Sobre o significado do materialismo militante

V. I. Lénine

12 de março de 1922

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Escrito: a 12 Março 1922
Publicado: na Pod Známeniem Marksizma nº3, Março de 1922
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t3, pp 563-570.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.45, pp. 23-33.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.

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O camarada Trótski disse já tudo o que é essencial, e disse muito bem, sobre as tarefas gerais da revista Pod Známeniem Marksizma(N284) no n.° 1-2. Quereria deter-me em algumas questões que determinam mais de perto o conteúdo e o programa do trabalho proclamado pela redacção da revista na declaração introdutória ao n.° 1-2.

Nesta declaração diz-se que nem todos aqueles que se agrupam em torno da revista Pod Známeniem Marksizma são comunistas, mas que todos são materialistas consequentes. Penso que esta aliança de comunistas com não comunistas é absolutamente necessária e determina acertadamente as tarefas da revista. Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas (como em geral dos revolucionários que tenham realizado com êxito o começo duma grande revolução) é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários. Pelo contrário, para o êxito de qualquer trabalho revolucionário sério, é necessário compreender e saber tornar realidade a ideia de que os revolucionários só podem desempenhar um papel como vanguarda da classe verdadeiramente vital e verdadeiramente avançada. A vanguarda só cumpre as suas tarefas de vanguarda quando sabe não se desligar da massa que dirige, mas fazer avançar realmente toda a massa. Sem a aliança com os não-comunistas, nos mais diversos campos de actividade, não pode sequer falar-se de qualquer construção comunista eficaz.

Isto refere-se também ao trabalho de defesa do materialismo e do marxismo a que se lançou a revista Pod Známeniem Marksizma. As principais orientações do pensamento social avançado da Rússia têm, felizmente, uma sólida tradição materialista. Para não falar já de G. V. Plekhánov, bastará nomear Tchernichévski, do qual se afastaram, retrocedendo, os populistas modernos (os socialistas populares(N285), os socialistas-revolucionários e outros), que corriam frequentemente atrás das doutrinas filosóficas reaccionárias em voga, deixando-se levar pelo ouropel da suposta «última palavra» da ciência europeia e sem serem capazes de distinguir, por trás do ouropel, uma ou outra variedade de servilismo perante a burguesia, perante os seus preconceitos e o seu reaccionarismo burguês.

Em todo o caso, entre nós, na Rússia, há ainda — e sem dúvida ainda haverá durante muito tempo — materialistas do campo dos não comunistas, e o nosso dever absoluto é atrair todos os partidários do materialismo consequente e militante ao trabalho comum, para a luta contra a reacção filosófica e os preconceitos filosóficos da chamada «sociedade culta». Dietzgen pai — que não se deve confundir com o tão presunçoso como fracassado literato Dietzgen filho —, ao dizer que os professores de filosofia na sociedade moderna na maioria dos casos não são de facto mais do que «lacaios diplomados do clericalismo»(N286), expressou de um modo justo, certeiro e claro o ponto de vista fundamental do marxismo acerca das tendências filosóficas dominantes nos países burgueses e que são objecto da atenção dos seus sábios e publicistas.

Os nossos intelectuais russos, que gostam de considerar-se avançados, tal como acontece, aliás, aos seus colegas em todos os restantes países, não gostam muito de transferir a questão para o terreno da apreciação dada pelas palavras de Dietzgen. E não gostam porque a verdade lhes dói. Basta reflectir um pouco que seja sobre a dependência política, económica geral, bem como sobre a dependência nos hábitos e qualquer outra em que se encontram as pessoas cultas modernas em relação à burguesia dominante, para compreender a justeza absoluta da áspera caracterização de Dietzgen. Basta recordar a enorme maioria das tendências filosóficas em moda, que surgem com tanta frequência nos países europeus, começando por exemplo pelas que estão ligadas à descoberta do rádio e terminando pelas que agora procuram agarrar-se a Einstein, para perceber a ligação que existe entre os interesses de classe e a posição de classe da burguesia, entre o seu apoio a todas as formas de religião e o conteúdo ideológico das tendência filosóficas em moda.

