A Dialética na História da Arte

Mikhail Alexandrovich Lifschits

1927


Primeira Edição: Publicado originalmente em: LIFSCHITZ, M. A. Dialektika v istorii iskusstva. Conferência ditada em Vjutemas em 1927. Republicado em Sobranie sochinenii v 3 tomah [Obras Escolhidas em 3 tomos], tomo I. Moscou: Izobrazitelnoie Iskusstvo, 1984, pp. 223-241. Agradecimentos à Victor Carrión da Ediciones Edithor pela disponibilização da tradução em espanhol para cotejamento.

Fonte: https://medium.com/katharsis/m-a-lifschitz-a-dialética-na-história-da-arte-1927-94f603cf962a

Tradução: Teylor Lourival e Revisão: Bruno Bianchi

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


§ 1

A cosmovisão científica se baseia em dois princípios: movimento e conservação. O movimento é o estado da matéria. Mas por si só, este se torna uma negação pura e simples, um nada. O homem que fala sobre movimento e esquece que no movimento algo permanece, é preservado, não pode se dizer materialista. Tudo o que existe inevitavelmente desaparece; não obstante, na história não existe somente o desaparecimento, mas também “o desaparecimento do desaparecimento” (Hegel). A negação é um caso particular da negação da negação, a destruição é um caso particular do equilíbrio, o “estado clássico”. O primeiro equilíbrio, ou negação da negação, é em si a própria realidade objetiva, a matéria. Não em vão os gregos aproximaram a beleza e o cosmos (ordenamento do mundo).

Suplemento (versão mais positiva da dialética).

Quanto mais ampla e profunda seja a tese teórica em questão, mais cuidadosamente deverá ser feita sua colocação. Esta norma é bastante justa em relação aos princípios básicos do método dialético.

Tudo é resultado de movimento. Não obstante, o próprio movimento é necessário como resultado. Algo se move. Se b não fosse algo, não fosse nada, também não seria, por consequência, movimento. O movimento vazio e a quietude absoluta são idênticos.

Um belo exemplo disto nos dão as reflexões gnosiológicas dos poetas orientais antigos. Tal é, por exemplo, a dialética do livro de Eclesiastes. Tudo se move, disse o ‘pregador’, tudo o que é humano é frívolo, tudo desaparece. E assim, este motivo passa imperceptivelmente a ser algo diretamente oposto: o que foi, isto que é, aquilo que será; tudo é invariável, e não existe nada novo sob o sol.

Assim como existe a contradição absurda, também existe a identidade absurda. A sabedoria bíblica se baseia em semelhante “identidade” que, com tudo, expressa belissimamente o estado de inquietação de surgimento e aniquilação, e ao mesmo tempo a assombrosa estabilidade da sociedade do Oriente antigo. A identidade asiática assinala de modo puramente negativo a autêntica unidade dialética de tipo grego.

O movimento é inseparável da preservação. Isto bem sabem os físicos. O movimento é o estado da matéria que se mantém em todas suas variações. Como única realidade objetiva, o movimento não desaparece, mas sim é preservado.

Na história da sociedade humana o movimento e a conservação se complementam mutuamente. No processo histórico, enquanto este se cristaliza nos fatos através da multiplicidade de culturas singulares, somente a forma exterior desaparece sem deixar rastos. O princípio da alavanca mais simples se preserva na máquina mais perfeita. Toda formação social, todo tipo de criação artística se submete à negação, ao desaparecimento; mas enquanto existe a história, existe também o desaparecimento do desaparecimento (Das Verschwinden des Verschwindens, como disse Hegel). O movimento é contradição, negação. Ele pressupõe, consequentemente, algo que sofre a negação. O acento se encontra no positivo, no ser. O movimento vazio como negação pura e simples é a coisa mais imóvel sobre a terra: no mais absoluto nada, nada se move. De tal modo, estar no ponto de vista da simples negação não é, ainda, dialética. O papel decisivo é da negação da negação; o resultado positivo da contradição e luta interna. Vivemos, atuamos e alcançamos as coisas graças à segunda negação. O processo de vida e criação consiste nesta vitória sobre a contínua ameaça da inexistência. Todo “algo” já é negação da negação tanto na simples relação consigo mesmo (minha presença é a ausência da minha ausência) como resultado do desenvolvimento que o precede.

Giordano Bruno disse que sem movimento, sem negação, não poderíamos ter um só sentido. De fato: o calor vem a ser quente somente mediante a transição a partir do frio; o luminoso, mediante a transição da escuridão, etc. Mas isto é somente a metade do assunto. A negação por si só é insuficiente. Para que surja em mim a mais simples imagem visual, o olho precisa do equilíbrio relativo de múltiplas direções de movimento contrapostas. A negação deve converter-se em negação da negação, a contradição (estado) em unidade, a desintegração de elementos mutuamente excludentes em algo íntegro. Se, por exemplo, eu contemplo um objeto a partir de uma distância muito pequena, então meu aparelho visual não encontra o ponto de apaziguamento das múltiplas linhas, manchas e detalhes que se excluem uns aos outros e destroem a integridade da impressão visual. É necessária uma distância no espaço e no tempo (para o surgimento da imagem finalizada, estável). Swift (Gulliver e a beldade gigante). “Pose”, “imagem” (sem-imagem = sem-imagem,(1) bildlos). O caos da vida ordinária e o movimento equilibrado da beleza. O estado estético. Exemplos: arquitetura. Marx sobre os “deuses da arte plástica grega”, a “lei de equivalentes” de Jacob Burckhardt. Simetria e ritmo. A música; paráfrase de palavras de Chadaiev (em particular, Schelling sobre a arquitetura como música petrificada). Em geral, a primazia do equilíbrio sobre o caos ou a primazia da Verdade e Bondade positivas. O Belo também se funda na negação da negação, ainda que esta não a determine.

O significado cósmico do Belo. Pitágoras. Weiße em sua estética sobre o “microcosmos”. Em geral, “o cérebro humano é o órgão da autoconsciência do cosmos” (Huxley). A arte, segundo Hegel, é a “revelação sensível do Absoluto”. A arte expressa o gozo do homem por conta da vitória do positivo sobre o negativo, do criador sobre o destruidor, a unidade sobre a fragmentação, a harmonia e o equilíbrio sobre o desequilíbrio e o caos, a medida sobre a desmedida. Naturalmente, também existe a arte que expressa aflição pela perda ou a aspiração ao equilíbrio ainda não alcançado.

