Do diário de um publicista
Os operários e os camponeses

Vladimir Ilitch Lênin

11 de setembro(29 de agosto) do 1917


Primeira edição: Rabotchii, nº 6, 11 de setembro(29 de agosto) do 1917. Assinado: N. Lênin. V. I. Lênin, Obras, 4.ª ed. em russo, t. 25, págs. 253/260

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 344-351

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

HTML: Fernando Araújo.

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capa

O jornal Izvestia Vserossisko Sovieta Krestianskikh Deputatov(1) publicou no seu número 88, correspondente a 19 de agosto, um artigo muito interessante, que se deve tomar um documento fundamental nas mãos de todo propagandista e agitador do partido que trabalhe entre os camponeses, nas mãos de todo operário consciente que vá ao campo ou tenha relação com ele.

Este artigo intitula-se Mandato típico, redigido na base dos 242 mandatos trazidos pelos deputados locais ao I Congresso de deputados camponeses de toda a Rússia realizado em Petrogrado em 1917.

Seria desejável ao extremo que o soviete de deputados camponeses publicasse os dados mais pormenorizados possíveis acerca de todos esses mandatos (no caso de ser absolutamente impossível publicar o texto integral de todos eles, o que seria, como é natural, o melhor). É especialmente necessária, por exemplo, uma lista completa das províncias, distritos e comarcas, na qual se indicasse quantos mandatos foram trazidos de cada lugar, data em que foram trazidos ou redigidos e uma análise, pelo menos, das reivindicações fundamentais, que permitisse ver se se observam diferenças entre as diversas zonas em relação a tais ou quais pontos. Seria interessante saber, por exemplo, se as zonas em que predomina a propriedade agrária individual e a propriedade agrária comunal, as zonas russas e as de outras nacionalidades, as do centro e as da periferia, as que não conheceram o regime de servidão, etc., colocam de maneira diferente a abolição do direito de propriedade sobre todas as terras camponesas, as repartições periódicas de terra, a proibição do trabalho assalariado, o confisco dos instrumentos e dos animais dos latifundiários, etc. Sem tais dados pormenorizados é impossível uma análise científica do material, extraordinariamente valioso, que contêm os mandatos camponeses. É nós, os marxistas, devemos dedicar todas as nossas forças ao estudo científico dos fatos que servem de base à nossa política.

Na falta de material melhor, o resumo dos mandatos (assim chamaremos o «mandato típico») continua sendo, enquanto não for demonstrada a existência de inexatidão nos seus dados, o único material no seu gênero, que, repetimos, cada membro de nosso Partido deve ter obrigatoriamente em suas mãos.

A primeira parte do resumo de mandatos está consagrada às teses políticas gerais, às reivindicações da democracia política; a segunda, ao problema da terra. (Esperamos que o soviete de deputados camponeses de toda a Rússia ou qualquer outro organismo faça um resumo dos mandatos e resoluções camponeses sobre a guerra). Não nos deteremos agora na análise detalhada da primeira parte e destacaremos somente dois pontos. No ponto 6, exige-se a eleição de todos os funcionários, e, no 11, a abolição do exército permanente logo que terminar a guerra. Estes pontos fazem com que o programa político dos camponeses seja o mais próximo do programa do Partido Bolchevique. Apoiando-nos nestes pontos, devemos mostrar e demonstrar em toda a nossa propaganda e agitação que os chefes mencheviques e socialistas revolucionários são uns traidores não só do socialismo, mas da democracia, já que, por exemplo, em Kronstadt, defenderam, contra o desejo da população, contra os princípios da democracia e para agradar aos capitalistas, o cargo de comissário confirmado pelo governo, isto é, não puramente eletivo. Nas Dumas de distrito de Petrogrado e em outras instituições autônomas locais, os chefes socialistas revolucionários e mencheviques, a despeito dos princípios da democracia, lutam contra a reivindicação bolchevique de iniciar imediatamente a organização da milícia operária e passar depois à milícia de todo o povo.

As reivindicações camponesas sobre a terra consistem, principalmente, segundo o resumo dos mandatos, em: abolir sem indenização todos os tipos de propriedade privada da terra, incluídas as terras dos camponeses; transferir para o Estado ou para as comunidades as terras exploradas com alto nível técnico; confiscar todos os animais de trabalho e todos os instrumentos de lavra das terras confiscadas (exceção feita dos camponeses com pouca terra), passando-os para o Estado ou para as comunidades; não permitir o trabalho assalariado; distribuir igualitariamente a terra entre os trabalhadores, com repartições periódicas, etc. Como medida transitória até a convocação da Assembleia Constituinte, os camponeses exigem a promulgação imediata de leis proibindo a compra e venda de terra; a abolição das leis permitindo sair das comunidades, o fracionamento das propriedades, etc.;(2) proteção dos bosques, da pesca, etc.; anulação dos contratos de arrendamento a longo prazo e revisão dos concluídos a curto prazo, etc.

