As Eleições para a Assembleia Constituinte e a Ditadura do Proletariado

V. I. Lénine

16 de dezembro de 1919

Link Avante

Escrito: em 16 de Dezembro de 1919

Publicado: em Dezembro de 1919 na revista Kommunistitcheski Internacional nº 7-8

Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t3, pp 228-244.

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.40, pp. 1-40.

Transcrição e HTML: Manuel Gouveia

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.


capa

Na colectânea dos socialistas-revolucionários Um Ano de Revolução Russa 1917-1918 (Moscovo, 1918, Editora de Moscovo Zemliá i Vólia) está inserido o artigo notavelmente interessante de N. V. Sviatítski «Os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte de Toda a Rússia (prefácio)». O autor dá números de 54 círculos eleitorais de um total de 79.

No quadro da investigação do autor entraram quase todas as províncias da Rússia europeia e da Sibéria. Não entraram neste número as províncias de Olonets, da Estlândia, de Kaluga, da Bessarábia, de Podolsk, de Orenburgo, da Iakútia e do Don.

Citaremos primeiro os resultados fundamentais publicados por N. V. Sviatítski, examinando depois as conclusões políticas que decorrem desses dados.

I

Em 54 círculos deram entrada, ao todo, em Novembro de 1917, 36 262 560 votos. O autor cita o número de 36 257 960, distribuído por 7 regiões (mais o exército e a marinha), mas o resultado dos números citados por ele segundo os diferentes partidos dá precisamente o número indicado por mim.

A distribuição segundo os partidos é a seguinte: os socialistas-revolucionários russos obtiveram 16,5 milhões de votos e, se se juntar os socialistas-revolucionários de outras nações (ucranianos, muçulmanos, etc.), o número é de 20,9 milhões, isto é, 58%.

Os mencheviques obtiveram 668 064 votos e, se se juntar aqui os grupos análogos dos «socialistas populares» (312 mil), do Edinstvo (25 mil), dos cooperativistas (51 mil), dos sociais-democratas ucranianos (95 mil), dos socialistas ucranianos (507 mil), dos socialistas alemães (44 mil) e dos socialistas finlandeses (14 mil), obteremos o resultado de 1,7 milhões.

Os bolcheviques obtiveram 9 023 963 votos.

Os democratas-constitucionalistas obtiveram 1 856 639 votos. Juntando-lhes a «união dos proprietários agrícolas e agrários» (215 mil), os «grupos de direita» (292 mil), os velhos crentes (73 mil), os nacionalistas judeus (550 mil), muçulmanos (576 mil), bachquires (195 mil), letões (67 mil), polacos (155 mil), cossacos (79 mil), alemães (130 mil), bielorrussos (12 mil) e «listas de diferentes grupos e organizações» (418 mil), obtemos o resultado dos partidos latifundiários e burgueses de 4,6 milhões.

É sabido que os socialistas-revolucionários e os mencheviques formavam um bloco durante todo o período da revolução, de Fevereiro a Outubro de 1917. Além disso, todo o desenvolvimento dos acontecimentos, tanto durante esse período como depois dele, mostrou claramente que ambos esses partidos representam em conjunto a democracia pequeno-burguesa, que erradamente se considera e se diz socialista, como todos os partidos da II Internacional.

Agrupando os três grupos fundamentais de partidos nas eleições para a Assembleia Constituinte, obtemos o resultado seguinte:

partido do proletariado (bolcheviques) 9,02 milhões =25%
partidos da democracia pequeno-burguesa (socialistas-revolucionários, mencheviques, etc.) 22,61 milhões =62%
partidos dos latifundiários e da burguesia (democratas-constitucionalistas, etc.) 4.62 milhões =13%
Total 36,26 milhões =100%

Citaremos agora os dados apresentados por N. V. Sviatítski por regiões:

Números de votos entrados em milhares

Regiões (1*) Pelos socialistas-revolucionários   %   Pelos bolcheviques   %   Pelos democratas-nacionalistas   %    Total 
(e o exército em separado) (russos)            
Norte 1140 38 1177,2 40 393 13 2975,1
Central-Industrial 1987,9 38 2305,6 44 550,2 10 5242,5
Volga-Terras Negras 4733,9 70 1115,6 16 267 4 6764,3
Oeste 1242,1 43 1282,2 44 48,1 2 2961
Leste-Urales 1547,7 43 (62%) (2*) 443,9 12 181,3 5 3583,5
Sibéria 2094,8 75 273,9 10 87,5 3 2786,7
Ucrânia 1878,1 25 (77%) (3*) 754 10 277,5 4 7581,3
Exército e Marinha 1885,1 43 1671,3 38 51,9 1 4363,6

Por estes dados é evidente que os bolcheviques eram, quando das eleições para a Assembleia Constituinte, o partido do proletariado, e os socialistas-revolucionários eram o partido do campesinato. Nas regiões puramente camponesas, grã-russas (Volga-Terras Negras, Sibéria, Leste-Urales) e ucranianas, os socialistas-revolucionários tiveram 62% — 77% dos votos. Nos centros industriais, os bolcheviques tiveram o predomínio sobre os socialistas-revolucionários. Este predomínio é diminuído nos dados apresentados por N. V. Sviatítski por distritos, pois ele junta os círculos mais industriais com os poucos industriais e com os absolutamente não industriais. Os dados segundo as províncias citados por Sviatítski em relação aos partidos dos socialistas-revolucionários, dos bolcheviques, dos democratas-constitucionalistas e também dos «grupos nacionais e outros», mostram, por exemplo, o seguinte:

Na região Norte o predomínio dos bolcheviques parece insignificante: 40% contra 38%. Mas nessa região estão juntos círculos não industriais (as províncias de Arkhánguelsk, Vólogda, Nóvgorod, Pskov), nos quais predominaram os socialistas-revolucionários, e os industriais: Petrogrado capital — bolcheviques 45% (do número de votos), socialistas-revolucionários 16%; província de Petrogrado — bolcheviques 50%, socialistas-revolucionários 26%; Livónia — bolcheviques 72%, socialistas-revolucionários 0.

