O que é o liberalismo?
Um conjunto de perguntas constrangedoras

Domenico Losurdo

2005


Observação: Editora Ideias & Letras - Tradução: Giovanni Semeraro

Fonte: https://jornalggn.com.br/literatura/lista-de-livros-contra-historia-do-liberalismo-parte-i-domenico-losurdo/ e https://jornalggn.com.br/nao-ficcao/lista-de-livros-contra-historia-do-liberalismo-parte-ii-domenico-losurdo/ e https://jornalggn.com.br/nao-ficcao/lista-de-livros-contra-historia-do-liberalismo-parte-iii-domenico-losurdo/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


As respostas usuais à pergunta que nos colocamos não deixam dúvidas: o liberalismo é a tradição de pensamento que situa no centro de suas preocupações a liberdade do indivíduo, desconsiderada ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientação. Sendo assim, como situar John C. Calhoun? Este eminente estadista, vice-presidente dos Estados Unidos, na metade do século XIX, entoa um hino apaixonado à liberdade do indivíduo e, inspirando-se também em Locke, o defende energicamente contra qualquer imposição e contra toda a indevida interferência do poder do Estado. Mas, isso não é tudo. Juntamente com os “governos absolutos” e a “concentração do poder”, ele não cansa de criticar e condenar o fanatismo(1) e o espírito de “cruzada”(2), aos quais contrapõe o “compromisso” como princípio inspirador dos autênticos “governos constitucionais”(3). Com igual eloquência, Calhoun defende o direito das minorias: não se trata apenas de garantir pelo sufrágio a alternância ao governo de diversos partidos: um poder excessivamente amplo é sempre inaceitável, mesmo limitado no tempo e amenizado pela promessa ou pela perspectiva da periódica inversão das funções na relação entre governantes e governados(4). Não há dúvida, teríamos aqui todas as características do pensamento liberal mais maduro e sedutor; no entanto, por outro lado, desdenhando os meios-termos e a timidez ou o temor dos que se limitavam a aceitá-la como um “mal” necessário, Calhoun proclama que a escravidão, ao contrário, é um “bem positivo” ao qual a civilização nunca pode renunciar. Certamente, ele denuncia repetidamente a intolerância e o espírito de cruzada, não para colocar em discussão a subjugação dos negros ou a caça impiedosa aos escravos fugitivos, mas sempre e somente para estigmatizar os abolicionistas, estes “cegos fanáticos”(5), que consideram ser “sua mais sagrada obrigação lançar mão de todos os recursos para destruir” a escravidão, uma forma de propriedade legítima e garantida pela Constituição(6). Observe-se que das minorias defendidas com tanto vigor e tanta sabedoria jurídica não fazem parte os negros. Ao contrário, neste caso, a tolerância e o espírito de compromisso parecem se reverter: se o fanatismo conseguir realmente levar adiante o ensandecido projeto de abolição da escravidão, haveria “a extirpação de uma ou outra raça”(7). E, considerando as concretas relações de força existentes nos Estados Unidos, não seria difícil imaginar qual das duas iria sucumbir: portanto, os negros poderiam sobreviver só continuando na condição de escravos. (...)

Estamos diante de um dilema. Se à pergunta aqui formulada (Calhoun é ou não é liberal?) respondemos afirmativamente, não podemos mais sustentar a tradicional (e edificante) configuração do liberalismo como pensamento e vontade da liberdade. Se, ao contrário, respondemos negativamente, esbarramos diante de uma nova dificuldade e de uma nova pergunta, não menos problemática que a primeira: por que deveríamos continuar a atribuir a dignidade de pai do liberalismo a John Locke? Sim, Calhoun fala da escravidão dos negros como de um “bem positivo”, mas embora utilize uma linguagem tão altissonante, também o filósofo inglês, ao qual o autor estadunidense remete explicitamente, considera óbvia e natural a escravidão nas colônias e contribui pessoalmente para a formalização jurídica desse instituto na Carolina. Participa na redação da norma constitucional pela qual “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opinião e religião”(15). Locke é “o último grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua”(16). O que não lhe impede de atacar com palavras de fogo a “escravidão” política que a monarquia absoluta queria impor (Dois tratados sobre governo, de agora em diante TT, I, 1); de maneira análoga em Calhoun a teorização da escravidão negra como “bem positivo” anda de mãos dadas com o alerta contra uma concentração dos poderes que corre o risco de transformar “os governados” em “escravos dos governantes”(17). Afinal, o estadista americano é proprietário de escravos, mas também o filósofo inglês tem sólidos investimentos no tráfico dos negros(18). (...)

Vimos Mill tomar posição a favor da União e condenar os “autodenominados” liberais que gritam escandalizados diante da firmeza com que ela conduzia a guerra contra o Sul e controlava aqueles que, no próprio Norte, se inclinavam a aceitar a secessão escravista. Mas, veremos que, com o olhar voltado para as colônias, o liberal inglês justifica o “despotismo” do Ocidente sobre as “raças” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma “obediência absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do progresso. É uma formulação que não iria desagradar Calhoun, que também legitima e celebra a escravidão quando ele também se refere ao atraso e à menoridade da população de origem africana: só na América, e graças aos cuidados paternais dos patrões brancos, a “raça negra” consegue avançar e passar da anterior “condição ínfima, degradada e selvagem” para a nova “condição relativamente civilizada”(32). Para Mill, “qualquer meio” é licito para quem assume a tarefa de educar as “tribos selvagens”; a “escravidão” às vezes é uma passagem obrigatória para conduzi-las ao trabalho e torná-las úteis à civilização e ao progresso (infra, cap. VII, § 3). Mas esta é também a opinião de Calhoun, para o qual a escravidão é um meio inevitável para chegar a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidão à qual, conforme o teórico e político estadunidense, devem ser submetidos os negros, a ditadura pedagógica de que fala Mill está destinada a se dissolver em um futuro, embora remoto e problemático; o outro lado da medalha é que a esta condição de falta de liberdade está explicitamente subjugado não apenas um grupo étnico particular (o pequeno pedaço de África situado no coração dos Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente tomados pela expansão colonial e obrigados a sofrer o “despotismo” político e formas de trabalho servil ou semiservil. Exigir a “obediência absoluta”, por um período de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade é compatível com a profissão de fé liberal ou é sinônimo de “autodenominado” liberalismo?”

“Para os colonos rebeldes o governo de Londres, que impõe soberanamente a taxação a cidadãos ou súditos que inclusive não estão representados na Câmara dos Comuns, comporta-se como um patrão em relação aos escravos. Mas — objetam os outros — se for mesmo necessário falar de escravidão, por que não começar a colocar em discussão aquela que se manifesta de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandiloquência se aclama a liberdade? Já em 1764, Franklin, na época em Londres para defender a causa dos colonos, deve enfrentar os comentários sarcásticos dos seus interlocutores:

“Vós americanos fazeis um grande alarido frente à menor violação imaginária das vossas liberdades consideradas tais; contudo, neste mundo não há um povo tão tirânico, tão inimigo da liberdade como é o vosso quando isto lhe convém”(42).

Os pretensos campeões da liberdade retratam como sendo sinônimo de despotismo e de escravidão uma imposição fiscal promulgada sem o seu explícito consenso, mas não têm escrúpulo para exercer o poder mais absoluto e mais arbitrário em detrimento dos seus escravos. É um paradoxo: “Como se explica que os gritos mais elevados de dor pela liberdade se elevam dos caçadores de negros?" — pergunta-se Samuel Johnson. De forma análoga, no outro lado do Atlântico ironizam os que procuram contrastar a secessão. Thomas Hutchinson, governador régio do Massachusetts, acusa os rebeldes de incoerência ou hipocrisia: negam radicalmente aos africanos aqueles direitos que proclamam como sendo “absolutamente inalienáveis”(43). Em sintonia com este, um legalista americano (Jonathan Boucher) refugiado na Inglaterra, rememorando os acontecimentos que o haviam levado ao exílio, observa: “Os mais barulhentos advogados da liberdade eram os mais duros e mais selvagens patrões de escravos”(44).

Com tanta dureza não falam apenas as personalidades mais diretamente envolvidas na polêmica e na luta política. É, particularmente, mordaz a intervenção de John Millar, expoente de primeira linha do iluminismo escocês:

“É singular que os mesmos indivíduos que falam com estilo refinado de liberdade política e que consideram como um dos direitos inalienáveis da humanidade o direito de impor as taxas não tenham escrúpulo em reduzir uma grande quantidade dos seus semelhantes a condições de serem privados não apenas da propriedade, mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte nunca produziu uma situação maior do que esta para ridicularizar uma hipótese liberal ou mostrar quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida por algum princípio filosófico”(45).

Millar é um discípulo de Adam Smith. O mestre, também, parece pensar da mesma forma. Quando declara que ao “governo livre”, controlado pelos proprietários de escravos, prefere o “governo despótico” capaz de cancelar a infâmia da escravidão, faz explícita referência à América. Posto em termos imediatamente políticos, o discurso do grande economista significa: o despotismo acusado na Coroa é preferível à liberdade reivindicada pelos proprietários de escravos e que beneficia apenas uma restrita classe de fazendeiros e patrões absolutos.”

“A troca de acusações entre colonos rebeldes e ex-pátria-mãe, ou seja, entre os dois troncos do partido que até então havia se vangloriado de ser o partido da liberdade, é uma recíproca, impiedosa desmistificação. A Inglaterra que desponta da Revolução Gloriosa não se limita a evitar a discussão sobre o comércio dos negros; não, esta conhece agora um poderoso desenvolvimento(59) e, por outro lado, um dos primeiros atos de política internacional da nova monarquia liberal consiste em arrancar da Espanha o monopólio do comércio dos escravos. No lado oposto, a revolução que eclode na outra margem do Atlântico em nome da liberdade comporta a consagração oficial do instituto da escravidão e a conquista e o exercício por longo tempo da hegemonia política por parte dos proprietários de escravos.

Talvez, a intervenção mais articulada e mais sofrida no âmbito dessa polêmica veio de Josiah Tucker, “padre e tory, mas de resto uma boa pessoa e um valioso economista”(60). Ele denuncia o papel proeminente da Inglaterra no comércio dos negros: “Nós, os orgulhosos Campeões da Liberdade e os declarados Advogados dos Direitos naturais da Humanidade, nos dedicamos a esse comércio desumano e criminoso mais profundamente do que alguma outra nação”. Mas, ainda mais hipócrita é o comportamento dos colonos rebeldes: “Os advogados do republicanismo e da suposta igualdade da humanidade deveriam ser os primeiros a sugerir algum humano sistema de abolição da pior de todas as escravidões”(61). E, no entanto...”

“O primeiro país a entrar no caminho do liberalismo é o País que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidão. Pelo que se sabe, são os colonos de origem holandesa os que opõem a mais dura resistência às primeiras medidas abolicionistas, aquelas introduzidas no Norte dos Estados Unidos no decorrer e na esteira da revolução(72). No tocante à Holanda propriamente dita, em 1791, os Estados gerais declaram formalmente que o comércio dos negros é essencial para o desenvolvimento da prosperidade e do comércio nas colônias. Sempre nesse mesmo período, diferenciando-se nitidamente da Inglaterra, a Holanda reconhece aos proprietários de escravos o direito de transportar e de depositar a sua mercadoria humana na pátria-mãe antes de voltar às colônias. Enfim, deve-se lembrar que a Holanda abole a escravidão nas suas colônias apenas em 1863, quando já a Confederação secessionista e escravista do Sul dos Estados Unidos caminha para a derrota(73).”

“Mas para poder ser explicado, antes de mais nada, esse paradoxo deve ser exposto em toda a sua radicalização. A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do séc. XIX”(1). O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo de poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Grã-Bretanha é a que possui o maior número de escravos (878.000). Não há nada de óbvio nesse dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a Espanha segue a muita distância. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000 escravos e que na verdade é uma espécie de semicolônia da Grã-Bretanha: boa parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acaba em Londres(2). Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo pela sua posição absolutamente eminente é o país que está ao mesmo tempo na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução Gloriosa. Por outro lado, é o próprio Pitt, o jovem, quem em sua intervenção em abril de 1792 na Câmara dos Comuns sobre o tema da escravidão e do tráfico dos negros, reconhece que “nenhuma nação na Europa [...] está tão profundamente mergulhada nessa culpa como a Grã Bretanha”(3).”

