A fome
Carta aos operários de Petrogrado

Vladimir Ilitch Lênin

22 de maio de 1918


Primeira edição: Pravda, nº 101, 24 de maio de 1918. V. I. Lênin, Obras, 4.ª ed. em russo t. 27, págs. 355/362

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 375-381

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

HTML: Fernando Araújo.

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capa

Camaradas:

Há alguns dias visitou-me um seu delegado, membro do Partido e operário da fábrica Putilov. Este camarada descreveu-me, em todos os detalhes, o quadro, extremamente penoso, da fome em Petrogrado. Todos sabemos que, em numerosas províncias industriais, o problema do abastecimento tem a mesma gravidade, e a fome ronda, não menos dolorosamente, as portas dos operários e dos pobres em geral.

Ao mesmo tempo observamos a desenfreada especulação com os cereais e outros artigos alimentícios. A fome não resulta de que falte trigo na Rússia, mas de que a burguesia e todos os ricos travam a luta final, a luta decisiva, contra o domínio dos trabalhadores, contra o Estado dos operários, contra o Poder Soviético, no problema mais importante e grave: o dos cereais. A burguesia e todos os ricos, inclusive os ricaços do campo, os culaques, fazem fracassar o monopólio do trigo e de sua distribuição pelo Estado, implantado em benefício e no interesse do abastecimento de toda a população, e, em primeiro lugar, dos operários, dos trabalhadores, dos necessitados. A burguesia sabota o congelamento dos preços, especula com os cereais, ganha cem ou duzentos rublos, e até mais, em cada pud, destrói o monopólio do trigo e impede a sua justa distribuição, recorrendo à corrupção e ao suborno, ao apoio premeditado a tudo quanto possa destruir o poder dos operários, que lutam por levar à prática o primeiro princípio do socialismo, seu princípio básico e fundamental: «Quem não trabalha, não come».

«Quem não trabalha, não come»: qualquer trabalhador compreende isso. Com isso estão de acordo todos os operários, todos os camponeses pobres e inclusive os camponeses médios, todo aquele que tenha passado necessidades, todo aquele que tenha alguma vez vivido do seu trabalho. Nove décimos da população da Rússia estão de acordo com esta verdade simples, a mais simples e evidente, que constitui a base do socialismo, o manancial inesgotável de sua força, a firme garantia de sua vitória definitiva.

Mas o essencial está, precisamente, em que uma coisa é manifestar sua concordância com esta verdade, jurar que concorda com ela e reconhecê-la em palavras e outra coisa é saber aplicá-la na prática. Quando milhares e milhares de seres padecem o suplício da fome (em Petrogrado, nas províncias não agrícolas e em Moscou) em um país em que os ricos, os culaques e os especuladores ocultam milhões e milhões de puds de cereais, em um país que se denomina República Socialista Soviética, há motivos para que cada operário e camponês consciente reflita do modo mais sério e profundo.

«Quem não trabalha, não come»: como levar isso à prática? É claro como a luz do dia que para isso é necessário: primeiro, o monopólio do trigo pelo Estado, isto é, a proibição absoluta de todo comércio privado de cereais, a entrega obrigatória ao Estado de todas as sobras de cereais a preços fixos, a proibição absoluta a quem quer que seja de reter ou ocultar as sobras; segundo, um inventário minucioso de todas as sobras de cereais e sua remessa, rigorosamente organizada, dos lugares em que são abundantes, aos lugares em que são escassos, reunindo-se, ao mesmo tempo, reservas para o consumo, o beneficiamento e a semeadura; terceiro, uma distribuição correta e equitativa dos cereais entre todos os cidadãos do país, sob o controle do Estado operário, do Estado proletário, sem privilégios ou vantagens de qualquer espécie para os ricos.

Basta refletir, por pouco que seja, sobre estas condições da vitória sobre a fome para compreender a profundíssima estupidez dos desprezíveis charlatães anarquistas, que negam a necessidade do poder estatal (implacavelmente severo com a burguesia, implacavelmente rigoroso com os desorganizadores deste poder) para passar do capitalismo ao comunismo, para emancipar os trabalhadores de todo jugo e de toda exploração. Precisamente agora, quando nossa revolução começou a executar plenamente, de maneira concreta e prática (e nisso consiste seu grande mérito), as tarefas da realização do socialismo, precisamente agora — e no problema que é certamente o mais importante, o dos cereais — vê-se com clareza perfeita a necessidade de um férreo poder revolucionário, da ditadura do proletariado, da organização da estocagem de produtos, de seu transporte e de sua distribuição em massa, em escala nacional, levando em conta as necessidades de milhões e milhões de seres, as condições e os resultados da produção não só com um, mas, com muitos anos de antecipação (pois se ocorrem anos de má colheita, são necessários, às vezes, trabalhos de melhoramento do solo para que aumente a colheita de cereais, o que exige um trabalho de muitos anos, etc.).