Dentre as províncias da região Central-Industrial, a de Moscovo deu 56% aos bolcheviques, 25% aos socialistas-revolucionários; o círculo de Moscovo-capital — 50% aos bolcheviques, 8% aos socialistas-revolucionários; a província de Tver — 54% aos bolcheviques, 39% aos socialistas-revolucionários; Vladímir — 56% aos bolcheviques, 32% aos socialistas-revolucionários.

Assinalemos de passagem como são ridículos, face a estes factos, os discursos segundo os quais os bolcheviques teriam tido e têm por si a «minoria» do proletariado! Ouvimos tais discursos tanto dos mencheviques (668 mil votos, e, juntando a Transcaucásia, mais 700-800 mil votos contra 9 milhões dos bolcheviques) como dos sociais-traidores da II Internacional.

II

Como, pois, podia dar-se um tal milagre como a vitória dos bolcheviques, que tinham 1/4 dos votos, sobre os democratas pequeno-burgueses em aliança (coligação) com a burguesia, que tinham em conjunto com ela 3/4 dos votos?

Porque agora, após dois anos de ajuda da Entente — da mundialmente poderosa Entente — a todos os inimigos do bolchevismo, seria simplesmente ridículo negar o facto da vitória.

A questão está em que o raivoso ódio político dos que foram derrotados, incluindo todos os partidários da II Internacional, não lhes permite sequer colocar de forma séria a interessantíssima questão histórica e política das causas da vitória dos bolcheviques. A questão está em que o «milagre» só o é do ponto de vista da democracia pequeno-burguesa vulgar, toda a profundidade da ignorância e dos preconceitos dessa democracia é desmascarada por esta questão e pela resposta a ela.

Do ponto de vista da luta de classes e do socialismo, desse ponto de vista abandonado pela II Internacional, a questão resolve-se de forma incontestável.

Os bolcheviques venceram, antes de mais, porque tinham por si a maioria esmagadora do proletariado, e nele a parte mais consciente, enérgica e revolucionária, uma verdadeira vanguarda dessa classe avançada.

Tomemos as duas capitais, Petrogrado e Moscovo. Nelas deram entrada, ao todo, l 765 100 votos para a Assembleia Constituinte. Deles obtiveram:

socialistas-revolucionários    218,0 milhares
bolcheviques    837,0 milhares
democratas-constitucionalistas    515,4 milhares

Por mais que os democratas pequeno-burgueses, que se dizem socialistas e sociais-democratas (os Tchernov, os Mártov, os Kautsky, os Longuet, os MacDonald e Cª), quebrem a cabeça perante as deusas da «igualdade», do «sufrágio universal», da «democracia», da «democracia pura» ou da «democracia consequente», não desaparecerá por isso o facto económico e político da desigualdade entre a cidade e o campo.

Isto é um facto inevitável sob o capitalismo em geral e durante a transição do capitalismo para o comunismo em particular.

A cidade não pode ser igual ao campo. O campo não pode ser igual à cidade nas condições históricas desta época. A cidade leva inevitavelmente atrás de si o campo. O campo anda inevitavelmente atrás da cidade. A questão é apenas qual a classe, das classes «da cidade», que saberá levar atrás de si o campo, que conseguirá cumprir esta tarefa, e que formas tomará essa direcção da cidade.

Os bolcheviques tinham consigo em Novembro de 1917 a gigantesca maioria do proletariado. O partido que entrava em concorrência com eles, no seio do proletariado, o partido dos mencheviques, foi derrotado completamente nessa época (9 milhões de votos contra 1,4 se se somar 668 mil e 700-800 mil da Transcaucásia). Além disso, esse partido foi derrotado durante a luta de quinze anos (1903-1917), que temperou, esclareceu, organizou a vanguarda do proletariado, forjando a partir dela uma vanguarda verdadeiramente revolucionária. Além disso, a primeira revolução, a de 1905, preparou o desenvolvimento ulterior, determinou praticamente as relações mútuas de ambos os partidos, desempenhou o papel de ensaio geral em relação aos grandes acontecimentos dos anos 1917-1919.

Os democratas pequeno-burgueses que se dizem «socialistas» da II Internacional gostam de eludir a questão histórica mais séria com frases adocicadas acerca da utilidade da «unidade» do proletariado. Por detrás dessa fraseologia adocicada eles esquecem-se do facto histórico da acumulação do oportunismo no movimento operário entre 1871 e 1914, esquecem-se de (ou não querem) reflectir nas causas da falência do oportunismo em Agosto de 1914, nas causas da cisão do socialismo internacional nos anos 1914-1917.

Sem a preparação mais séria e profunda da parte revolucionária do proletariado para expulsar e esmagar o oportunismo é absurdo mesmo pensar na ditadura do proletariado. Os chefes do partido da social-democracia alemã «independente», do socialismo francês, etc., que querem agora escapar por meio do reconhecimento verbal da ditadura do proletariado, deveriam meter bem na cabeça essa lição da revolução russa.

Continuemos. Os bolcheviques tinham por si não só a maioria do proletariado, não só a vanguarda revolucionária do proletariado temperada numa luta longa e tenaz contra o oportunismo. Eles tinham, se é permissível empregar um termo militar, um poderoso «grupo de choque» nas capitais.

Ter uma superioridade de forças esmagadora no momento decisivo no ponto decisivo — esta «lei» dos êxitos militares é também a lei do êxito político, sobretudo nessa guerra de classes encarniçada e tempestuosa que se chama revolução.

As capitais ou, em geral, os maiores centros industriais e comerciais (aqui, na Rússia, estes conceitos coincidiam, mas nem sempre coincidem) decidem, em grau considerável, o destino político do povo — na condição, claro está, de os centros serem apoiados por suficientes forças locais e do campo, ainda que esse apoio não seja imediato.