§ 2

O papel da negação como elo mediador entre duas teses. A transição de uma harmonia e proporcionalidade a outra mediante a desarmonia e desproporcionalidade. Outra expressão desta mesma “tríade” em Hegel; surgimento (estado simbólico), movimento equilibrado (estado clássico) e destruição (estado romântico) das coisas. O valor relativo destes momentos. A desarmonia interna das avaliações em momentos de transição. Hegel sobre J. Böme. O “sofrimento” (Qual) é necessário para alcançar o estado qualitativamente estável (Qualität).

§ 3

As épocas “clássicas” e “não clássicas” na história da arte. Sua contraposição abstrata na estética dos ilustrados do século XVIII. A ideia da “indulgência” para com a arte negativa (ingleses, Schiller, escola romântica). Giro ao gótico e oriental. Crítica do relativismo dos românticos: Goethe, Rumohr, Hegel.

Suplemento (identidade de harmonia e desarmonia).

Nos escritores franceses do século XVIII a negação é simplesmente negativa. O gótico é para eles barbárie. A tendência contraposta é o princípio da defesa do negativo, a escola romântica. O livro de Wackenroder — Tieck.(2) A ideia de indulgência para com todas as épocas e estilos, antes condenados a partir do ponto de vista da negação abstrata. Friedrich Schlegel sobre os primitivos, a “teoria das dissonâncias” de August-Wilheilm Schlegel. Schelling sobre o barroco, Rafael e a arte contemporânea. A conquista dos românticos é a dialética do pensamento sobre o papel positivo da negação.

Exemplos que esclarecem a norma geral: a dissonância é também consonância, o falso é um caso particular do verdadeiro. (Engels: a verdade absoluta se conforma em uma série infinita de erros relativos, a experiência inclui em si provas e erros. Inclusive a feitiçaria baseada em conceitos vagos do vínculo casual). A beleza da feiura, o agradável do desagradável. O “elemento amargo” na arte. Este está presente inclusive nos mestres do quattrocento, por exemplo em Mantegna.

No sentido social: o capitalismo rompe o equilíbrio e proporcionalidade da pequena economia mercantil, mas a desproporcionalidade por ele criada é um manancial do progresso. O princípio de trabalho por valor é sua moralidade e ao mesmo tempo sua imoralidade (aquisição de força de trabalho por seu justo valor como fonte de mais-valia). Na sociedade capitalista o trabalho e os meios de produção estão isolados um do outro, mas esta ruptura é também a forma determinada de sua unidade. O terceiro tomo de “O Capital” e a refutação aparente da teoria do valor de Marx: os valores mercantis flutuam ao redor dos meios de produção, e não ao redor do valor por trabalho. Na realidade este desvio da lei geral é a forma de sua existência. O capitalismo, falando de modo geral, é o desvio das normas sagradas da economia mercantil simples e ao mesmo tempo é o desenvolvimento pleno de seu princípio.

Exemplo da região da história da arte: a lei do caso é o caso da lei. Nos quadros do século XV, o quadro não se move; em um quadro de Monet, as linhas imaginárias do quadro se estendem de uma maneira que parece casual: o bulevar parisiense retratado de cima, a varanda à direita paira no ar e as figuras se agitam. Mas nesta composição casual existe uma lei própria, a necessidade da causalidade. A lei de equivalentes que, segundo Burckhardt, jaz na base dos quadros clássicos se confunde totalmente com as leis da não equivalência, as leis da ruptura da lei. De tal modo, a desarmonia na arte também é harmonia, um determinado gênero desta. Já nos desenhos e pintura barrocos esta se dissipa, mas esta discórdia tem seu próprio limite.

Entretanto, esta identidade de positivo e negativo não esgota o conteúdo da questão. A norma geral: ainda que harmonia e desarmonia sejam idênticas a partir do ponto de vista abstrato, na realidade concreta existem uma diferença relativa entre elas. Exemplos: não é possível a discórdia entre corpo e espírito, de modo geral, afinal de contas sempre está presente a harmonia entre eles. Mas uma coisa é a correspondência do espírito são com o corpo são, e outra totalmente diferente é a harmonia de corpo e alma no sentido neurológico, pois aí uma desarmonia se manifesta de modo imediato. Todo progresso é ao mesmo tempo retrocesso, contudo existe diferença entre duas espécies de unidade destes contrários.

G.V. Plekhanov escreveu: “O caráter da negação determina o caráter do que se submete à negação”.(3) Isto não significa que, no fim, toda negação é positiva? Não, existe diferença. Na infinitude, naturalmente, não existe perda, toda negação se compensa, passa a ser negação da negação. Olhando para as crianças indigentes, Marx disse que podemos, de fato, seguindo Feuerbach, consolar-nos com a harmonia do gênero humano. Mas está harmonia é “do além”.

A negação também é positiva, e quanto mais positiva, mais individual, e encontra a negação da negação em fronteiras colocadas, e não em distâncias infinitas. O conceito de negação específica e não-específica. O caráter da negação sempre determina isso que é negado; mas a negação desta negação se realiza em situações individuais, imediatamente, e esta se realiza somente em um outro, como momento que desaparece de um todo mais amplo.

Todo o negativo, toda negação é valiosa justamente porque esta passa a ser negação da negação; e é mais valiosa quanto mais realize isto de modo pleno. Assim na indústria e a técnica com seu gasto de matéria prima e energia, igualmente na agricultura que requer sementeiras, ainda que o grão possa ser triturado e consumido. Igualmente no sistema de crédito, que é algo como a utilização puramente negativa do dinheiro.

Ao mesmo tempo, é inevitável também a desarmonia de nossas avaliações, sua bifurcação. Cortamos lenha para construir uma casa. O escultor desperdiça o mármore, e o pintor, as cores. E toda criação é desperdício, todo desperdício é criação. Mas este último somente em última instância, pois não existem vítimas tais que, ao fertilizar bem o solo, não se justificam, em geral, apartadas, se é que é possível, do curso transcendental da história.

Disto segue-se que a negação, a vítima, o desperdício de material, tudo isto pode portar um caráter específico, mais ou menos justificado no caso dado ou, ao contrário, um caráter não-específico, abstrato. O leão que arranca partes do corpo do antílope, que realiza a selvagem lei da luta pela existência, também é capaz de afirmar à natureza em sua negação da negação infinita, mas tal forma de resultado positivo da luta de contrários se diferencia sobretudo do desenvolvimento orgânico deste manso animal que, por outro lado, destrói a vegetação para viver.

Deste modo, entre o “terrível reino da força”, segundo a expressão de Schiller, entre o choque dos elementos da natureza e os escalões mais altos do desenvolvimento mediante a negação (e não existe outro desenvolvimento) existe uma diferença essencial. Assim, temos dois casos extremos; o limite da plenitude e caráter concreto da negação da negação, de um lado, e o limite da nivelação abstrata de todas as percas no desenvolvimento infinito, de outro. Entre estes dois polos do processo universal está toda a realidade multiforme real da vida, todas as situações de transição e intermediárias.

