Sobre a Cooperação(N331)

V. I. Lénine

4 de Janeiro de 1923

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Publicado: pela primeira vez em 26 e 27 de Maio de 1923 no nº 115 e no nº 116 do Pravda
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t3, pp 657-662.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.45, pp. 369-377.
Transcrição e HTML: Manuel Gouveia
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.

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I

Parece-me que não prestamos suficiente atenção à cooperação. É pouco provável que todos compreendam que agora, a partir da Revolução de Outubro e independentemente da NEP (pelo contrário, neste sentido dever-se-ia dizer: precisamente graças à NEP), a cooperação adquire no nosso país uma importância verdadeiramente excepcional. Nos sonhos dos velhos cooperadores há muito de fantasista. Frequentemente são ridículos porque fantásticos. Mas em que é que consiste o seu carácter fantástico? Em que as pessoas não compreendem a importância fundamental, essencial, da luta política da classe operária para derrubar o domínio dos exploradores. Actualmente no nosso país esse derrubamento já se verificou, e muito daquilo que era fantástico, mesmo romântico e mesmo trivial nos sonhos dos velhos cooperadores, torna-se uma realidade não disfarçada.

Com efeito, uma vez que o poder de Estado está nas mãos da classe operária e uma vez que a este poder de Estado pertencem todos os meios de produção, só nos resta efectivamente a tarefa de cooperativizar a população. Conseguindo a máxima cooperativização da população, realiza-se por si mesmo aquele socialismo que anteriormente suscitava legítimas zombarias, sorrisos e uma atitude de desprezo por parte daqueles que estavam justamente convencidos da necessidade da luta de classes, da luta pelo poder político, etc. Pois nem todos os camaradas se apercebem da importância gigantesca, incomensurável, que adquire agora para nós a cooperativização da Rússia. Na NEP fizemos uma concessão ao camponês como comerciante, ao princípio do comércio privado; daí precisamente decorre (ao contrário do que alguns pensam) a enorme importância da cooperação. No fundo, tudo aquilo de que necessitamos é de cooperativizar a população russa em grau suficientemente amplo e profundo sob o domínio da NEP, pois agora encontrámos o meio de combinar os interesses privados, os interesses comerciais privados, da sua verificação e controlo pelo Estado, o meio da sua subordinação aos interesses gerais, o que anteriormente constituía um escolho para muitos e muitos socialistas. Com efeito, o poder do Estado sobre todos os grandes meios de produção, o poder do Estado nas mãos do proletariado, a aliança deste proletariado com muitos milhões de pequenos e muito pequenos camponeses, a garantia da direcção do campesinato pelo proletariado, etc., não é isto tudo o que é necessário para edificar a sociedade socialista integral a partir da cooperação, a partir apenas da cooperação, que antes desprezávamos como mercantilista e que também agora, sob a NEP, temos o direito de desprezar sob um certo aspecto, não será isto tudo o que é necessário para a construção de uma sociedade socialista completa? Isto não é ainda a construção da sociedade socialista, mas tudo isto é necessário e suficiente para essa construção.

Pois esta circunstância é subestimada por muitos dos nossos funcionários ocupados no trabalho prático. Entre nós olha-se a cooperação com desprezo, não se compreende a importância excepcional que esta cooperação tem, em primeiro lugar no aspecto de princípio (a propriedade dos meios de produção nas mãos do Estado), em segundo lugar no aspecto da passagem para uma nova ordem pelo caminho mais simples, fácil e acessível para o camponês.

E nisto reside, urna vez mais, o principal. Uma coisa é fantasiar sobre toda a espécie de associações operárias para a construção do socialismo e outra é aprender na prática a construir esse socialismo, de tal modo que cada pequeno camponês possa participar nessa construção. Já alcançámos agora esse degrau. E é indubitável que, tendo-o alcançado, o aproveitámos muitíssimo pouco.

Ao passar à NEP fomos demasiado longe, não no sentido de termos dedicado demasiado lugar ao princípio da indústria e do comércio livres, mas ao passar à NEP fomos demasiado longe no sentido de que nos esquecemos da cooperação, de que subestimamos agora a cooperação e começámos já a esquecer a gigantesca importância da cooperação nos dois aspectos acima indicados desta importância.