Em ambas as capitais, em ambos os principais centros comerciais e industriais da Rússia os bolcheviques tinham uma superioridade de forças esmagadora, decisiva. Nós tínhamos aqui quase quatro vezes mais do que os socialistas-revolucionários. Nós tínhamos aqui mais do que os socialistas-revolucionários e os democratas-constitucionalistas tomados em conjunto. Os nossos adversários estavam, além disso, fraccionados, pois a «coligação» dos democratas-constitucionalistas com os socialistas-revolucionários e mencheviques (os mencheviques tiveram, tanto em Petrogrado como em Moscovo, apenas 3% dos votos) estava extremamente comprometida entre as massas trabalhadoras. Não se podia falar naquele momento de nenhuma unidade verdadeira dos socialistas-revolucionários e mencheviques com os democratas-constitucionalistas contra nós (4*) . Como se sabe, em Novembro de 1917 até os chefes dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, cem vezes mais próximos da ideia dum bloco com os democratas-constitucionalistas do que os operários e camponeses socialistas-revolucionários e mencheviques, até esses chefes pensavam (e negociavam connosco) numa coligação com os bolcheviques sem os democratas-constitucionalistas!

Nós conquistámos seguramente as capitais em Outubro-Novembro de 1917, tendo uma superioridade esmagadora de forças e a mais sólida preparação política, tanto no sentido da acumulação, concentração, instrução, comprovação e têmpera dos «exércitos» bolcheviques, como no sentido da decomposição, do enfraquecimento, do desmembramento, da desmoralização dos «exércitos» do «inimigo».

E uma vez que tínhamos a possibilidade de conquistar seguramente com um golpe rápido e decisivo ambas as capitais, ambos os centros de toda a máquina capitalista de Estado (tanto no aspecto económico como político), nós, apesar de uma raivosa resistência da burocracia e da «intelectualidade», apesar de sabotagem, etc., pudemos, com a ajuda do aparelho central do poder estatal, provar com os factos às massas trabalhadoras não proletárias que o proletariado é o seu único aliado, amigo e dirigente seguro.

III

Mas antes de passarmos a esta questão, a mais importante — a questão da atitude do proletariado para com as massas trabalhadoras não proletárias — é preciso determo-nos ainda no exército.

O exército absorveu durante a guerra imperialista toda a flor das forças populares, e se a canalha oportunista da II Internacional (não só os sociais-chauvinistas, isto é, os Scheidemann e os Renaudel, que passaram directamente para o lado da «defesa da pátria», mas também os «centristas») fortalecia, com as suas palavras e com os seus actos, a subordinação do exército à direcção dos bandidos imperialistas tanto do grupo alemão como do grupo anglo-francês, os verdadeiros revolucionários proletários nunca esqueceram as palavras de Marx proferidas em 1870: «a burguesia ensinará o proletariado a manejar as armas»! Só os traidores austro-alemães e anglo-franco-russos ao socialismo podiam falar na «defesa da pátria» numa guerra imperialista, isto é, numa guerra de pilhagem de ambos os lados, enquanto os revolucionários proletários dedicavam toda a atenção (a partir de Agosto de 1914) à revolucionarização do exército, à sua utilização contra os bandidos imperialistas da burguesia, à transformação da guerra injusta e de rapina entre dois grupos de abutres imperialistas numa guerra justa e legítima dos proletários e das massas trabalhadoras oprimidas de cada país contra a «sua» burguesia «nacional».

Os traidores ao socialismo não prepararam de 1914 a 1917 a utilização dos exércitos contra os governos imperialistas de cada nação.

Os bolcheviques prepararam isto com toda a sua propaganda, agitação e trabalho ilegal de organização a partir de Agosto de 1914. Claro está que os traidores ao socialismo, os Scheidemann e os Kautsky de todas as nações, se limitavam, a esse respeito, às frases sobre a decomposição do exército pela propaganda bolchevique, mas nós orgulhámo-nos de termos cumprido o nosso dever, decompondo as forças do nosso inimigo de classe, tirando-lhe as massas armadas dos operários e camponeses para lutar contra os exploradores.

Os resultados do nosso trabalho fizeram-se sentir, entre outras coisas, também nas eleições para a Assembleia Constituinte em Novembro de 1917, nas quais participou na Rússia também o exército.

Eis os resultados principais desta votação, como os cita N. V. Sviatítski:

Número de votos (em milhares) que deram entrada em Novembro de 1917 nas eleições para a Assembleia Constituinte

Unidades do exército e da marinha   Socialistas-revolucionários     Bolcheviques     Democratas-constitucionalistas   Grupos nacionais e outros Total
Frente Norte 240 480 ? 60 (5*) 780
Frente Oeste 180,6 653,4 16,7 125,2 976
Frente Sudoeste 402,9 300,1 13,7 290,6 1007,4
Frente Romena 679,4 167 21,4 260,7 1128,6
Frente do Cáucaso 360 60 ?   420
Esquadra do Báltico   (120) (6*)     (120)
Esquadra do Mar Negro 22,2 10,8   19,5 52,5
Total 1885,1 1791,3 51,8 + ? 756 4364,5 + (120) + ?

Balanço: 1 885 100 votos pelos socialistas-revolucionários, 1 671 300 pelos bolcheviques. E se a estes se acrescentar 120 000 (aproximadamente) da Esquadra do Báltico, obtemos 1791300 votos pelos bolcheviques.

Consequentemente, os bolcheviques obtiveram pouco menos do que os socialistas-revolucionários.

O exército, consequentemente, era já por volta de Outubro-Novembro de 1917 meio bolchevique.

Sem isso não poderíamos vencer.

Mas, tendo quase metade dos votos no exército em geral, nós tínhamos uma superioridade esmagadora nas frentes mais próximas das capitais e, em geral, nas frentes situadas não demasiado longe. Se se descontar a Frente do Cáucaso, os bolcheviques têm, em geral, a superioridade em relação aos socialistas-revolucionários. E se se tomar a Frente Norte e a Frente Oeste, os bolcheviques têm mais de 1 milhão de votos, contra 420 mil dos socialistas-revolucionários.

Consequentemente, também no exército os bolcheviques tinham já em Novembro de 1917 o «grupo de choque» político, o qual lhes assegurava uma superioridade esmagadora de forças no ponto decisivo no momento decisivo. Estava inteiramente fora de questão qualquer resistência por parte do exército contra a Revolução de Outubro do proletariado, contra a conquista do poder político pelo proletariado, quando nas Frentes Norte e Oeste os bolcheviques tinham uma superioridade gigantesca, enquanto nas outras Frentes, afastadas do centro, os bolcheviques tinham tempo e possibilidade de conquistar os camponeses ao partido socialista-revolucionário, do que se tratará mais adiante.