Basta refletir um pouco sobre estas reivindicações para ver que é absolutamente impossível levá-las à prática em aliança com os capitalistas, sem romper por completo com eles, sem lutar da maneira mais decidida e implacável contra a classe dos capitalistas, sem destruir sua dominação.

Assim, os socialistas revolucionários enganam a si mesmos e enganam os camponeses, precisamente, quando admitem e difundem a ideia de que tais transformações, de que aquelas transformações são possíveis sem destruir o domínio dos capitalistas, sem que todo o poder do Estado passe ao proletariado, sem que os camponeses pobres apoiem as medidas mais decididas e revolucionárias do poder estatal proletário contra os capitalistas. A importância da ala esquerda que surge entre os «socialistas revolucionários» consiste em que demonstra que nas fileiras deste partido se compreende cada vez melhor esse engano.

Com efeito, o confisco de toda a terra de propriedade privada significa o confisco de um capital de centenas de milhões de rublos dos bancos, nos quais está hipotecada a maior parte destas terras. Acaso tal passo é concebível sem quo a classe revolucionária esmague com medidas revolucionárias a resistência dos capitalistas? É observemos que se trata do capital bancário, o mais centralizado, unido por milhares e milhares de fios a todos os centros mais importantes da economia capitalista de um imenso país e que só pode ser vencido pela força não menos centralizada do proletariado urbano.

Prossigamos. Transferir para o Estado todas as terras exploradas com alto nível técnico. Não é evidente que um «Estado» capaz de tomar essas terras e de dirigir a exploração agrícola verdadeiramente em proveito dos trabalhadores e não dos funcionários e dos próprios capitalistas, deve ser o Estado proletário revolucionário?

O confisco das criações de gado equino, etc., e, mais tarde, de todo o gado e de todos os instrumentos de lavra representa não só gigantescos golpes na propriedade privada dos meios de produção, mas também passos em direção ao socialismo, já que a transferência dos bens «em usufruto exclusivo ao Estado ou às comunidades» leva implícita a necessidade da grande agricultura socialista ou, pelo menos, do controle socialista sobre as pequenas explorações agrícolas unificadas e da organização socialista de sua economia.

É a reivindicação de «não permitir» o trabalho assalariado? É uma frase vazia, um desejo impotente, inconsciente e ingênuo dos pequenos proprietários oprimidos, que não percebem que toda a indústria capitalista pararia se faltasse o exército de reserva de trabalho assalariado no campo, que não se pode «não permitir» o trabalho assalariado no campo permitindo-o na cidade, e, por último, que «não permitir» o trabalho assalariado não significa outra coisa senão um passo em direção ao socialismo.

Chegamos assim à questão vital da atitude dos operários em relação aos camponeses.

O movimento operário social-democrata de massas existe na Rússia há mais de 20 anos (se contamos a partir das grandes greves de 1896). Durante todo este tempo, passa como um fio de ligação entre duas grandes revoluções, através de toda a história política da Rússia, a questão de se a classe operária levará os camponeses para a frente, em direção ao socialismo, ou se o burguês liberal os empurrará para trás, em direção à conciliação com o capitalismo.

A ala oportunista da social-democracia raciocina invariavelmente prendendo-se à seguinte fórmula sofisticada: como os socialistas revolucionários são pequeno-burgueses, «nós» derrubamos seus pontos-de-vista utópicos pequeno-burgueses sobre o socialismo em nome da negação burguesa do socialismo. O marxista é suplantado sem mais nem menos pelo struvismo, e o menchevismo desce ao papel de lacaio dos democratas constitucionalistas que «reconciliam» os camponeses com a dominação da burguesia. Tsereteli e Skobelev, de mãos dadas com Tchernov e Avxentiev, dedicam-se a assinar, em nome da «democracia revolucionária», os decretos latifundiários reacionários dos democratas constitucionalistas: essa é a última e mais eloquente manifestação deste papel.

A social-democracia revolucionária, que nunca renunciou a criticar as ilusões pequeno-burguesas dos socialistas revolucionários, e que nunca formou coligação com eles, a não ser contra os democratas constitucionalistas, luta constantemente para arrancar os camponeses destes últimos e contrapõe à opinião utópica pequeno-burguesa sobre o socialismo, não a reconciliação liberal com o capitalismo, mas o caminho proletário revolucionário em direção ao socialismo.