“Durante a sua permanência em Londres, posto em dificuldade pelos seus interlocutores ingleses, que zombam da bandeira da liberdade agitada pelos colonos muitas vezes proprietários de escravos, Franklin reage evidenciando a persistência na Inglaterra de relações escravistas até no âmbito das forças armadas(35). Refere-se particularmente à marinha. Vamos dar a palavra aos historiadores dos nossos dias: “Os marinheiros eram tão mal pagos, mal alimentados e maltratados, que era impossível recrutar tripulações com alistamento voluntário”. Muitos procuravam escapar desta espécie de sequestro de pessoa, mas a Grã-Bretanha os perseguia, sem hesitar em bloquear os navios americanos e capturar com a força das armas os desertores, inclusive os que haviam se tornado cidadãos estadunidenses. Era necessário recorrer a estes métodos drásticos para garantir o funcionamento de “mais de 700 navios de guerra com cerca de 150.000 homens”(36). Eis então que também Calhoun denuncia, assim como Franklin, a “escravidão dos nossos marinheiros recrutados à força”(37).

Tratava-se de um motivo bastante divulgado na imprensa da época: na própria Inglaterra, os defensores da escravidão evidenciavam a analogia entre esse instituto e o recrutamento forçado da marinha: as duas práticas eram justificadas pelas circunstâncias excepcionais, ou pela necessidade de manter respectivamente as colônias e a marinha militar; por outro lado, o abolicionista Sharp condenava ambas as práticas(38). Ao contrário, quem fazia distinções era William Wilberforce, acusado de hipocrisia pelos seus adversários(39): o piedoso pastor comovia-se pelos escravos negros, mas era insensível aos sofrimentos não menos graves padecidos por aquela espécie de escravos brancos sobre os quais se fundavam a potência militar e a glória do Império britânico. O argumento não podia ser desprezado: os marinheiros eram “recrutados com a força pelas ruas de Londres e Liverpool”(40), e na população não havia instituição mais odiada do que a press-gang, o recrutamento forçado(41). A que tipo de condições eram depois submetidos pode ser facilmente deduzido pela comparação indireta que Locke traça entre o poder do “capitão de uma galé” e aquele do “senhor dos escravos” (TT, II, 2). A captura dos marinheiros nos bairros populares tinha pontos em comum com a captura dos negros na África.

Por outro lado, não se tratava apenas da marinha. Uma estudiosa contemporânea sintetiza assim a condição desses “detentos em uniforme” (militar) que eram na realidade os soldados, chamados a defender em todos os cantos do mundo um Império em rápida expansão:

“Eram embarcados e levados para terras longínquas muitas vezes em condições repugnantes e até contra a própria vontade. Podiam ser separados por décadas e às vezes para sempre das suas famílias, das suas mulheres e da sua cultura de origem. Se julgados desobedientes ou rebeldes, eram facilmente chicoteados. Se condenados por tentar a fuga podiam sofrer a pena capital; mas permanecendo no lugar e obedecendo às ordens era de qualquer modo provável que morressem de morte prematura”(42).

Por outro lado, é significativa a maneira pela qual Locke descreve a “prática corrente na disciplina militar”: “A preservação do exército e, com ele, do Estado no seu conjunto exige obediência absoluta das ordens de qualquer oficial superior, e desobedecer ou discutir mesmo as mais irracionais significa exatamente a morte. Contudo, observa-se que nem o sargento, que pode dar ordens a um soldado de marchar em direção à boca de um canhão ou de ficar em lugares onde a morte é quase certa, pode dar ordens para que aquele soldado venha a lhe dar algum dinheiro; nem o general, que pode condená-lo por deserção ou por não ter executado as ordens mais impossíveis, pode, com todo o seu absoluto poder de vida e de morte, dispor de um centavo de propriedade daquele soldado ou apropriar-se de uma migalha dos seus bens; isto, mesmo podendo exigir qualquer coisa e podendo enforcá-lo pela menor desobediência” (TT, II, 139).

Dá particularmente o que pensar o “absoluto poder de vida e de morte” que o oficial exerce sobre os seus subordinados. É a expressão que Locke normalmente usa para definir a essência da escravidão. Trata-se de uma amplificação retórica? Já em Grotius encontramos a observação pela qual a condição do escravo não é muito diferente da condição do soldado (JBP, II, V, § 28). Mas, vamos nos concentrar sobre a Inglaterra liberal. A taxa de mortalidade dos soldados na viagem para a Índia é comparável à que atingia os escravos negros ao longo da sua deportação de um lado para o outro do Atlântico. Por outro lado, os soldados ingleses eram submetidos à punição tradicionalmente reservada aos escravos, isto é, ao chicote, e de maneira paradoxal continuaram a ser submetidos a isso mesmo quando essa disciplina havia sido abolida pelas tropas indianas(43).

No exército as relações de poder reproduzem as existentes na sociedade. A figura do soldado tende a coincidir com a do servo. No início do séc. XVIII Defoe observa: “Qualquer homem deveria desejar carregar o mosquete antes que morrer de fome. [...] É a pobreza que torna os homens soldados, que leva as multidões nos exércitos”(44). No final do século Townsend reafirma que “a indigência e a pobreza” podem empurrar “as classes inferiores do povo a enfrentar todos os horrores que os esperam no oceano tempestuoso ou sobre o campo de batalha”(45). Quer dizer, nas palavras de Mandeville, “as durezas e o peso da guerra, tudo o que suporta pessoalmente, recaem sobre os que sustentam qualquer coisa”, isto é, sobre os servos habituados a trabalhar e a sofrer “de maneira semelhante aos escravos”(46). Neste sentido, a figura do oficial tende a coincidir com a do senhor, e declarado e até ostentado é o desprezo que os oficiais-senhores têm em relação à tropa: nas palavras de um soldado simples, esta era “como a classe mais ínfima de animais, digna só de ser governada com o gato de sete rabos”(47), ou seja, com o chicote capaz de infligir as punições mais sádicas, as que normalmente são reservadas aos escravos desobedientes.

Podemos entender então as dificuldades do recrutamento militar: “as prisões são rastreadas para extrair delas malfeitores a serem recrutados”; o oficio do soldado — observa Defoe — é repassado particularmente a “homens provenientes da forca”(48). E esses eram em grande número na época. De 1688 a 1820 os crimes que comportavam a pena de morte passam de 50 a 200-250, e trata-se quase sempre de crimes contra a propriedade: enquanto até 1803 a tentativa de homicídio é considerada crime leve, o furto de um shilling (quer dizer de um lenço) ou o corte abusivo de uma cerca ornamental podem levar à forca; e é possível ser entregue ao carrasco também com a idade de onze anos(49). Em alguns casos, quem corre esse risco são crianças de idade inferior: em 1833 a pena capital é aplicada a um pequeno ladrão de nove anos, embora a sentença não tenha sido executada.”

“O “grande rapto herodiano das crianças” pobres

Entre a força de trabalho imposta chamada a assegurar o desenvolvimento das colônias havia também crianças de condição pobre, atraídas enganosamente com doces, raptadas e deportadas para o outro lado do Atlântico(63). Diversamente, chegam à América juntamente com os seus pais, que muitas vezes são obrigados a vendê-los para nunca mais vê-los. Na Inglaterra, por outro lado, a situação das crianças de origem popular não era muito melhor. Marx denuncia “o grande rapto herodiano das crianças realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas dos pobres e dos orfanatos, por meio do qual chegou a incorporar um material humano totalmente desprovido de vontade”(64). Indo além da utilização dos orfanatos como fonte de força de trabalho a baixo custo e mais ou menos coercitiva, é possível fazer aqui uma consideração de caráter mais geral. Se na teoria e na prática protoliberal do tempo o trabalhador assalariado é, como veremos daqui a pouco, o instrumentum vocale de que fala Burke ou a “máquina bípede” nas palavras de Sieyès, os seus filhos são em última análise res nullius, destinados à primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de instrumentos e máquinas de trabalho. Locke declara explicitamente que as crianças pobres, a serem encaminhadas ao trabalho desde os três anos de vida, devem ser “retiradas das mãos dos pais”(65). Embora distante mais de um século não é diferente a atitude de Bentham. Este convida a se inspirar nos “exemplos de fábricas (manufactures) onde crianças até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e onde crianças com algum ano a mais ganham do que viver e bem”(66). É licito e benéfico “tomar as crianças das mãos dos pais o mais possível e até totalmente”. Não se deve hesitar:

“Vocês podem jogá-las em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem tenderem. Poderiam permitir, sem remorso, aos pais de dar uma espreitada por trás da cortina no lugar do mestre [...]. Poderiam manter separados por dezessete ou dezoito anos os vossos jovens alunos homens e mulheres”(67).

A sociedade pode dispor completamente dos filhos dos pobres. Somos levados a pensar na sorte reservada aos escravos no outro lado do Atlântico. Para pôr fim à sua presença no solo americano — sugere Jefferson — se poderia adquirir a baixo preço e até obter grátis os negros recém-nascidos, entregá-los “à tutela do Estado”, submetê-los ao trabalho o mais cedo possível e assim recuperar em grande parte as despesas necessárias para a “deportação” a Santo Domingo, a ser colocada em ato no momento oportuno. Certamente, “a separação das crianças das suas mães pode gerar escrúpulos humanitários”, mas não é necessário ser tão sensíveis(68). Embora ele seja motivado pelo cálculo econômico mais do que pela preocupação da pureza racial, resta o fato de que, com os filhos dos pobres na Inglaterra, Bentham gostaria de agir de modo ainda mais ousado:

“Uma casa de inspeção, à qual fosse entregue um grupo de crianças desde o nascimento, permitiria um bom número de experimentações [...] O que vocês acham de um internato fundado sobre esse princípio?”(69)

Veremos que Bentham pensa também em experimentações de caráter eugenético. Mas, por enquanto, se pode chegar a uma conclusão, dando a palavra a um economista inglês (Edward G. Wakefield), que em 1834 publica um livro de sucesso dedicado à comparação entre América e Inglaterra: “Não sou eu, é toda a imprensa inglesa que chama de escravos brancos as crianças inglesas” de derivação popular. A maioria é obrigada a trabalhar por um tempo tão longo que chega a cair no sono sem perceber, para ser depois acordada e obrigada novamente ao trabalho mediante pancadas e tormentos de toda espécie. Quanto aos órfãos, é possível se livrar deles de modo muito simples: nas portas das casas de trabalho há anúncios que promovem a sua venda. Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados assim no mercado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regiões rurais a mercadoria em questão é ainda mais barata(70)

“Centenas ou milhares de miseráveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia”

Sobre essa massa de miseráveis pesa uma legislação que certamente não é caracterizada por garantias. Havia mandatos em branco, que permitiam à polícia prender ou revistar uma pessoa a seu bel-prazer. Eliminado da quarta emenda da Constituição americana, este “intolerável instrumento de opressão”, para retomar a definição do liberal francês Laboulaye(71) em 1866, continua a subsistir por muito tempo na Inglaterra. O próprio Smith, não conseguindo justificá-lo, procura minimizá-lo. Admira-se pelo fato de que a “gente comum”, no lugar de defender a livre circulação e o comércio da força de trabalho, manifesta toda a sua indignação “contra os mandatos gerais de prisão (general warrants), prática sem dúvida abusiva, mas que não parece capaz de determinar uma opressão geral”(72).

A própria pena de morte é infligida não só com grande facilidade, mas também com algumas arbitrariedades. Com a publicação em 1723 do Black Act — os Blacks provavelmente eram ladrões de cervos — em alguns casos não há necessidade de recorrer a um processo formal para cominar a pena capital, pois esta entrega ao carrasco também os que ajudaram de qualquer maneira o ladrão a escapar da justiça(73).