IV

Nós estudámos, na base dos dados das eleições para a Assembleia Constituinte, três condições da vitória do bolchevismo: 1) uma maioria esmagadora entre o proletariado; 2) quase metade do exército; 3) uma superioridade esmagadora de forças no momento decisivo nos pontos decisivos, a saber: nas capitais e nas frentes do exército próximas do centro.

Mas essas condições teriam podido dar apenas uma vitória muito breve e pouco sólida se os bolcheviques não tivessem podido atrair para o seu lado a maioria das massas trabalhadoras não proletárias, conquistá-las aos socialistas-revolucionários e aos outros partidos pequeno-burgueses.

O principal reside precisamente nisto.

E a fonte principal da não compreensão da ditadura do proletariado por parte dos «socialistas» (leia-se: os democratas pequeno-burgueses) da II Internacional consiste no facto de eles não compreenderem que o poder de Estado nas mãos de uma classe, do proletariado, pode e deve tornar-se um instrumento para atrair as massas trabalhadoras não proletárias para o lado do proletariado, um instrumento para conquistar essas massas à burguesia e aos partidos pequeno-burgueses.

Os senhores «socialistas» da II Internacional, cheios de preconceitos pequeno-burgueses, esquecendo-se do principal na doutrina de Marx sobre o Estado, encaram o poder de Estado como se este fosse uma coisa sagrada, um ídolo ou a resultante de eleições formais, o absoluto da «democracia consequente» (ou sei lá como se chamam outros disparates do género). Eles não vêem no poder de Estado simplesmente um instrumento que diferentes classes podem e devem utilizar (e saber utilizar) para os seus objectivos de classe.

A burguesia utilizava o poder de Estado como instrumento da classe dos capitalistas contra o proletariado, contra todos os trabalhadores. Assim era nas repúblicas burguesas mais democráticas. Só os traidores ao marxismo «esqueceram» isso.

O proletariado deve (tendo reunido «grupos de choque» políticos e militares suficientemente fortes) derrubar a burguesia, retirar-lhe o poder de Estado para utilizar este instrumento para os seus objectivos de classe.

E quais são os objectivos de classe do proletariado?

Reprimir a resistência da burguesia.

«Neutralizar» o campesinato e, se for possível, atraí-lo — em todo o caso, a maioria da sua parte trabalhadora, não exploradora — para o seu lado.

Organizar a grande produção mecanizada nas fábricas e meios de produção em geral expropriados à burguesia.

Organizar o socialismo sobre as ruínas do capitalismo.

★ ★ ★

Os senhores oportunistas, incluindo os kautskistas, «ensinam» ao povo, escarnecendo da doutrina de Marx: o proletariado deve primeiro conquistar a maioria por meio do sufrágio universal, receber depois, na base dessa votação da maioria, o poder de Estado e só depois, nessa base duma democracia «consequente» (outros dizem: «pura»), organizar o socialismo.

Mas nós dizemos, na base da doutrina de Marx e da experiência da revolução russa:

o proletariado deve primeiro derrubar a burguesia e conquistar para si o poder de Estado, e depois utilizar esse poder de Estado, isto é, a ditadura do proletariado, como instrumento da sua classe para o objectivo de ganhar a simpatia da maioria dos trabalhadores.

★ ★ ★

De que maneira o poder de Estado nas mãos do proletariado pode tornar-se instrumento da sua luta de classe para influenciar as massas trabalhadoras não proletárias? para as atrair para o lado do proletariado? para as arrancar, para as conquistar à burguesia?

Em primeiro lugar, o proletariado consegue-o não utilizando o velho aparelho do poder de Estado, mas destruindo-o de alto a baixo, não deixando dele pedra sobre pedra (apesar dos gritos dos filisteus intimidados e das ameaças dos sabotadores) e criando um novo aparelho de Estado. Esse novo aparelho de Estado está adaptado à ditadura do proletariado e à sua luta contra a burguesia pela conquista das massas trabalhadoras não proletárias. Este novo aparelho não é inventado por ninguém, mas surge da luta de classe do proletariado, da sua ampliação e aprofundamento. Este novo aparelho do poder de Estado, o novo tipo do poder de Estado é o Poder Soviético.

O proletariado da Rússia, tendo conquistado o poder de Estado, declarou imediatamente, ao cabo de algumas horas, dissolvido o velho aparelho de Estado (que foi durante séculos adaptado, como mostrou Marx, ao serviço dos interesses de classe da burguesia, mesmo na república mais democrática) e entregou todo o poder aos Sovietes. E nos Sovietes só eram admitidos os trabalhadores e explorados, com a exclusão de todos e quaisquer exploradores.

Dessa maneira, imediatamente, de um só golpe, logo depois da conquista do poder de Estado pelo proletariado, o proletariado conquista à burguesia a enorme massa de partidários dos partidos pequeno-burgueses e «socialistas», porque essa massa são os trabalhadores e explorados, os quais eram enganados pela burguesia (incluindo os seus bajuladores, os Tchernov, os Kautsky, os Mártov e Cª) e que, tendo obtido o Poder Soviético, obtêm pela primeira vez um instrumento de luta de massas pelos seus interesses contra a burguesia.

Em segundo lugar, o proletariado pode e deve, imediatamente ou em todo o caso muito rapidamente, conquistar à burguesia e à democracia pequeno-burguesa as «suas» massas, isto é, as massas que as seguiam — conquistar por meio da satisfação revolucionária das suas necessidades económicas mais essenciais à custa da expropriação dos latifundiários e da burguesia.

A burguesia não pode fazê-lo, por mais «poderoso» que seja o poder de Estado que possua.

O proletariado, logo no dia seguinte à conquista por ele do poder de Estado, pode fazê-lo, pois tem para isso tanto o aparelho (os Sovietes) como os meios económicos (a expropriação dos latifundiários e da burguesia).

Foi precisamente assim que o proletariado da Rússia conquistou aos socialistas-revolucionários o campesinato, e conquistou-o literalmente algumas horas depois de o proletariado ter conquistado o poder de Estado. Pois algumas horas depois de ter alcançado a vitória sobre a burguesia em Petrogrado, o proletariado vitorioso emitiu o «decreto sobre a terra» (7*) , satisfez nesse decreto, inteira e imediatamente, com rapidez, energia e abnegação revolucionárias, todas as necessidades económicas essenciais da maioria dos camponeses, expropriou inteiramente e sem indemnização os latifundiários.