Do que atrás se disse vê-se que uma revista que quer ser órgão do materialismo militante deve ser, em primeiro lugar, um órgão combativo no sentido do desmascaramento e da perseguição incansável de todos os actuais «lacaios diplomados do clericalismo», quer actuem na qualidade de representantes da ciência oficial quer na qualidade de franco-atiradores que a si próprios se chamam publicistas «democratas de esquerda ou ideologicamente socialistas».

Tal revista deve ser, em segundo lugar, um órgão do ateísmo militante. Temos departamentos ou, pelo menos, instituições estatais, que dirigem este trabalho. Mas dirigem este trabalho de um modo extremamente epático, extremamente insatisfatório, sofrendo pelos vistos a pressão das condições gerais do nosso burocratismo autenticamente russo (embora soviético). Por isso é extraordinariamente essencial que, complementando o trabalho das correspondentes instituições do Estado, corrigindo-o e animando-o, a revista que se consagra à tarefa de se tornar um órgão do materialismo militante conduza uma propaganda e uma luta ateístas infatigáveis. É necessário seguir atentamente toda a literatura respectiva em todas as línguas, traduzindo-a ou, pelo menos, resumindo tudo o que é minimamente valioso neste domínio.

Há já muito que Engels aconselhava os dirigentes do proletariado moderno a traduzir, para a difundir em massa entre o povo, a literatura ateísta militante de fins do século XVIII(N287). Para vergonha nossa, até agora ainda não o fizemos (uma das muitas provas de que numa época revolucionária é muito mais fácil conquistar o poder do que saber utilizar este poder acertadamente). Por vezes pretende-se justificar esta nossa apatia, inactividade e incapacidade com toda a espécie de considerações «altissonantes»: por exemplo, dizendo que a velha literatura ateísta do século XVIII envelheceu, não é científica, é ingénua, etc. Não há nada pior do que estes sofismas pretensamente sábios que escondem ou o pedantismo ou a completa incompreensão do marxismo. Naturalmente, nas obras ateístas dos revolucionários do século XVIII encontra-se muito de não científico e de ingénuo. Mas ninguém impede os editores dessas obras de abreviá-las e de introduzir-lhes curtos posfácios com referências ao progresso que a humanidade realizou na crítica científica das religiões desde fins do século XVIII, com referências às obras mais recentes sobre o assunto, etc. Seria um grande erro e o pior dos erros que um marxista pode cometer pensar que as massas populares de muitos milhões de pessoas (sobretudo a massa dos camponeses e artesãos), condenadas por toda a sociedade contemporânea ao obscurantismo, à ignorância e aos preconceitos possam sair deste obscurantismo apenas pela linha recta da instrução puramente marxista. É necessário dar a estas massas o mais variado material de propaganda ateísta dar-lhes a conhecer os factos dos mais variados domínios da vida, abordá-las de todas as maneiras para as interessar, para as despertar do sono religioso, para as sacudir em todos os aspectos, com os mais diversos processos, etc.

A publicística dos velhos ateístas do século XVIII, activa, viva, talentosa, que ataca aguda e abertamente o clericalismo dominante, será frequentemente mil vezes mais apropriada para despertar as pesssoas do sono religioso do que as exposições do marxismo fastidiosas, áridas, quase nunca ilustradas com factos habilmente seleccionados, que predominam na nossa literatura e que frequentemente (há que confessá-lo) adulteram o marxismo. Já estão traduzidas no nosso país todas as obras de alguma importância de Marx e Engels. Não há absolutamente motivo nenhum para recear que o velho ateísmo e o velho materialismo fiquem por completar com as correcções introduzidas por Marx e Engels. O mais importante — precisamente o que esquecem com mais frequência os nossos comunistas, pretensamente marxistas mas que na realidade deformam o marxismo — é saber interessar as massas, ainda não desenvolvidas, pela atitude consciente perante as questões religiosas e pela crítica consciente das religiões.

Por outro lado, tomai os representantes da moderna crítica científica das religiões. Quase sempre estes representantes da burguesia culta «complementam» as suas próprias refutações dos preconceitos religiosos com raciocínios tais que os desmascaram imediatamente como escravos ideológicos da burguesia, como «lacaios diplomados do clericalismo».