Sem perturbar-se, Mandeville reconhece que é cancelada a “vida de centenas, de milhares até, de miseráveis delinquentes, quotidianamente enforcados por alguma inépcia”(74); a execução torna-se muitas vezes um espetáculo de massa com finalidades pedagógicas(75). O liberal inglês exorta os magistrados a não se deixar estorvar nem por uma “comoção” fora de lugar nem por dúvidas e escrúpulos excessivos. Certamente, os ladrões poderiam ter cometido o roubo levados pela necessidade: “o que podem ganhar honestamente não é suficiente para sustentá-los”; e, “no entanto a justiça e a paz da sociedade exigem que os culpados “sejam enforcados”. Claro, “talvez as provas não sejam totalmente certas ou são insuficientes” e há o risco de levar à morte um inocente; mas, por “terrível” que isso possa ser, é necessário de qualquer modo alcançar o objetivo que “nenhum culpado fique impune”. Seria grave se juízes muito escrupulosos preferissem a “própria serenidade”, à “vantagem” da “nação”(76). Os tribunais dos juízes-proprietários são chamados a funcionar como uma espécie de Comitê de saúde pública.

Podemos chegar então à conclusão de que, mesmo querendo abstrair das colônias no seu conjunto (inclusive a Irlanda), na própria Inglaterra o gozo pleno de uma esfera privada de liberdade garantida pela lei — a “liberdade moderna” ou “negativa” da qual falam respectivamente Constant e Berlin(77) — é o privilégio de uma restrita minoria. A massa é submetida a uma regulamentação e a uma coerção, que ultrapassam o lugar do trabalho (ou o lugar de punição que não é só o cárcere, mas abrange também as casas de trabalho e o exército). Se Locke se propõe a regulamentar o consumo de álcool das classes populares, Mandeville considera que a elas, pelo menos aos Domingo, “deveria ser impedido [...] o acesso a todo tipo de diversão fora da igreja”(78). Em relação ao álcool, Burke argumenta de maneira diferente: embora não tenha propriedades nutritivas, ele pode pelo menos aliviar o estímulo da fome no pobre; por outro lado, “em qualquer época e em toda nação” o álcool, juntamente com o “ópio” e o “tabaco”, tem sido chamado a fornecer as “consolações morais” que às vezes são necessárias para o homem”(79). Ora, mais do que o disciplinamento de operários e vagabundos, como em Locke e Mandeville, o problema é o encobrimento da consciência e do sofrimento do faminto em geral. A tendência a governar a existência das classes populares até nos seus aspectos mais miúdos permanece inabalável. A referência ao ópio acrescenta apenas um toque de cinismo. Mais tarde, os próprios relatórios das comissões governamentais de inquérito vão denunciar a catástrofe: nos bairros mais pobres se alastra o consumo do ópio, que se torna um meio de alimentação ou um seu paliativo; às vezes, ele é oferecido até aos lactantes, os quais “se encolhem como macaquinhos e enrugam como velhinhos”(80).

Essa regulamentação capilar não pode obviamente deixar de lado a religião. Para Locke, a iniciação das crianças pobres ao trabalho desde os três anos é uma medida benéfica não apenas no plano econômico, mas também no âmbito moral: ela oferece a “oportunidade de obrigá-los a ir à igreja regularmente todo domingo, ao lado dos seus próprios mestres, e com isso ensinar-lhes o sentido da religião”(81). Por outro lado, Mandeville exige que a frequência à igreja aos Domingo e a doutrinação religiosa tornem-se uma obrigação para os pobres e os iletrados”. Não é suficiente apelar à espontaneidade do sentimento religioso: “É um dever premente para todo magistrado tomar conta particularmente” do que acontece aos Domingos: “os pobres e as suas crianças deveriam ser dirigidos para a igreja de manhã e de noite”. Os resultados positivos não vão faltar: “Se os magistrados tomarem todas as medidas ao alcance deles, os ministros do Evangelho poderão inculcar nos cérebros mais fracos” a devoção e a virtude da obediência(82).

Além de sua vida privada, as classes populares são ainda mais controladas na vida pública que, entre tantas dificuldades, procuram alcançar: “Entre 1793 e 1820, foram aprovados pelo Parlamento mais de sessenta decretos voltados a reprimir ações coletivas da classe operária”(83). Bem antes da atividade sindical propriamente dita, quer dizer, da ação direta a elevar o nível dos salários e a melhorar as condições de trabalho, o que é visto com suspeita é a tentativa dos servos de sair do isolamento e de comunicar-se entre eles. Estes — troveja alarmado Mandeville — “se reúnem impunemente quando querem”. Desenvolvem até relações de recíproca solidariedade: procuram ajudar o colega licenciado ou punido pelo seu patrão. Só pelo fato de não se limitar à relação vertical e subalterna com os seus superiores e de querer desenvolver relações horizontais entre eles, os servos devem ser considerados responsáveis de uma subversão inadmissível: “usurpam a cada dia os direitos dos seus patrões e fazem de tudo para se colocar no mesmo nível”; estão “perdendo aquele sentido de inferioridade que apenas poderia torná-los úteis ao bem-estar público”. Ultrapassando qualquer limite, o servo assume poses de gentlmen: é a comédia do “servo-gentlmen”, uma comédia que, se não for interrompida rapidamente, pode transformar-se em uma “tragédia” para a nação inteira(84).

Nesse contexto, revela-se particularmente significativa a tomada de posição de Adam Smith. Ele reconhece que “não existem leis do parlamento contra as coalizões voltadas a baixar o preço do trabalho enquanto há muitas contra as coalizões voltadas a elevá-lo”. Por outro lado: “os patrões sendo em número menor podem unir-se mais facilmente [...]. Os patrões estão sempre e em qualquer lugar em uma espécie de tácita mas nem por isso menos constante e uniforme coalizão voltada a impedir o aumento dos salários acima do nível atual” ou voltada a “baixar ulteriormente o nível dos salários”(85). Portanto, mesmo se no plano legislativo patrões e operários são tratados da mesma forma, os primeiros continuariam sempre a gozar de uma situação de vantagem. Por outro lado, eles são favorecidos também pelas condições de vida muito precárias em que se encontra a contraparte:

“Para pressionar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos meios mais clamorosos e às vezes às violências e às ofensas mais impressionantes. São desesperados e agem com a loucura e os excessos de homens desesperados que devem morrer de fome ou obrigar os seus patrões a aceitar as suas solicitações”(86).

Isso não impede Smith de recomendar ao governo de agir com rigor contra as coalizões operárias. Certamente, “é difícil que pessoas do mesmo ofício se encontrem para festejar e se divertir, sem que a conversação termine com uma conspiração contra o Estado ou com algum outro expediente para elevar os preços”. Por outro lado, é “impossível impedir esses encontros por meio de uma lei compatível com a liberdade e a justiça”. Mas, o governo deve prevenir qualquer agregação operária, mesmo a mais casual e, aparentemente, mais inócua. Por exemplo, a obrigação do registro burocrático para os que exercem um determinado oficio acaba por colocar “em relação entre eles indivíduos que diversamente poderiam não se conhecer uns aos outros”. Em nenhum caso pode ser tolerado “um regulamento que autoriza os que desempenham o mesmo ofício a se taxar para providenciar aos próprios pobres, aos próprios doentes, às próprias viúvas e aos próprios órfãos, atribuindo-se um interesse comum a ser administrado”(87). Portanto, não apenas a ação sindical, mas também uma sociedade de mútuo socorro deve ser considerada ilegal. No entanto, Smith reconhece que estamos na presença de “homens desesperados”, que arriscam a morte pela inédia. Mas, esta consideração passa em segundo plano em relação à necessidade de evitar reuniões, “conversações”, agregações que tendem a serem sinônimos de “conspiração contra o Estado”.

Com o intuito de criminalizar desde a origem qualquer associação popular, a classe dominante recorre a métodos ainda mais sumários, que podemos descrever com as palavras de Constant: é “o horrendo expediente de enviar espiões e atiçar os espíritos ignorantes e propor-lhes a revolta para depois podê-la denunciar”. Os resultados não faltam: “Os miseráveis seduziram os que tiveram a desventura de ouvi-los e provavelmente acusaram também os que não conseguiram seduzir”. E sobre ambos se abate a justiça(88). (...)

O que aqui está sendo tão apaixonadamente invocado é um Todo que exige o sacrifício não momentâneo, mas permanente da grande maioria da população, cuja condição é tanto mais trágica pelo fato de que aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. Pelo contrário, só vislumbrar projetos que apontem nessa direção é sinônimo não apenas de utopismo abstrato mas também e sobretudo de perigoso subversivismo. Segundo Townsend, “o capital de felicidade humana é fortemente acrescido” pela presença de “pobres”, obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos. Os pobres merecem plenamente a própria sorte por serem gastadores e vagabundos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura eles chegassem a se emendar: “As frotas e os exércitos do Estado sentiriam a falta de marinheiros e soldados, se a sobriedade e a diligência prevalecessem universalmente”(90). Também a economia do país viria a se encontrar em uma situação muito difícil. À mesma conclusão chega Mandeville: “Para a felicidade da sociedade é necessário que a grande maioria permaneça ignorante e pobre”; “a riqueza mais segura consiste em uma massa de pobres laboriosos”(91). E agora vamos ler Arthur Young: “Todos, menos os idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de ser produtivas”(92) e de contribuir à “riqueza das nações” de que fala Smith. Mais tarde, na França, às mesmas conclusões chega Destutt de Tracy: “As nações pobres são aquelas em que o povo vive em condições de bem-estar, enquanto as nações ricas são aquelas em que ele fica normalmente pobre”(93). Por que não é percebida como contraditória a proposição, nas suas diferentes variações, em base à qual a felicidade e a riqueza da sociedade dependem do esgotamento e das privações dos pobres que constituem a grande maioria da população? Quem explica a lógica desse Todo em suas características singulares é Locke: os escravos “não podem ser considerados parte da sociedade civil, cuja finalidade principal é a conservação da propriedade” (TT, II, 85). E esta é também a opinião de Algernon Sidney: “Um reino ou uma comunidade [...] é composta de homens livres e iguais; os servos podem estar presentes nela, mas não são seus membros”; sim, “nenhum homem, enquanto é servo, pode ser membro do Estado” (commonwealth); nem membro do povo ele é, porque o “povo” é o conjunto dos “homens livres”(94). Os pobres são a casta servil da qual a sociedade tem necessidade, são o fundamento subterrâneo do edifício social, são os que depois Nietzsche vai definir como “cegas toupeiras da cultura”.”

“Aos olhos de Locke, não é propriamente capaz de vida intelectual e moral “a maior parte da humanidade destinada ao trabalho e tornada escrava (enslaved) pelas necessidades da sua condição medíocre e cuja vida se consome apenas na busca das suas necessidades”. Completamente “absorvidas pelo esforço de acalmar o murmúrio do seu estômago ou os gritos dos seus filhos”, essas pessoas não têm a possibilidade de pensar em outra coisa:

“Não podemos esperar que um homem submetido durante a vida inteira a um trabalho cansativo conheça a variedade das coisas que há no mundo mais do que um cavalo de carga, que conduzido para cima e para baixo pelo mercado através de sendas estreitas e estradas imundas possa ser especialista da geografia do país”. Locke não hesita em afirmar que “entre alguns homens e outros há uma distância maior que entre alguns homens e alguns animais”: para entender bastaria comparar de um lado o “palácio de Westminster” e a “Bolsa” e do outro os “hospícios de mendicância” e o “manicômio”(97). Imperceptível e evanescente é a linha que separa mundo humano e mundo animal. “Se compararmos o intelecto e as habilidades de alguns homens e de alguns animais, encontraremos uma diferença tão pequena que será difícil dizer que as do homem são mais claras e mais extensas”(98).”

“A “democracia para o povo dos senhores” entre Estados Unidos e Inglaterra

Uma questão permanece sem solução: embora intrinsecamente aristocrática, a Inglaterra é de qualquer forma uma sociedade liberal? Constant não tem dúvidas: é o país no qual “as diferenças sociais são mais respeitadas” (a favor da aristocracia), mas no qual, ao mesmo tempo, “os direitos de cada um são mais garantidos”(105). E esta é a opinião também de Tocqueville, mas só depois do ’48, depois que a angústia pela deriva socialista e bonapartista da França deixou na sombra qualquer outra preocupação: “a constituição aristocrática da sociedade inglesa” está fora de discussão, contudo trata-se sempre do “país mais rico e mais livre”(106).