Assim, também o conceito dos clássicos como realização da negação da negação em escalas concretas dadas, e não na perspectiva distante. Tudo é possível de considerar como clássico no clássico. O mundo clássico infinito em sua própria realidade objetiva.

A transição à arte: a inevitável presença nesta de normas do clássico como negação da negação não no mundo distante, mas sim na vida imediata, nas fronteiras da existência individual. Quanto mais “específica” for a negação, mais sublime é a arte, mais isso está do lado externo da harmonia do mundo que nos rodeia. Ela está presente também na arte distante dos clássicos: no gótico e no barroco, na superioridade da necessidade abstrata (Egito) ou na causalidade espontânea e desordenada (a assim chamada pintura impressionista crítica). A cultura artística francesa das últimas décadas enfatiza a integridade da forma da representação, em particular em Cézanne. Não obstante, com toda sua integridade esta é internamente desarmônica. Os pintores deveram buscar a salvação fora, além dos limites de sua realidade.

O maior escalão da autojustificação, a negação da negação específica, que não requer sair além dos limites da realidade do mundo visível, é possível encontrá-lo, inclusive, na pintura italiana do século XV que expressa a possibilidade do todo imediato em sua integridade. Mas, de modo geral, esta possibilidade está presente inclusive nos artistas das épocas mais desarmônicas. Os primitivos e o barroco podem ser compreendidos partindo do conceito do clássico em seu próprio significado e no desenvolvimento geral do mundo da arte.

Assim, temos duas coordenadas. Todo processo geral, ou seja, movimento progressivo, é ao mesmo tempo o desenvolvimento da originalidade, autojustificação, integridade, solidez, singularidade individual. “Tudo é bom em seu gênero”. Mas os gêneros são por si distintos, diz N.G. Tchernichevski. O perfeito em seu gênero se rebatiza com o nível de perfeição ou imperfeição do próprio gênero. Assim, Yago é o malfeitor perfeito, um caráter íntegro. Este inspira respeito, e sobretudo Yago segue sendo um malfeitor.(4) O bobo dos pés à cabeça é perfeito em seu gênero, mas preferiríamos certa imperfeição a tal perfeição. Duas coordenadas do princípio clássico como fenômeno do infinito em âmbitos finitos se transformam uma na outra, moldando um sistema complexo do renomeado e subordinado.

Só é possível compreender o sentido deste sistema (que a primeira vista parece um caos de formas isoladas) ao considera-lo como depositário do movimento dialético. O desenvolvimento geral sempre se entronca com perdas e até retrocessos temporais, mas a solução desta contradição se funda na transição de um escalão clássico a outro mediante a desproporcionalidade e desarmonia das formas intermédias. A integridade relativa de todos estes momentos, tal é o objetivo da análise dialética.

§ 4

O estudo contemporâneo da arte em suas correntes fundamentais ressuscita o relativismo histórico da escola romântica. A crítica da “velha estética” e o retorno às antinomias. Schelling. O schellingianismo de Wölfflin (opinião de Dessoir). Supera a escola de Wölfflin a “infinidade tediosa” da concepção ordinária da história da arte? A contradição do neorromantismo. Transição ao neohegelianismo. Reiteração da contradição em uma forma nova. A única saída teoria possível é a partir do marxismo.

Suplemento (crítica do relativismo).

a) O conceito de “arte” habitualmente se liga com o conceito de “belo”. Assim fazem inclusive quem se esforça por demonstrar que a ligação desses conceitos é resultado do preconceito.

Existe gente que assinala que o belo é um mito, uma invenção da velha estética, uma ilusão burguesa. A partir de um ponto de vista semelhante, o belo não existe. O belo é nada. Outros, ao contrário, asseguram que o belo é o todo. Toda coisa é bela de seu modo, desde um consumado ponto de vista e em um caso determinado. “Todas as mulheres são belas”, disse alguma vez Proudhon.

O que é o belo? Existe? E se existe, em qual relação tem com a arte? A estas perguntas foram e são dadas as respostas mais variadas. Habitualmente, se começa recontando estas respostas para, afinal, declarar sua falta de justeza e apresentar a milésima primeira nova definição. Eu, ao contrário, creio que a velha determinação é verdadeira, ainda que seja também relativa. Ao invés de dar uma nova resposta no velho espírito, é melhor compreender as velhas respostas com o novo espírito. Considero, portanto, toda a história do pensamento estético como um processo sucessivo de preparação da “estética científica”, segundo a terminologia de Plekhanov. Nas ciências naturais as hipóteses envelhecidas não são excluídas, mas sim que se limitam a um círculo mais estreito de aplicação. Assim como em nossa ciência encontramos muitas determinações velhas em sua tradição à luz da linguagem do materialismo dialético. Nos é necessário, por isso, não a enumeração mecânica das diversas teorias do belo, mas sim o curso sucessivo das digressões teóricas que encontramos — cada uma em seu lugar — sua referência na história da estética. Tentemos seguir esta receita.

Tomemos o juízo estético mais simples que jaz na base de todos os complexos movimentos do sentimento estético. “A casa é bela”. “A paisagem é belo”. “O homem é belo”. A todos estes objetos lhes é inerente uma propriedade geral que também está sujeita a determinação. Em que consiste a beleza de modo geral: em ser uma casa? Evidentemente, não. Paisagem? Tampouco. Homem? Ou algum outro objeto? (Platão, Hipias maior, 287, 288). Então em que? Ao que parece, em nada. A beleza de modo geral não é algo, e em consequência ela é nada. Mas se não existe a beleza de modo geral, então tampouco podem existir seus casos particulares: a beleza da casa, paisagem, homem. Todos estes elementos são belos somente em virtude da ilusão que experimenta o espectador, somente “a partir do ponto de vista”, e não na realidade.

Esta conclusão se fundamenta no velho sofisma. Em nossa época ele é utilizado quando se deseja demonstrar que a beleza é isso que desejas considerar belo. Em seu tempo, nos dizem, o gótico satisfez o sentimento estético, mas nos séculos XVII-XVIII o consideraram barbárie. Os românticos levantaram uma vez mais o escudo medieval em detrimento do classicismo. E um Hippolyte Taine soviético contemporâneo demonstra de maneira diligente que o gótico está “em contradição com nossa época”. Em uma palavra, o que para mim é belo, é totalmente não-belo para ti. Os gostos se excluem mutuamente uns aos outros, e se uma catedral gótica é bela ou não, é impossível de dizer. É bela somente a partir deste ou daquele ponto de vista, somente subjetivamente, para mim, para ele. Mas com que direito posso demonstrar que tudo que existe, existe somente “a partir do ponto de vista”. De ato, que é o fruto de modo geral? O fruto de modo geral não existe de fato, e consequentemente, a coisa dada é fruto ou não é fruto dependente do ponto de vista da pessoa, povo, época ou classe em questão.

