Sob uma Bandeira Alheia

V. I. Lénine

1915

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Primeira Edição: Escrito depois de Janeiro de 1915.

Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1986, t2, pp 208-226.

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.26, pp. 133-154.

Transcrição: Manuel Gouveia

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.


capa

No n.º 1 da Nashe Delo (Petrogrado, Janeiro de 1915) foi publicado um artigo programático extremamente característico do Sr. A. Potréssov: “No limite de duas épocas”. Tal como o artigo anterior do mesmo autor, publicado há pouco numa das revistas(1), o presente artigo expõe as ideias fundamentais de toda uma corrente burguesa do pensamento social da Rússia, concretamente a corrente liquidacionista, sobre questões importantes e de actualidade do nosso tempo. A falar verdade, não estamos perante artigos, mas um manifesto de uma tendência determinada, e quem quer que os leia com atenção e reflita sobre o seu conteúdo verá que só considerações fortuitas, isto é, alheias a interesses puramente literários, impediram que as ideias do autor (e dos seus amigos, porque o autor não está só) fossem expressas na forma mais adequada de uma declaração ou de um “credo” (profissão de fé).

A ideia principal de A. Potréssov consiste em que a democracia moderna se encontra no limite entre duas épocas, e que a diferença fundamental entre a velha época e a nova consiste na passagem da estreiteza nacional ao internacionalismo. Por democracia moderna A. Potréssov tem em vista a democracia característica do final do século XIX e princípio do século XX, diferentemente da antiga democracia, burguesa, característica do fim do século XVIII e dos primeiros dois terços do século XIX.

À primeira vista pode parecer que o pensamento do autor é inteiramente justo, que estamos perante um adversário da tendência nacional-liberal atualmente dominante na democracia moderna, que o autor é um "internacionalista", e não um nacional-liberal.

Com efeito, defender o internacionalismo, relacionar a estreiteza nacional e o exclusivismo nacional com os traços de uma época antiga, ultrapassada — não será romper decididamente com a epidemia de nacional-liberalismo, essa chaga da democracia moderna, ou, mais exatamente, dos seus representantes oficiais?

À primeira vista, não apenas pode, mas deve quase inevitavelmente parecer assim. E no entanto isto é fundamentalmente errado. O autor transporta a sua mercadoria sob uma bandeira alheia. Ele utilizou — consciente ou inconsciente, pouco importa neste caso — um pequeno estratagema, içou a bandeira do "internacionalismo", com o objetivo de, sob essa bandeira, passar mais seguramente a mercadoria de contrabando do nacional-liberalismo. Porque A. Potréssov é indubitavelmente um nacional-liberal. Todo o fundo do seu artigo (e do seu programa, da sua plataforma, do seu “credo”) consiste precisamente em utilizar esse pequeno, se quiserem inocente, estratagema, em passar o oportunismo sob a bandeira do internacionalismo. É preciso determo-nos com todo o pormenor no esclarecimento deste fundo, pois a questão é de uma importância enorme, primordial. E a utilização de uma bandeira alheia por A. Potréssov é tanto mais perigosa, quanto ele se dissimula não apenas com o princípio do “internacionalismo”, mas também com a designação de partidário da “metodologia marxista”. Por outras palavras, A. Potréssov quer ser um verdadeiro seguidor e porta-voz do marxismo, mas na realidade substitui o marxismo pelo nacional-liberalismo. A. Potréssov quer “retificar” Kautsky, acusando-o de ser “advogado”, isto é, de defender o liberalismo com a cor de uma ou de outra nação, com a cor de diferentes nações. A. Potréssov quer opor ao nacional-liberalismo (pois é absolutamente indubitável e inquestionável, que Kautsky se tornou presentemente nacional-liberal) o internacionalismo e o marxismo. Mas de facto A. Potréssov opõe ao nacional-liberalismo multicolor um nacional-liberalismo unicolor. Mas o marxismo é hostil – e na presente situação histórica concreta, hostil em todos os aspetos – a qualquer nacional-liberalismo.

Que realmente é assim e das razões porque é assim, é do que agora trataremos.

I

Será examinando a seguinte passagem do artigo que o leitor mais facilmente compreenderá as atribulações de A. Potréssov que o levaram a navegar sob a bandeira nacional-liberal:

“…Com toda a energia que lhes era própria (a Marx e aos seus camaradas) lançavam-se na solução de um problema, por mais complexo que ele fosse, estabeleciam o diagnóstico do conflito, tentavam determinar qual o lado cujo êxito abriria mais amplo espaço às possibilidades desejáveis do seu ponto de vista, e deste modo estabeleciam uma certa base para a elaboração da sua tática” (p. 73, sublinhado nosso).

“O lado cujo êxito é mais desejável” — eis o que é necessário determinar, e isto não do ponto de vista nacional, mas internacional; eis em que consiste a essência da metodologia de Marx; eis o que Kautsky não indica, transformando-se desse modo de “juiz” (de marxista) em “advogado” (em nacional-liberal). Tal é o pensamento de A. Potréssov. O próprio A. Potréssov está profundamente convencido de que não está de modo nenhum a ser “advogado” ao defender a desejabilidade do êxito de um dos lados (concretamente o seu lado) mas que se orienta por considerações verdadeiramente internacionais sobre os pecados “desmesurados” do outro lado...