Para provar aos camponeses que os proletários não querem submetê-los e comandá-los, mas sim ajudá-los e ser seus amigos, os bolcheviques vitoriosos não inseriram nem uma palavra sua no «decreto sobre a terra», mas copiaram-no, palavra por palavra, dos mandatos camponeses (os mais revolucionários, claro está), que foram publicados pelos socialistas-revolucionários num jornal socialista-revolucionário.

Os socialistas-revolucionários encolerizaram-se, indignaram-se, irritaram-se, gritaram que «os bolcheviques roubaram o seu programa», mas com isso só se expuseram ao ridículo: belo partido, que foi preciso vencer e expulsar do governo para realizar tudo o que no seu programa era revolucionário, tudo o que era útil para os trabalhadores!

É esta dialéctica que nunca conseguiram compreender os traidores, os estúpidos e os pedantes da II Internacional: o proletariado não pode vencer sem conquistar para o seu lado a maioria da população. Mas limitar ou condicionar essa conquista à obtenção da maioria dos votos nas eleições sob o domínio da burguesia é uma pobreza de espírito completa ou simplesmente enganar os operários. Para conquistar a maioria da população para o seu lado, o proletariado deve, em primeiro lugar, derrubar a burguesia e tomar o poder de Estado nas suas mãos; deve, em segundo lugar, introduzir o Poder Soviético, partindo em pedaços o velho aparelho de Estado, minando assim imediatamente o domínio, o prestígio, a influência da burguesia e dos conciliadores pequeno-burgueses no seio das massas trabalhadoras não proletárias. Deve, em terceiro lugar, acabar com a influência da burguesia e dos conciliadores pequeno-burgueses no seio da maioria das massas trabalhadoras não proletárias pela satisfação revolucionária das suas necessidades económicas à custa dos exploradores.

A possibilidade de tudo isso é dada, naturalmente, apenas por um determinado nível de desenvolvimento capitalista. Sem essa condição fundamental não pode haver a separação do proletariado numa classe especial nem o êxito da sua longa preparação, educação, instrução, comprovação na luta em longos anos de greves, de manifestações, de denúncia e de eliminação dos oportunistas. Sem essa condição fundamental não pode haver aquele papel económico e político dos centros com cujo domínio o proletariado domina todo o poder de Estado ou, mais exactamente, o seu nervo vital, o seu núcleo, o seu nó. Sem essa condição fundamental não pode haver aquela afinidade, proximidade e ligação entre a situação do proletariado e a situação das massas trabalhadoras não proletárias, as quais (afinidade, proximidade, ligação) são indispensáveis à influência do proletariado sobre essas massas, ao êxito da sua acção sobre elas.

V

Continuemos.

O proletariado pode conquistar o poder de Estado, realizar o regime soviético, satisfazer economicamente a maioria dos trabalhadores à custa dos exploradores.

Será isso suficiente para uma vitória completa e definitiva?

Não.

Só a ilusão dos democratas pequeno-burgueses, dos «socialistas» e «sociais-democratas», como seus principais representantes modernos, pode imaginar que as massas trabalhadoras, sob o capitalismo, estão em condições de ganhar uma consciência, uma firmeza de carácter, uma perspicácia suficientemente elevadas e um horizonte político suficientemente amplo para ter a possibilidade de decidir por uma só votação ou, em geral, decidir de antemão, de qualquer forma, sem ter uma longa experiência de luta, que seguirão determinada classe ou determinado partido.

É uma ilusão. É uma historieta adocicada de pedantes e de socialistas adocicados do tipo dos Kautsky, Longuet, MacDonald.

O capitalismo não seria capitalismo se, por um lado, não condenasse as massas a um estado de embrutecimento, de opressão, de medo, de dispersão (o campo!), de ignorância, se ele (capitalismo), por outro lado, não pusesse nas mãos da burguesia um aparelho gigantesco de mentira e engano, de mistificação em massa dos operários e camponeses, do seu embrutecimento, etc.

É por isso que só o proletariado é capaz de levar os trabalhadores do capitalismo para o comunismo. Nem sequer se pode pensar que possa ser resolvido de antemão, pela massa pequeno-burguesa ou semi-pequeno-burguesa dos trabalhadores, a questão política complexíssima: «estar com a classe operária ou com a burguesia». São inevitáveis as vacilações das camadas trabalhadoras não proletárias, é inevitável a sua própria experiência prática que permita comparar a direcção da burguesia e a direcção do proletariado.

E esta circunstância que os admiradores da «democracia consequente» perdem de vista constantemente, imaginando que as questões políticas mais sérias podem ser resolvidas por votações. De facto, essas questões, se são agudas e agravadas pela luta, resolve-as a guerra civil, e nessa guerra tem uma importância gigantesca a experiência das massas trabalhadoras não proletárias (em primeiro lugar, dos camponeses), a experiência de comparação e de confronto por eles do poder do proletariado com o poder da burguesia.

As eleições para a Assembleia Constituinte na Rússia em Novembro de 1917, comparadas com a guerra civil de dois anos, de 1917 a 1919, são extraordinariamente instrutivas a esse respeito.

Vede que distritos se revelaram menos bolcheviques. Em primeiro lugar, os do Leste-Urales e da Sibéria: 12% e 10% dos votos pelos bolcheviques. Em segundo lugar, a Ucrânia: 10% dos votos pelos bolcheviques. Dos restantes distritos, a menor percentagem de votos pelos bolcheviques é dada pelo distrito camponês da Grã-Rússia, o do Volga-Terras Negras, mas mesmo aí foram dados 16% de votos aos bolcheviques.

E eis que precisamente nos distritos onde a percentagem de votos bolcheviques em Novembro de 1917 foi menor, nós observamos o maior êxito dos movimentos contra-revolucionários, das insurreições, da organização das forças da contra-revolução. Precisamente nestes distritos se manteve durante meses e meses o poder de Koltchak e de Deníkine.