O ser de modo geral não é um ser determinado: casa, paisagem ou homem. O ser, de modo geral, não é “nenhum” ser, ou seja, outras palavras para “não ser”, “nada”. Desta tese, conhecida por todos, quem está um pouco familiarizado com a filosofia pode, contudo, chegar à conclusão de que o “ser ou o não ser” de uma coisa dada depende somente do ponto de vista. É o mesmo em nosso caso. A beleza abstrata não existe. Se falamos em geral é a soma em que positivos e negativos se aniquilam mutuamente. Basta abrir qualquer livro de história da cultura para ler sobre os aborígenes que mostram os seios, e as Vênus primitivas tão pouco parecidas com nossas beldades contemporâneas. Por si, a propriedade geral que é inerente a objetos ou formas tão distintas, e que as vezes se excluem mutuamente uns aos outros, é no limite igual a zero. Se todas as mulheres são belas, então, propriamente falando, a nenhuma delas se pode chamar de bela e a própria palavra “beleza” se transforma em uma representação vazia.

Assim, como já se afirmou, habitualmente se chega à conclusão de que a beleza não tem substrato objetivo e sua presença ou ausência depende unicamente do ponto de vista da sociedade, povo, classe ou indivíduo. Nos encontraremos com esta teoria mais de uma vez no subsequente. Aqui me permito anotar o seguinte.

Definir algum fenômeno é assinalar sua determinabilidade, seu caráter. Para isto devemos considerar o fenômeno dado como um caso particular de algo mais geral e amplo. Mesa, por exemplo, é um objeto determinado, caso particular do objeto em geral. Mas a “mesa” é algo indeterminado, se a considero como representação geral que capta múltiplas variedades. (Não de madeira, nem de mármore, nem redonda, nem oval, mas sim somente uma “mesa”). No primeiro caso, vamos do abstrato ao concreto. Em um segundo caso, o conceito “mesa” carece de todo caráter determinado. Buscar a determinação de mesa por meio de tal abstração de todo o determinado é, está claro, sem sentido. Todo fenômeno existe e não existe. Este não existe como abstração, mas sim existe concretamente. Neste caráter concreto é que se deve buscar sua determinação. A generalidade é generalidade somente como particularidade, o particular é particular somente como generalidade. E a beleza é uma propriedade geral somente como caso particular de algo mais geral, este é um momento em seu desenvolvimento geral e é o mais geral de todos os momentos de seu próprio desenvolvimento.

b) O relativismo é o sistema de critérios que predomina em nossa época, particularmente na arte. A relatividade de tudo. A aresta correta nisto é a identidade de contrários. Quem deseja afirmar uma verdade mais ampla se encontra em uma tese falsa. Quem finge com franqueza não é pior do que quem se franqueia fingindo. Isto é certo, o artista do passado não desejou algo de que não fosse virtuoso.

Mas sabemos que a identidade abstrata dos contrários não basta. Por si mesmo, esta passa a ser o relativismo da multidão de indiferentes para com a verdade e a avaliação das formas finais, e quando a dialética passa a ser relativismo, surge isso que Hegel chamou de “infinidade tediosa”. Classes, grupos, culturas e estilos, a infinita corda de finitudes. Mas, de fato, existe por si a negação pura, o nada. “Isso que é, disse Hegel, só é o infinito”.

O sem-sentido da concepção relativista da história. Não vemos nela finalidades, mas não lhe negamos a presença de sentido. Este já se encontra no próprio desenvolvimento que preserva o princípio positivo sob todas suas transformações. A relatividade também é relativa, disse Lenin. Em essência, é justamente o relativismo de cultura e estilo que permite a medição abstrata da beleza. De onde pensas que todas estas culturas e estilos estão sujeitos a exame na história da arte e não mais além de suas fronteiras? Esta é a pergunta à qual não se pode responder nem o estúdio de arte formalista ocidental, que rechaça a velha estética com seu conceito do belo, nem nossa escola sociológica marxista vulgar encabeçada por V. Friche.

O traço distintivo da primeira é justamente o relativismo: a relatividade absoluta de tudo, a ausência de quaisquer critérios universais objetivos. Mas sob tais condições a própria ciência vem a ser impossível. Pois não sabemos se um fato dado se relaciona com a arte ou não. Enquanto a arte não tem seu valor interno próprio, não é arte. O historiador chega a fundamentar sua razão no testemunho de outros: algo se considerou sublime em sua época. E na realidade? Tal apreciação da questão o exclui ou o substitui por certos critérios externos: o êxito entre os contemporâneos, produtividade na relação quantitativa, “consonante” com nossa época e coisas semelhantes.

A arte grega se liga com determinadas condições sociais. O desenvolvimento ulterior deveria dissolver estas condições, e junto com elas a mitologia, poesia, arquitetura e arte plástica grega. Apareceram novas condições sociais e uma arte nova que lhe correspondia. Logo umas terceiras, quartas e tudo isso é igualmente necessário. Com semelhante concepção do processo histórico, naturalmente, não se pode nem falar de que Marx, de acordo com o mundo grego, chama de “normal”. O princípio do relativismo consiste no estabelecimento da correspondência de algo consigo mesmo e somente consigo. A partir deste ponto de vista tudo é normal. A erupção da pele, segundo a expressão de Marx, “é tão positiva como a própria pele”. De fato: a erupção também tem suas causas. Essencialmente, não é nem positiva nem negativa. A “escola sociológica” deseja estudar os fenômenos da arte a partir do ponto de vista da necessidade histórica, mas os estuda como fenômenos casuais, fatos crus que pertencem a condições de lugar e tempo. Ela desemboca assim na apologia de todo o que alguma vez caiu no círculo de suas investigações (a semelhança dos “historiadores objetivos” a quem Marx se refere no “Dezoito Brumário”). Tal sociologia da arte tem muito em comum com os novos estudos ocidentais da arte (escola de Viena, Worringer, escola de Wolfflin) que também partem do princípio do relativismo de culturas e estilos. Então, que na sociologia da arte determinado estilo se considere como expressão subjetiva de um meio social dado não muda regularmente a partir do ponto de vista do método. Na base jaz a concepção da história como movimento desprovido de sentido de formações finitas alheias.