Tanto Potréssov, como Máslov, Plekhánov, etc., se orientam por considerações verdadeiramente internacionais, chegando às mesmas conclusões que o primeiro deles… Isto é ingénuo até… Mas não nos antecipemos, terminemos primeiro a análise puramente teórica da questão.

“O lado cujo êxito é mais desejável” determinou-o Marx, por exemplo, na guerra italiana de 1859. A. Potréssov detém-se precisamente neste exemplo, “que tem para nós um interesse especial, em consequência de algumas das suas particularidades”.

Por nosso lado estamos também de acordo em tomar o exemplo escolhido por A. Potréssov.

Pretensamente para libertar a Itália, mas na realidade para servir os seus objetivos dinásticos, Napoleão III declarou guerra à Áustria em 1859.

“Por trás de Napoleão III”, escreve A. Potréssov, “desenha-se a figura de Gortchakov, que acabava de concluir um tratado secreto com o imperador dos franceses”. Temos um novelo de contradições: de um lado a mais reacionária monarquia europeia, que oprimia a Itália, do outro os representantes da Itália em vias de se libertar e revolucionária, incluindo Garibaldi, de braço dado com o arqui-reaccionário Napoleão III, etc. “Não teria sido mais simples”, escreve A. Potréssov, «evitar o pecado dizendo: “são ambos piores”? Contudo, nem Engels, Marx, nem Lassalle se deixaram seduzir pela “simplicidade” de uma tal solução, mas puseram-se a pesquisar a questão» (A. Potréssov quer dizer: a estudar e investigar a questão) «de qual a saída do conflito que poderia oferecer maiores possibilidades à causa que lhes era cara a todos eles».

Marx e Engels pensavam, contrariamente a Lassalle, que a Prússia devia intervir.

Entre as suas considerações — como reconhece o próprio Potréssov — havia também considerações

“sobre um possível movimento nacional na Alemanha, resultante do choque com a coalizão inimiga, movimento que se alargaria por cima das cabeças dos seus numerosos soberanos, e sobre qual a potência que no concerto europeu representava o mal central: a monarquia reacionária do Danúbio ou os outros representantes destacados desse concerto”.

Não nos importa — conclui A. Potréssov — se era Marx ou Lassalle quem tinha razão; o importante é que todos coincidem quanto à necessidade de determinar, do ponto de vista internacional, qual o lado cujo êxito é mais desejável.

Tal é o exemplo tomado por A. Potréssov; tal é o raciocínio do nosso autor. Se então Marx soube “avaliar os conflitos internacionais” (expressão de A. Potréssov), mau grado o extremo reacionarismo dos governos de ambas as partes beligerantes, também hoje os marxistas têm obrigação de fazer semelhante apreciação – conclui A. Potréssov.

Esta conclusão é uma puerilidade ingénua ou um sofisma grosseiro, pois ela reduz-se ao seguinte: uma vez que Marx decidiu em 1859 a questão de saber qual a burguesia cujo êxito era mais desejável, também nós devemos, mais de meio século depois, resolver uma questão precisamente idêntica.

A. Potréssov não notou que para Marx em 1859 (e em toda uma série de casos ulteriores), a questão de saber “qual o lado cujo êxito é mais desejável” é equivalente à questão de saber “qual a burguesia cujo êxito é mais desejável”. A. Potréssov não notou que Marx resolvia essa questão numa altura em que existiam — e não apenas existiam, mas encontravam-se no primeiro plano do processo histórico nos mais importantes Estados da Europa – movimentos burgueses incontestavelmente progressistas. Hoje seria ridículo pensar sequer numa burguesia progressista, num movimento burguês progressista em relação, por exemplo, a figuras incontestavelmente centrais e mais importantes do “concerto” europeu como são a Inglaterra e a Alemanha. A velha “democracia” burguesa desses Estados centrais e mais importantes tornou-se reacionária. Mas o Sr. A. Potréssov “esqueceu-se” disso e substituiu a questão do ponto de vista da democracia moderna (não burguesa) pelo ponto de vista da velha (burguesa) pseudo-democracia. Esta passagem para o ponto de vista de outra classe, ainda por cima de uma classe velha, caduca, é do mais puro oportunismo. Não se pode sequer pensar em justificar essa passagem pela análise do conteúdo objetivo do processo histórico na velha e na nova época.

É precisamente a burguesia — por exemplo, na Alemanha, mas também na Inglaterra — que procura realizar a substituição que realizou A. Potréssov, a substituição da época imperialista pela época dos movimentos burgueses progressistas, de libertação nacional e de libertação democrática. A. Potréssov arrasta-se sem espírito crítico atrás da burguesia. E isso é tanto mais imperdoável quanto o próprio A. Potréssov, no exemplo por ele tomado, devia reconhecer e indicar por que espécie de considerações se guiaram Marx, Engels e Lassalle nessa época há muito passada(2).

Em primeiro lugar, eram considerações acerca do movimento nacional (da Alemanha e da Itália), acerca do facto de que ele se desenvolveria por cima das cabeças “dos representantes do medievalismo”; em segundo lugar, considerações sobre o “mal central” das monarquias reaccionárias (austríaca, napoleónica, etc.) no concerto europeu.