Antes da queda da monarquia em julho, ao contrário, não faltam em Tocqueville dúvidas e reservas: é necessário saber distinguir “duas diversas formas de liberdade”, não se deve confundir “a concepção democrática e, ouso dizer, a concepção justa de liberdade”, com a “concepção aristocrática de liberdade”, entendida não como “direito comum”, mas como privilégio”. É esta última visão que prevalece na Inglaterra, tal como “nas sociedades aristocráticas” em geral, com a consequência de que não há lugar para a “liberdade em geral”(107). A democracia na América registra e sustenta observação de um cidadão estadunidense que tem viajado longamente pela Europa: “Os ingleses tratam os servos com uma superioridade e um absolutismo que não deixam de nos impressionar”(108). Não é que esteja ausente o pathos da liberdade naqueles que se comportam como patrões absolutos. Ao contrário:

“Pode até acontecer que o amor pela liberdade seja tanto mais forte em alguns quanto menos existam garantias de liberdade para todos. A exceção neste caso é tanto mais preciosa, quanto mais é rara.

Esta concepção aristocrática da liberdade produz, naqueles que foram educados desta maneira, um sentimento exaltado do seu valor individual e um gosto apaixonado pela independência”(109).

Independentemente do juízo de valor, que é diverso e contraposto, somos levados a pensar na observação já conhecida de Burke: para os patrões de escravos a liberdade aparece ainda “mais nobre e mais liberal”. Devemos associar a Inglaterra à Virgínia escravista? Na realidade, não faltam os pontos de contato, como emerge da leitura de Tocqueville. Este observa que nos Estados Unidos os brancos se recusam a reconhecer nos negros “os traços gerais da humanidade”(110). Mas também na Inglaterra as desigualdades são tão nítidas e intransponíveis que existem “tantas diferentes humanidades quantas são as classes”; faltam “ideias gerais”, a partir justamente da ideia de humanidade(111). Nesse momento, Tocqueville preocupa-se em distinguir a democracia americana da aristocracia que domina na Inglaterra. Mas, em diversas ocasiões, sua análise acaba por chamar a atenção sobre as semelhanças entre as duas sociedades. As que em um lado do Atlântico se configuram como relações de classe no outro se apresentam como relações de raça. Podemos falar de sociedade liberal para a Inglaterra da mesma forma que Burke fala de sociedade liberal para a Virgínia e para a Polônia do seu tempo. Um ponto essencial resta firme: muitas vezes excluídas da fruição dos direitos civis e da liberdade negativa, na própria Inglaterra, por um reconhecimento indireto mas tanto mais significativo de Tocqueville, as classes populares continuam a ser separadas da classe ou casta superior por um abismo que leva a pensar no abismo vigente em um Estado racial.

Nesse sentido pode-se dizer por algum tempo, também a sociedade derivada na Inglaterra da Gloriosa Revolução se configura como uma espécie de “democracia para o povo dos senhores”, à condição, claro, de entender esta categoria em um sentido não puramente étnico. Também neste lado do Atlântico uma barreira intransponível separa a comunidade dos livres e dos senhores da massa dos servos, não por acaso comparados por Locke aos “indígenas”. E, longe de contentar-se com a liberdade negativa, a aristocracia dominante cultiva ideais de participação ativa na vida pública, cultiva ideais “republicanos”. Nisso se apoiam alguns respeitados analistas hodiernos, que a tal respeito falam de visão “neorromana” ou de “momento maquiaveliano”(112). E novamente nos deparamos no perigo da involuntária transfiguração: as duas categorias apenas examinadas colocam em evidência o pathos da participação livre e igualitária na vida pública, mas acabam por silenciar as macroscópicas cláusulas de exclusão que tal pathos pressupõe. O ideal de uma rica vida política, de tipo “neorromano” ou “maquiaveliano” está bem presente em um autor como Fletcher que, por um lado se declara “republicano por princípio”, por outro teoriza a escravidão contra os vagabundos. A esses ambientes pode ser associado também Locke. Ele se pronuncia a favor da escravidão negra nas colônias e da servidão ou semiservidão para os trabalhadores assalariados na metrópole; ao mesmo tempo, com o olhar voltado para a aristocracia, ele desenvolve um pathos do Commonwealth e da civitas, que ecoa os modelos republicanos da antiguidade: esta, pelo menos, é a opinião de Josiah Tucker, que localiza e denuncia em Locke um “whig republicano” e escravista(113).

Mas, talvez, o autor que na Inglaterra expressa melhor o ideal da “democracia para o povo dos senhores” é Sidney. Nele, é fortíssima a insistência sobre a igualdade dos homens livres: “a igualdade na qual os homens nasceram é tão perfeita que ninguém suportará uma sua limitação a menos que também outros não façam a mesma coisa”. Sem apelação é a condenação da escravidão política, implícita não apenas na monarquia absoluta, mas também em qualquer regime que tenha a pretensão de submeter ao homem livre normas deliberadas sem o seu consenso. Mas este pathos da liberdade implica a reivindicação do direito para o proprietário de ser “juiz” do próprio servo sem interferências externas(114). Não se deve perder de vista que “em muitos lugares, e em virtude até de uma lei divina, o senhor tem um poder de vida e de morte sobre o seu servo” (servant)(115). Resta claro que “os covardes e efeminados asiáticos e africanos”, incapazes de compreender o valor da “liberdade”, são justamente considerados por Aristóteles “escravos por natureza” e “pouco diferentes dos animais”(116). Não é um acaso que, juntamente com Locke, Fletcher e Burgh, Sidney é indicado por Jefferson como um autor de referência para a compreensão dos “princípios gerais de liberdade” aos quais se inspiram os Estados Unidos(117).

Quem aproxima Locke e Sidney, mas desta vez em sentido crítico, é também Tucker, que evidencia que Sidney é um admirador da “liberdade polonesa”(118) e de um país onde a servidão da gleba na sua forma mais dura, à qual são submetidos os camponeses, se entrelaça com a rica vida política da aristocracia que domina a Dieta e homenageia a “liberdade republicana” (infra, cap. V, § 2). Por outro lado, quem se expressa em termos muito lisonjeiros também sobre a Polônia, assim como sobre as “colônias meridionais” da América é Burke, que não casualmente se torna depois anjo tutelar do Sul escravista. A admiração por um regime de liberdade republicana fundada sobre a escravidão ou sobre a servidão de uma parte considerável da população, por uma “democracia para o povo dos senhores”, está bem presente no âmbito do liberalismo inglês; os autores que manifestam tal orientação podem por sua vez contar com amplas simpatias no outro lado do Atlântico.”

“Como sabemos, o primeiro a contrapor liberdade e igualdade e a denunciar a reivindicação da igualdade política como um ataque à liberdade foi Barnave, que também é um defensor da escravidão. Esse instituto continua vivo e vital nos Estados Unidos no momento em que, diante da França devorada pela paixão da igualdade, Tocqueville aponta como país modelo do amor pela liberdade, juntamente com a Inglaterra, exatamente a república do outro lado do Atlântico. Mas, justamente aqui, pelos teóricos do Sul, a escravidão é justificada e até celebrada como instrumento para garantir, ao lado da liberdade, também a igualdade dos membros da comunidade branca. Para confirmar o caráter problemático da contraposição liberdade/igualdade poderia ser mencionado o Tocqueville anterior a 48, que acusa a Inglaterra de ter uma concepção errada da liberdade, enquanto fundada sobre o “privilégio” (e sobre a desigualdade), e que atribui à revolução francesa o mérito de ter promovido, em nome da igualdade, a causa da abolição da escravidão e da liberdade dos negros (supra, cap. IV, § 9; infra, cap. VIII, § 7). Nesse momento, longe de estar em contraposição, liberdade e igualdade resultam em plena sintonia.

A contraposição reapresenta-se, de maneira sensivelmente diferente, em outro importante expoente da tradição liberal. Em Bentham podemos ler: “Quando a segurança e a igualdade estão em conflito, não se deve hesitar um instante: deve perder a igualdade”(85). Exatamente no país indicado por Tocqueville como modelo, pela sua capacidade de compreender a absoluta prioridade do valor da liberdade, observamos que a reafirmação absoluta do valor subordinado da igualdade acontece em primeiro lugar em nome da “segurança” da sociedade e da ordem existente.

Direitos econômicos e sociais, “formigueiro” socialista e “individualismo” liberal

A esta altura convém analisar mais amplamente a profissão de fé individualista dos liberais do século XIX. Sobretudo depois do ‘48, na esteira da luta contra a massificação contestada no socialismo, eles parecem às vezes considerar o individualismo como uma realidade pré-moderna, infelizmente dissipada no decorrer dos sucessivos desdobramentos históricos. Nas palavras de John S. Mill, “Na antiguidade, na Idade Média, e, em medida decrescente, durante a longa transição do feudalismo à sociedade hodierna, o indivíduo constituía um poder em si”; não se dissolvia na “multidão” e nas “massas”(86). Também Tocqueville homenageia o “individualismo da Idade Média”(87). Claramente, ele não leva em consideração o destino dos servos da gleba, assim como não considera a sorte dos escravos e dos negros em geral, quando aponta os Estados Unidos como o país no qual “todo indivíduo” goza de uma “independência” sem precedentes. Quando, depois, afirma que na Argélia colonizada “o papel do indivíduo é por toda parte maior do que na pátria-mãe”, Tocqueville não leva em consideração os árabes que, como ele mesmo reconhece, são muitas vezes assimilados a “bestas maléficas” (supra, cap. V, § 13; infra, cap. VII, § 6).

Emerge assim o caráter bastante problemático do pathos do indivíduo, que é a bandeira agitada pelo liberalismo dedicado a contrastar radicalismo e socialismo. Quem é mais individualista, Toussaint Louverture, o grande protagonista da revolução dos escravos ou Calhoun o grande teórico estadunidense do Sul escravista? Quem dá prova de respeito pela dignidade do indivíduo enquanto tal é o jacobino negro que, levando à sério a Declaração dos direitos do homem, considera inadmissível em qualquer caso a redução de um homem a objeto de “propriedade” de um seu semelhante; ou é Jefferson, que reprime as suas dúvidas sobre a escravidão a partir da convicção da superioridade dos brancos e da preocupação de não colocar em perigo a paz e a estabilidade do Sul e da União? Quem expressa melhor o individualismo, John S. Mill e os seus seguidores em terra inglesa ou francesa, que consideram benéfica e necessária a subjugação e até a escravidão (mesmo se temporária) dos povos coloniais, ou aqueles franceses que começam a colocar em discussão o despotismo colonial enquanto tal (“Morram as colônias se elas nos devessem custar a honra, a liberdade”(88))?”

“Um veio social darwinista atravessa o pensamento liberal desde o seu início. São eloquentes os argumentos com os quais, na Inglaterra da segunda metade do século XVIII, Joseph Townsend polemiza contra qualquer tentativa de introduzir uma legislação a favor dos pobres: ela apenas acabaria por destruir o equilíbrio da natureza, cancelando a “pressão pacífica, silenciosa e incessante da fome”, favorecendo o crescimento de uma superpopulação ociosa e supérflua. Deixada a si mesma, sem as intervenções artificiais de legisladores movidos por uma falsa compaixão, a natureza voltaria a estabelecer o seu equilíbrio, assim como acontece em uma ilha habitada apenas por cabras e cachorros: a luta pela sobrevivência seleciona os elementos mais fortes e vitais, condenando ao seu destino os outros(135). Desde o início, a tendência a naturalizar o conflito social e a apresentar a riqueza e o poder das classes dominantes como uma expressão de uma imutável lei natural (neste sentido Burke fala de “aristocracia natural”, consagrada pela “Natureza”(136)) comporta um elemento social darwinista ante litteram. Conhecemos as críticas dirigidas por Franklin aos médicos pela sua dedicação a salvar vidas que “não são dignas de serem salvas”. A “doença” que elas sofrem é a “manifestação da cólera divina pela intemperança, a preguiça e outros vícios”, e é justo que isso tudo receba uma “punição” prevista pela natureza e pela Providência(137). Não se deve obstaculizar o desígnio superior divino, principalmente se forem alvejadas as populações coloniais. Isso não vale só para os peles-vermelhas. Também a terrível carestia, que na metade do século XIX dizima a população irlandesa já duramente provada pelo saque e a opressão dos colonizadores ingleses, aparece aos olhos de sir Charles Edward Trevelyan (encarregado pelo governo de Londres de acompanhar a situação) como a expressão da “Providência onisciente”, que assim resolve o problema da superpopulação(138).