O princípio único geral que as vincula vem a ser a repetição permanente de um e o próprio esquema tipológico que se conforma a partir de teses e antíteses, do velho ao novo. Em Friche esta é a contraposição da arte monumental-hierárquico e realista de gênero. O primeiro pertence ao coletivismo severo de organismos sociais tais como o despotismo egípcio, o segundo se manifestou claramente na Grécia dos séculos IV-III a.C. e na era moderna burguesa. Segundo este esquema a cultura da sociedade socialista preocupa-se com o tipo monumental-hierárquico que já se reitera na época do imperialismo. Mas foi assim que se figuraram o socialismo de Marx e Lenin?

Este esquema se toma prestado dos novos estudos ocidentais de arte e filosofia da cultura contemporânea que, por outro lado, aduz duas tipologias francamente contrapostas das épocas. Desde o ponto de vista do método aqui tem lugar um retorno à dialética em sua forma pré-hegeliana.

A típica contraposição expressada em termos distintos. Primeiro esquema: ingênuo-sentimental (parabólico); clássico-romântico; apolíneo-faustiano; clássico-barroco. Segundo esquema: abstração-“empatia”; estilizado-imitativo; construtivista-desconstrutivista; construção-composição; monumental-de-gênero.

O segundo esquema se corresponde aos tipos sociais: comunidade e sociedade (Tennies), cultura e civilização (Spengler), etc. Esta nova “teoria das dissonâncias” tem em seu fundamento a contraposição da massa material inerte e o espírito, mas em distintos graus. Já a arte tardia (barroca) é o princípio espiritual da arte arcaica (Egito gótico). Já se idealiza a comunidade medieval, já se põe em primeiro plano todo o passado(5) decadente. Mas em seu conjunto a supremacia está do lado destes dois aspectos que na dialética mais profunda de Hegel antecipam a ascensão clássica e seguem a esta, duas formas que não constituem ou que fragmentam em si a harmonia clássica. Esta última é o inimigo comum de todas estas tipologias em ambos os esquemas que se cruzam uns com os outros.

Historicamente, esta esquemática diverge dos fatos. Assim, Friche, que aplica em geral o esquema de Verworn (ideoplástica — fisioplástica) e Worringer (abstração — empatia), não nota que sua sociedade monumental-sacerdotal se baseia na verdade em um grau extremo na desunião interna dos países, na anarquia interna profundamente dissimulada. Nele, o coletivismo das sociedades monumentais se contrapõe ao individualismo burguês que descompõe a integridade arcaica da vida. Mas isto é somente um aspecto da questão, pois justamente o desenvolvimento do intercambio une a sociedade e cria a possibilidade de sua ascensão cultural. Os esquemas da filosofia da cultura ocidental e nossa “escola sociológica” não somente são unilaterais, mas sim que sempre podem ser a base fatual suficientemente cheia de problemas. Ao confrontá-los com outros esquemas, igualmente unilaterais, estes mesmos demonstram sua inconsistência. Mas o principal consiste em que a reiteração contínua de determinados pares de categorias não pode compreender-se a partir do autodesenvolvimento da história humana, mas sim que requer de certa lei supra histórica, do além (como o diáfano em Wolfflin), suficiente e, por outro lado, carente de sentido.

A principal insuficiência de semelhantes sistemas de critérios é seu relativismo primitivo, a negação da verdade objetiva na arte que se converte no subjetivismo de muitas verdades, “ângulos de visão”, estilos, fenômenos da “vontade artística”, etc. E assim, vê se a fragmentação irremediável da história e da avaliação. Segundo nossa “escola sociológica” todo meio social tem sua expressão sujeita à lei na arte. Mas está a própria realidade em estado de expressar-se esteticamente em suas condições dadas? Daí, a pergunta principal. Existe ou não o florescimento e declive da arte, não a partir do ponto de vista daqueles que encontram a satisfação de seu requerimento mais ou menos estético nas formas dadas de criação artística, mas sim independentemente da percepção subjetiva, a partir do ponto de vista do desenvolvimento objetivo da arte. O consumo determina a produção, a percepção determina a criação. A resolução da contradição entre sujeito e objeto repousa na atividade histórico-social produtiva das pessoas, e o consumo é um momento desta atividade.

A despeito das frases ordinárias de nosso século, a beleza absoluta existe assim como existe a verdade absoluta. Esta se constitui de uma corda de casos de beleza não-absoluta, à semelhança de como a verdade absoluta se conforma de uma corda de erros relativos. Naturalmente, a arte jamais alcança a plenitude em tudo, mas isto não significa que não existam diferenças entre beleza e feiura sob as condições históricas no sentido objetivo e incondicional da palavra. O progresso da ciência se realiza mais uniformemente que o desenvolvimento da arte com seu sentido interno, o artisticamente belo. Mas esta é outra questão, cuja resolução determina as diferenças entre arte e conhecimento teórico; duas formas altíssimas de atividade espiritual.

A análise histórica da arte não exclui a existência de uma escala objetiva de valores. Nos dizem que não se pode comparar diferentes culturas, diferentes artes entre si. Todas elas são simplesmente distintas, diferentes, nem piores nem melhores. Em tal caso, toda a história da arte vem a ser outra coisa. É certo que não se pode comparar coisas distintas? Desde que haja uma base geral, ou seja, arte, isso não é verdade. Ao contrário, somente se pode comparar coisas distintas. Tirem a prova e tentem comparar algo que não seja distinto.

O caráter comparativo dos distintos escalões da história da arte é expressão necessária de seu sentido interno geral. Este se conserva em si sob todas as contradições históricas, e mais se preserva quanto mais específico é o processo de desenvolvimento, ou seja, mais se compensam todas suas perdas no âmbito da species dada, na integridade dada da situação individual. Crítica da velha fórmula “o objetivo é nada, o movimento é o todo”. Não, o objetivo, relativamente realizável, forma o conteúdo positivo do desenvolvimento. “O devir, disse Hegel, é a agitação irresistível que se desmorona sobre um resultado tranquilo”.

A dialética em sua forma genuína não se reduz ao relativismo, mas sim a qualidade concreta da verdade; assim, se chover, é bom do ponto de vista do camponês e ruim do ponto de vista dos senhores com sapatos brancos. A essência do concreto é sim e não em um, a complicação, convergência, do distinto, a bifurcação tanto da própria verdade como de nossas avaliações. O exemplo de Marx: nos limites da velha civilização classista o progresso é a carroça de Yáganatha.(6) Em seu conjunto não é a negação mútua externa do “outro”, do “distinto”, mas sim a contradição, a dualidade que se converte em resultado positivo.