Essas considerações são perfeitamente claras e indiscutíveis. Os marxistas nunca negaram o caráter progressista dos movimentos nacionais burgueses de libertação contra as forças feudais absolutistas. A. Potréssov não pode ignorar que nada de semelhante existe nem podia existir nos Estados centrais – isto é, principais, mais importantes — beligerantes da nossa época. Então havia tanto na Itália como na Alemanha movimentos populares tipo nacional-libertador que duravam havia dezenas de anos. Então não era a burguesia ocidental que apoiava com as suas finanças alguns outros Estados mas, pelo contrário, estes Estados eram realmente “o mal central”. A. Potréssov não pode ignorar – ele próprio o reconhece no mesmo artigo – que na nossa época nenhum dos outros Estados é nem pode ser o “mal central”.

A burguesia (por exemplo, a burguesia alemã, embora de modo nenhum ela seja a única) reanima, com objetivos egoístas, a ideologia dos movimentos nacionais, tentando transpô-la para a época do imperialismo, isto é, para uma época completamente diferente. E como sempre, atrás da burguesia arrastam-se os oportunistas, abandonando o ponto de vista da democracia moderna, passando para o ponto de vista da velha democracia (burguesa). É precisamente nisso que consiste o pecado fundamental de todos os artigos e de toda a posição, de toda a linha de A. Potréssov e dos seus correligionários liquidacionistas. Marx e Engels, na época da velha democracia (burguesa), resolveram a questão de saber qual burguesia cujo êxito era mais desejável procurando desenvolver um modesto movimento liberal, transformando-o num impetuoso movimento democrático. A. Potréssov, na época da democracia moderna (não-burguesa) prega o nacional-liberalismo burguês, quando nem na Inglaterra, nem na Alemanha, nem em França se pode sequer falar de movimentos progressistas burgueses, nem liberais modestos nem democráticos impetuosos. Marx e Engels marchavam à frente da sua época, da época dos movimentos nacionais burgueses e progressistas, impelindo esses movimentos para a frente, procurando que eles se desenvolvessem “por cima das cabeças” dos representantes do medievalismo.

A. Potréssov, tal como todos os sociais-chauvinistas, retrocede em relação à sua época da democracia moderna, saltando para o ponto de vista há muito caduco, morto, e por isso intrinsecamente falso, da velha democracia (burguesa).

Por isso o apelo de A. Potréssov à democracia é uma grande embrulhada e um apelo muito reacionário.

“… Não recues, avança. Não para o individualismo, mas para uma consciência internacional em toda a sua plenitude e em toda a sua força. Em frente, isto é, em certo sentido, também para trás: para trás para Engels, Marx e Lassalle, para o seu método de avaliação dos conflitos internacionais; para a sua inclusão da acção internacional dos Estados no círculo geral da utilização democrática”.

Não é num “certo sentido”, mas em todos os sentidos que A. Potréssov puxa a democracia moderna para trás, para as palavras de ordem e a ideologia da velha democracia burguesa, para a dependência das massas relativamente à burguesia… O método de Marx consiste antes de mais em ter em conta o conteúdo objetivo do processo histórico num dado momento concreto, numa dada situação concreta, a fim de compreender antes de mais nada qual é a classe cujo movimento é a mola principal do progresso possível nessa situação concreta. Então, em 1859, o conteúdo objetivo do processo histórico na Europa continental não era o imperialismo mas os movimentos nacionais burgueses de libertação. A mola principal era o movimento da burguesia contra as forças feudais absolutistas. Mas o sapientíssimo A. Potréssov, 55 anos mais tarde, quando o lugar dos feudais reacionários foi ocupado pelos magnatas do capital financeiro da burguesia senil que se lhes assemelham, decrépita, quer avaliar os conflitos internacionais do ponto de vista da burguesia, e não da nova classe(4).

A. Potréssov não refletiu sobre o significado da verdade por ele expressa nessas palavras. Suponhamos que dois países travam guerra entre si na época dos movimentos burgueses, nacionais e libertadores. Qual é o país cujo êxito deve ser desejado do ponto de vista da democracia moderna? É claro que é aquele cujo êxito impulsione mais fortemente e desenvolva mais impetuosamente o movimento libertador da burguesia, que mine mais fortemente o feudalismo. Suponhamos em seguida que o factor determinante da situação histórica objetiva se modificou, e que no lugar do capital do período de libertação nacional se instalou o capital internacional reaccionário, financeiro, imperialista. O primeiro país possui, suponhamos, 3/4 da África, e o segundo 1/4. O conteúdo objetivo da sua guerra é uma nova partilha da África. Qual a parte cujo êxito se deve desejar? A questão, na sua formulação anterior, é absurda, porque não temos os critérios de avaliação anteriores: nem o longo do movimento burguês de libertação nem o longo processo de queda do feudalismo. Não é tarefa da democracia moderna nem ajudar o primeiro a consolidar o seu “direito” a 3/4 da África nem ajudar o segundo (ainda que economicamente ele se tenha desenvolvido mais rapidamente que o primeiro) a apropriar-se desses 3/4.

A democracia moderna só se manterá fiel a si própria se não se unir a nenhuma burguesia imperialista, se disser que “ambas são piores”, se em cada país desejar o fracasso da burguesia imperialista. Qualquer outra solução será na prática nacional-liberal, que nada terá de comum com o verdadeiro internacionalismo.