Agora, quando a guerra acelerou excepcionalmente o desenvolvimento, agravou em proporções incríveis a crise do capitalismo e colocou diante dos povos o dilema inarredável de perecer ou de dar imediatamente passos decisivos em direção ao socialismo, agora, todo o abismo de divergências entre o menchevismo semiliberal e o bolchevismo proletário revolucionário manifesta-se claramente, de maneira prática, como o problema do que devem fazer dezenas de milhões de camponeses.

Resignem-se ao domínio do capital, pois «nós» ainda não amadurecemos para o socialismo: eis o que dizem os mencheviques aos camponeses, substituindo, de passagem, a questão concreta de se se podem curar as feridas da guerra sem dar passos decididos em direção ao socialismo, pela questão abstrata do «socialismo» em geral.

Resignem-se ao capitalismo, pois os socialistas revolucionários são utopistas pequeno-burgueses: eis o que dizem aos camponeses os mencheviques que, junto com os socialistas revolucionários, correm a sustentar o governo democrata constitucionalista...

É os socialistas revolucionários, batendo no peito, asseguram aos camponeses que estão contra qualquer paz com os capitalistas, que nunca consideraram burguesa a revolução russa. É por isso formam coligação precisamente com os social-democratas oportunistas, correm a sustentar precisamente um governo burguês... Os socialistas revolucionários assinam qualquer programa camponês, por mais revolucionário que seja, não para cumpri-lo, mas para colocá-lo debaixo do tapete, para enganar os camponeses com as mais vãs promessas, dedicando-se na prática, durante meses inteiros, à «conciliação» com os democratas constitucionalistas no governo de coalizão.

Esta traição indigna, prática, direta e tangível dos socialistas revolucionários aos interesses dos camponeses modifica radicalmente a situação. É preciso levar em conta esta mudança. Não se pode fazer agitação contra os socialistas revolucionários como o fazíamos em 1902/1903 e em 1905/1907. Não podemos nos limitar a denunciar do ponto-de-vista teórico as ilusões pequeno-burguesas da «socialização da terra», do «usufruto igualitário do solo», da «não permissão do trabalho assalariado», etc.

Estávamos então às vésperas da revolução burguesa ou em uma revolução burguesa não terminada, e a tarefa consistia em fazê-la chegar, sobretudo, até a derrubada da monarquia.

Agora a monarquia foi derrubada. A revolução burguesa terminou, pois que a Rússia transformou-se em uma república democrática com um governo de democratas constitucionalistas, mencheviques e socialistas revolucionários. Em três anos, a guerra nos fez avançar uns trinta anos, instituiu na Europa o trabalho geral obrigatório e a sindicalização obrigatória das empresas e levou os países mais avançados à fome e à ruína sem precedentes, obrigando-os a dar passos em direção ao socialismo.

Somente o proletariado e o campesinato podem derrubar a monarquia: esta era, naquele tempo, a definição fundamental de nossa política de classe. É esta definição era exata. Os meses de fevereiro e março de 1917 confirmaram-no uma vez mais.

Somente o proletariado, dirigindo os camponeses pobres (os semiproletários, como se diz em nosso programa), pode pôr fim à guerra com uma paz democrática, curar suas feridas, começar a dar os passos já absolutamente necessários e inadiáveis em direção ao socialismo: tal é a definição de nossa política de classe nos dias que correm.

Daí se conclui: na propaganda e na agitação contra os socialistas revolucionários devemos deslocar o centro de gravidade para o fato de que eles traíram os camponeses. Os socialistas revolucionários não representam a massa dos camponeses pobres, mas a minoria dos proprietários acomodados. Não conduzem o campesinato à aliança com os operários, mas à aliança com os capitalistas, isto é, à submissão a estes. Venderam os interesses da massa trabalhadora e explorada por algumas pastas ministeriais, pela coligação com os mencheviques e os democratas constitucionalistas.

A história foi tão acelerada pela guerra, que as velhas fórmulas adquiriram novo conteúdo. A reivindicação de «não permitir o trabalho assalariado», que era antes unicamente uma frase vazia dos intelectuais pequeno-burgueses, hoje significa na vida uma outra coisa diferente: em 242 mandatos, milhões de camponeses pobres dizem que querem abolir o trabalho assalariado, mas não sabem como fazê-lo. Nós sabemos como fazê-lo. Sabemos que isso só pode ser feito em aliança com os operários e sob a sua direção, contra os capitalistas e não «se conciliando» com eles.