A dualidade do negativo e seu reflexo na consciência. É necessário deduzir duas posições contrapostas, a apologia do progresso e da crítica romântica, a partir da própria natureza da questão. Sua forma preliminar é a discussão sobre o valor comparativo da época antiga e da era moderna.

Em geral o relativismo é a dialética dos tontos. A forma ingênua da dialética se limita à representação geral da fluidez incessante e a abstração que dali emana do “novo” e do “velho”. A todo passo à frente, a todo fenômeno progressivo que se preocupem com os restos do velho e, de tal modo, todos os fenômenos negativos são atribuídos à tradição. Entretanto, o “negativo” também é um elemento do movimento, e o “positivo” reproduz a tradição, a tese primitiva a um escalão superior. E as pessoas que latiram para uma ou outra orelha da dialética, não compreendem que tal é sua forma inicial, como o ritmo esférico, circular, do desenvolvimento é justamente o movimento progressivo!

Tudo flui, tudo muda… Consequentemente, na arte também tudo existe somente a partir do ponto de vista da sociedade ou classe em questão. Se não concordas com isso, significa que estás contra a análise de classe.

Tese cômica! Se vosso gosto não deseja modificar-se conforme modificam as circunstâncias históricas, ou mais precisamente, se não vês a beleza no “novo”, isto suscita a indignação de nossos dialéticos. Como? Não te submetas à lei do movimento universal, à transição do “velho” ao “novo”! Revolta contra as leis da história? Deves encontrar a beleza nisso que não te provoca deleite; caso contrário, estás contra a própria dialética.

A completa inutilidade de semelhante teoria. Ela não brinda nenhuma máxima de conduta, salvo o requerimento de submeter-se a isso que acontece por si, sem ela. Mas a tarefa da ciência marxista não é somente explicar o mundo, encontrar a “base social” do que existe.

É possível o estudo científico do presente, em seu próprio tempo. Não obstante, tal estudo da contemporaneidade como predição de um possível futuro não deve converter-se em reflexão vazia. Posso estudar a mim mesmo, mas daí não se segue que devo negar a mim mesmo e perseguir o estabelecimento de minhas leis em busca de algo que me corresponda em minhas condições históricas. Isto não é pensamento, é reflexão vazia.

Certo, a “escola sociológica” preocupa-se com a análise de um gênero de avaliação no sentido de sua utilidade “desde nosso ponto de vista”. Mas de onde conhecem que é justamente o útil desde nosso ponto de vista? Marx fala do utilitarismo de Bentham: para conhecer o que é útil para o cachorro é necessário estudar a natureza canina, e não construir essa natureza a partir do princípio da utilidade. Mais que nada, o útil é a verdade.

§ 5

A assim chamada escola sociológica (na literatura marxista contemporânea). Imitação dos estudos ocidentais da arte. A teoria de Friche e do romântico Adam Muller. O pleno relativismo e o subjetivismo de nossos “sociólogos”. O rechaço à avaliação objetiva das obras de arte. A ladainha indolente de épocas e estilos, formas sociais e classes, distintos regimes econômicos e artes distintas. A contraprodução, a inutilidade desta preocupação. A incompreensão da contradição entre arte e sociedade em um escalão consabido do desenvolvimento. A transformação de Marx em um apologeta da indústria capitalista. As insuficiências gerais são a incompreensão da dialética (em sua versão positiva).

Existe a opinião surpreendentemente difundida segundo a qual todo seguidor de Marx está obrigado a rechaçar a possibilidade de contradição entre arte e sociedade, sob o risco de quebrar as leis do materialismo histórico. Mesmo com toda sua difusão, esta opinião é errada. Em um consabido nível de desenvolvimento o antagonismo entre as condições sociais e toda a área do belo existe, de outro modo não seria possível falar de florescimento e declive da arte, e, entretanto, sobre isto falam inclusive os inimigos mais extremos do conceito de beleza absoluta que é acessível somente por muitos casos particulares do belo, incomparáveis uns com os outros.

A contradição entre arte e sociedade passou da vida real à cabeça dos ideólogos (que condenam a monstruosidade e prosa da vida), e não o inverso. O erro dos escritores desta corrente que no transcurso de algumas décadas submeteram à vida que lhes rodeia a crítica estética, consistiu unicamente em que eles viram neste antagonismo uma lei tragicamente sempiterna. É fácil de refutar e ainda mais fácil é simplesmente julgar este erro, mas mais difícil é compreender essas condições que uma vez ou outra levam a sua reiteração.

A contradição entre a arte e o desenvolvimento social existe, mas esta contradição não é eterna, mas está condicionada historicamente. Este é um caso particular de sua unidade, um dos momentos do desenvolvimento pan-social.(7) Assim, no exemplo que cita Engels, o “ornitorrinco” é a encarnação da contradição, mas este ser não se fragmenta em elementos contraditórios, mamífero e ave. Sua desarmonia é a forma particular de sua unidade.

Assim, a arte contemporânea corresponde à sociedade contemporânea, mas esta forma de unidade não é semelhante absolutamente à correspondência da arte plástica grega das antigas polis ou à pintura italiana do século XV da cidade do alto medievo. Isso era outra coisa. E todo aquele que ainda não se viu privado de consciência estética deve reconhecer, junto com Marx, que a arte dos últimos séculos (das últimas décadas nem se fala) manifesta a tendência paulatina ao declive. O desenvolvimento de determinadas condições sociais suscita esta decadência da força artística. E aqui, de tal forma, encaramos a plena correspondência mútua da arte e da sociedade segundo a lei geral da concepção materialista da história. Entretanto, a arte contemporânea é digna do nome decadente justamente porque não está em condições de expressar esteticamente a realidade que lhe corresponde, em outras palavras, não corresponde esteticamente a esta. A possibilidade de tal correspondência e tal disparidade, harmonia e desarmonia em um e ao mesmo tempo já o explicou o exemplo neurológico, que pese a correspondência de corpo e espírito não pode reconhecer-se como modelo de harmonia de desenvolvimento físico e psíquico. O momento de surgimento, dissolução e transição em algo mais, em uma palavra, todo estado “não clássico” sempre é em si a unidade de princípios contrários em forma de um agudo antagonismo interno.