Que o leitor se não deixe enganar pela terminologia rebuscada da A. Potréssov, com a qual procura camuflar a sua passagem para o ponto de vista da burguesia. Quando A. Potréssov exclama: “não para o individualismo, mas para uma consciência internacional em toda a sua plenitude e em toda a sua força”, pretende opor o seu ponto de vista ao ponto de vista de Kautsky. Ele qualifica a opinião de Kautsky (e de outros como ele) de “individualismo”, querendo dizer que Kautsky se recusa a considerar “qual o lado cujo êxito é preferível”, e justifica o nacional-liberalismo dos operários de cada país “individual”. Mas nós, afirmam A. Potréssov, Tcherevánine, Máslov, Plekhanov, etc., invocamos a “consciência internacional em toda a sua plenitude e força”, porque nós defendemos o nacional-liberalismo de uma determinada cor de modo nenhum do ponto de vista de um Estado individual (ou de uma nação individual) mas de um ponto de vista verdadeiramente internacional... Este raciocínio seria ridículo se não fosse tão… infame.

A. Potréssov e C.ª e Kautsky arrastam-se atrás da burguesia, traindo o ponto de vista da classe que pretendem representar.

II

A. Potréssov intitulou o seu artigo "No limite de duas épocas". É incontestável que vivemos no limite de duas épocas, e os acontecimentos históricos de grande importância que decorrem perante nós só podem ser entendidos se se analisar, em primeiro lugar, as condições objetivas da passagem de uma época para outra. Trata-se de grandes épocas históricas; em cada época há e haverá movimentos parciais, particulares, ora para a frente ora para trás, há e haverá diferentes desvios do tipo médio e do ritmo médio do movimento. Não podemos saber com que rapidez e com que êxito se desenvolverão os movimentos históricos de uma dada época. Mas podemos saber e sabemos qual a classe que está no centro de uma ou outra época, determinando o seu conteúdo principal, a orientação principal do seu desenvolvimento, as particularidades principais da situação histórica dessa época, etc. Só nesta base, isto é, tendo em conta antes de mais nada os traços fundamentais da diferença entre as várias “épocas” (e não entre determinados episódios da história de determinados países), é que podemos determinar corretamente a nossa tática; e só o conhecimento dos traços fundamentais de uma determinada época é que pode servir de base para considerar as particularidades mais pormenorizadas de um ou outro país.

E é precisamente neste domínio que reside o sofisma fundamental de A. Potréssov e de Kautsky (cujo artigo foi publicado no mesmo número do Nache Delo(5)) ou o erro fundamental de ambos, que leva um e outro a conclusões nacionais-liberais e não marxistas.

O facto é que o exemplo tomado por A. Potréssov e que para ele apresentava um "interesse especial", o exemplo da campanha italiana de 1859, e toda uma série de exemplos históricos análogos tomados por Kautsky referem-se “justamente não às épocas históricas” “no limite” das quais nós vivemos. Chamemos à época na qual entramos (ou entrámos, mas que se encontra no seu estádio inicial) época contemporânea (ou terceira). Chamemos àquela de que acabamos de sair a época de ontem (ou segunda). É então necessário chamar à época da qual A. Potréssov e Kautsky tomam os seus exemplos época de anteontem (ou primeira). O revoltante sofisma, a intolerável falsidade dos raciocínios de A. Potréssov e de Kautsky consistem precisamente em que eles substituem as condições da época contemporânea (a terceira) pelas condições da época de anteontem (a primeira).

Expliquemo-nos.

A divisão habitual das épocas históricas, muitas vezes referida da literatura marxista, frequentemente repetida por Kautsky e adotada por A. Potréssov no seu artigo, é a seguinte:

  1. 1789-1871;
  2. 1871-1914;
  3. 1914-?.

É evidente que aqui as delimitações, tal como todas as delimitações tanto na natureza como na sociedade, são convencionais e móveis, relativas, e não absolutas. E é apenas aproximativamente que nós tomamos os acontecimentos históricos particularmente destacados e relevantes como marcos dos grandes movimentos históricos. A primeira época, que vai da grande revolução francesa até à guerra franco-prussiana, é a época do ascenso da burguesia, da sua vitória completa. É a linha ascendente da burguesia, a época dos movimentos democráticos burgueses em geral e dos movimentos nacionais burgueses em particular, a época da rápida destruição das instituições feudais e absolutistas caducas. A segunda época é a da completa dominação e do declínio da burguesia, a época da passagem da burguesia progressista ao capital financeiro reacionário e ultra-reacionário. É a época da preparação e da lenta acumulação de forças de uma nova classe, da democracia moderna. A terceira época, que está apenas a começar, coloca a burguesia na mesma “posição” em que estiveram os feudais durante a primeira época. É a época do imperialismo e dos abalos imperialistas, e também dos decorrentes do imperialismo.

Não foi senão o próprio Kautsky que descreveu com a maior precisão em toda uma série de artigos e na sua brochura O caminho do poder (publicada em 1909), os traços fundamentais da terceira época, que está a começar, assinalou a diferença radical entre esta época e a segunda (a de ontem), e reconheceu a modificação das tarefas imediatas, bem como das condições e formas de luta da democracia moderna – modificação decorrente da transformação das condições históricas objetivas.

Presentemente, Kautsky queima aquilo que adorava, muda de frente da maneira mais inconcebível, mais indecorosa, mais desavergonhada. Na brochura referida ele fala abertamente dos sintomas de aproximação de uma guerra, precisamente de uma guerra como a que em 1914 se tornou um facto. A simples comparação de uma série de passagens dessa brochura com os actuais escritos de Kautsky bastaria para mostrar com toda a evidência a sua traição às suas próprias convicções e declarações mais solenes. E Kautsky não é neste aspecto um caso único (e de modo nenhum apenas alemão), mas um representante típico de toda uma camada superior da democracia moderna que, no momento de crise, se coloca ao lado da burguesia.