Assim deve ser modificada, hoje, a linha fundamental de nossa propaganda e agitação contra os socialistas revolucionários, a linha fundamental de nossos discursos aos camponeses.

O partido dos esserristas traiu-os, camaradas camponeses. Traiu as choupanas e colocou-se do lado dos palácios, se não dos palácios do monarca, daqueles em que os democratas constitucionalistas, inimigos jurados da revolução e, sobretudo, da revolução camponesa, reúnem-se em um mesmo governo com os Tchernov, os Pechekhonov e os Avxentiev.

Somente o proletariado revolucionário, somente a vanguarda que o agrupe, o Partido Bolchevique, pode cumprir na prática o programa dos camponeses pobres exposto nos 242 mandatos. Porque o proletariado revolucionário vai verdadeiramente à abolição do trabalho assalariado pelo único caminho seguro, a derrubada do capital, e não proibindo contratar trabalhadores, não «não permitindo» isso. O proletariado revolucionário marcha verdadeiramente para o confisco da terra, dos instrumentos, das empresas agrícolas técnicas, para o que querem os camponeses e que os esserristas não lhes podem dar.

Assim deve ser modificada hoje a linha fundamental dos discursos do operário ao camponês. Nós, os operários, podemos dar e lhes daremos tudo o que querem e buscam os camponeses pobres, que nem sempre sabem onde e como consegui-lo. Nós, os operários, defendemos contra os capitalistas nossos interesses e, ao mesmo tempo, os interesses da gigantesca maioria dos camponeses, enquanto os esserristas, aliados aos capitalistas, traem estes interesses.

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Lembraremos ao leitor o que dizia Engels, pouco antes de sua morte, sobre a questão camponesa. Engels acentuava que os socialistas não pensam em expropriar os pequenos camponeses, que somente a força do exemplo mostrará a estes as vantagens da agricultura socialista mecanizada.

A guerra colocou agora, para a Rússia, de maneira prática, uma questão desse gênero. Existem poucos instrumentos. É preciso confiscá-los e «não dividir» as explorações de alto nível técnico.

Os camponeses começaram a compreender isso. A necessidade obrigou-os. Obrigou-os a guerra, pois não há onde tirar instrumentos. É preciso conservá-los. É a grande exploração significa economizar trabalho tanto quanto aos instrumentos como quanto a muitas outras coisas.

Os camponeses querem conservar a pequena exploração, limitá-la igualitariamente, igualá-la de novo periodicamente. .. Assim seja. Isso não será motivo para que qualquer socialista sensato se afaste dos pobres do campo. Se são confiscadas as terras, o que significa que foi minado o domínio dos bancos, se se confiscam os instrumentos, o que significa que foi minado o domínio do capital, então, com o domínio do proletariado no centro, com a passagem do poder político ao proletariado, o resto se fará por si mesmo, será resultado da «força do exemplo», será ditado pela própria experiência.

A essência da questão está na passagem do poder político ao proletariado. É então será realizável todo o essencial, fundamental, vital, que contém o programa dos 242 mandatos. E a vida mostrará com que modificações se levará a cabo esse trabalho. Isso é secundário. Nós não somos dogmáticos. Nossa doutrina não é um dogma, mas um guia para a ação.

Não pretendemos que Marx ou os marxistas conheçam o caminho para o socialismo em todos os seus aspectos concretos. Isso é absurdo. Conhecemos a direção desse caminho, sabemos que forças de classe marcham por ele, mas somente a experiência de milhões de seres, quando puserem mãos à obra, o mostrará de uma maneira concreta e prática.

Tenham confiança nos operários, camaradas camponeses, rompam a aliança com os capitalistas! Somente em estreita aliança com os operários poderão começar a levar à prática o programa dos 242 mandatos. Em aliança com os capitalistas, sob a direção dos esserristas, jamais lograrão dar um só passo decisivo e irrevogável no espírito desse programa.

É quando, em aliança com os operários da cidade, em luta implacável contra o capital, começarem a aplicar o programa dos 242 mandatos, todo o mundo acudirá em sua e nossa ajuda, e o êxito deste programa — não em suas formulações, mas em sua essência — estará assegurado. Então chegará ao fim o domínio do capital e da escravidão assalariada. Então começará o reino do socialismo, o reino da paz, o reino dos trabalhadores.


Notas de rodapé:

(1) Izvestia dos Sovietes de Deputados Camponeses da Rússia. (Nota da Tradução) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

(2) Lênin refere-se à abolição da lei stolipiniana de 9/XI/1906 (ver a nota 48).(retornar ao texto)

Inclusão: 10/02/2022