Proponho-me agora conversar com o leitor sobre o que se pode e se deve fazer praticamente agora mesmo, partindo desse princípio «cooperativo». Com que meios se pode e se deve começar a desenvolver hoje esse princípio «cooperativo» de tal modo que para todos e para cada um seja claro o seu significado socialista?

É necessário organizar politicamente a cooperação de modo que a cooperação não só tenha em geral e sempre certas vantagens, mas que essas vantagens sejam de ordem puramente material (taxa de juro bancário, etc.). É necessário conceder à cooperação meios do Estado que ultrapassem, ainda que pouco, os meios concedidos às empresas privadas, mesmo até ao nível dos concedidos à indústria pesada, etc.

Cada regime social surge apenas com o apoio financeiro duma classe determinada. É desnecessário recordar as centenas e centenas de milhões de rublos que custou o nascimento do «livre» capitalismo. Agora devemos ter consciência e pôr em prática a verdade de que o regime social que no presente devemos apoiar acima do habitual é o regime cooperativo. Mas é preciso apoiá-lo no verdadeiro sentido da palavra, isto é, por tal apoio não basta entender o apoio a qualquer comércio cooperativo; por este apoio deve entender-se o apoio prestado ao comércio cooperativo no qual verdadeiramente participem verdadeiras massas da população. Dar um prémio ao camponês que participa no comércio cooperativo é uma forma absolutamente justa, mas, ao mesmo tempo, verificar essa participação, verificar a sua consciência e a sua qualidade - eis o fulcro da questão. Quando um cooperador chega a uma aldeia e organiza ali um estabelecimento cooperativo, a população, estritamente falando, não participa nada nisso, mas, ao mesmo tempo, e guiada pelo seu próprio interesse, apressar-se-á a tentar participar nele.

Esta questão tem ainda outro aspecto. Resta-nos pouco a fazer do ponto de vista do europeu «civilizado» (antes de mais alfabetizado) para obrigar todos sem excepção a participar, e a participar não passiva, mas activamente, nas operações cooperativas. Propriamente falando resta-nos «apenas» uma coisa: tornar a nossa população tão «civilizada» que compreenda todas as vantagens da participação de todos na cooperação e organize essa participação. «Apenas» isto. Não precisamos agora de nenhuma outra sabedoria para passar ao socialismo. Mas para realizar este «apenas» é necessária toda uma revolução, toda uma fase de desenvolvimento cultural da massa do povo. Por isso a nossa norma deve ser: o mínimo possível de filosofices e de artifícios. Neste sentido a NEP representa já um progresso, pois se adapta ao nível do camponês mais comum e não lhe exige nada superior. Mas para conseguir, por meio da NEP, que toda a população sem excepção participe nas cooperativas, é necessária toda uma época histórica. Essa época podemos percorrê-la, no melhor dos casos, em um ou dois decénios. Mas será uma época histórica especial, e sem esta época histórica, sem a alfabetização completa, sem um grau suficiente de inteligência, sem habituar suficientemente a população a utilizar os livros e sem uma base material para isso, sem certas garantias, digamos, contra as más colheitas, contra a fome, etc., sem isso não podemos alcançar o nosso objectivo. Toda a questão reside agora em saber combinar esse impulso revolucionário, esse entusiasmo revolucionário, que já revelámos, e revelámos em suficiente quantidade, e que coroámos com um êxito total, saber combiná-lo com a capacidade de ser (estou tentado a dizê-lo) um comerciante inteligente e instruído, o que é absolutamente suficiente para ser um bom cooperador. Por capacidade para ser um comerciante entendo a capacidade de ser um comerciante culto. Que o recordem bem os russos ou simplesmente os camponeses, que julgam que por fazerem comércio já sabem ser comerciantes. Isto é completamente falso. Fazem comércio, mas daí a saber ser comerciante culto há uma grande distância. Agora fazem comércio à maneira asiática, enquanto para saber ser comerciante é necessário fazer comércio à maneira europeia. E disto separa-os toda uma época.