Todos os exemplos históricos tomados por A. Potréssov e Kautsky se referem à primeira época. O conteúdo objetivo fundamental dos fenómenos históricos durante as guerras, não apenas de 1855, 1859, 1864, 1866, 1870, mas também de 1877 (russo-turca) e de 1896-1897 (guerras entre a Turquia e a Grécia e perturbações da Arménia), eram os movimentos nacionais burgueses ou as "convulsões" da sociedade burguesa que se libertavam das diversas formas do feudalismo. Não se poderia então falar de qualquer ação em toda uma série de países evoluídos, da democracia moderna, que fosse verdadeiramente e que correspondesse à época da decomposição e declínio da burguesia. A principal classe que então, durante essas guerras e participando nessas guerras, seguia uma linha ascendente e que era a única capaz de actuar com uma força esmagadora contra as instituições feudais e absolutistas era a burguesia. Em diversos países essa burguesia, representada por diferentes camadas de produtores de mercadorias abastados, era progressista em diferentes graus e por vezes (por exemplo, uma parte da burguesia italiana em 1859), era mesmo revolucionária; mas o traço geral da época era precisamente o caráter progressista da burguesia, isto é, o caráter indeciso, inacabado da sua luta contra o feudalismo. É perfeitamente natural que os elementos de democracia moderna — e Marx como seu representante —, orientando-se pelo princípio incontestável do apoio à burguesia progressista (a burguesia capaz de lutar) contra o feudalismo, resolvessem então a questão de saber "qual o lado", isto é, qual a burguesia cujo êxito era mais desejável. O movimento popular nos principais países atingidos pela guerra tinha então um caráter democrático geral, isto é, democrático burguês pelo seu conteúdo económico e de classe. É absolutamente natural que então não fosse possível colocar outra questão que não fosse a questão de qual a burguesia cuja vitória, em que combinação de circunstâncias, em caso de malogro, de qual das forças reacionárias (feudais absolutistas, que entravam o ascenso da burguesia), prometia mais “espaço” para a democracia moderna.

E além disso Marx, como mesmo A. Potréssov é forçado a reconhecer, orientava-se, na “avaliação” dos conflitos internacionais na base dos movimentos burgueses nacionais e de libertação, por considerações acerca de qual o lado cujo êxito mais poderia ajudar o “desenvolvimento” (p. 74 do artigo de A. Potréssov) dos movimentos nacionais e em geral dos movimentos populares democráticos gerais. Isto significa que, perante conflitos militares na base do ascenso da burguesia ao poder em diversas nacionalidades, Marx se preocupava acima de tudo, tal como em 1848, com o alargamento e a agudização dos movimentos democráticos burgueses através da participação de massas mais amplas e mais “plebeias”, da pequena burguesia em geral, do campesinato em particular, finalmente das classes não possidentes. Foi precisamente esta consideração de Marx sobre o alargamento da base social do movimento, sobre o seu desenvolvimento, que distinguiu radicalmente a táctica consequentemente democrática de Marx da táctica inconsequente, que se inclinava para a aliança com os nacionais-liberais, de Lassalle.

Também na terceira época os conflitos internacionais se mantiveram, pela sua forma tão conflitos internacionais como na primeira época, mas o seu conteúdo social e de classe modificou-se radicalmente. A situação histórica objetiva tornou-se completamente diferente.

A luta do capital ascendente em vias de libertação nacional contra o feudalismo cedeu o lugar à luta do capital financeiro mais reacionário, caduco e sobrevivendo a si próprio, que caminha para o declínio, contra as novas forças. O quadro nacional burguês dos Estados, que foi na primeira época o sustentáculo do desenvolvimento das forças produtivas da humanidade que se libertava do feudalismo, tornou-se agora, na terceira época, um obstáculo a um maior desenvolvimento das forças produtivas. A burguesia, de classe ascendente e avançada, tornou-se uma classe decadente, declinante, interiormente morta, reacionária. Foi uma classe completamente diferente que – na vasta escala da história – se tornou a classe ascendente.

A. Potréssov e Kautsky abandonaram o ponto de vista dessa classe e retrocederam, repetindo a mentira burguesa assente na afirmação de que também hoje o conteúdo objetivo do processo histórico seria o movimento progressista da burguesia contra o feudalismo. Na realidade, hoje não é possível a democracia moderna arrastar-se a reboque da burguesia reaccionária, imperialista, seja qual for a “cor” dessa burguesia.

Na primeira época, objetivamente, a tarefa histórica era: como devia a burguesia progressista “utilizar”, na sua luta contra os principais representantes do feudalismo moribundo, os conflitos internacionais para o máximo benefício de toda a democracia burguesa mundial em geral. Então, na primeira época, há mais de meio século, era natural e inevitável que a burguesia subjugada pelo feudalismo desejasse a derrota do “seu” opressor feudal; de resto, o número destas principais cidadelas feudais, as cidades centrais, de importância europeia, era bastante pequeno. E Marx “avaliava”: em que país, numa dada situação concreta, a vitória do movimento burguês de libertação era mais essencial para minar a fortaleza feudal de importância europeia.

