Palavras Proféticas

V. I. Lénine

2 de Julho de 1918

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Publicado: no Pravda nº 133, de 2 de Julho de 1918
Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1985, t3, pp 454-459.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.36, pp. 472-478.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.

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Hoje não se acredita em milagres, graças a Deus. A profecia miraculosa é uma história. Mas a profecia científica é um facto. E nos nossos dias, quando se pode encontrar muito frequentemente um vergonhoso desalento ou desespero, é útil lembrar uma profecia científica que se confirmou.

Friedrich Engels teve ocasião em 1887 de escrever sobre a futura guerra mundial no prefácio à brochura de Sigismund Borkheim Em Memória dos Arquipatriotas Alemães de 1806-1807 (Zur Erinnerung für die deutschen Mordspatrioten 1806-1807). (Esta brochura é o número XXIV da Biblioteca Social-Democrata, publicada em 1888 em Göttingen-Zurique.)

Eis o juízo de Friedrich Engels, há mais de trinta anos, sobre a futura guerra mundial:

«... Para a Prússia-Alemanha já não é possível uma guerra que não seja uma guerra mundial, e sem dúvida uma guerra mundial de uma dimensão e violência até agora nunca suspeitada. De oito a dez milhões de soldados estrangular-se-ão uns aos outros e com isso devorarão toda a Europa, como nem uma nuvem de gafanhotos. A devastação da Guerra dos Trinta Anos comprimida em três ou quatro anos e estendida a todo o continente; fome, epidemias, embrutecimento geral do exército e das massas populares, trazido pela aguda miséria; confusão irremediável do nosso mecanismo artificial no comércio, na indústria e no crédito, terminando em banca rota; colapso dos velhos Estados e da sua tradicional sabedoria estatal, colapso tal que as coroas rolarão às dúzias pelas calçadas e não haverá ninguém que as apanhe; absoluta impossibilidade de prever como é que tudo isto acabará e quem é que sairá vencedor da luta; só um resultado absolutamente seguro: a exaustão geral e o estabelecimento das condições para a vitória final da classe operária.

«Esta é a perspectiva quando o sistema de mútua competição em armamentos, levado ao extremo, dá finalmente os seus frutos inevitáveis. Eis onde, senhores príncipes e estadistas, na vossa sabedoria conduzistes a velha Europa. E se nada vos resta senão abrir a última grande dança da guerra, para nós está bem (uns kann es recht sein). A guerra pode talvez empurrar-nos temporariamente para plano recuado, pode retirar-nos muitas posições já conquistadas. Mas se libertais forças que depois já não sereis capazes de controlar, aconteça o que acontecer no fim da tragédia estareis arruinados, e a vitória do proletariado ou já terá sido alcançada ou é de qualquer modo (doch) inevitável.» - Londres, 15 de Dezembro de 1887. Friedrich Engels

Que profecia genial! E como é infinitamente rica de ideais cada frase desta análise de classe precisa, clara, breve e científica! Quanto poderiam tirar daqui aqueles que cedem agora a uma vergonhosa incredulidade, desalento, desespero, se... se as pessoas que estão habituadas a rastejar perante a burguesia ou que se deixam assustar soubessem pensar, fossem capazes de pensar!

Uma parte daquilo que Engels predisse aconteceu diferentemente: melhor fora que o mundo e o capitalismo não tivessem mudado em trinta anos de desenvolvimento imperialista furiosamente rápido. Mas o que é mais espantoso é que tanto daquilo que Engels predisse aconteça «à letra». Porque Engels fez uma análise de classe irrepreensivelmente precisa, e as classes e as suas relações não mudaram.

«... A guerra pode talvez empurrar-nos temporariamente para plano recuado...» As coisas aconteceram precisamente segundo esta linha, mas foram ainda mais longe e foram ainda piores: uma parte dos sociais-chauvinistas «empurrados para trás» e dos seus irresolutos «semiadversários», os kautskistas, puseram-se a louvar o seu movimento para trás e transformaram-se em traidores directos ao socialismo.

«... A guerra pode talvez retirar-nos muitas posições já conquistadas...» Toda uma série de posições «legais» foram retiradas à classe operária. Em contrapartida, ela é temperada pelas provações e recebe lições cruéis, mas úteis de organização ilegal, de luta ilegal, de preparação das suas forças para o assalto revolucionário.