Dois exemplos. O professor R. I. Vipper publicou em 1918 um livrinho intitulado O Aparecimento do Cristianismo (Editorial «Faros», Moscovo). Ao expor os principais resultados da ciência moderna, o autor não só não combate os preconceitos e a mentira, que são as armas da Igreja como organização política, não só alude estas questões, como declara abertamente a pretensão ridícula e das mais reaccionárias de elevar-se acima de ambos os «extremos»: tanto do idealista como do materialista. Isto é, servilismo em relação à burguesia dominante, que utiliza em todo o mundo centenas de milhões de rublos dos lucros extorquidos por ela aos trabalhadores para apoiar a religião.

O conhecido sábio alemão Arthur Drews, refutando no seu livro O Mito de Cristo os preconceitos e lendas religiosos, demonstrando que não existiu Cristo algum no mundo, no final do livro manifesta-se a favor da religião, mas duma religião renovada, refinada, subtilizada, capaz de fazer frente «à torrente naturalista que se fortalece de dia para dia» (p. 238 da quarta edição alemã de 1910). Este é um reaccionário franco, consciente, que ajuda abertamente os exploradores a substituírem os velhos e putrefactos preconceitos religiosos por preconceitos novos, ainda mais repugnantes e mais infames. Isto não significa que não se deva traduzir Drews. Isto significa que os comunistas e todos os materialistas consequentes devem, ao mesmo tempo que realizam em certa medida a sua aliança com a parte progressista da burguesia, desmascará-la incansavelmente quando ela cai no reaccionarismo. Isto significa que fugir à aliança com os representantes da burguesia do século XVIII, isto é, da época em que ela era revolucionária, significaria trair o marxismo e o materialismo, pois a «aliança» com os Drews, sob uma ou outra forma, em maior ou menor grau, é obrigatória para nós na luta contra os obscurantistas religiosos dominantes.

A revista Pod Známeniem Marksizma, que quer ser um órgão do materialismo militante, deve dedicar muito espaço à propaganda ateísta, à recensão da literatura respectiva, e corrigir as enormes insuficiências do nosso trabalho estatal neste domínio. E especialmente importante utilizar livros e brochuras que contenham muitos factos concretos e comparações que mostrem os laços entre os interesses de classe e as organizações de classe da burguesia moderna e as organizações das instituições religiosas e da propaganda religiosa(N288).

São extraordinariamente importantes todos os materiais que se referem aos Estados Unidos da América do Norte, onde se manifesta menos a relação oficial, burocrática, estatal, entre a religião e o capital. Mas, em contrapartida, torna-se-nos mais claro que a chamada «democracia moderna» (perante a qual os mencheviques, os socialistas-revolucionários e, em parte, os anarquistas, etc., se prosternam tão inconsideradamente) não é mais do que a liberdade de pregar aquilo que convém à burguesia pregar, e a esta convém--Ihe pregar as ideias mais reaccionárias, a religião, o obscurantismo, a defesa dos exploradores, etc.

Quero ter a esperança de que a revista, que quer ser o órgão do materialismo militante, dará aos nossos leitores recensões da literatura ateísta, com referências que indiquem para que círculos de leitores e em que aspecto poderiam ser adequadas tais e tais obras, bem como indicações do que se publicou no nosso país (devem considerar-se publicadas apenas as obras que estejam traduzidas de modo aceitável, e não são assim tantas) e daquilo que se deveria ainda editar.

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Além da aliança com os materialistas consequentes que não pertençam ao partido dos comunistas, não é menos importante, mas talvez ainda mais, para o trabalho que o materialismo militante deve realizar, a aliança com os representantes das ciências naturais modernas que tendam para o materialismo ou não receiem defendê-lo nem propagá-lo contra as vacilações filosóficas em voga para o lado do idealismo e do cepticismo dominantes na chamada «sociedade culta».