Mas, o elemento social darwinista acentua-se uma vez que as classes populares, sacudindo a tradicional subalternidade, entram diretamente na cena política para fazer prevalecer as suas razões. Nos Estados Unidos, depois da abolição da escravidão, o paternalismo dá lugar rapidamente a uma atitude explicitamente violenta em relação aos negros, submetidos ao terror que incumbe exatamente sobre quem ousa desafiar a supremacia branca. Algo de análogo acontece na Europa. Contra a nova situação, obtida na luta pelo reconhecimento, amplos setores da classe dominante reagem agitando ameaçadoramente a lei da seleção natural, que condena os incapazes a uma morte precoce. À reivindicação dos direitos econômicos e sociais os setores mais conservadores do movimento liberal respondem com um liberalismo radical e sem compromissos: o Estado não deve interferir de maneira alguma naquela espécie de juízo de Deus ou luta pela existência da qual, ainda antes de Darwin, fala Herbert Spencer. O liberal e liberalista inglês condena qualquer interferência estatal na economia com o argumento pelo qual não se deve obstruir a lei cósmica, que exige a eliminação dos incapazes e falidos da vida: “O esforço inteiro da natureza é no sentido de livrar-se deles, limpando o mundo da sua presença e liberando o espaço para os melhores”. Todos os homens estão submetidos a um julgamento de Deus: “Se realmente estão em condição de viver, eles vivem, e é justo que vivam. Se realmente não estiverem em condições de viver, eles morrem, e é justo que eles morram”(139). É preciso respeitar “aquela lei universal da natureza graças à qual a vida alcançou o seu nível atual, aquela lei pela qual uma criatura não suficientemente enérgica para alimentar a si mesma deve morrer”(140). Ao tomar as distâncias das tentativas de melhorar as condições higiênicas e sanitárias das classes populares, Lecki observa que na realidade, “em não poucos casos”, a mortalidade infantil é “bênção camuflada”(141). s

““O ‘cristão bíblico’ de raça e origem europeia que se estabeleceu nas regiões ultramarinas entre povos de raça não europeia acabou inevitavelmente por identificar-se com Israel que obedece à vontade de Javé e cumpre a obra do Senhor apoderando-se da terra prometida, enquanto por outro lado identificou os não europeus encontrados no seu caminho com os canaanitas que o Senhor tem colocado na mão do seu povo eleito para que fossem destruídos ou subjugados. Assim sugestionados, os colonos protestantes de língua inglesa do novo mundo exterminaram os índios norte-americanos, tal como os bisões, de um litoral ao outro do continente”(39). Esse mito genealógico, que preside a expropriação, deportação de irlandeses e peles-vermelhas, está presente de maneira explícita em Lieber: “Deus nos deu este grande país para um grande projeto. Ele o deu a nós como deu a Palestina aos hebreus”(40). Nenhuma palavra sobre os índios, mesmo se eles pareçam ser implicitamente associados às populações que ocupam abusivamente a terra prometida antes da chegada do povo eleito. A democracia na América parece aderir a esse funesto mito genealógico. Tocqueville destaca o fervor religioso dos fundadores da Nova Inglaterra, que se consideram descendentes da “estirpe de Abrão”: nos escritos e nos documentos transmitidos por eles sente-se “uma espécie de perfume bíblico”(41). E é um perfume que acaba de qualquer forma por inebriar o próprio liberal francês, que retoma e subscreve sem alguma distância crítica a descrição que Nathaniel Morton, um dos fundadores e dos primeiros dirigentes da colônia, faz da chegada na América dos padres peregrinos: “Ao redor deles aparecia só um deserto horrendo e desolado, repleto de animais e de homens selvagens, cujo grau de ferocidade e número ignoravam. A terra era congelada, o solo coberto de florestas e mata. Tudo se apresentava com um aspecto bárbaro”(42) . Nesse texto, assim como na descrição que o Antigo Testamento faz dos habitantes abusivos de Canaan, são confundidos totalmente com a natureza as populações destinadas a serem subjugadas ou canceladas pelo povo eleito, ou, nas palavras de Tocqueville, pelo “grande povo, que Deus quer instalar com as suas mãos sobre uma terra predestinada”(43). Esse desígnio providencial fica tanto mais claro porque se trata, em última análise, de um deserto. É um tema sobre o qual A democracia na América volta repetidamente: “À perfeição das nossas artes, ele [o pele-vermelha] quer contrapor só os recursos do deserto” (44). É particularmente significativa uma expressão: “Os índios habitavam sozinhos o deserto do qual hoje são expulsos...”(45); o deserto deixa de ser tal e torna-se um lugar humanamente habitado só a partir do ingresso dos europeus e da fuga ou deportação dos indígenas. Como sabemos, Locke e Montesquieu preferem falar em “florestas virgens”. Mas, ainda que as duas metáforas sejam diferentes, é idêntico o seu significado: estamos na presença de lugares onde não há sinal humano, de uma área, nas palavras de Locke, “despovoada” (vacante: TT, II, 36). Quando depois é obrigado a tomar consciência dos índios, Tocqueville se apressa a destacar que eles não têm direito algum à terra ocupada por eles: “Embora o grande país fosse habitado por numerosas tribos de indígenas, pode-se afirmar que no momento da descoberta não passava de um deserto. Os índios o ocupavam, mas não o possuíam, uma vez que só com a agricultura o homem se apropria do solo e os primeiros habitantes da América do Norte viviam dos produtos da caça”(46). Já para Locke, o que fundamenta o direito de propriedade pode ser só o trabalho, para o qual é incapaz um povo dedicado exclusivamente a caça. Mas, para selar o destino dos índios em Tocqueville acrescenta-se uma motivação explicitamente teológica: “Parece que a Providência, colocando essas populações entre as riquezas do Novo Mundo, tenha dado a elas só um breve usufruto; de alguma forma, elas estavam lá só “à espera”. Aqueles litorais tão favoráveis ao comércio e à indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississipi, aquele continente inteiro se apresentavam então como o berço vazio de uma grande nação”(47). Dessa forma, Tocqueville acaba por legitimar a política de deportação colocada em prática por Jackson, presidente da república do outro lado do Atlântico no período da visita do liberal francês. A imagem do “berço vazio” é um motivo amplamente difuso na cultura estadunidense da época. Oliver Wendell Holmes, um “livre pensador” alinhado do “lado dos liberais” e escritor e intelectual que goza de indiscutível prestígio na Boston daqueles anos(48), não tem dúvidas em interpretar a vontade de Deus: só à espera de uma estirpe superior, os peles-vermelhas haviam sido colocados no solo americano; depois disso eram claramente destinados à “destruição” ou ao “extermínio”(49). Por outro lado, de maneira não muito diferente tinha argumentado Franklin, que havia atribuído a um desígnio providencial o efeito devastador do álcool em uma população destinada a ser eliminada da face terra (supra, cap. I, § 5). A atitude de Tocqueville é mais sofrida. Ele não fecha os olhos diante do horror que está acontecendo. E, no entanto, por dolorosa que possa ser, a tragédia dos peles-vermelhas expressa de um lado o progresso da civilização, de outro um misterioso desenho providencial, de qualquer forma inexorável: “Os seus implacáveis preconceitos, as suas indomáveis paixões, os seus vícios e talvez ainda mais as suas selvagens virtudes os expunham a uma inevitável destruição. A ruína dessas populações começou no dia em que os europeus chegaram às suas costas e, depois sempre continuando, hoje é quase completa”(50). É verdade, Tocqueville manifesta o mal-estar pelo “frio egoísmo”, a “insensibilidade completa”, o “sentimento impiedoso” com que a população branca dos Estados Unidos, tão agarrada à sua moralidade e ao seu cristianismo, olha para a sorte dos índios. Mas, a descrição que o liberal francês faz dos “selvagens”, cada vez mais refratários à “civilização”, certamente não serve para a causa da salvação deles: “Em geral, a sua boca era demasiadamente grande, a expressão da sua figura era ignóbil e malvada [...]. A sua fisionomia manifestava aquela profunda depravação que pode derivar só de um prolongado abuso da civilização, e não obstante continuavam selvagens. Aos vícios que haviam assimilado de nós mesclava-se algo de bárbaro e de incivil, que os tornava cem vezes mais repugnantes [...]. Os seus movimentos eram rápidos e desordenados, a sua voz aguda e desafinada, os seus olhares inquietos e selvagens. No primeiro contato seríamos tentados a ver em cada um deles apenas um bicho das florestas ao qual a educação podia ter conferido alguma aparência de humanidade, e no entanto permanecera um animal”. Compreende-se então a pergunta que Tocqueville dirige aos seus interlocutores estadunidenses: “Será que os índios têm a ideia de que mais cedo ou mais tarde a sua raça será eliminada pela nossa?”(51) A deportação e a dizimação dos índios tornam explícito o fato de que o território norte-americano era um “berço vazio”, à espera do colonizador branco, comprometido desde a sua chegada “na luta contra os obstáculos que a natureza lhe opõe”, na luta “contra o deserto e a barbárie”(52) e, mais uma vez, acaba por emergir o processo de desumanização dos nativos, reduzidos, mais do que à barbárie, à natureza inanimada.”

“Naturalmente, o outro lado da medalha é o drástico agravamento da condição dos árabes. Tocqueville não o esconde: “Dizimamos a população”, os sobreviventes continuam a ser ceifados pela inanição provocada pela modalidade de guerra que já conhecemos: “neste momento Abd-el-Kader morre literalmente de fome”(69). É necessário reconhecer: “tornamos a sociedade muçulmana mais miserável, mais desorganizada, mais ignorante e mais bárbara do que era antes de nos conhecer”(70). Então, o que fazer? O liberal francês toma distâncias das posições de não poucos oficiais e soldados do exército francês: aos olhos desses “os árabes são como animais maléficos” e “a morte de cada um deles parece um bem”. Não, “não apenas é cruel, mas absurdo e impraticável querer sufocar ou exterminar os indígenas”(71). Por um momento Tocqueville se deixa escapar uma concessão: “Neste momento nós fazemos a guerra de uma maneira muito mais bárbara que os próprios árabes. Atualmente é do lado deles que se encontra a civilização”(72). E, no entanto, logo depois encontramos a declaração já conhecida: não há lugar para os escrúpulos humanitários em uma guerra colonial que alveja diretamente a população civil, à qual são negados os meios de subsistência e as possibilidades de agregação. Quer dizer: “Uma vez que cometemos a grande violência da conquista, creio que não devemos recuar diante das violências secundárias que são absolutamente necessárias para consolidá-la”(73).”