«... As coroas rolarão às dúzias...» Algumas coroas já rolaram, e uma delas é tal que vale dúzias de outras: a coroa do autocrata de todas as Rússias, Nicolau Románov.

«... Absoluta impossibilidade de prever como é que tudo isto acabará...» Depois de quatro anos de guerra, esta absoluta impossibilidade, se nos é permitido exprimirmo-nos assim, é ainda mais absoluta.

«... Confusão irremediável do nosso mecanismo artificial do comércio, da indústria e do crédito...» Ao fim do quarto ano de guerra isto manifestou-se completamente num dos Estados maiores e mais atrasados arrastados pelos capitalistas para a guerra - a Rússia. Mas a fome crescente na Alemanha e na Áustria, a falta de roupas, de matérias-primas, o desgaste dos meios de produção não mostrarão que a mesma situação avança de modo imensamente rápido para outros países?

Engels desenha as consequências causadas apenas por uma guerra «externa»; ele não se refere a uma guerra interna, isto é, civil, que ainda nenhuma grande revolução da história evitou, sem a qual nenhum marxista sério concebeu a transição do capitalismo para o socialismo. E se a guerra externa ainda pode durante um certo tempo arrastar-se sem provocar uma «confusão irremediável» no «mecanismo artificial» do capitalismo, é evidente que a guerra civil não é de modo nenhum concebível sem essa consequência.

Que estupidez, que irresolução - para não dizer serviço interessado à burguesia - manifestam aqueles que, continuando a intitular-se «socialistas», tal como os nossos novojiznistas(1*), mencheviques, socialistas-revolucionários de direita, etc., apontam maldosamente a manifestação desta «confusão irremediável», culpando de tudo o proletariado revolucionário, o poder soviético, a «utopia» da passagem para o socialismo. A «confusão», a razrukha(2*), para usar a bela expressão russa, é causada pela guerra. Não pode haver uma guerra dura sem ruína. Não pode haver guerra civil, condição necessária e acompanhante da revolução socialista, sem ruína. Renunciar à revolução, ao socialismo, «devido» à ruína significa apenas manifestar a sua falta de princípios e passar de facto para o lado da burguesia.

«... Fome, epidemias, embrutecimento geral do exército e das massas populares, trazido pela aguda miséria...»

Como Engels tira simples e claramente esta conclusão incontestável, evidente para quem quer que seja capaz de pensar pelo menos um pouco nas consequências objectivas de uma guerra dura e dolorosa de muitos anos. E como são espantosamente estúpidos os numerosos «sociais-democratas» e pseudo-«socialistas» que não querem ou não são capazes de reflectir nesta ideia simplicíssima.

Será concebível uma guerra de muitos anos sem embrutecimento tanto do exército como das massas populares? Claro que não. Durante alguns anos, se não durante toda uma geração, essa consequência da longa guerra será absolutamente inevitável. Mas os nossos «homens enconchados», choramingas da intelectualidade burguesa que se intitulam «sociais-democratas» e «socialistas», fazem coro com a burguesia, imputando à revolução as manifestações de embrutecimento ou a inevitável severidade das medidas de luta contra casos particularmente agudos de embrutecimento - embora seja claro como a luz do dia que este embrutecimento foi criado pela guerra imperialista e que nenhuma revolução pode libertar-se dessas consequências sem uma luta longa e sem uma série de severas medidas repressivas.

Eles estão dispostos a admitir «teoricamente» uma revolução do proletariado e de outras classes oprimidas, os nossos adocicados escritores do Nóvaia Jizn, do Vperiod ou do Delo Naroda, desde que essa revolução caia do céu e não nasça e cresça na terra, ensopada em sangue nos quatro anos de massacre imperialista dos povos, entre milhões e milhões de pessoas esgotadas, atormentadas e desmoralizadas neste massacre.