Romanov e Kerenski deixaram como herança para a classe operária um país arruinado ao extremo por sua guerra de rapina, criminosa e onerosíssima, um país totalmente despojado pelos imperialistas russos e estrangeiros. Só haverá cereais para todos se se registra do modo mais rigoroso cada pud, se se procede com a mais absoluta equidade na distribuição de cada pedaço de pão. O pão para as máquinas, isto é, o combustível, também escasseia muito: se não lançarmos mão de todas as forças para conseguir uma economia inflexivelmente rigorosa em seu consumo, uma distribuição acertada, as fábricas e os trens paralisarão e a falta de trabalho e a fome farão sucumbir todo o povo. A catástrofe ameaça-nos, está materialmente a um passo de nós. Depois das inusitadas dificuldades de maio vêm outras mais penosas ainda em junho, julho e agosto.

O monopólio estatal do trigo existe em nosso país, em virtude de uma lei, mas, de fato, é violado a todo instante pela burguesia. O ricaço da aldeia, o cúlaque, esse parasita que durante decênios vem saqueando todo o seu distrito, prefere lucrar com a especulação e com a destilação clandestina de álcool — tão lucrativa para seu bolso! — e pôr a culpa da fome no Poder Soviético. Do mesmo modo procedem os defensores políticos dos culaques — os democratas constitucionalistas, os esserristas de direita e os mencheviques — que «trabalham» descarada e dissimuladamente contra o monopólio do trigo e contra o Poder Soviético. O partido dos vacilantes, isto é, dos esserristas de esquerda, demonstrou também neste caso sua falta de caráter: cede aos gritos e lamentos interessados da burguesia, clama contra o monopólio do trigo, «protesta» contra a ditadura do abastecimento, deixa-se intimidar pela burguesia, teme a luta contra o cúlaque e agita-se histericamente, aconselhando elevar os preços tabelados, autorizar o comércio privado e outras coisas no mesmo estilo.

Este partido dos vacilantes reflete em política algo parecido com o que sucede na vida diária, quando o cúlaque incita os camponeses pobre contra os sovietes, os suborna, vende, por exemplo, a algum camponês pobre um pud de trigo não por seis rublos, mas por três vezes isto, para que este camponês corrompido se «aproveite», por sua vez, da especulação, «lucre» com a venda especulativa desse pud de trigo a 150 rublos e se converta em um vociferador contra os sovietes, que proíbem o comércio privado dos cereais.

Todos os que forem capazes de pensar, todos os que desejarem pensar, por pouco que seja, verão claramente em que direção se desenvolve a luta:

Ou vencem os operários conscientes, avançados, agrupando em seu redor as massas de camponeses pobres e estabelecendo uma ordem férrea, um poder implacavelmente severo, a verdadeira ditadura do proletariado, e obrigam o cúlaque a se submeter, implantando uma distribuição correta dos cereais e do combustível em escala nacional;

Ou a burguesia, ajudada pelos culaques e com o apoio indireto dos vacilantes e desorientados (anarquistas e esserristas de esquerda), derrubará o Poder Soviético e colocará no trono um Kornilov russo-alemão ou um Kornilov russo-japonês, que trará para o povo a jornada de trabalhe, de 16 horas, o meio quarto de libra de pão por semana, fuzilamentos em massa de operários e torturas em masmorras, como na Finlândia e na Ucrânia.

Uma coisa ou outra.

Não há meio termo.

A situação do país chegou a seu ponto crítico.

Quem refletir sobre a vida política, não poderá deixai de ver que os democratas constitucionalistas, os esserristas de direita e os mencheviques tratam de pôr-se de acordo sobre se é «melhor» um Kornilov russo-alemão ou um Kornilov russo-japonês, se a revolução será esmagada melhor e com mais energia por um Kornilov coroado ou por um Kornilov republicano.