O artigo de A. Timiriázev sobre a teoria da relatividade de Einstein, publicado no número 1-2 da revista Pod Známeniem Marksizma, permite esperar que a revista conseguirá realizar também esta segunda aliança. É necessário dedicar-lhe maior atenção. É preciso recordar que precisamente da brusca viragem por que passam as ciências naturais modernas nascem a cada passo escolas e escolinhas, tendências e tendenciazinhas filosóficas reaccionárias. Portanto, acompanhar as questões colocadas pela revolução contemporânea no domínio das ciências naturais, atrair para este trabalho na revista filosófica os investigadores naturalistas, é uma tarefa sem cujo cumprimento o materialismo militante não pode ser de modo nenhum nem militante nem materialismo. Se Timiriázev se viu obrigado a fazer no primeiro número da revista a reserva de que já se agarraram à teoria de Einstein — que, segundo diz Timiriázev, não empreendeu pessoalmente nenhuma campanha activa contra as bases do materialismo — uma quantidade enorme de representantes da intelectualidade burguesa de todos os países, isto refere-se não só a Einstein, mas a toda uma série, talvez à maioria dos grandes transformadores das ciências naturais, a partir de fins do século XIX.

E para não abordar semelhante fenómeno dum modo inconsciente, devemos compreender que sem uma sólida fundamentação filosófica não há ciência da natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra a investida das ideias burguesas e o restabelecimento da concepção burguesa do mundo. Para sustentar essa luta e levá-la com pleno êxito até ao fim, o cientista deve ser um materialista moderno, um partidário consciente daquele materialismo que é representado por Marx, isto é, deve ser um materialista dialéctico. Para atingir este fim, os colaboradores da revista Pod Známeniem Marksizma devem organizar o estudo sistemático da dialéctica de Hegel do ponto de vista materialista, isto é, da dialéctica que Marx aplicou praticamente tanto no seu O Capital como nos seus trabalhos históricos e políticos, e aplicou com tal êxito que actualmente cada dia do despertar de novas classes para a vida e para a luta no Oriente (Japão, Índia, China) — isto é, de centenas de milhões de homens que constituem a maioria da população da Terra e que até agora, pela sua inactividade histórica e pelo seu sono histórico, condicionavam o marasmo e a putrefacção em muitos Estados avançados da Europa —, cada dia do despertar para a vida de novos povos e de novas classes confirma cada vez mais o marxismo.

Naturalmente, o trabalho necessário para esse estudo, para essa interpretação e essa propaganda da dialéctica de Hegel, é extraordinariamente difícil, e sem dúvida as primeiras tentativas nesse sentido serão acompanhadas de erros. Mas só quem não faz nada não se engana. Baseando-nos no modo como Marx aplicava a dialéctica de Hegel, concebida de maneira materialista, podemos e devemos desenvolver esta dialéctica em todos os aspectos, publicar na revista fragmentos das principais obras de Hegel, interpretá-las de modo materialista, comentando-as com a ajuda de exemplos da aplicação da mdialéctica por Marx e também com exemplos da dialéctica no domínio das relações económicas e políticas, exemplos que a história contemporânea, sobretudo a guerra imperialista e a revolução actuais, nos oferecem em quantidade extremamente abundante. O grupo de redactores e colaboradores da revista Pod Známeniem Marksizma deve, em minha opinião, ser uma espécie de «sociedade de amigos materialistas da dialéctica hegeliana». Os cientistas modernos encontrarão (se souberem procurar e se nós aprendermos a ajudá-los) na interpretação materialista da dialéctica de Hegel uma série de respostas às questões filosóficas colocadas pela revolução nas ciências naturais e que fazem «escorregar» para a reacção os admiradores intelectuais da moda burguesa.

Sem colocar e realizar sistematicamente tal tarefa, o materialismo não pode ser materialismo militante. Continuará a ser, para empregar uma expressão de Chtchedrine, menos combativo do que combatido(N289). Sem isso, os grandes cientistas continuarão a ser, com tanta frequência como até agora, impotentes nas suas conclusões e generalizações filosóficas. Pois as ciências naturais progridem com tanta rapidez, atravessam um período de viragem revolucionária tão profunda em todos os domínios, que as ciências naturais não podem de modo nenhum prescindir de conclusões filosóficas.

