Do livro: Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás

V. I. Lênin

Maio de 1904


Primeira Edição: Escrito em fevereiro/maio de 1904. Publicado em livro, em maio do mesmo ano, em Genebra. Encontra-se in Obras, t. VII, págs. 239/242 e 243/246.
Fonte: Editorial Vitória Ltda., Rio, novembro de 1961. Traduzido por Armênio Guedes, Zuleika Alambert e Luís Fernando Cardoso, da versão em espanhol de Acerca de los Sindicatos, das Ediciones em Lenguas Extranjeras, Moscou, 1958. Os trabalhos coligidos na edição soviética foram traduzidos da 4.ª edição em russo das Obras de V. I. Lênin, publicadas em Moscou pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, anexo ao CC do PCUS. As notas ao pé da página sem indicação são de Lênin e as assinaladas com Nota da Redação foram redigidas pelos organizadores da edição do Instituto de Marxismo-Leninismo. Capa e planejamento gráfico de Mauro Vinhas de Queiroz. Pág: 148-153.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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capa

Porque não se pode, na realidade, confundir o Partido, destacamento de vanguarda da classe operária, com toda a classe. E é exatamente essa a confusão (própria de todo economismo oportunista, em geral) em que cai o camarada Axelrod, quando diz:

“É claro que antes de mais nada constituímos uma organização dos elementos mais ativos do Partido, uma organização de revolucionários, mas, de vez que somos um partido de classe, devemos pensar em fazer as coisas de modo que não fiquem fora dele pessoas que, de um modo consciente, ainda que talvez não com plena atividade, estão em contacto com esse partido”.

Em primeiro lugar, entre os elementos ativos do Partido Operário Social-Democrata de modo algum figurarão apenas as organizações de revolucionários, mas sim toda uma série de organizações operárias reconhecidas como organizações do Partido. Em segundo lugar: por qual motivo e em virtude de que lógica podia deduzir-se, do fato de sermos um partido de classe, a consequência de que não é preciso estabelecer uma distinção entre os que integram o Partido e os que estão em contacto com ele? Muito pelo contrário: justamente porque há diferenças no grau de consciência e no grau de atividade, é necessário estabelecer uma diferença no grau de proximidade do Partido. Somos o partido da classe e, por isso, quase toda a classe (e em tempo de guerra, em época de guerra civil, a classe inteira) deve atuar sob a direção de nosso Partido, deve manter com nosso Partido a ligação mais estreita possível; mas seria manilovismo e “seguidismo” acreditar que quase toda a classe ou a classe inteira possa algum dia, sob o capitalismo, elevar-se ao ponto de alcançar o grau de consciência e de atividade de seu destacamento de vanguarda, de seu Partido Social-Democrata. Nenhum social-democrata judicioso jamais pôs em dúvida que, sob o capitalismo, nem mesmo a organização sindical (mais rudimentar, mais accessível ao grau de consciência das camadas menos desenvolvidas) está em condições de englobar toda ou quase toda a classe operária. Esquecer a diferença que existe entre o destacamento de vanguarda e toda a massa que gravita em torno dele, esquecer o dever constante que tem o destacamento de vanguarda de elevar camadas cada vez mais amplas até seu avançado nível, seria apenas enganar a si próprio, fechar os olhos diante da imensidade de nossas tarefas, restringir nossas tarefas. E exatamente assim os olhos se fecham e tal é o esquecimento que se comete quando se apaga a diferença que existe entre os que estão em contacto e os que ingressam, entre os conscientes e os ativos, por um lado, e os que ajudam, por outro.

Alegar que somos um partido de classe para justificar a difusão orgânica, para justificar a confusão entre organização e desorganização, significa repetir o erro de Nadiejdin, que confundia “a questão filosófica e histórico-social das “profundas raízes” do movimento com uma questão técnica de organização.” (Que Fazer?, pág. 91) E justamente esta confusão, que com tanta sorte o camarada Axelrod iniciou, repetiram-na depois dezenas de vezes os oradores que defenderam a formulação do camarada Mártov. “Quanto mais se amplie o título de membro do Partido, melhor”, diz Mártov, sem explicar, não obstante, qual a vantagem resultante da ampla difusão de um título que não corresponde a seu conteúdo. Pode-se negar que é uma ficção o controle dos membros do Partido que não formam parte de sua organização? A ampla difusão de uma ficção é nociva, e não útil. "Só podemos alegrar-nos de que qualquer grevista, qualquer manifestante, respondendo por seus atos, possa declarar-se membro do Partido.” (pág. 239) Será mesmo? Qualquer grevista deve ter direito a declarar-se membro do Partido? Com essa tese, o camarada Mártov leva o seu erro ao absurdo, rebaixando o social-democratismo ao grevismo, repetindo as desventuras de Akímov. Só podemos alegrar-nos de que a social-democracia consiga dirigir cada greve, porque a obrigação direta e absoluta da social-democracia baseia-se em dirigir todas as manifestações da luta de classe do proletariado, e a greve é uma das manifestações mais profundas e poderosas desta luta. Mas seremos seguidistas se consentirmos que esta forma elementar de luta, ipso facto nada mais que forma trade-unionista, se identifique com a luta social-democrata, multilateral e consciente. De modo oportunista, consagraremos uma coisa manifestamente falsa, se concedermos a todo grevista o direito de “declarar-se membro do Partido”, pois semelhante “declaração”, numa imensidade de casos, será uma declaração falsa. Dormiremos com sonhos manilovianos se nos ocorrer assegurar a nós mesmos e aos demais que todo grevista pode ser social-democrata e membro do Partido Social-Democrata, em vista da infinita fragmentação, opressão e embrutecimento que, sob o capitalismo, pesarão inevitavelmente sobre setores muito amplos de operários “não especializados”, não qualificados. Justamente o exemplo do “grevista” mostra com singular clareza a diferença entre a aspiração revolucionária a dirigir de modo social-democrata cada greve e a frase oportunista que declara membro do Partido qualquer grevista. Somos um partido de classe porquanto dirigimos, com efeito, de modo social-democrata, quase toda e inclusive toda a classe do proletariado; mas só os Akímov podem deduzir daí que tenhamos de identificar em palavra o Partido e a classe.