Termino: uma série de privilégios económicos, financeiros e bancários à cooperação; nisto deve consistir o apoio prestado pelo nosso Estado socialista ao novo princípio de organização da população. Mas com isso o problema está colocado apenas em linhas gerais, porque aqui ainda fica por determinar e descrever pormenorizadamente todo o conteúdo da tarefa prática, isto é, é preciso descobrir a forma dos «prémios» (e as condições para a sua entrega) que daremos pela cooperação, a forma dos prémios pela qual ajudaremos suficientemente a cooperação, a forma dos prémios que nos permita formar cooperadores cultos. Com a propriedade social dos meios de produção, com a vitória de classe do proletariado sobre a burguesia, o regime dos cooperadores cultos é o regime socialista.

4 de Janeiro de 1923.

II

Sempre que tenho escrito acerca da nova política económica, tenho citado o meu artigo de 1918 sobre o capitalismo de Estado(1*). Isto suscitou por mais de uma vez dúvidas entre alguns camaradas jovens. Mas as suas dúvidas giravam sobretudo em torno de questões políticas abstractas.

Parecia-lhes que não se devia chamar capitalismo de Estado a um regime no qual os meios de produção pertencem à classe operária e o poder de Estado pertence a esta classe operária. Mas não notavam que eu utilizava a designação «capitalismo de Estado», em primeiro lugar para estabelecer a ligação histórica da nossa posição actual com a posição na minha polémica contra os chamados comunistas de esquerda, e também demonstrei já então que o capitalismo de Estado seria superior à nossa economia actual; o importante para mim era estabelecer o laço hereditário entre o vulgar capitalismo de Estado e aquele capitalismo de Estado não vulgar, e mesmo absolutamente não vulgar, do qual falei ao apresentar ao leitor a nova política económica. Em segundo lugar, para mim sempre foi importante o objectivo prático. E o objectivo prático da nossa nova política económica consistia na obtenção de concessões; as concessões nas nossas condições seriam já sem qualquer dúvida um tipo puro de capitalismo de Estado. Eis em que sentido eu tratava a questão do capitalismo de Estado.

Mas existe ainda um outro aspecto da questão, pelo qual poderíamos necessitar do capitalismo de Estado ou, pelo menos, de estabelecer um paralelo com este. Trata-se da questão da cooperação.

Não há dúvida de que a cooperação, nas condições do Estado capitalista, é uma instituição capitalista colectiva. Também não há dúvida de que nas condições da nossa actual realidade económica, quando unimos as empresas capitalistas privadas - mas unicamente com base na terra socializada e unicamente sob o controlo do poder de Estado, pertencente à classe operária - com as empresas de tipo consequentemente socialista (quando tanto os meios de produção como o terreno em que se encontra a empresa e toda a empresa no seu conjunto pertencem ao Estado), surge ainda a questão duma terceira forma de empresas, que anteriormente não constituíam uma categoria à parte do ponto de vista da importância de princípio, a saber: as empresas cooperativas. No capitalismo privado, as empresas cooperativas diferem das empresas capitalistas como as empresas colectivas das empresas privadas. No capitalismo de Estado, as empresas cooperativas diferem das empresas capitalistas de Estado, em primeiro lugar porque são empresas privadas, e em segundo lugar porque são empresas colectivas. Sob o nosso regime actual, as empresas cooperativas diferem das empresas capitalistas privadas por serem empresas colectivas, mas não diferem das empresas socialistas, desde que o terreno onde estão instaladas e os meios de produção que empregam pertençam ao Estado, isto é, à classe operária.

Não temos suficientemente em conta esta circunstância quando discutimos sobre a cooperação. Esquece-se que a cooperação adquire no nosso país, devido à peculiaridade do nosso regime estatal, uma importância verdadeiramente excepcional. Pondo de parte as concessões, que, diga-se de passagem, não alcançaram no nosso país um desenvolvimento importante, nas nossas condições a cooperação coincide muitas vezes inteiramente com o socialismo.

Explico a minha ideia. Em que consiste o carácter fantástico dos planos dos velhos cooperadores, a começar por Robert Owen? Em que eles sonhavam com a transformação pacífica da sociedade de então por meio do socialismo, sem ter em conta questões tão fundamentais como a luta de classes, a conquista do poder político pela classe operária, o derrubamento da dominação de classe dos exploradores. Por isso temos razão ao considerar esse socialismo «cooperativo» como uma pura fantasia, qualquer coisa de romântico e mesmo trivial pelos seus sonhos de que é possível transformar, pela simples cooperativização da população, os inimigos de classe em colaboradores de classe, e a guerra de classes em paz de classes (a chamada paz civil).