De tal modo, é possível considerar a contradição entre o desenvolvimento da arte e a sociedade como uma forma determinada de sua unidade. Assim considera esta questão Karl Marx na conhecida “Introdução”.(8) Ele fala da desigualdade do desenvolvimento histórico. Nisto consiste o sentido genuíno de tais conceitos como “florescimento” e “declive” da arte. Mas o problema da desigualdade não preocupa somente a arte. A desproporção em todas as áreas da vida social ressalta o caráter fundamental do capitalismo em seu lugar na história. A coisa trata sobre a concepção dialética do progresso. A desigualdade é unicamente uma expressão específica de certa lei geral do movimento de uma proporcionalidade a outra através da desarmonia e desproporção da realidade. Tais os três escalões claramente fixados por Marx. Hegel, segundo suas palavras, encontrou a expressão abstrata, lógica e especulativa para o movimento da história que não é ainda a história real do homem, mas sim somente o ato de seu engendramento, a história de seu surgimento. Para Marx a tarefa consistiu em esclarecer de “forma crítica” o movimento compreendido ainda de modo não crítico em Hegel, ou seja, despir esta forma de sua universalidade incondicional e colocá-la em seus limites reais — Cf. Trabalhos preparatórios para a Sagrada Família.(9)

A questão sobre o papel particular do capitalismo como sociedade tergiversada e a teoria geral da desarmonia dos estados “não clássicos”. De fato, a desarmonia sempre surge como elo necessário de todo desenvolvimento, como momento de negação. Mas o ponto está no que (como já se disse) provoca níveis distintos de especificidade da negação, mais ou menos sublimes. No que diz respeito à sociedade mercantil, lhe é inerente justamente a negação não específica, mas sim espontânea, indiferente. De fato, esta negação também é específica em seu gênero, ou seja, passa a ser a negação da negação, se toma um tempo intermédio suficientemente grande para estar sobre um ponto de vista suficientemente amplo para este processo. Em um sentido determinado, se pode dizer que ao capitalismo lhe beneficia justamente isto que é danoso, ou seja, o beneficia não somente a despeito de suas contradições, tergiversações e desproporções (cf. a polêmica de Lenin com as utopias populistas que se reconciliam com o lado “bom” da sociedade burguesa e que rechaçam o “prejudicial”, de modo a assimilar como já fez Proudhon). Por isso, ademais o sofrimento provocado por estes períodos de transição da história de toda a sociedade humana é desmedido, naturalmente, no sentido hegeliano, e não no sentido puramente moral. A partir desta negação desmedida se dá também o “idealismo das coisas” próprio da sociedade capitalista. A história é o desenvolvimento da liberdade, como disse Hegel, mas este processo não é linear, mas sim em zigue-zague. Junto com o crescimento da liberdade cresce também o reino da necessidade material,(10) tal é a contradição interna da liberdade na sociedade capitalista.

O destino da arte se liga intimamente com isto. O valor artístico e o valor material(11) são desproporcionais, incomensuráveis. Quando dizemos “melhor” ou “pior”, quando avaliamos algo, derivamos a avaliação, nesta se incluem ambos os elementos, tanto qualitativo quanto quantitativo (cf. a enciclopédia de Heidelberg, verbete 61). Por isso é evidente que nossa avaliação mais fidedigna, próxima de si mesma, estará ali, onde na realidade o quantitativo e o qualitativo se encontram em equilíbrio. Isto não se pode dizer sobre o mundo contemporâneo no qual predomina a quantidade sem expulsar, naturalmente, a qualidade até o fim, mas rompendo o laço mais íntimo com ela e dominando-a. (É necessário desenvolver isto detalhadamente, esclarecê-lo com os exemplos de papel impassível, nivelador do valor geral).(12) Por isso o mundo contemporâneo não é o mundo clássico do valor e da medida, mas sim o mundo do valor na forma tergiversada do valor. Tanto a quantidade quanto a qualidade se separam uma da outra na forma de dois polos do mundo mercantil, isto brinda as premissas para o desenvolvimento não da arte, mas sim da ciência; e na verdade, somente agora se elimina a confusão do aspecto qualitativo e quantitativo na mercadoria (valor de uso e valor de troca) e se revela o segredo da dualidade do trabalho humano. Esta conquista da ciência se deve à própria unilateralidade do desenvolvimento social na época do capitalismo, ainda que, falando de modo geral, não existe lei tal que este somente pode desenvolver-se às custas de outras áreas do espírito.

A ampla difusão na literatura da assim chamada sociologia da arte dos comentários bárbaros e vulgares para com o capítulo da “Introdução”, que nos retratam Marx como apologeta da indústria capitalista, são completamente falsos. Desenham em cores brilhantes o canto à maquinarização dos meios de produção e comunicação, a racionalização da vida, o ostracismo de toda mitologia, a vitória da impressão sobre a musa, do telégrafo elétrico e para-raios sobre os deuses plásticos da cultura antiga. A arte contemporânea (nos dizem em nome de Marx) deve ser contemporânea. Esta só pode ser arte industrial baseada no cálculo econômico e o caráter racional, e não na beleza e ilusões semelhantes. Não há nada que lamentar na autodestruição da velha arte. Tudo é bom somente para seu tempo, em consequência, para nossa era é bom isso que fazem os artigos contemporâneos. A lei da história atua como o código penal, é necessária submeter-se a ela sem discutir. Esta interpretação da dialética lembra muito os sofismas sensíveis de uma velha canção de soldados: “oh, que pena… não há problema”.

Aqui preocupa a questão dos destinos “trágicos” da arte com relação à história universal. O progresso nem sempre é hostil à arte, e do contrário existe uma grande quantidade de exemplos. De outro lado, quem assevera que o progresso sempre e em todas as relações é bom permite erros ou sofismas. Me fascina como Dom Quixote me conduz sobre os bois, em consequência, o exercício de boi é uma carroça mágica. Harmonia plena!

A barbárie contemporânea: o declive da arte é consequência normal da mais alta instrução, o modo de vida mais racional. Mas se a queda da arte é normal, o é unicamente desde o ponto de vista do capitalismo (que, segundo Marx, é necessário considerar sub sua própria specie), à semelhança de como o normal sob o capitalismo é a não produtividade do trabalho espiritual, a “livre produção espiritual”. A lei de Fourier é o retorno à barbárie nos pináculos da civilização. O curso do pensamento de Marx é completamente claro. O homem que cai na infantilidade é ridículo. Mas acaso não deve ele em um escalão superior esforçar-se para “reproduzir sua verdadeira essência” no infantil? Uma nova infância não é simplesmente o retorno ao ponto de partido, mas sim certo renascimento, negação da negação (o “Verjüng” hegeliano).

Por outro lado, “lebt in der kindesnatur nicht in jeder Epoche ihg eigener Charakter in seiner Naturwahreit auf”?(13) Por acaso o capitalismo não brota dessas relações simples que são a base das formas artísticas clássicas do passado? Tudo o que segue, falando na linguagem de Belinski, é resultado do que precede: o pensamento racional é, frequentemente, somente a tomada de consciência de tradições da antiguidade nebulosa, o conhecido muitas vezes só é a elucidação do pressentimento, e o país dos mitos e dos vaticínios misteriosos é o país dos encantos e milagres plenos.

