiões do Sul onde não existe colonização: no curso dos dez anos que separam os dois últimos recenseamentos, estas duas regiões forneceram aos outros setores do país cerca de 600.000 pessoas "negras". Os negros fogem, sobretudo para as cidades: no Sul, 77 a 80% dos negros vive no campo; nas outras regiões, apenas 8 a 32%. A semelhança da situação dos negros na América e dos camponeses ex servos de latifundiários" na Rússia agrícola do Centro é verdadeiramente surpreendente.


Notas de rodapé:

(1*) Ver: V- Lênin, Oeuvres, tomo 3, capítulo VIII: "La formation du rnarché interieur de la main-d'oeuvre". (Nota da edição francesa.) (retornar ao texto)

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Inclusão 25/02/2012
Última alteração 16/12/2012