Já é hora de se porém de acordo todos os operários conscientes, avançados. Já é hora de que despertem e compreendam que cada minuto de demora é uma ameaça de perecimento do país e da revolução.

Meias medidas em nada ajudarão. As lamentações não conduzirão a coisa alguma. As tentativas de conseguir pão e combustível «a varejo», para «si mesmo», isto é, para «sua» fábrica, para «sua» empresa, não fazem mais do que aumentar a desorganização, facilitar aos especuladores sua obra egoísta, imunda e tenebrosa.

Eis por que, camaradas operários de Petrogrado, me permito dirigir-lhes esta carta. Petrogrado não é toda a Rússia. Os operários de Petrogrado são uma pequena parte das da Rússia. Mas são um dos seus melhores destacamentos, mais avançados, mais conscientes, mais revolucionários, mais firmes; são um dos destacamentos da classe operária e, de todos os trabalhadores da Rússia, são dos menos impressionáveis pelas frases vazias, ao desespero pusilânime, a deixar-se intimidar pela burguesia. Nos instantes críticos da vida dos povos sucedeu mais de uma vez que os destacamentos de vanguarda das classes avançadas, ainda que sendo pouco numerosos, souberam arrastar atrás de si todo o povo, incendiaram com o fogo do entusiasmo revolucionário o coração das massas e realizaram as mais grandiosas façanhas históricas.

Contávamos com 40 000 operários na fábrica Putilov, dizia-me o delegado dos operários de Petrogrado, mas a maioria era de «provisórios», não proletários, gente insegura, frouxa. Hoje restam 15 000, mas são proletários temperados e provados na luta.

É é esta vanguarda da Revolução (em Petrogrado e em todo o país) que deve lançar o grito de guerra, levantar-se em massa, compreender que está em suas mãos a salvação do país, que se exige dela um heroísmo não menor que o de janeiro e outubro de 1905, o do fevereiro e de outubro de 1917, que é preciso organizar a grande «cruzada» contra os especuladores de cereais, os culaques, os parasitas, os desorganizadores e os prevaricadores, a grande «cruzada» contra os violadores da ordem rígida imposta pelo Estado no trabalho de estocar, transportar e distribuir o pão para a população e o pão para as máquinas.

Só o entusiasmo geral dos operários avançados pode salvar o país e a revolução. É preciso dezenas de milhares de operários avançados, temperados, suficientemente conscientes para explicar a situação aos milhões de camponeses pobres em todos os confins do país e pôr-se à frente dessas massas; suficientemente firmes para separar e fuzilar sem contemplações todo aquele que se «deixar seduzir» (como às vezes acontece) pela especulação e se converter de combatente pela causa do povo em saqueador; suficientemente seguros e fiéis à revolução para suportar organizadamente todo o peso da cruzada nas diferentes regiões do país, com o objetivo de instaurar a ordem, reforçar os órgãos locais do Poder Soviético e controlar por toda parte cada pud do trigo, cada pud de combustível.

Isto é mais difícil do que se portar heroicamente alguns dias, sem abandonar o lugar de residência, sem participar da cruzada, limitando-se a uma insurreição relâmpago contra o monstro idiota Romanov ou o tonto e vaidoso Kerenski. O heroísmo do trabalho de organização, prolongado e tenaz, em escala nacional, é incomensuravelmente mais difícil que o das insurreições; mas, em troca, é incomensuravelmente mais elevado. Não obstante, a força dos partidos operários e da classe operária consistiu sempre em que enfrentam o perigo cara a cara, audaz, direta e francamente, sem temor de reconhecê-lo; em que pesam com serenidade as forças existentes em «seu» campo e no campo «inimigo», o dos exploradores. A revolução avança, desenvolve-se e cresce. Crescem também nossas tarefas. Crescem a extensão e a profundidade da luta. O verdadeiro e principal prenúncio do socialismo consiste em distribuir acertadamente os cereais e o combustível, em aumentar sua produção, em estabelecer um registro e um controle rigorosos por parte dos operários em escala nacional. Isto já não é uma tarefa «geral da revolução», mas uma tarefa precisamente comunista, a tarefa em que os trabalhadores e os pobres devem travar o combate decisivo contra o capitalismo.