“No âmbito da contraposição entre “liberais” e “senis”, que vem se delineando, a atitude “liberal” é definida por antítese tanto ao poder absoluto do monarca quanto à condição servil ou também só plebeia. A dicotomia liberal/iliberal refere-se certamente à diferença e ao conflito entre duas visões de mundo, mas também entre duas condições sociais. No curso da revolução americana, ao tomar posição a favor da conciliação com os colonos rebeldes, Burke deplora as impostas na Inglaterra, por causa da guerra, a liberdade individual e lamenta o fato de que “o governo liberal desta nação livre é apoiado pela espada mercenária de camponeses e vassalos (boors and vassals) alemães”(4). E novamente a profissão de fé liberal por um lado critica a dilatação indevida do poder da Coroa, por outro toma as distâncias das classes subalternas, submetidas ao trabalho e portanto servis. Compreende-se então o desdém do whig inglês em relação aos que, em nome de uma autodenominada e “indiscriminada” liberdade, gostariam de recorrer aos “braços servis” de escravos ou de escravos emancipados, para reprimir a revolta de colonos que, por serem proprietários de escravos, cultivam de maneira particularmente forte aquele amor da liberdade que deve residir em todo ânimo que não seja servil. E compreende-se também porque já em 1790, em virtude do redimensionamento do peso político da nobreza, a “liberdade” dos franceses aparece ao estadista inglês contaminada de “rudeza e vulgaridade”: esta “não é liberal” (is not liberal)(5). Ao contrapor-se a tudo o que é vulgar e plebeu, “liberal” tende a ser sinônimo de “aristocrático”; e, de fato, nos proprietários de escravos da Virgínia o “alto espírito aristocrático” resulta estritamente entrelaçado com um “espírito de liberdade”, que se distingue pelo seu caráter “mais nobre e mais liberal”(6). Enquanto homenageia o “governo liberal desta livre nação”, Burke declara-se membro do “partido aristocrático”, o partido “vinculado com a propriedade sólida, permanente e de longa duração”, e sente-se comprometido em lutar com todas as suas energias por “estes princípios aristocráticos e os interesses destes”(7). No decorrer da revolução americana, juntamente com a celebração que já conhecemos do “sistema político liberal”, em Washington pode-se ler a celebração dos cultores das “artes liberais”, em contraposição aos “mecânicos”, aos imigrados de modesta condição social provenientes da Europa(8). Mas é acima de tudo esclarecedor o discurso de John Adams. Para que possa realizar-se uma liberdade ordenada, no exercício do poder não podem estar os “mecânicos” e a gente comum “carente de qualquer conhecimento no âmbito das ciências e das artes liberais”; ao contrário, “devem estar os que receberam uma educação liberal, o grau normal de erudição nas artes e nas ciências liberais”; e estes são “os bem-nascidos e os ricos”(9). Também na França o partido liberal que vem se constituindo define-se, seja no decorrer da polêmica, contra a monarquia absoluta, seja – e talvez acima de tudo – contra as massas populares e a sua vulgaridade. A atenção dirige-se ao Terceiro estado, àqueles ambientes onde “certo conforto permite aos homens receber uma educação liberal”(10). Quem se expressa assim é Sieyès, que depois desempenha um papel importante em ocasião do 18 de Brumário de 1799. O que sela o golpe de Estado é a “Proclamation du général en chef Bonaparte”, que anuncia a “dispersão dos facciosos”, isto é, da agitação popular e plebeia, e o triunfo das “ideias conservadoras, tutelares, liberais” (idées conservatrices, tutélaires, libérales). A linguagem com a qual nos deparamos não é a invenção de um general, embora genial. Nesse momento ele goza do apoio dos ambientes liberais da época. Constant, que mais tarde, como sabemos, declara-se membro do “partido liberal”, já em 1797 fora recomendado por Talleyrand a Napoleão como homem “apaixonado pela liberdade” e “republicano inabalável e liberal”(11). No ano seguinte, Constant havia sublinhado o mérito do Diretório por ter “proclamado a sua inabalável ligação ao sistema conservador”(12). Enfim, assim que se consome o golpe de Estado, ele homenageia o “gênio tutelar da França que, a partir do 9 Termidoro, protegeu-a de tantos perigos”(13). Sinônimo de “aristocrático” em Burke, agora “liberal” é sinônimo de “conservador” (e “tutelar”). O fato é que, para Constant (assim como para Madame de Staël), a causa do liberalismo encontra a sua expressão na “gente respeitável” (honnêtes gens) ou — precisa Necker em uma carta à filha — na “gente de bem” e abastada (gens de bien: cf. infra, cap. X, § 1).”

Contra-História do Liberalismo (Parte III) – Domenico Losurdo

“Obviamente, a carga de exclusão implícita na autoproclamação da comunidade dos livres revela-se com toda a sua força na relação com os povos coloniais. Muitas vezes, longe de ser percebida como uma contradição, a teorização e a prática da escravidão contra os excluídos reforça ulteriormente a autoconsciência orgulhosa da comunidade dos livres, que se vangloriam de estarem imunizados do espírito servil atribuído aos bárbaros por eles subjugados. É por isso que Locke pode apresentar-se como campeão da liberdade e legitimar contemporaneamente o poder absoluto que a comunidade dos livres é chamada a exercer sobre os escravos negros. Em 1809 Jefferson celebra os Estados Unidos como “um império pela liberdade”, fundado sobre uma Constituição que garante o “autogoverno”(32). Quem assim se expressa é um proprietário de escravos, que exerce o poder sobre os seus escravos com brutalidade, vendendo conforme a necessidade como peças ou mercadorias separadas os diversos membros da família de sua propriedade; e ele se abandona a essa celebração em uma carta enviada a um outro proprietário de escravos, que acabou de tomar o seu lugar na presidência dos Estados Unidos. A Constituição apontada como modelo consagra o nascimento do primeiro Estado racial, enquanto o autogoverno aqui celebrado garante aos proprietários de escravos do Sul o gozo legítimo da sua propriedade sem interferências do governo federal.

A passagem da escravidão hereditária à semiescravidão, sempre contra povos coloniais, não produz mudanças radicais no quadro de conjunto. Embora em formas diferentes, reapresenta-se o fenômeno que já conhecemos: grandes autores como John S. Mill, Tocqueville, Lecky, denunciando com paixão o despotismo monárquico ou jacobino e saudando ao mesmo tempo com entusiasmo o despotismo contra povos coloniais. Trata-se de uma relação de poder que, ao longo de todo um período histórico, longe de ser combatida ou contida, deve ser difundida e generalizada: uma vez que “um despotismo vigoroso” é o único método capaz de elevar a um nível superior os povos atrasados ou os “bárbaros”; são de interesse da civilização e da paz as conquistas coloniais, que portanto devem ser estendidas até abarcar o globo inteiro; “o "despotismo direto dos povos avançados” sobre os atrasados é já “a condição normal”, mas esta deve tornar-se “geral”(33).

A autoconsciência da comunidade dos livres é tão orgulhosa e segura de si que chega a desafiar sem problemas as provenientes possíveis desmentidas da história ou da análise empírica da sociedade. Nos anos da monarquia de julho Tocqueville, desapontado, toma consciência de um fato desconcertante: no mundo islâmico e em “todo o Oriente” a escravidão apresenta-se em forma mais “suave” que no Ocidente; e, todavia, a Tunísia preocupou-se em abolir esse instituto, que ao contrário continua a subsistir nas colônias da França liberal (e na América democrática)(34). É muito significativo o balanço histórico traçado por John S. Mill depois da guerra de Secessão: nos Estados Unidos tem sido abolida só uma “escravidão sem esperança de resgate”, que comportava a “degradação do intelecto” e que às vezes aplicava “penas graves” àquele que tivesse ousado “ensinar a ler a um escravo”. Ainda pior — acrescenta o liberal inglês — era a situação, na época do comércio dos negros, “nas nossas colônias escravistas”, onde os escravos na prática eram condenados a trabalhar até a morte, para serem rapidamente substituídos mediante a “importação” de outros desventurados, destinados também a um rápido consumo. Nas colônias inglesas e nos Estados Unidos por muito tempo tem se alastrado uma escravidão com características particularmente repugnantes e em grande parte desconhecidas “no mundo antigo e no Oriente”(35). Aqui, parece ser percebido ou intuído o fenômeno do parto gêmeo de liberalismo e escravidão-mercadoria em base racial. E, no entanto, como Tocqueville, nem John S. Mill tem dúvidas sobre a perfeita correspondência do Ocidente e a causa da liberdade e sobre o direito do primeiro de exercer o despotismo também sobre os povos islâmicos.

O liberal inglês não tem dificuldade em interpretar a guerra do ópio como uma cruzada pela liberdade de comércio e pela liberdade enquanto tal: “a proibição de importar ópio na China” viola a “liberdade [...] do comprador, muito mais que “do produtor ou do vendedor”(36). Por outro lado, a lição dada aos “bárbaros” chineses só pode ser salutar. Não é o caso então de usar sutilezas sobre as formas: são “ridículos” os “apelos à humanidade e ao espírito cristão a favor de canalhas (ruffians), e à lei internacional a favor de um povo que não reconhece lei alguma da guerra”(37). Estamos em 1857-58: nesse momento, sem mencionar a sorte doscoolies, na Índia e na Inglaterra se mancha da “barbárie” de que fala Tocqueville a propósito da repressão da revolta dos sepoys; na China dá um apoio decisivo para a liquidação da tentativa dos Taiping de derrubar a autocrática e decrépita dinastia Manchu; na Irlanda continua a estender um domínio feroz (“em país nenhum tenho visto tantos gendarmes” — observa Engels)(38); enfim, no tocante aos Estados Unidos, a Inglaterra contribui para as fortunas do Sul, absorvendo grande parte do algodão produzido graças ao trabalho dos escravos negros. Contudo John S. Mill não tem dúvidas: o seu país promove a causa da liberdade no mundo, impondo à China com a força das armas a importação do ópio produzido na Índia sempre pela iniciativa da potência colonial!

Quando eclode a revolta dos sepoys na Índia, Tocqueville não esconde que aos “massacres dos bárbaros” indianos seguem “as barbáries dos civilizados”(39). Mas isso não lhe impede de chegar a uma conclusão maniqueísta: “estes indianos são animais tão brutos quanto ferozes”; a sua vitória significaria “a restauração da barbárie”, a vitória dos “selvagens” e a derrota do “único país da liberdade política que ainda existe na Europa”(40). A aspiração dos chineses ou dos indianos para conservar ou recuperar a independência nacional, o desejo de livrar-se do domínio colonial sequer são levados em consideração. Pelo fato de apresentar-se como representante exclusiva da causa da liberdade, a comunidade dos livres interpreta os desafios que a todo momento é obrigada a enfrentar como sendo ataques à liberdade, expressões de espírito servil, além de barbáries.

Macaulay reconhece que os colonos ingleses na Irlanda se comportam como os espartanos em relação aos hilotas: estamos na presença de uma “raça de soberanos” ou de uma “casta soberana”, que exerce um poder absoluto sobre os seus “escravos”(41). Nem por isso despontam dúvidas sobre o direito que a livre Inglaterra tem de exercer a ditadura sobre os bárbaros das colônias. É uma ditadura que pode assumir as formas mais cruéis. Macaulay descreve com eficácia de que maneira age o governador da Índia, Warren Hastings, quando, em um momento difícil para a Inglaterra, já empenhada na luta contra os colonos americanos rebeldes e os seus aliados franceses, ele é chamado a enfrentar a população nativa da colônia:

“Começou um reino de terror, um terror acrescido de mistério: o que precisava sofrer era menos horrível do que devia se temer. Ninguém sabia o que podia esperar desse estranho tribunal [...]. Ele era formado por juízes, nenhum dos quais tinha familiaridade com os costumes de milhões de pessoas sobre as quais se atribuía uma ilimitada autoridade. Os seus documentos estavam escritos com letras desconhecidas, as suas sentenças pronunciadas com sons desconhecidos. Ao redor de si havia já reunido um exército constituído pela pior parte da população nativa.

Então, começa a desencadear-se uma onda de prisões sem um motivo de imputação e sem poupar sequer os anciãos da “mais venerável dignidade”. É uma orgia de violência que não respeita os santuários e desencadeia os instintos mais bestiais: há indianos que “derramam o seu sangue no vão da porta, enquanto procuram defender, de espada na mão, os sagrados apartamentos das suas mulheres”. Em conclusão: “Todas as injustiças dos opressores passados, asiáticos ou europeus, apareciam como uma bênção comparadas à justiça da Corte Suprema”.

E, no entanto, depois dessa descrição tão horripilante, Macaulay conclui que, por ter salvo a Inglaterra e a civilização, Hastings merece “grande admiração” e deve ser colocado entre “os homens mais eminentes da nossa história”(42).”