Ali onde a influência do proletariado é menor, as vacilações da população pequeno-burguesa manifestaram-se nestes distritos com uma evidência especial:

primeiro, a favor dos bolcheviques, quando estes entregaram a terra e os soldados desmobilizados trouxeram a notícia da paz. Depois, contra os bolcheviques, quando eles, no interesse do desenvolvimento internacional da revolução e da conservação do seu foco na Rússia, aceitaram a Paz de Brest, tendo «ofendido» os sentimentos pequeno-burgueses mais profundos, os sentimentos patrióticos. Os camponeses não gostaram da ditadura do proletariado sobretudo ali onde há maiores excedentes de cereais, quando os bolcheviques mostraram que procurariam, estrita e imperiosamente, a entrega desses excedentes ao Estado segundo preços fixos. O campesinato dos Urales, da Sibéria, da Ucrânia, volta-se para Koltchak e Deníkine.

Depois, a experiência da «democracia» de Koltchak e Deníkine, acerca da qual todos os jornalistas nas regiões ocupadas por Koltchak e Deníkine gritavam em cada número dos jornais dos guardas-brancos, demonstrou aos camponeses que as frases sobre a democracia e a «Constituinte» só servem, na realidade, de cobertura para a ditadura do latifundiário e do capitalista.

Começa uma nova viragem para o bolchevismo: aumentam as insurreições camponesas na retaguarda de Koltchak e de Deníkine. As tropas vermelhas são acolhidas pelos camponeses como libertadores.

No fim de contas, eram precisamente essas vacilações do campesinato, como principal representante da massa pequeno-burguesa dos trabalhadores, que decidiam o destino do Poder Soviético e do poder de Koltchak-Deníkine. Mas até esse «no fim de contas» decorreu um período bastante longo de uma luta dura e de provações dolorosas, que ainda não terminaram na Rússia ao fim de dois anos, não terminaram precisamente na Sibéria e na Ucrânia. E não se pode garantir que elas estejam terminadas definitivamente ainda, digamos, dentro de um ano, mais ou menos.

Os partidários da democracia «consequente» não reflectiram no significado desse facto histórico. Eles contavam e contam uma história infantil segundo a qual o proletariado, sob o capitalismo, poderia «convencer» a maioria dos trabalhadores e conquistá-los firmemente para o seu lado por meio de votações. Mas a realidade mostra que só através de uma luta longa e cruel a dura experiência da pequena burguesia vacilante a conduz, depois de comparar a ditadura do proletariado com a ditadura dos capitalistas, à conclusão de que a primeira é melhor do que a última.

Teoricamente todos os socialistas que estudaram o marxismo e desejam ter em conta a experiência da história política dos países avançados no decorrer do século XX, reconhecem a inevitabilidade das vacilações da pequena burguesia entre o proletariado e a classe dos capitalistas. As raízes económicas dessas vacilações são postas a nu, com evidência, pela ciência económica, cujas verdades foram repetidas milhões de vezes nos jornais, folhetos e brochuras dos socialistas da II Internacional.

Mas as pessoas não sabem aplicar essas verdades à época peculiar da ditadura do proletariado. Os preconceitos e ilusões pequeno-burgueses-democráticos (acerca da «igualdade» das classes, acerca da democracia «consequente» ou «pura», acerca da resolução das grandes questões históricas por meio de votações, etc.) são postos por eles no lugar da luta de classes. Não querem compreender que o proletariado, ao conquistar o poder de Estado, não cessa com isso a sua luta de classe, mas continua-a sob outras formas, com outros meios. A ditadura do proletariado é a luta de classes do proletariado com a ajuda de um instrumento como o poder de Estado, luta de classe da qual uma das tarefas é demonstrar com uma longa experiência, com uma longa série de exemplos práticos, demonstrar às camadas trabalhadoras não proletárias que lhes é mais vantajoso estar a favor da ditadura do proletariado do que a favor da ditadura da burguesia, e que não pode haver uma terceira solução.

Os dados das eleições para a Assembleia Constituinte em Novembro de 1917 dão-nos o fundo principal do quadro que nos é apresentado, durante os dois anos que se seguiram, pelo desenvolvimento da guerra civil. As forças fundamentais dessa guerra são visíveis com clareza nas eleições para a Assembleia Constituinte: é visível o papel de «grupo de choque» do exército proletário, é visível o papel do campesinato vacilante, é visível o papel da burguesia. «Os democratas-constitucionalistas — escreve no seu artigo N. V. Sviatftski — tiveram o maior êxito nas mesmas regiões que os bolcheviques: Norte e Central-lndustrial» (p. 116). É natural que nos centros capitalistas mais desenvolvidos fossem mais fracos os elementos intermédios que se situam entre o proletariado e a burguesia. É natural que nesses centros a luta de classes fosse mais aguda. Precisamente aqui estavam as principais forças da burguesia, precisamente aqui, só aqui, o proletariado podia derrotar a burguesia. E só o proletariado podia derrotá-lo totalmente. E só depois de a ter derrotado totalmente o proletariado podia conquistar definitivamente, utilizando um instrumento como o poder de Estado, a simpatia e o apoio das camadas pequeno-burguesas da população.

Os dados das eleições para a Assembleia Constituinte, se soubermos utilizá-los, se soubermos lê-los, mostram-nos mais e mais uma vez as verdades fundamentais da doutrina marxista sobre a luta de classes.

A propósito, estes dados mostram também o papel e o significado da questão nacional. Tomai a Ucrânia. O autor destas linhas foi acusado por alguns camaradas nas últimas reuniões sobre a questão ucraniana de «acentuar» excessivamente a questão nacional na Ucrânia. Os dados das eleições para a Assembleia Constituinte mostram que já em Novembro de 1917 na Ucrânia os socialistas-revolucionários e socialistas ucranianos obtiveram a maioria (3,4 milhões de votos + 0,5 = 3,9 milhões contra 1,9 milhões dos socialistas-revolucionários russos, para um número total de votos de 7,6 milhões em toda a Ucrânia). No exército, nas frentes Sudoeste e Romena, os socialistas ucranianos obtiveram 30% e 34% de todos os votos (com 40% e 59% a favor dos socialistas-revolucionários russos).