“Não me mete medo uma organização de conspiradores” — dizia o camarada Mártov no mesmo discurso —, mas — acrescentava — “para mim uma organização de conspiradores só tem sentido quando cercada por um amplo partido operário social-democrata.” (pág. 239)

Para ser exato, deveria dizer: quando cercada por um amplo movimento operário social-democrata. E, nessa forma, a tese do camarada Mártov não só é indiscutível, como é um evidente acacianismo. Detenho-me neste ponto apenas porque no acacianismo do camarada Mártov os oradores seguintes deduziram o argumento muito corrente e muito vulgar de que Lênin queria “reduzir todo o conjunto de membros do Partido a um conjunto de conspiradores”. Tanto o camarada Possadovski como o camarada Popov brandiram este argumento, que não pode senão provocar um sorriso, e quando Martínov e Akímov tomaram-no para si seu verdadeiro caráter, isto é, o caráter de frase oportunista, ficou delineado com toda a clareza. Atualmente, o camarada Axelrod desenvolve este mesmo argumento na nova Iskra, para fazer os leitores conhecerem os novos pontos de vista da nova redação em matéria de organização. Já no Congresso, na primeira sessão em que se tratou do artigo primeiro, observei que os oponentes queriam aproveitar-se de arma tão barata e por isso fiz em meu discurso a seguinte advertência (pág. 240):

“Não se deve pensar que as organizações do Partido terão de constar apenas de revolucionários profissionais. Necessitamos das organizações mais variadas, de todos os tipos, categorias e matizes, começando por organizações extraordinariamente reduzidas e conspirativas e terminando por organizações muito amplas, livres, lose Organisationen”.

Trata-se de uma verdade a tal ponto evidente e lógica, que considerei supérfluo deter-me nela.

... Diremos de passagem que o exemplo dos sindicatos é particularmente característico para esclarecer o problema em discussão a respeito do artigo primeiro. Não pode haver entre social-democratas duas opiniões sobre o fato de que estes sindicatos devem trabalhar “sob o controle e a direção” de organizações social-democratas. Mas, partir daí para dar a todos os membros desses sindicatos o direito de “declarar-se” membros do Partido Social-Democrata seria um absurdo evidente e representaria a ameaça de um duplo prejuízo: reduzir as proporções do movimento sindical e debilitar a solidariedade operária neste terreno, por um lado. Por outro lado, isto abriria as portas do Partido Social-Democrata aos confusos e vacilantes. A social-democracia alemã viu-se na situação de resolver um problema semelhante, apresentado de forma concreta, quando surgiu o célebre incidente dos pedreiros de Hamburgo(1), que trabalhavam por empreitada. Nem um instante a social-democracia vacilou em reconhecer que a conduta dos fura-greves era indigna do ponto de vista de um social-democrata, isto é, em reconhecer a direção das greves, em apoiá-las como coisa sua, mas, ao mesmo tempo, e com a mesma decisão, rechaçou a exigência de identificar os interesses do Partido com os interesses dos sindicatos, de tornar o Partido responsável pelos diversos passos dos diferentes sindicatos. O Partido deve, e procurará imbuir disto seu espírito, submeter à sua influência os sindicatos, mas, precisamente em nome dessa influência, deve distinguir nesses sindicatos os elementos plenamente social-democratas (integrantes do Partido Social-Democrata) dos elementos que não têm plena consciência nem plena atividade política, e não confundir uns e outros, como quer o camarada Axelrod.