Vale a pena dedicar todas as forças a essa batalha; é certo quo as dificuldades são grandes, mas grande é também a causa — pela qual lutamos — de pôr fim à opressão e à exploração.

Quando o povo passa fome e a paralisação do trabalho provoca prejuízos cada vez mais terríveis, aquele que culta um só pud do trigo que sobra, que priva o Estado de um pud de combustível, é um criminoso do pior quilate.

Em momentos como os atuais — e para a autêntica sociedade comunista isso é sempre certo —, cada pud de trigo e de combustível é uma verdadeira coisa sagrada, muito superior às que são esgrimidas pelos padres para enganar os patetas, prometendo-lhes o reino dos céus como recompensa pela escravidão na terra. É, para despojar esta verdadeira coisa sagrada de qualquer vestígio de «santidade» clerical, é preciso apoderar-se dela na prática, conseguir de fato sua distribuição correta, recolher absolutamente todas as sobras de cereais, sem exceção, na qualidade de reservas do Estado, limpar todo o país das sobras de cereais escondidos ou não recolhidos, é preciso utilizar o máximo de forças, com mão firme de operário, para aumentar a produção de combustível e conseguir a sua mais estrita economia, a mais estrita ordem em seu transporte e consumo.

Necessitamos de uma «cruzada» em massa dos operários avançados a cada lugar em que se produzem cereais e combustíveis, a cada ponto importante de destino e distribuição dos mesmos, para intensificar a energia no trabalho, para decuplicar e ajudar os órgãos locais do Poder Soviético no registro e no controle, para acabar por meio das armas com a especulação, a prevaricação e a desordem. Esta tarefa não é nova. Mais propriamente falando, a história não coloca tarefas novas; ela somente aumenta a magnitude e envergadura das velhas tarefas à medida que aumenta a envergadura da revolução, crescem suas dificuldades e se agiganta a grandeza de suas tarefas de transcendência histórico-universal.

Uma das obras mais ingentes e imorredouras da Revolução de Outubro — da Revolução Soviética — está em que o operário avançado, como dirigente das massas pobres, como chefe das massas trabalhadoras do campo, como edificador do Estado do trabalho, «voltou-se para o povo». Petrogrado enviou ao campo milhares e milhares dos seus melhores operários; o mesmo foi feito por outros centros proletários. Os destacamentos de combatentes contra os Kaledin e os Dutov ou os grupos de abastecimento não são uma novidade. A tarefa consiste unicamente em que a proximidade da catástrofe, a gravidade da situação, obriga a fazer dez vezes mais do quo antes.

O operário, ao converter-se em chefe avançado das massas pobres, não se tornou um santo. Conduzia o povo para a frente, mas, ao mesmo tempo, era contaminado pelas enfermidades inerentes à decomposição pequeno-burguesa. Quanto menor era o número de destacamentos integrados pelos operários melhor organizados, mais conscientes, disciplinados e firmes, tanto maior era a frequência com que se corrompiam, tanto mais frequentes eram os casos em que a psicologia do pequeno proprietário do passado triunfava sobre a consciência proletária, comunista, do futuro.

Ao se iniciar a revolução comunista, a classe operária não pôde despojar-se de um só golpe das debilidades e dos vícios deixados como herança pela sociedade dos latifundiários e capitalistas, a sociedade dos exploradores e parasitas, a sociedade baseada no interesse sórdido e no lucro pessoal de uns poucos à custa da miséria dos demais. Mas a classe operária pode vencer — e, afinal de contas, vencerá segura e indefectivelmente — o velho mundo, seus vícios e debilidades, se se lançam contra o inimigo novos e novos destacamentos operários, cada vez mais numerosos e com maior experiência, cada vez mais temperados nas dificuldades da luta.

Essa, precisamente essa, é a situação hoje existente na Rússia. Isoladamente, com ações desperdiçadas, não é possível vencer a fome nem o desemprego. Precisamos de uma «cruzada» em massa dos operários avançados a todos os confins do imenso país. É necessário dez vezes mais destacamentos de ferro do proletariado consciente e fiel sem reservas ao comunismo. Assim, venceremos a fome e o desemprego. Assim levaremos a revolução até ao verdadeiro umbral do socialismo. Assim, poderemos, inclusive, fazer uma guerra defensiva vitoriosa contra os imperialistas rapaces.

N. Lênin 22/V/1918


Inclusão: 11/02/2022