Actualmente, na terceira época, já não restam nenhumas cidadelas feudais de importância europeia. A “utilização” é evidentemente uma tarefa da democracia moderna, mas precisamente uma utilização internacional – contrariamente a A. Potréssov e Kautsky – deve dirigir-se não contra capitais financeiros nacionais isolados, mas contra o capital financeiro internacional. E quem a deve utilizar não é a classe que era ascendente há 50 ou 100 anos. Então tratava-se da “ação internacional” (a expressão é de A. Potréssov) da democracia burguesa mais avançada; presentemente, uma tarefa do mesmo tipo desenvolveu-se historicamente e foi colocada pela situação objetiva a uma outra classe.

III

A segunda época ou “fase de 45 anos” (1870-1914), segundo a expressão de A. Potréssov, é caracterizada por este último de maneira muito incompleta. Igualmente incompleta é a caracterização dessa época na obra de Trotsky em alemão, embora este último não concorde nas conclusões práticas com A. Potréssov (o que deve considerar-se uma vantagem do primeiro sobre o segundo) – de resto, para os dois referidos escritores dificilmente estará clara a causa da sua relativa aproximação mútua.

A. Potréssov escreve a propósito da época a que chamámos segunda ou de ontem:

A limitação às questões de pormenor do trabalho e da luta e a ideia, que tudo impregna, do gradualismo, esses sinais da época erigidos por uns em princípios, tornaram-se para outros um facto comum da sua existência e, como tal, um elemento da sua psique, um matiz da sua ideologia” (71). “O seu talento (dessa época) para um avanço sistemático, constante e cauteloso tinha o seu reverso em primeiro lugar na sua inadaptabilidade claramente manifestada aos momentos em que esse desenvolvimento gradual era quebrado e aos fenómenos catastróficos de toda a espécie, e em segundo lugar no encerramento exclusivo no quadro da acção nacional – do meio nacional” (72) … “Nem revolução, nem guerras” (70) … “A democracia nacionalizou-se tanto mais facilmente quanto mais se prolongava o período da sua “luta de posições”, quanto mais tempo se mantinha em cena essa fase da história europeia que … foi uma fase que não conheceu conflitos internacionais no coração da Europa, e por conseguinte não viveu perturbações que ultrapassassem as fronteiras dos territórios dos Estados nacionais, não experimentou intensamente interesses à escala de toda a Europa ou do mundo” (75-76).

O principal defeito desta caraterização, tal como da caracterização da mesma época feita por Trotsky, consiste em não querer ver e admitir as profundas contradições internas na democracia moderna que se desenvolveu sobre a base descrita. É como se a democracia moderna desta época se tivesse mantido um todo homogéneo que, no conjunto, tivesse sido penetrado da ideia do gradualismo, se tivesse nacionalizado, se tivesse desviado das quebras desse gradualismo e das catástrofes, tivesse degenerado e se tivesse coberto de bolor.

Na realidade não poderia ser assim, porque a par das tendências apontadas actuaram também, incontestavelmente, tendências diferentes, opostas, a “existência” das massas operárias internacionalizava-se – a atracão para as cidades e o nivelamento das condições de vida nas grandes cidades de todo o mundo, a internacionalização do capital, a mistura nas grandes fábricas de população urbana e rural, autóctone e alógena, etc. –, as contradições de classe agudizavam-se, as associações de empresários exerciam uma pressão acrescida sobre os sindicatos operários, surgiam formas de luta mais agudas e mais duras, sob a forma, por exemplo, das greves de massas, subia o custo de vida, o jugo do capital financeiro tornava-se insuportável, etc., etc.

Na realidade não foi assim – e nós sabíamo-lo bem. Nenhum país, absolutamente nenhum dos grandes países capitalistas da Europa foi poupado durante essa época à luta entre as duas correntes contraditórias no interior da democracia moderna. Essa luta assumiu por vezes em cada um dos grandes países, apesar do carácter geral “pacífico”, “estagnado”, sonolento da época, as formas mais tempestuosas, que foram até às cisões. Essas tendências contraditórias manifestaram-se em todos os variados domínios da vida e em todas as questões da democracia moderna, sem exceção: atitude em relação à burguesia, alianças com os liberais, votação a favor dos créditos, atitude em relação à política colonial, às reformas, ao caráter da luta económica, à neutralidade dos sindicatos, etc.

A “ideia que tudo impregna, do gradualismo” não foi de modo nenhum a disposição inteiramente dominante da democracia moderna, como se conclui segundo Potréssov e Trotsky. Não, esta ideia do gradualismo cristalizou-se numa determinada tendência, que criou frequentemente na Europa desse período frações separadas e por vezes mesmo partidos separados da democracia moderna. Essa tendência tinha os seus chefes, os seus órgãos de imprensa, a sua política, a sua influência particular – e particularmente organizada – sobre as massas da população. Mais ainda. Essa tendência apoiava-se cada vez mais – e por fim “apoiou-se” definitivamente, se assim se pode dizer – nos interesses duma certa camada social no seio da democracia moderna.

A “ideia que tudo impregna, do gradualismo” atraiu naturalmente às fileiras da democracia moderna toda uma série de companheiros de jornada pequeno-burgueses; depois as particularidades pequeno-burguesas da existência – e, por conseguinte também da “orientação” (tendência, aspiração) política – criaram-se numa certa camada de parlamentares, jornalistas, funcionários das organizações sindicais; formou-se, de forma mais ou menos nítida e delimitada, uma espécie de burocracia e de aristocracia da classe operária.