Dada essa situação, ignorar a importância da questão nacional na Ucrânia — pecado esse que cometem muito frequentemente os grão-russos (e o mesmo pecado, com não muito menor frequência do que os grão-russos, cometem-no os judeus) — significa cometer um profundo e perigoso erro. Não pode ser fortuita a divisão dos socialistas-revolucionários russos e ucranianos na Ucrânia ainda em 1917. E nós, como internacionalistas, somos obrigados, em primeiro lugar, a lutar com uma energia particular contra os vestígios (às vezes inconscientes) do imperialismo e do chauvinismo grão-russos dos comunistas «russos»; em segundo lugar, somos obrigados a fazer concessões precisamente na questão nacional, como questão relativamente pouco importante (para um internacionalista a questão das fronteiras dos Estados é uma questão de segunda ordem, se não de décima ordem). São importantes outras questões, são importantes os interesses fundamentais da ditadura do proletariado, são importantes os interesses da unidade e da disciplina do Exército Vermelho que luta contra Deníkine, é importante o papel dirigente do proletariado em relação ao campesinato; é muito menos importante a questão de saber se a Ucrânia será ou não um Estado separado. Não nos pode surpreender de modo algum — e não nos deve assustar — mesmo a perspectiva de que os operários e camponeses ucranianos experimentem diferentes sistemas e experimentem na prática no decurso de, digamos, alguns anos, tanto a fusão com a RSFSR como a separação dela numa RSSU independente, assim como diferentes formas da sua aliança estreita, etc., etc.

Tentar revolver essa questão de antemão, de uma vez para sempre, de forma «firme» e «irrevogável», seria uma estreiteza de compreensão ou simplesmente uma estupidez, pois as vacilações das massas trabalhadoras não proletárias no que diz respeito a essa questão são inteiramente naturais, até inevitáveis, mas de modo nenhum temíveis para o proletariado. Um representante do proletariado que saiba realmente ser internacionalista é obrigado a tratar tais vacilações com o maior cuidado e tolerância, é obrigado a deixar às próprias massas trabalhadoras não proletárias a eliminação dessas vacilações na base da sua própria experiência. Nós devemos ser intolerantes e implacáveis, irreconciliáveis e intransigentes no que diz respeito a outras questões, mais de fundo, que parcialmente já expus mais atrás.

VI

A comparação das eleições para a Assembleia Constituinte em Novembro de 1917 e o desenvolvimento da revolução proletária na Rússia de Outubro de 1917 a Dezembro de 1919 torna possível tirar conclusões quanto ao parlamentarismo burguês e à revolução proletária de qualquer país capitalista. Tentemos expor resumidamente ou pelo menos apontar as principais dessas conclusões.

1. O sufrágio universal é o índice da maturidade da compreensão pelas diferentes classes das suas tarefas. Ele mostra de que maneira as diferentes classes estão inclinadas a resolver as suas tarefas. A própria solução dessas tarefas é dada não por uma votação, mas sim por todas as formas de luta de classes, incluindo a guerra civil.

2. Os socialistas e sociais-democratas da II Internacional defendem o ponto de vista da democracia pequeno-burguesa vulgar, compartilhando o seu preconceito de que a votação seria capaz de resolver as questões de fundo da luta de classes.

3. A participação no parlamentarismo burguês é necessária ao partido do proletariado revolucionário para o esclarecimento das massas, que é alcançado pelas eleições e pela luta dos partidos no parlamento. Mas limitar a luta das classes à luta dentro do parlamento ou considerar esta última como a forma superior e decisiva que subordina todas as outras formas de luta, significa passar de facto para o lado da burguesia contra o proletariado.

4. Tal passagem para o lado da burguesia realizam-na de facto todos os representantes e partidários da II Internacional e todos os chefes da social-democracia alemã chamada «independente», quando, reconhecendo em palavras a ditadura do proletariado, incutem a este de facto a ideia de que ele deve primeiro alcançar a expressão formal da vontade da maioria da população sob o capitalismo (isto é, a maioria dos votos no parlamento burguês) para a passagem, a ser realizada depois, do poder político para o proletariado.

Todos os gritos, decorrentes dessa premissa, dos sociais-democratas «independentes» alemães e dos outros chefes do socialismo apodrecido contra a «ditadura da minoria» e coisas semelhantes significam apenas a incompreensão por esses chefes da ditadura da burguesia, que domina de facto até nas repúblicas mais democráticas, e a incompreensão das condições da sua destruição pela luta de classe do proletariado.

5. Esta incompreensão consiste, em particular, no seguinte: esquecem que os partidos burgueses dominam, numa enorme medida, graças ao facto de enganarem as massas da população, graças à opressão do capital, ao que se junta também o auto-engano acerca da essência do capitalismo, auto-engano sobretudo característico dos partidos pequeno-burgueses, que querem habitualmente substituir a luta de classes por formas mais ou menos veladas de conciliação de classes.

«Que primeiro, com a conservação da propriedade privada, isto é, com a conservação do poder e do jugo do capital, a maioria da população se exprima pelo partido do proletariado — só então ele pode e deve tomar o poder» — assim falam os democratas pequeno-burgueses, servidores de facto da burguesia, que se dizem «socialistas».

«Que primeiro o proletário revolucionário derrube a burguesia, quebre o jugo do capital, destrua o aparelho de Estado burguês — então o proletariado, tendo alcançado a vitória, poderá atrair rapidamente para o seu lado a simpatia e o apoio da maioria das massas trabalhadoras não proletárias, satisfazendo-as à custa dos exploradores» — dizemos nós. O contrário é na história uma excepção rara (e mesmo que se verifique essa excepção, a burguesia pode recorrer à guerra civil, como mostrou o exemplo da Finlândia).

6. Ou, por outras palavras:

«Primeiro assumiremos a obrigação de reconhecer o princípio da igualdade ou duma democracia consequente, com a conservação da propriedade privada e do jugo do capital (isto é, duma desigualdade de facto com uma igualdade formal) e procuraremos a solução da maioria nesta base» — assim diz a burguesia e os seus bajuladores, os democratas pequeno-burgueses que se dizem socialistas e sociais-democratas.