Sem dúvida, do ponto de vista da tarefa fundamental da actualidade, nós tínhamos razão, porque sem a luta de classe pelo poder político no Estado não é possível realizar o socialismo.

Mas vejam como a questão agora se modificou, uma vez que o poder de Estado se encontra já nas mãos da classe operária, uma vez que o poder político dos exploradores foi derrubado e uma vez que todos os meios de produção (excepto aqueles que o Estado operário voluntariamente entrega temporária e condicionalmente em concessão aos exploradores) estão nas mãos da classe operária.

Agora temos o direito de dizer que para nós o simples crescimento da cooperação se identifica (salvo a «pequena» excepção indicada mais acima) com o crescimento do socialismo, e ao mesmo tempo vemo-nos obrigados a reconhecer a mudança radical de todo o nosso ponto de vista sobre o socialismo. Essa mudança radical consiste em que anteriormente colocávamos e devíamos colocar o centro de gravidade na luta política, na revolução, na conquista do poder, etc. Mas agora o centro de gravidade desloca-se e transfere-se para o trabalho pacífico de organização «cultural». Estou tentado a dizer que para nós o centro de gravidade se transferiria para a acção cultural, se não fossem as relações internacionais, se não fosse termos de lutar pela nossa posição à escala internacional. Mas se deixarmos isto de lado e nos limitarmos às relações económicas internas, na realidade o centro de gravidade do trabalho reduz-se agora à acção cultural.

Colocam-se perante nós duas tarefas principais, que representam toda uma época. É a tarefa de refazer o nosso aparelho, que não presta absolutamente para nada e que recebemos inteiramente da época anterior; em cinco anos de luta não pudemos nem podíamos refazê-lo seriamente. A nossa segunda tarefa é o trabalho cultural para o campesinato. E este trabalho cultural no campesinato tem precisamente como objectivo económico a cooperativização. Se tivéssemos uma cooperativização completa, já estaríamos com ambos os pés em terreno socialista. Mas esta condição da cooperativização completa implica um tal grau de cultura do campesinato (precisamente do campesinato, como uma massa enorme), que essa cooperativização completa é impossível sem toda uma revolução cultural.

Os nossos adversários disseram-nos mais de uma vez que empreendemos uma obra insensata ao implantar o socialismo num país de insuficiente cultura. Mas enganaram-se ao afirmar que não começámos pela ponta que se supunha segundo a teoria (dos pedantes de toda a espécie), e que no nosso país a revolução política e social precedeu a revolução cultural, essa revolução cultural perante a qual nos encontramos agora.

Para nós é suficiente agora esta revolução cultural para nos tornarmos um país completamente socialista. Mas esta revolução cultural apresenta incríveis dificuldades para nós, tanto no aspecto puramente cultural (pois somos analfabetos) como no aspecto material (pois para sermos cultos é necessário um certo desenvolvimento dos meios materiais de produção, é necessária uma certa base material).


Notas de rodapé:

(N331) Os artigos Sobre a Cooperação e Sobre a Nossa Revolução (A Propósito das Notas de N. Sukhánov) foram entregues por N. K. Krúpskaia ao Comité Central em Maio de 1923. Em 24 de Maio o Bureau Político tomou a seguinte decisão: «Considerar necessária a rápida publicação dos artigos de Vladímir Ilitch, entregues por Nadejda Konstantínovna, com a data neles marcada.» Em 26 de junho, o Bureau Político examinou a questão da cooperação à luz da sua nova apreciação nos artigos de Lénine. As ideias leninistas sobre a cooperativização do campesinato estiveram na base das resoluções do XIII Congresso do PCR(b) «Sobre a cooperação» e «Sobre o trabalho no campo». (retornar ao texto)

(1*) Ver Obras Escolhidas de V.I.Lénine em Três Tomos, t. 2, pp. 592-613. (N. Ed.) (retornar ao texto)

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Inclusão: 23/04/2020