“Após ter depurado o terreno da hagiografia, na reconstrução da história do liberalismo, convém partir do slogan agitado pelos rebeldes (na luta pela independência da Inglaterra): “Não queremos ser tratados como negros”. A revolta começa por um lado reivindicando a igualdade, por outro lado reafirmando e aprofundando ainda mais a desigualdade. As duas reivindicações estão inseparavelmente entrelaçadas: pelo fato de instituir uma nítida superioridade em relação aos peles-vermelhas, os colonos se sentem perfeitamente iguais aos homens de bem e aos proprietários de Londres, e exigem que essa igualdade seja reconhecida e consagrada em todos os níveis. Não é muito diferente a dialética que depois desagua na Gloriosa Revolução. Vimos um expoente do protoliberalismo inglês reivindicar, contra as interferências do poder monárquico, o gozo tranquilo dos próprios bens e dos próprios servos. Longe de colocá-las em discussão, a “verdadeira liberdade” consagra as relações existentes de servidão (e, nas colônias, de escravidão), enquanto partes de uma inviolável esfera privada. A igualdade que os proprietários reivindicam em relação ao soberano, que na prática pode ser apenas um primus inter pares, anda de mãos dadas com a reificação dos servos que acabam sendo assimilados aos outros objetos de propriedade. É por isso que liberalismo e escravidão-mercadoria em base racial emergem juntos no âmbito de um parto gêmeo.”

“Realização do governo da lei no âmbito do espaço sagrado e aprofundamento do abismo em relação ao espaço profano

No início, o liberalismo expressa a autoconsciência de uma classe de proprietários de escravos ou de servos que vai se formando enquanto o sistema capitalista começa a emergir e a se afirmar graças também àquelas práticas impiedosas de expropriação e opressão, postas em marcha na metrópole e acima como “acumulação capitalista originária”(41). Contra o despotismo e o gozo monárquico e o poder central essa classe reivindica o autogoverno e o gozo tranquilo da sua propriedade (inclusive a de escravos e servos), tudo em nome do governo da lei, da rule of law. Podemos então dizer que o liberalismo é a tradição de pensamento caracterizada mais do que pela celebração da liberdade ou do indivíduo, pela celebração daquela comunidade dos indivíduos livres que define o espaço sagrado.

Não por acaso, os países clássicos da tradição liberal são aqueles nos quais, por meio do puritanismo, o Antigo Testamento interferiu mais profundamente. Isso vale já para a revolução holandesa ou, pelo menos para os bôeres de origem holandesa, que se identificam com o “povo eleito”(42). E vale ainda mais para a Inglaterra: a partir particularmente da Reforma, os ingleses se consideram o novo Israel, “o povo investido pelo Onipotente de uma missão ao mesmo tempo particular e universal”(43). Essa ideologia e essa consciência missionária se propagam, mais enfatizadas, no outro lado do Atlântico. Basta pensar em Jefferson, o qual propõe que o brasão dos Estados Unidos represente os filhos de Israel guiados por um feixe de luz(44). E novamente se faz sentir em toda a sua radicalidade a distinção entre espaço sagrado e espaço profano.

No Antigo Testamento caro à elite dominante, que ama identificar-se com o povo eleito que conquista Canaan e aniquila os seus habitantes ou que recruta os seus escravos entre os gentis, agem duas rigorosas e drásticas delimitações. O antropocentrismo separa nitidamente da natureza circunstante o mundo humano, no interior do qual o papel absolutamente privilegiado ou único é reservado ao “povo eleito”. O espaço sagrado, a minúscula ilha sagrada, resulta assim delimitado de maneira muito nítida em relação ao ilimitado espaço profano: poder-se-ia dizer que, fora do povo eleito, tudo propende a reduzir-se à natureza dessacralizada, no âmbito da qual acabam entrando também as populações condenadas por Javé a serem canceladas da face da terra. O extermínio se abate sobre “homens e mulheres, crianças e velhos, até bois, ovelhas e burros” ou, com expressões de maior pregnância, atinge “todo ser vivente”, “todo vivente” (Josué, VI, 21; X, 35; X, 40), “todos os habitantes da terra e toda a germinação do solo” (Gen., XIX, 25). No âmbito do espaço propriamente profano não parece emergir ou desempenhar uma função de destaque a distinção entre homem e natureza.

Mas a exclusiva limitação do espaço sagrado desempenha também uma função enormemente positiva. No âmbito do povo eleito valem regras precisas, pode haver lugar para a servidão, mas não para a escravidão propriamente dita. À distância de milênios esse é o ponto de vista de Locke que, evocando de maneira explícita o Antigo Testamento, faz a distinção entre servidão dos trabalhadores assalariados (nas metrópoles) e escravidão nas colônias. E a continuidade resulta ainda mais impressionante se levarmos em consideração que destinados à escravidão são os negros, que a teologia e a ideologia da época considera os descendentes de Cam e Canaan condenados para sempre por Noé, conforme nos informa o Gênesis, a carregar os grilhões.

Chegamos assim a um resultado paradoxal, pelo menos em relação à ideologia dominante. O Ocidente é ao mesmo tempo a cultura que com maior rigor e eficácia teoriza e pratica a limitação do poder, e que com maior sucesso e em escala mais ampla se dedicou ao desenvolvimento da chattel slavery, o instituto que implica a total aplicação do poder do dono sobre os escravos reduzidos a mercadoria e “natureza”. E esse paradoxo se manifesta de maneira particularmente clamorosa exatamente nos países de mais consolidada tradição liberal.

Certamente, já no âmbito do hebraísmo o pathos exclusivo do espaço sagrado tende a assumir as formas de um universalismo que às vezes se apoia sobre a subjugação (ou aniquilação) dos profanos, e outras vezes sobre a sua cooptação. A absoluta transcendência de Javé estimula, como aparece evidente particularmente no hebraísmo pós-exílio, um processo de desnaturalização da dicotomia espaço sagrado/espaço profano. A mobilidade da fronteira, e portanto a possibilidade de operar cooptações dentro do espaço sagrado e da civilização, vale ainda mais para os puritanos e a tradição liberal, que herdam o hebraísmo filtrado pelo cristianismo. Por outro lado, a ampliação mesmo parcial do espaço sagrado é a resposta obrigatória às lutas conduzidas pelos excluídos, que frequentemente do Antigo Testamento extraem um motivo diverso e contraposto em relação ao preferido pela elite dominante: se inspiram na história do povo reduzido à escravidão em terra estrangeira e que consegue finalmente libertar-se do domínio do Faraó. E a ideologia que inspira a revolta dos escravos estourada em 1800 na Virgínia e dirigida por um chefe que se comporta como novo Moisés(45). É por essa capacidade dos escravos de extrair elementos de revolta da própria cultura dominante, que os proprietários olham com desconfiança também para a instrução religiosa.”

“Mais tarde, a partir da Comuna de Paris dissemina-se em todo o Ocidente liberal a tendência a recolocar em discussão não apenas as concessões democráticas arrancadas pelas massas populares mas o próprio governo da lei. Nos Estados Unidos Theodore Roosevelt enuncia um método muito sumário para acabar com greves e conflitos sociais: “é possível suprimir os sentimentos que agora animam uma grande parte do nosso povo, prendendo dez dos seus chefes, colocando-os [...] contra uma parede e fuzilando-os”(20).

Essas tendências chegam a uma ulterior radicalização após a revolução de outubro. Então, pode-se compreender muito bem o golpe de Estado fascista Itália em 1922. Os que o apoiam, por um período de tempo mais ou menos prolongado, são inumeráveis personalidades que se declaram liberais e até pensam em recuperar o liberalismo autêntico. É o caso de Luigi Einaudi, o qual saúda a volta do “liberalismo clássico”. Por algum tempo, também Croce olha com simpatia para a tentativa de voltar para o “liberalismo puro”, que não deve ser confundido com o insano “liberalismo democrático”. Ainda em 1929, ao subscrever implicitamente a condenação feita por Mussolini de todo “regime demoliberal”, Antonio Salandra se define “antigo liberal de direita (sem demo)”(21).

Como é possível observar, a atitude benévola diante do golpe de Estado não se explica só com a aguda crise social e política do momento; trata-se ao contrário de cancelar ou de redimensionar de forma mais ou menos drástica as concessões democráticas arrancadas pelo movimento popular à sociedade liberal. Quando ainda vigorava a belle époque, em 1909, Einaudi retratara o imposto progressivo como uma espécie de “banditismo organizado para roubar o dinheiro dos outros mediante o Estado”(22). Ora, Mussolini se apressa a acabar com esse “banditismo”, atraindo assim o aplauso de não poucos liberais. Nas décadas anteriores Pareto desenvolvera, enquanto liberal, uma dura polêmica contra o “mito” do Estado social, concordara com as posições de Spencer e Maine e dera a sua adesão, sempre como liberal, àLiberty and Property Defense League(23); em 1922-23 ele pode respirar aliviado pelo golpe de Estado que finalmente afugenta as ameaças, se não a liberdade, em todo caso à propriedade.

Ao contrário, exclusivamente ao estado de exceção parece fazer referência Mises quando, em 1927, aponta no esquadrismo fascista um “remédio momentâneo ditado pela situação de emergência” e adequado à tarefa da salvação da civilização europeia”(24). Na realidade, cinco anos antes, após ter se distanciado das contaminações democráticas e até socialistas que o liberalismo havia sofrido na Inglaterra, ele havia trovejado contra o “destruicionismo”, a “política destruicionista” e o “terrorismo” dos sindicatos e das suas greves(25): graças a Mussolini na Itália tudo isso havia terminado. Resta o fato de que em um livro já no título dedicado à celebração do liberalismo se pode ler um elogio enfático do golpe de Estado que, embora com métodos violentos, havia salvado a civilização: “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo viverá eternamente na história”(26).

“Obviamente, nesse âmbito o caso mais clamoroso é constituído pela secessão do Sul dos Estados Unidos, posta em marcha agitando palavras de ordem liberais em defesa do direito natural ao autogoverno e ao gozo tranquilo da propriedade. A vitória militar do Norte não encerra o conflito. Contra a fugaz implementação da democracia multirracial os seguidores da supremacia branca reagem imediatamente não apenas com os linchamentos e com o terrorismo antinegro promovidos pelo Ku Klux Klan, mas recorrendo à guerrilha e à violência armada. Em 1874, no Sul circula um apelo para fundar Ligas Brancas de modo a neutralizar com todos os meios as tentativas do Congresso para tornar efetiva a participação dos negros: “a nossa guerra [será] ininterrupta e impiedosa”(28). Em conclusão: “tal como a luta de 1861 a 1865 foi uma guerra civil, assim foi o conflito de 1856 a 1877, e foi uma guerra civil conduzida com a mesma aspereza e o mesmo ódio, apenas com menor derramamento de sangue”(29).”

“Mas, nesse contexto, é acima de tudo interessante o fato de que não poucos estudiosos estadunidenses, para explicar a história do seu país, recorram à categoria de “democracia para o povo dos senhores” ou de Herrenvolk democracy, com uma eloquente mistura linguística de inglês de um lado e de alemão de outro, e de um alemão que remete por muitos aspectos à história do Terceiro Reich.