“... A centralização das funções mais clandestinas pela organização dos revolucionários não debilitará, mas sim fortalecerá a amplitude e o conteúdo da atividade de uma grande quantidade de outras organizações destinadas ao grande público e, por conseguinte, o menos regulamentadas e clandestinas possíveis: sindicatos operários, círculos operários instrutivos e de leitura de publicações ilegais, círculos socialistas, círculos democráticos para todos os demais setores da população, etc, etc. Tais círculos, sindicatos e organizações são necessários em toda parte; é preciso que sejam o° mais numerosos e suas funções as mais variadas possíveis, mas é absurdo e prejudicial confundir estas organizações com a dos revolucionários, apagar entre elas as fronteiras...” (pág. 96) *

Esta passagem mostra quão pouco a propósito o camarada Mártov me lembrou que a organização de revolucionários devia ficar cercada de amplas organizações operárias. Já o assinalei em Que Fazer?, e na Carta a um Camarada desenvolvi esta ideia de modo mais concreto. Os círculos das fábricas — dizia na carta:

“têm especial importância para nós: com efeito, toda a força principal do movimento reside no grau em que estejam organizados os operários das grandes fábricas, pois as grandes oficinas e fábricas contêm a parte da classe operária predominante não só por seu número, como, mais ainda, por sua influência, seu desenvolvimento e sua capacidade de luta. Cada fábrica deve ser uma fortaleza nossa... O subcomitê de fábrica deve procurar abranger toda a fábrica, o maior número possível de operários numa rede de toda espécie de círculos (ou agentes)... Todos os grupos, círculos, subcomitês, etc devem considerar-se organismos dependentes do comitê ou seções filiais dele. Alguns deles declararão francamente o desejo de ingressar no Partido Operário Social-Democrata da Rússia e, sob condição de serem aprovados pelo Comitê, passarão a formar parte do Partido, assumirão determinadas funções (por determinação do comitê ou de acordo com ele), se comprometerão a submeter-se às diretrizes dos organismos do Partido, obterão os direitos de todos os membros do Partido, se considerarão os candidatos mais próximos a membros do Comitê, etc. Outros não passarão a formar parte do POSDR, permanecendo na situação de círculos, organizados por membros do Partido ou em contacto com este ou outro grupo do Partido, etc.” (pág. 17/18)

As palavras que grifei indicam com particular clareza que a ideia da formulação que dei ao artigo primeiro já estava totalmente expressa na Carta a um Camarada. Ali estão claramente indicadas as condições de admissão no Partido, a saber:

  1. Certo grau de organização, e
  2. Confirmação por um comitê do Partido.

Uma página adiante indico também aproximadamente que grupos e organizações e por quais considerações devem (ou não devem) ser admitidos no Partido:

“Os grupos de distribuidores devem pertencer ao POSDR e conhecer determinado número de seus membros e de seus funcionários. Um grupo que estude condições profissionais do trabalho e elabore projetos de reivindicações sindicais não tem obrigatoriamente que pertencer ao POSDR. Um grupo de estudantes, de oficiais do exército ou de empregados que trabalham em sua autoeducação com a ajuda de um ou dois membros do Partido, às vezes não tem nem por que saber que estes pertencem ao Partido, etc.” (pág. 18/19)(2)

Ai tendes novos materiais para a questão de “viseira aberta”! Enquanto que a fórmula do projeto do camarada Mártov nem sequer tocava nas relações entre o Partido e as organizações, eu, quase um ano antes do Congresso, já indicava que algumas organizações deviam entrar no Partido e outras não. Na Carta a um Camarada já se destaca claramente a ideia que defendi no Congresso. A coisa poderia representar-se graficamente da seguinte maneira. Pelo grau de organização em geral e pelo grau de clandestinidade da organização em particular, podem distinguir-se, aproximadamente, as seguintes categorias:

  1. organizações de revolucionários;
  2. organizações operárias, tão amplas e diversas quanto possíveis (limito-me à classe operária, supondo, como coisa que por si mesma se entende, que certos elementos das demais classes também entrarão nessas organizações, em determinadas condições). Essas duas categorias constituem o Partido. Logo:
  3. organizações operárias em contacto com o Partido;
  4. organizações operárias que não estão em contacto com o Partido, mas subordinadas de fato a seu controle e direção;
  5. elementos não organizados da classe operária, que em parte também se subordinam, pelo menos nos casos de grandes manifestações da luta de classe, à direção da social-democracia.

É assim, aproximadamente, como se apresentam as coisas, na minha opinião. Do ponto de vista do camarada Mártov, pelo contrário, as fronteiras do Partido ficam absolutamente indeterminadas, porque “qualquer grevista” pode “declarar-se membro do Partido”. Qual o proveito de semelhante vacuidade? A grande difusão do “título”. O que tem de nocivo consiste em que origina a ideia desorganizadora da confusão da classe com o Partido.


Notas:

(1) Refere-se ao incidente ocorrido no ano de 1900, em Hamburgo, em virtude da conduta de um grupo de membros da União Livre dos Pedreiros que dedicaram a trabalhar por tarefa durante uma greve, apesar da proibição da União Central. A União Central dos Pedreiros de Hamburgo levou à organização local do Partido a questão sobre a atitude dos social-democratas que faziam parte do grupo de fura-greves. O tribunal arbitral do Partido, designado pelo CC da social-democracia alemã, condenou a conduta dos membros social-democratas da União Livre dos Pedreiros, mas rejeitou a proposta de que fossem expulsos do Partido. (retornar ao texto)

(2) V.I.Lênin, A Luta Política e a Politicagem. (Nota da Redação) (retornar ao texto)

Inclusão 19/07/2015