Para concluir, citarei um exemplo que não se refere ao domínio da filosofia, mas que em todo o caso se refere ao domínio das questões sociais a que a revista Pod Známeniem Marksizma também quer prestar atenção.

É um dos exemplos de como a pseudociência actual serve na realidade de veículo às concepções reaccionárias mais grosseiras e mais repugnantes.

Há pouco enviaram-me o nº l da revista Ekonomist (1922), editada pela XI secção da «Sociedade Técnica Russa»(N290). O jovem comunista que me enviou esta revista (e que certamente não teve tempo de conhecer o conteúdo da revista) teve o descuido de ma recomendar com muita simpatia. Na realidade a revista é, não sei até que ponto conscientemente, um órgão dos feudais modernos, que, naturalmente, se cobrem com a capa da sabedoria, da democracia, etc.

Um certo senhor P. A. Sorókine publica nesta revista uns extensos estudos pretensamente «sociológicos» intitulados «Acerca da Influência da Guerra». Esse artigo doutoral está cheio de referências científicas aos trabalhos «sociológicos» do autor e dos seus numerosos mestres e confrades do estrangeiro. Eis uma amostra da sua sabedoria: Na página 83 leio:

«Actualmente, em cada 10 000 casamentos em Petrogrado contam-se 92,2 divórcios, o que é um número fantástico; além disso, em cada 100 casamentos dissolvidos, 51,1 duraram menos de um ano, 11% menos de um mês, 22% menos de dois meses, 41% menos de 3-6 meses e só 26% mais de 6 meses. Estes números dizem que o casamento legal moderno é uma forma que, no fundo, oculta relações sexuais extramatrimoniais e que dá a possibilidade aos amadores de 'aventuras galantes' de satisfazerem de um modo 'legal' os seus apetites» (Ekonomist, n.° l, p.83).

Não há dúvida de que tanto este senhor como essa sociedade técnica russa que edita a revista, inserindo nela semelhantes considerações, se consideram a si próprios partidários da democracia e tomarão pela maior das ofensas que se lhes chame aquilo que eles de facto são, isto é, feudais, reaccionários, «lacaios diplomados do clericalismo».

O mínimo conhecimento da legislação dos países burgueses sobre o casamento, o divórcio e os filhos naturais, bem como da situação real a este respeito, mostrará a qualquer pessoa que se interesse por esta questão que a democracia burguesa moderna, mesmo em todas as repúblicas burguesas mais democráticas, se revela no referido sentido precisamente como feudal em relação à mulher e aos filhos naturais.

Isto, naturalmente, não impede os mencheviques, os socialistas-revolucionários e uma parte dos anarquistas, e todos os partidos correspondentes no Ocidente, de continuar a gritar acerca da democracia e da sua violação pelos bolcheviques. Na realidade, a única revolução consequente-mente democrática em relação a questões como o casamento, o divórcio e a situação dos filhos naturais é precisamente a revolução bolchevique. E esta é uma questão que atinge de um modo muito directo os interesses de mais de metade da população de qualquer país. Só a revolução bolchevique, apesar do enorme número de revoluções burguesas que a precederam e que se chamavam democráticas, levou a cabo pela primeira vez uma luta decidida nesse sentido, tanto contra a reacção e o feudalismo como contra a hipocrisia habitual das classes dirigentes e possuidoras.

Se os 92 divórcios em 10 000 casamentos parecem um número fantástico ao senhor Sorókine, resta-nos supor que ou o autor viveu e foi educado em algum mosteiro tão afastado da vida que é difícil acreditar na existência de tal mosteiro, ou que este autor deforma a verdade para agradar à reacção e à burguesia. Quem quer que conheça um pouco as condições sociais dos países burgueses, sabe que o número real dos divórcios de facto (naturalmente, não sancionados pela Igreja e pela lei) é, em toda a parte, incomensuravelmente maior. Neste aspecto, a Rússia só se distingue dos outros países pelo facto de que as suas leis não consagram a hipocrisia e a situação de falta de direitos da mulher e do seu filho, mas declaram abertamente e em nome do poder de Estado uma guerra sistemática a toda a hipocrisia e a toda a falta de direitos.