Eles ouviram dizer e aceitaram «teoricamente» que se deve comparar uma revolução com um parto, mas quando se chegou aos factos eles acobardaram-se e transformaram o seu choramingar de almas reles num coro com os maldosos ataques da burguesia contra a insurreição do proletariado. Tome-se a descrição do parto na literatura, as descrições em que o objectivo do autor era reconstituir com verdade toda a dureza, todas as dores, todos os horrores, deste acto, por exemplo La joie de vivre (A Alegria de Viver) de Emile Zola ou Notas de Um Médico de Veressáev. O nascimento de uma pessoa está ligado a um acto que transforma a mulher num pedaço de carne torturado, desfigurado, enlouquecido pela dor, sangrento, semimorto. Mas alguém concordaria em reconhecer como humano o «indivíduo» que visse só isto no amor, nas suas consequências, na transformação da mulher em mãe? Quem é que, por este motivo, renunciaria ao amor e à procriação?

O parto pode ser fácil e pode ser difícil. Marx e Engels, fundadores do socialismo científico, falaram sempre das longas dores de parto inevitavelmente ligadas à passagem do capitalismo para o socialismo. E Engels, ao analisar as consequências de uma guerra mundial, descreve simples e claramente o facto incontestável e evidente de que uma revolução que se siga à guerra, ligada à guerra (e mais ainda - acrescentaremos nós - que eclodiu durante a guerra, obrigada a crescer e aguentar-se durante uma guerra mundial que a rodeia), que essa revolução é um caso particularmente difícil de parto.

Tendo clara consciência deste facto, Engels fala com particular cautela do caso de o socialismo ser dado à luz por uma sociedade capitalista que perece numa guerra mundial. «Só um resultado [da guerra mundial]», diz ele, «é absolutamente seguro: a exaustão geral e o estabelecimento das condições para a vitória final da classe operária.»

Esta ideia é expressa ainda mais claramente no fim do prefácio que estamos a examinar:

«... No fim da tragédia estareis [capitalistas e latifundiários, reis e estadistas da burguesia] arruinados, e a vitória do proletariado ou já terá sido alcançada ou é de qualquer modo inevitável.»

Os partos difíceis aumentam muitas vezes o perigo de doença mortal ou de desenlace mortal. Mas se indivíduos podem morrer de parto, a nova sociedade gerada pelo velho sistema não pode morrer, e acontecerá apenas que o seu nascimento será mais doloroso, mais prolongado, o seu crescimento e desenvolvimento mais lentos.

O fim da guerra ainda não chegou. A exaustão geral já chegou. Dos dois resultados imediatos da guerra previstos condicionalmente por Engels (ou a vitória já alcançada da classe operária ou a criação de condições para que ela seja inevitável, apesar de todas as dificuldades), destas duas condições agora, em meados de 1918, existem ambas.

Num país, o menos desenvolvido dos países capitalistas, a vitória da classe operária já foi alcançada. Nos restantes, com um esforço e dores sem precedentes, estão a criar-se as condições que tornam esta vitória «de qualquer modo inevitável».

Que os choramingas «socialistas» crocitem, que a burguesia espume e troveje. Só pessoas que fechem os olhos para não ver e tapem os ouvidos para não ouvir é que podem deixar de notar que começaram em todo o mundo as dores de parto da velha sociedade capitalista, prenhe do socialismo. O nosso país, lançado temporariamente para a vanguarda da revolução socialista pela marcha dos acontecimentos, sofre agora as dores particularmente duras do primeiro período do parto que começou. Temos todas as razões para olhar com completa segurança e absoluta confiança o futuro, que nos prepara novos aliados, novas vitórias da revolução socialista numa série de países mais avançados. Temos o direito de estar orgulhosos e de nos considerarmos felizes por termos tido ensejo de sermos os primeiros a abater num recanto do globo terrestre essa fera selvagem, o capitalismo, que ensopou a terra de sangue, levou a humanidade à fome e ao embrutecimento e que perecerá inevitavelmente e em breve, por mais monstruosas e ferozes que sejam as manifestações da sua fúria face à morte.

23 de Junho de 1918.


Notas de rodapé:

(1*) Do nome do jornal Nóvaia Jizn (jornal diário publicado em Petrogrado de Abril de 1917 a Julho de 1918. Os inspiradores da publicação do jornal eram os mencheviques internacionalistas, ala pouco numerosa do partido menchevique que durante a Primeira Guerra Mundial assumiu uma posição internacionalista inconsequente. O jornal acolheu com hostilidade a instauração do poder soviético.. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(2*) Ruína, desorganização económica. (N. Ed.) (retornar ao texto)

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Inclusão 23/01/2019