«Primeiro a luta de classe do proletariado destrói, ao conquistar o poder de Estado, os pilares e alicerces da desigualdade de facto, depois o proletariado, que venceu os exploradores, leva atrás de si todas as massas trabalhadoras para a supressão das classes, isto é, para a única igualdade que é socialista, que não é um engano» — dizemos nós.

7. Em todos os países capitalistas, a par do proletariado ou daquela parte do proletariado que teve consciência das suas tarefas revolucionárias e é capaz de lutar pela sua realização, há numerosas camadas proletárias inconscientes, semiproletárias, semi-pequeno-burguesas das massas trabalhadoras que seguem a burguesia e a democracia burguesa (incluindo os «socialistas» da II Internacional), sendo enganadas por ela, não acreditando nas suas próprias forças ou nas forças do proletariado, não tendo consciência da possibilidade de obter a satisfação das suas necessidades essenciais à custa da expropriação dos exploradores.

Essas camadas dos trabalhadores e dos explorados dão à vanguarda do proletariado aliados, com os quais ele tem uma maioria sólida da população, mas o proletariado só pode conquistar esses aliados com a ajuda de um instrumento como o poder de Estado, isto é, apenas depois de derrubar a burguesia e destruir o seu aparelho de Estado.

8. A força do proletariado em qualquer país capitalista é incomparavelmente maior do que a parte do proletariado na soma total da população. Isso acontece porque o proletariado domina economicamente o centro e o nervo de todo o sistema económico do capitalismo, e também porque o proletariado exprime, económica e politicamente, os interesses reais da imensa maioria dos trabalhadores sob o capitalismo.

Por isso o proletariado, mesmo quando constitui a minoria da população (ou quando a vanguarda consciente e realmente revolucionária do proletariado constitui a minoria da população), é capaz tanto de derrubar a burguesia como de atrair depois para o seu lado muitos aliados daquela massa dos semiproletários e dos pequenos burgueses que nunca se pronunciará antecipadamente a favor do domínio do proletariado, nunca compreenderá as condições e as tarefas desse domínio, mas só a partir da sua experiência posterior se convencerá da inevitabilidade, da justeza e do carácter necessário da ditadura proletária.

9. Finalmente, em cada país capitalista há sempre camadas muito amplas da pequena burguesia que vacilam inevitavelmente entre o capital e o trabalho. O proletariado, a fim de alcançar a sua vitória, deve em primeiro lugar escolher correctamente o momento do ataque decisivo à burguesia, tendo em conta, entre outras coisas, a divisão entre a burguesia e os seus aliados pequeno-burgueses ou a precaridade da sua aliança, etc. O proletariado deve, em segundo lugar, utilizar depois da sua vitória essas vacilações da pequena burguesia de forma a neutralizá-la, a impedi-la de se pôr ao lado dos exploradores, a saber manter-se por certo tempo apesar das suas oscilações, etc., etc.

10. Uma das condições necessárias da preparação do proletariado para a sua vitória é uma luta longa, persistente e implacável contra o oportunismo, o reformismo, o social-chauvinismo e influências e correntes burguesas semelhantes que são inevitáveis na medida em que o proletariado actua num ambiente capitalista. Sem essa luta, sem a prévia vitória completa sobre o oportunismo no movimento operário, nem sequer se põe a questão da ditadura do proletariado. O bolchevismo não teria vencido a burguesia em 1917-1919 se não tivesse aprendido previamente, em 1903-1917, a vencer e a expulsar implacavelmente do partido da vanguarda proletária os mencheviques, isto é, os oportunistas, reformistas, sociais-chauvinistas.

E o reconhecimento verbal da ditadura do proletariado pelos chefes dos «independentes» alemães ou pelos longuetistas franceses, etc., que continuam de facto a velha e costumeira política de concessões e concessõezinhas ao oportunismo, de conciliação com ele, de servilismo perante os preconceitos da democracia burguesa (da «democracia consequente» ou da «democracia pura», como eles dizem), do parlamentarismo burguês, etc., representa agora o auto-engano mais perigoso e às vezes uma simples mistificação dos operários.

16.XII.1919.


Notas de rodapé:

(1*) Não é muito habitual a forma como o autor dividiu a Rússia em distritos: Norte: Arkhánguelsk, Vólogda, Petrogrado, Nóvgorod, Pskov, Livónia. — Central — Industrial: Vladímir, Kostromá, Moscovo, Níjni-Novgorod, Riazán, Tula, Tver, Iaroslavl. Volga — Terras Negras: Astrakhan, Vorónej, Kursk, Oriol, Penza, Samara, Sarátov, Simbirsk, Tambov. Oeste: Vítebsk, Minsk, Moguiliov, Smolensk. Leste-Urales: Viatka, Kazán, Perm, Ufa. Sibéria: Tobolsk, Tomsk, Altai, Enissei, Irkutsk, Transbaikal, Amur. Ucrânia: Volínia, Ekaterinoslav, Kíev, Poltava, Táurida. Khárkov, Kherson, Tchernígov.(Nota do Autor) (retornar ao texto)

(2*) O número entre parênteses, 62 %, é obtido por Sviatítski juntando os socialistas-revolucionáríos muçulmanos e tchuvachos.(Nota do Autor) (retornar ao texto)

(3*) O número entre parênteses, 77%, dou-o juntando os socialistas-revolucionários ucranianos.(Nota do Autor) (retornar ao texto)

(4*) É interessante assinalar a unidade e coesão do partido do proletariado, reveladas também pelos dados citados, face a uma enorme dispersão dos partidos da pequena burguesia e dos partidos da burguesia. (retornar ao texto)

(5*) Não foram dadas as informações indicando qual o partido que recebeu 19500 votos da Esquadra do Mar Negro. Os restantes números desta coluna referem-se, pelos vistos, quase inteiramente aos socialistas ucranianos, visto que foram eleitos 10 socialistas ucranianos e 1 social-democrata (isto é, menchevique). (retornar ao texto)

(6*) O número é aproximado: foram eleitos 2 bolcheviques. Em média, N. V. Sviatítski considera que a um eleito correspondem 60000 votos. Por isso é que eu tomo o número de 120000. (retornar ao texto)

(7*) Ver Obras Escolhidas de V.I. Lénine em 3 tomos, t. 2, p. 403. (N. ed.) (retornar ao texto)

banner
Inclusão: 22/12/2019