A revista marxista terá que fazer guerra também a semelhantes feudais «cultos» modernos. Provavelmente, uma parte não pequena deles recebe no nosso país dinheiro do Estado e estão ao serviço do Estado para a instrução da juventude, apesar de não serem melhores para esse fim do que seriam depravados manifestos para o papel de vigilantes em instituições de ensino para menores.

A classe operária da Rússia soube conquistar o poder, mas não aprendeu ainda a utilizá-lo, pois caso contrário há já muito que teria expedido muito cortesmente semelhantes professores e membros de sociedades científicas para os países da «democracia» burguesa. É aí o verdadeiro lugar para semelhantes feudais.

Mas ela há-de aprendê-lo, desde que queira aprender.


Notas de rodapé:

(N284) Pod Známeniem Marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo): revista filosófica e socioeconómica, publicou-se mensalmente em Moscovo entre Janeiro de 1922 e Junho de 1944 (nos anos 1933-1935, de dois em dois meses). A revista foi criada como órgão de propaganda do materialismo militante e do ateísmo e de luta contra os «lacaios diplomados do clericalismo». (retornar ao texto)

(N285) Socialistas-populares: membros do Partido Socialista Popular do Trabalho, pequeno-burguês, criado com base na ala direita do partido dos socialistas-revolucionários. Em 1906 os socialistas-populares eram partidários duma aliança com os democratas-constitucionalistas. Depois da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, o partido dos socialistas-populares fundiu-se com os trudoviques, outro grupo socialista-revolucionário, e apoiou activamente o Governo Provisório burguês, tendo neste os seus representantes. Com o triunfo da Revolução Socialista de Outubro, os socialistas-populares participaram em conspirações contra-revolucionárias e levantamentos armados contra o Poder soviético. (retornar ao texto)

(N286) Lénine refere-se às seguintes palavras de J. Dietzgen: «Desprezamos do fundo do coração a fraseologia pomposa acerca da 'educação e da ciência', os discursos sobre os 'bens ideais' pronunciados por lacaios diplomados que actualmente enganam o povo com o falso idealismo, do mesmo modo que o mistificavam os padres do paganismo com as primeiras informações então obtidas sobre a natureza.» (Dietzgen, Obras Filosóficas Escolhidas, 1941, p. 261.) (retornar ao texto)

(N287) Ver F. Engels, Programa dos Emigrados Blanquistas da Comuna. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 532. (retornar ao texto)

(N288) Aqui inicialmente encontrava-se o seguinte texto: «Há dias, aconteceu-me folhear o livro de Upton Sinclair O Lucro da Religião. Não há dúvidas de que na abordagem da questão e na maneira de a tratar existem insuficiências no autor. Mas o valor deste livro é que ele está escrito de um modo vivo, dá muitos factos e comparações concretas...» O livro, como recordou N. K. Krúpskaia, foi enviado a Lénine pelo autor juntamente com uma carta, na qual «ele escrevia acerca da luta que trava por meio dos seus romances». Lénine «armou-se de um dicionário de inglês e pôs-se a ler à noite. O livro, no aspecto da propaganda anti-religiosa, satisfê-lo pouco, mas agradou-lhe a crítica da democracia burguesa». (retornar ao texto)

(N289) Lénine tomou esta expressão da obra do escritor russo M. E. Saltikóv-Chtchedrine História de Uma Cidade. (retornar ao texto)

(N290) Ekonomist (O Economista): revista da secção industrial e económica da Sociedade Técnica Russa, composta por técnicos burgueses hostis ao Poder Soviético e por ex-proprietários de empresas. Publicou-se em Petrogrado entre Dezembro de 1921 e Junho de 1922 (na capa do primeiro número está indicado o ano de 1922). Lénine chamava à revista «centro manifesto dos guardas brancos». O primeiro número da revista foi enviado a Lénine pela redactor D. A. Lutokhine. (retornar ao texto)

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Inclusão: 22/04/2020