Considere-se, por exemplo, a posse de colónias, o alargamento dos domínios coloniais. Este foi sem dúvida um dos traços distintivos da época descrita e da maioria dos grandes Estados. E que significava isso economicamente? Um certo volume de super-lucros e privilégios particulares para a burguesia e depois, sem dúvida, a possibilidade de uma pequena minoria de pequenos burgueses, e depois dos empregados e funcionários mais bem colocados do movimento operário, etc., receberem algumas migalhas desses “pedaços do bolo”. É um facto incontestável, reconhecido e apontado já por Marx e Engels, que uma minoria insignificante da classe operária, por exemplo na Inglaterra, “beneficiou” das migalhas dos lucros coloniais e dos privilégios. Mas aquilo que foram em seu tempo fenómenos exclusivamente ingleses, tornou-se um fenómeno comum para todos os grandes países capitalistas da Europa à medida que todos estes países passavam ao domínio de colónias em grande escala e, de modo geral, à medida que se desenvolvia e crescia o período imperialista do capitalismo.

Em suma, “a ideia, que tudo impregna, do gradualismo” da segunda época (ou época de ontem) não criou apenas uma certa “inadaptabilidade às quebras do desenvolvimento gradual”, como pensa A. Potréssov, apenas certas inclinações “possibilistas”, como supõe Trotsky: ela criou toda uma tendência oportunista que se apoia numa determinada camada social no seio da democracia moderna, ligada à burguesia da sua “cor” nacional pelos múltiplos laços dos interesses económicos, sociais e políticos comuns — tendência que é direta e abertamente, de modo inteiramente consciente e sistematicamente, hostil a qualquer ideia de “quebras do desenvolvimento gradual”.

A raiz de toda uma série de erros táticos e organizativos de Trotsky (para já não falar de A. Potréssov) reside precisamente no seu receio ou recusa ou incapacidade de reconhecer este facto da completa “maturidade” da tendência oportunista, bem como da sua estreitíssima e indissolúvel ligação com os nacionais-liberais (ou social-nacionalismo) dos nossos dias. Na prática, a negação deste facto da “maturidade” e desta ligação indissolúvel conduz, pelo menos, à completa desorientação e impotência relativamente ao flagelo social-nacionalista (ou nacional-liberal) reinante.

A ligação entre o oportunismo e o social-nacionalismo é negada, de modo geral, tanto por Potréssov, como por Mártov, Axelrod, V. Kossovsky (que vai ao ponto de defender a votação nacional-liberal dos créditos de guerra pelos democratas alemães) e Trotsky.

O seu principal “argumento” consiste em que não há inteira coincidência entre a antiga divisão da democracia “segundo o oportunismo” e a sua atual divisão “segundo o social-nacionalismo”. Este argumento é, em primeiro lugar, de facto inexato, como seguidamente mostraremos, e em segundo lugar é absolutamente unilateral, incompleto e essencialmente inconsistente do ponto de vista marxista. Indivíduos e grupos podem passar de um lado para o outro – isso é não só possível mas até inevitável em qualquer grande “choque” social; o caráter de uma certa corrente de modo nenhum se altera por isso; não se altera também a ligação ideológica entre determinadas correntes, não se altera o seu significado de classe. Pareceria que todas estas considerações são tão geralmente conhecidas e indiscutíveis que é mesmo um tanto embaraçoso insistir tanto nelas. Contudo, foram precisamente estas considerações que os referidos autores esqueceram. O significado de classe fundamental – ou, se se quiser, o conteúdo económico e social – do oportunismo consiste em que certos elementos da democracia moderna passaram (de facto, isto é, mesmo que não tenham consciência) para o lado da burguesia em toda uma série de questões. O oportunismo é uma política operária liberal. A quem receie o aspecto “fraccionista” destas expressões, aconselhamos a que se dê ao trabalho de estudar as referências de Marx, Engels e Kautsky (uma “autoridade” particularmente cómoda para os adversários do “fraccionismo”, não é verdade?) quanto mais não seja a propósito do oportunismo inglês. Não pode haver a menor dúvida de que o resultado desse estudo será o reconhecimento da coincidência básica e essencial entre o oportunismo e a política operária liberal. O significado de classe fundamental do social-nacionalismo dos nossos dias é absolutamente o mesmo. A ideia fundamental do oportunismo é a aliança ou a aproximação (por vezes o acordo, o bloco, etc.) entre a burguesia e o seu antípoda. A ideia fundamental do social-nacionalismo é exatamente a mesma. O parentesco, a ligação, mesmo a identidade ideológico-políticos entre o oportunismo e o social-nacionalismo não oferecem qualquer dúvida. E é claro que nós devemos tomar por base não indivíduos ou grupos, mas precisamente a análise do conteúdo de classe das correntes sociais e o estudo ideológico-político dos seus princípios fundamentais, essenciais.

Abordando o mesmo tema de um ângulo um pouco diferente, faremos a seguinte pergunta: donde surgiu o social-nacionalismo? Como cresceu e se desenvolveu? O que lhe deu importância e força? Quem não tiver encontrado respostas para estas perguntas, não compreendeu absolutamente nada do social-nacionalismo e, claro está, é absolutamente incapaz de se “demarcar ideologicamente” dele, ainda que jure e trejure estar disposto a “demarcar-se ideologicamente” do social-nacionalismo.