Em Marx temos, indubitavelmente, um esquema triplo. Entre dois períodos de equilíbrio relativo, clássicos, jaz a época da negação (capitalismo), período de ruptura, de fermentação ininterrupta, dissolução do velho equilíbrio para transitar a um novo. Seria estranho se este fio condutor de toda a teoria histórica e prática política de Marx não se repetisse também em seus critérios estéticos.

Na filosofia da história de Marx, a sociedade comunista é o renascimento das formas clássicas do passado sobre um escalão novo, mais alto. Sob o capitalismo a degradação da arte é inseparável do progresso social geral. Em determinada medida, este fenômeno acompanha toda a civilização baseada na propriedade privada, a economia mercantil e a contradição de classes. Se busca-se paralelos históricos, então a cultura de tipo socialista não é análoga ao coletivismo ilusório das sociedade asiáticas e hierárquicas, mas sim o contraponto a esta. Este último encontra em Marx certa semelhança justamente no desenvolvimento pleno desta esfera privada, que, segundo Friche e outros “sociólogos”, se contrapõe diretamente às culturas monumentais arcaicas. Nas obras de Marx é patente a analogia fácil, mas não casual, entre as primeiras civilizações de classes na Ásia e o capitalismo contemporâneo. Esta é a similitude de princípio e final. Vemos a gula, o sentimento unilateral de possessão, a empiría(14) grosseira e alienação, transcendentalidade do universal, desarmonia com a natureza e o fetichismo, culto à materialidade,(15) despotismo de cima e passividade da pessoa isolada, ruptura de contrários: quantidade e qualidade, movimento e equilíbrio, forma e conteúdo, público e privado, ausência de individualidade desenvolvida, vida desprovida de sentido, apolitismo de massas que cresce, novo “reino espiritual dos animais”.

Todos estes são, para Marx, fenômenos do período de transição desarmônico que conduz à revolução socialista. Este restitui as perdas sofridas pela humanidade neste processo e abre caminho aos novos clássicos. “A arte morreu. Que viva a arte!”, tal é a ideia básica dos critérios estéticos de Marx.

§ 6

A diferença de dialética e relativismo. A infinidade positiva e a infinidade “tediosa” (negativa). Karl Marx e Plekhanov sobre a arte clássica. Crítica à habitual divisão do Plekhanov “estético” (ou seja, que enuncia determinadas avaliações estéticas) do Plekhanov “cognoscitivo” (ou seja, que examina a história da arte a partir do ponto de vista sociológico objetivo). A nova “teoria das duas verdades”. Sobre os assim chamados valores imperecíveis da arte: eles existem. Sua cristalização na realidade na história da arte: escalões históricos e escalões estéticos convergem no desenvolvimento geral, mas este movimento não se realiza uniformemente. A incongruência entre arte e desenvolvimento social (“declive da arte”) é um caso particular da correspondência entre eles. O esquema triplo de Marx: surgimento, período clássico (economia mercantil simples) e dissolução da sociedade de trocas (na história do regime capitalista). Antagonismo da época contemporânea. Transição a uma nova unidade sobre um escalão superior. A infância da sociedade humana e sua hombridade. O pensamento de Hegel sobre o “retorno à juventude” em sua história da filosofia e os reparos de Friedrich Theodor Vischer. O vínculo do ideal estético com a futura sociedade comunista em Karl Marx.


Notas de rodapé:

(1) N. T. No original ‘bez-obráznyj’, um jogo de palavras que pode significar tanto “sem imagem” como “feiura”. (retornar ao texto)

(2) N. E. Certamente se refere aos livros escritos em colaboração entre Wilhelm Wackenroder e Ludwig Tieck: “Efusões sentimentais de um monge apaixonado pela arte” (1797) e “Fantasias sobre a arte, para amigos da arte” (1799). (retornar ao texto)

(3) Plekhanov, G.V.: Obras Completas, 1. 4, p. 211. (retornar ao texto)

(4) N. E. Referência a Yago, o vilão da tragédia de William Shakespeare “Otelo”. (retornar ao texto)

(5) N. T. No original “perezreloie”, que significa “passado, demasiadamente maduro” como em “tendo passado do ponto”. (retornar ao texto)

(6) N. E. Metáfora de uma força que se concebe como implacável e imparável. O termo se originou com a colonização britânica da Índia, inspirado pelo tempo Jagarnnatha e a procissão de Ratha Yatra. (retornar ao texto)

(7) N. T. No original, ‘obschesotzialnogo’ que pode ser também o ‘comunitário-social’, ou ‘geral-social’. (retornar ao texto)

(8) N. E. Referência à “Introdução” à “Contribuição à crítica da economia política” de Marx. (retornar ao texto)

(9) N. T. Trata-se aqui de alguns excertos dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, publicados pela primeira vez em idioma russo de forma incompleta, sob o título Trabalhos Preparatórios para a Sagrada Família, em 1927. Arquivo Marx-Engels (sob a direção de D. Riazanov), Moscou, Leningrado, 1927, livro 3, p. 247–286. (retornar ao texto)

(10) N. T. Lifschitz utiliza aqui o vocábulo ‘beshchestvennoi’ que significa “materialidade”, “realidade”. Deve-se levar em conta que o termo ‘beshchestvennoi’ deriva de ‘beshch’ que significa “coisa” e de ‘beshchestvenno’ que é “substância”, “matéria”, de modo tal que ‘beshchestvennoi é a materialidade, a realidade das “coisas”, a “substancialidade”, a diferença da ‘materialnnosti’ que é o material no sentido de ‘matéria’, da matéria no sentido filosófico. (retornar ao texto)

(11) N. T. Aqui o autor usa a palavra ‘materialnaya’ que é o ‘material’, mas também o ‘pecuniário’, o ‘econômico’, e ademais o ‘material’ como em ‘depósito de materiais’. (retornar ao texto)

(12) N. T. Em russo, o autor utiliza a palavra ‘stoimosti’ que significa “valor” no sentido político-econômico (por exemplo, “teoria do valor”). (retornar ao texto)

(13) N. T. “Não revive na natureza infantil o caráter próprio de cada época em sua verdade natural?” (ver: Marx, K.: Contribuição à crítica da economia política, Biblioteca do pensamento socialista, Editores Século Vinte e Um, 9ª Edição, 2009, p. 312–313. (retornar ao texto)

(14) N. T. No texto original, empirii, palavra russa derivada do grego “empeiría”, que significa literalmente experiência. (retornar ao texto)

(15) N. T. Ver a nota 10. (retornar ao texto)

Inclusão: 13/10/2022