Quanto à resposta a essa pergunta, só pode ser uma: o social-nacionalismo cresceu do oportunismo, e foi precisamente este último que lhe deu força. Como pôde o social-nacionalismo nascer “de repente”? Exatamente da mesma maneira que uma criança nasce “de repente”, decorridos nove meses sobre a conceção. Cada uma das numerosas manifestações do oportunismo durante toda a segunda época (ou época de ontem) em todos os países europeus era um dos riachos que em conjunto se fundiram “de repente” no que é agora o grande – embora de águas pouco profundas (e acrescente-se entre parênteses: turvas e sujas) – rio social-nacionalista. Nove meses depois da concepção o feto deve separar-se da mãe; muitas dezenas de anos depois da concepção do oportunismo, o seu fruto maduro, o social-nacionalismo, deverá, num prazo mais ou menos curto (em comparação com essas dezenas de anos), separar-se da democracia moderna. Por mais que essa boa gente grite, se zangue, se enfureça com os pensamentos e as afirmações a esse propósito, isso é inevitável, porque decorre de todo o desenvolvimento social da democracia moderna e das condições objetivas da terceira época.

Mas se não existe plena concordância entre a divisão “segundo o oportunismo” e a divisão “segundo o social-nacionalismo”, não demonstrará isso que não existe uma ligação essencial entre esses fenómenos? Em primeiro lugar, não demonstra, tal como a passagem de determinados indivíduos provindos da burguesia do fim do século XVIII ora para o lado dos feudais ora para o lado do povo não demonstra que “não existe uma ligação” entre o crescimento da burguesia e a grande revolução francesa de 1789. Em segundo lugar, de modo geral – e é precisamente do geral que se trata – essa concordância existe. Tomemos não um só país, mas várias países, por exemplo dez países europeus: Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica, Rússia, Itália, Suécia, Suíça, Holanda e Bulgária. Só os três países sublinhados parecem em certa medida excepções; nos restantes, as correntes decididamente opostas ao oportunismo geraram precisamente correntes hostis ao social-nacionalismo. Compare-se o célebre Mensário(6) e os seus adversários na Alemanha, a Nashe Delo e os seus adversários na Rússia, o partido de Bissolati e os seus adversários na Itália; os partidários de Greulich e de Grimm, na Suíça, de Branting e de Höglund na Suécia, de Troelstra e de Pannekoek e Gorter na Holanda; finalmente, os “obschedeltsi” e os “tesniaki” na Bulgária. A concordância geral entre a velha e a nova divisão é um facto, mas a concordância plena não existe nem mesmo nos fenómenos mais simples da natureza, tal como não existe concordância plena entre o Volga depois da sua junção do Kama e o Volga antes dessa junção, ou como não há plena semelhança entre uma criança e os pais. A Inglaterra é uma exceção aparente; de facto havia nela antes da guerra duas correntes principais em torno de dois jornais diários – indício objetivo mais seguro do carácter de massas de uma corrente: designadamente os jornais Daily Citizen dos oportunistas e o Daily Herald dos adversários do oportunismo. Ambos os jornais foram submergidos pela vaga de nacionalismo; mas revelaram oposição menos de 1/10 dos partidários do primeiro e cerca de 3/7 dos partidários do segundo. O método habitual de comparação, quando se opõe simplesmente o Partido Socialista Britânico ao Partido Trabalhista Independente, não é correto, pois esquece o bloco de facto deste último com os fabianos e com o Partido Trabalhista. Como excepções ficam por conseguinte apenas dois países em 10; mas também aqui não existe completa excepção, porque as tendências não trocaram de lugar, mas apenas uma vaga submergiu (por causas tão compreensíveis que não é necessário determo-nos nelas) quase todos os adversários do oportunismo. Isto demonstra incontestavelmente a força da vaga; mas de modo nenhum refuta a concordância geral em toda a Europa entre a velha e a nova divisão.

Dizem-nos: a divisão “segundo o oportunismo” está ultrapassada; só tem sentido a divisão em partidários do internacionalismo e partidários da estreiteza nacional. Esta opinião é fundamentalmente errada. O conceito “partidário do internacionalismo” é desprovido de qualquer conteúdo e de qualquer sentido se não for desenvolvido concretamente, e cada passo desse desenvolvimento concreto será uma enumeração de sinais de hostilidade ao oportunismo. Na prática, isto será ainda mais verdadeiro.

Um partidário do internacionalismo que não seja o mais consequente e decidido adversário do oportunismo é uma miragem e nada mais do que isso. Pode acontecer que alguns indivíduos desse tipo se considerem sinceramente como “internacionalistas”, mas julga-se as pessoas não segundo aquilo que elas pensam de si mesmas, mas segundo o seu comportamento político: o comportamento político dos “internacionalistas” que não sejam adversários consequentes e decididos do oportunismo será sempre uma ajuda ou um apoio à corrente dos nacionalistas. Por outro lado, os nacionalistas também se intitulam “internacionalistas” (Kautsky, Lensch, Haenisch, Vandervelde, Hyndman, e outros) e não só se intitulam assim como aceitam inteiramente a aproximação, o entendimento, a união internacional das pessoas que pensam como eles. Os oportunistas não são contra o “internacionalismo”, são apenas pela aprovação internacional e pelo entendimento internacional dos oportunistas.