Não apenas o universo de concentração no seu conjunto, mas também cada uma das instituições totalitárias do século XX começaram a delinear-se muito antes do fim da presumidabelle époque. Convém partir da deportação. As sucessivas, sangrentas deportações dos índios, começando com a realizada pela América de Jackson (apontada como modelo de democracia por Tocqueville), evocam os “horrores provocados pelos nazistas com o tratamento infligido por eles aos povos subjugados”(70). Os peles-vermelhas não são as únicas vítimas dessa prática. O comércio dos negros representa “o mais maciço deslocamento involuntário de seres humanos de toda a história(71). Os deportados são obrigados a trabalhar em uma plantação escravista, que apresenta analogias com o campo de concentração(72). A comparação não deve parecer exagerada. É nesse âmbito que o processo desumanização alcançou picos dificilmente igualáveis. Na Jamaica, no império liberal britânico de meados do século XVIII, observamos a prática de um tipo de punição por si eloquente: “um escravo era obrigado a defecar na boca do escravo culpado, que depois era costurada por quatro ou cinco horas”(73). Também os companheiros totalmente inocentes eram obrigados a fazer parte da desumanização da vítima e, com ela, do grupo étnico de pertencimento. Se tudo isso não fosse parecer suficientemente cruel, se pense então nos métodos com os quais, entre o fim do século XIX e o início do século XX, é imposta nos Estados Unidos a supremacia branca:

“Notícias dos linchamentos eram publicadas nas folhas locais e vagões suplementares eram acrescidos aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para poder assistir ao linchamento, as crianças podiam ter o dia livre das escolas. O espetáculo podia incluir a castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os golpes de arma de fogo. Os souvenires para compradores podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até os genitais da vítima, assim como postais ilustrados do evento.”(74)

Novamente nos deparamos com um processo de desumanização difícil de ser igualado.

Antes no Norte e depois, com o fim da guerra de Secessão, no Sul, os negros em teoria “livres” sofrem humilhações e persecuções de todo tipo, tornam-se até alvo — ressalta um historiador recorrendo a uma linguagem que mais uma vez exige a nossa atenção — de verdadeiros “pogrom”(75). Estes são praticados por bandos já ativos no Norte nos anos 20 e 30 do século XIX e que, mais tarde, no Sul assumem uma forma acabada no Ku Klux Klan, uma organização que parece antecipar as “camisas pretas” do fascismo italiano e as “camisas marrons” do nazismo alemão(76). Não menos brutal que a violência extralegal é a justiça oficial: no Sul os negros continuam a serem submetidos a um sistema penitenciário tão sádico que leva a pensar nos “campos de concentração da Alemanha nazista”(77).

O que associa as duas situações é em todo caso a violência da ideologia racista. Theodore Roosevelt pode ser tranquilamente aproximado a Hitler(78). Para além das personalidades individuais convém não perder de vista o quadro geral: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos limados Unidos antecipavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazista contra os hebreus nos anos trinta do século XX”.

“Depois da catástrofe e além da hagiografia: a herança permanente do liberalismo

O horror do século vinte não é algo que irrompe repentinamente e de fora um mundo de convivência pacífica. Por outro lado, não se contentar com o quadro edificante da hagiografia usual para se colocar no terreno do real, com as suas contradições e os seus conflitos, não significa de modo algum não reconhecer os méritos e os pontos de força da tradição de pensamento aqui objeto de indagação. Claro, é necessário abandonar de uma vez por todas o mito da passagem gradual e pacífica, a partir de motivações e impulsos puramente internos, do liberalismo à democracia, isto é, do gozo generalizado da liberdade negativa ao reconhecimento em escala cada vez mais ampla dos direitos políticos.

Resta claro que resulta totalmente imaginário o pressuposto deste discurso: a comunidade dos livres se afirma reivindicando para si ao mesmo tempo a liberdade negativa e positiva, e excluindo de ambas, seja as populações de origem colonial, seja os semiescravos e os servos da metrópole. Mas aqui, gostaria de mostrar o valor de uma série de razões, que apresento em ordem de importância crescente.

Em primeiro lugar, não se deve esquecer que os clássicos da tradição liberal não apenas falam com frieza, hostilidade e às vezes com aberto desprezo da democracia, mas consideram o seu advento como uma ruptura arbitrária e intolerável do pacto social e, portanto, como uma causa legítima de “apelo ao céu” (nas palavras de Locke), isto é, às armas.

Em segundo lugar, deve ser levado em consideração que as cláusulas de exclusão foram superadas não de forma indolor, mas por meio de convulsões violentas e às vezes de violência inaudita.

A abolição da escravidão na esteira da guerra de secessão custou aos Estados Unidos mais vítimas do que a soma dos dois conflitos mundiais. No tocante a discriminação censitária, para o seu cancelamento deu uma contribuição decisiva o ciclo revolucionário francês. Enfim, em grandes países como a Rússia, a Alemanha, os Estados Unidos o acesso das mulheres aos direitos políticos tem atrás de si as convulsões bélicas e revolucionárias do início do século XX.

Em terceiro lugar, além de não ser indolor, o processo histórico culminado no advento da democracia não é absolutamente linear. À emancipação, isto é, à aquisição de direitos anteriormente não reconhecidos e não gozados, pode muito bem se seguir uma desemancipação, ou uma privação dos direitos dos quais os excluídos haviam arrancado o reconhecimento e o gozo. Afirmado na França na trilha da revolução de fevereiro de 1848, o sufrágio universal (masculino) é cancelado dois anos depois pela burguesia liberal, e logo depois é reintroduzido em decorrência não de um processo de amadurecimento do liberalismo mas do golpe de Estado de Luís Napoleão, do qual se serve para a encenação do rito da aclamação plebiscitária. Nesse âmbito o exemplo mais clamoroso nos é fornecido pelos Estados Unidos. O fim da guerra de Secessão inaugura o período mais feliz na história dos afro-americanos, os quais agora conquistam os direitos civis e políticos e passam a fazer parte dos organismos representativos. Mas, trata-se de uma espécie de breve intervalo da tragédia. O compromisso que ocorre em 1877 entre brancos do Norte e do Sul comporta para os negros a perda dos direitos políticos e, muitas vezes dos próprios direitos civis, como é testemunhado pelo regime de segregação racial e pela violência selvagem dos pogrom e dos linchamentos. Essa fase de desemancipação, que se desenvolve no âmbito de uma sociedade que continua a se autodefinir “liberal”, dura quase um século.

Existe depois uma quarta razão. O processo de emancipação muitas vezes tem tido um impulso totalmente externo ao mundo liberal. Não se pode compreender a abolição da escravidão nas colônias inglesas sem a revolução negra de Santo Domingo, vista com horror, e muitas vezes combatida, pelo mundo liberal no seu conjunto. Aproximadamente trinta anos depois o instituto da escravidão é cancelado também nos Estados Unidos, mas sabemos que os abolicionistas mais fervorosos são acusados pelos seus adversários de serem influenciados ou contagiados por ideias francesas e jacobinas. À breve experiência de democracia multirracial segue-se uma longa fase de desemancipação marcada por uma terrorista supremacia branca. Quando acontece o momento da virada? Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justiça envia para a Corte Suprema, empenhada em discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água para a propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas a respeito da intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Washington — observa o historiador americano que reconstrói esse acontecimento — corria o perigo de perder as “raças de cor” não apenas no Oriente e no Terceiro Mundo, mas no próprio coração dos Estados Unidos: aqui também a propaganda comunista alcançava um sucesso considerável na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, provocando neles o desmoronamento da “fé nas instituições americanas”(88). Observando bem, o que coloca em crise antes a escravidão e depois o regime terrorista de supremacia branca são respectivamente a revolta de Santo Domingo e a revolução de outubro. A afirmação de um princípio essencial, se não do liberalismo, pelo menos da democracia liberal (no sentido hodierno do termo), não pode ser pensada sem a contribuição decisiva dos dois capítulos da história mais odiados pela cultura liberal da época.

Enfim, a quinta e última razão, a mais importante de todas. Refiro-me ao entrelaçamento entre emancipação e desemancipação que caracteriza cada etapa do processo de superação das cláusulas de exclusão que caracterizam a tradição liberal. Nos Estados Unidos o desaparecimento da discriminação censitária e a afirmação do princípio de igualdade política são favorecidos pela contenção quantitativa e pela neutralização política e social das “classes perigosas”, graças à expropriação e deportação dos índios (que por muito tempo permite alargar a classe dos proprietários de terra) e à escravização dos negros; na Europa a expansão do sufrágio no século XIX vai de mãos dadas com a expansão colonial e com a imposição do trabalho forçado contra os povos ou as “raças” consideradas bárbaras ou de menor idade. Esse entrelaçamento às vezes apresenta-se de maneira abertamente trágica. Objeto de humilhações, discriminações e persecuções de todo tipo no Sul, os afro-americanos procuram conquistar o reconhecimento participando em primeira linha nas guerras da União. Acontece então que em alguns ambientes começa a se homenagear a coragem demonstrada pelos soldados de cor na batalha das Wounded Knees(89). Quer dizer, a esperança de emancipação dos negros passa, é obrigada a passar, pela sua participação ativa no aniquilamento dos peles-vermelhas!

No entanto, dessa própria reconstrução histórica, longe de qualquer tom apologético e edificante, emergem os méritos reais e os reais pontos de força do liberalismo. Dando prova de uma extraordinária elasticidade, este procurou constantemente responder e se adaptar aos desafios do tempo. É verdade, longe de ser espontânea e indolor, essa transformação tem sido em boa parte imposta do exterior pelos movimentos políticos e sociais com os quais o liberalismo repetida e duramente tem se chocado. Mas, exatamente nisso reside a flexibilidade. O liberalismo soube aprender do seu antagonista (a tradição de pensamento que, partindo do “radicalismo” e passando por Marx, deságua nas revoluções que de diversas maneiras nele se inspiraram) muito mais de quanto o seu antagonista tenha conseguido aprender do liberalismo. Acima de tudo, o antagonista não soube aprender o que constitui o segundo grande ponto de força do liberalismo. O processo de aprendizagem do liberalismo não é nada fácil, pelo menos para os que querem superar as cláusulas de exclusão que atravessam em profundidade essa tradição de pensamento. Nenhuma outra mais do que essa se dedicou a pensar o problema decisivo da limitação do poder. No entanto, historicamente, esta limitação do poder veio acompanhada da delimitação de um restrito espaço sagrado: ao amadurecer uma autoconsciência orgulhosa e exclusivista, a comunidade dos livres que o habita é levada a considerar legítimas a escravização ou a subjugação mais ou menos explícita, impostas à grande massa dispersa pelo espaço profano. Às vezes, chegou-se até a dizimação e ao aniquilamento. Desapareceu totalmente essa dialética em base à qual o liberalismo se transforma em uma ideologia da dominação e até em uma ideologia da guerra?

Em relação à economia: ao tomar claramente as distâncias de toda insípida utopia de uma harmonia social milagrosamente isenta de qualquer elemento de contradição, de conflito e de tensão, o pensamento liberal tem insistido com força sobre a necessidade da competição entre os indivíduos no âmbito do mercado, com a finalidade de desenvolver a riqueza social e as forças produtivas. Trata-se de um ulterior grande mérito histórico que deve ser reconhecido. Mas, também nesse nível emergiram as assustadoras cláusulas de exclusão que já conhecemos. Longe de ser o lugar onde todos os indivíduos se encontram livremente como vendedores e compradores de mercadorias, por séculos o mercado liberal tem sido o lugar da exclusão, da desumanização e até do terror. Os antepassados dos atuais cidadãos negros tinham sido mercadoria no passado, não autônomos compradores e vendedores. E por séculos o mercado tem funcionado como instrumento de terror: muito antes do chicote, o que providenciava a obediência total do escravo era a ameaça da sua venda, como mercadoria trocada no mercado separadamente dos outros membros da família(90). No mercado têm sido vendidos e comprados também os servos brancos a contrato, condenados assim a uma sorte não muito diferente da reservada aos escravos negros; em nome do mercado têm sido reprimidas coalizões operárias e têm sido ignorados e negados os direitos econômico-sociais, com a consequente mercantilização de aspectos essenciais da personalidade e dignidade humana (a saúde, a instrução etc). Em casos extremos o culto supersticioso do Mercado tem determinado imensas tragédias, como a que em 1847 leva a Inglaterra a condenar à morte por inanição uma massa incalculável de indivíduos concretos (irlandeses). Tudo isso é um capítulo de história definitivamente fechado? E mais: o liberalismo deixou definitivamente para trás a dialética de emancipação/desemancipação, com os perigos de regressão e restauração nela implícitos, ou essa dialética ainda está bem viva, graças também à flexibilidade que é própria dessa corrente de pensamento?

E, no entanto, por difícil que possa ser essa operação para os que estão empenhados em superar as cláusulas de exclusão do liberalismo, assumir a herança dessa tradição de pensamento é uma tarefa absolutamente inescapável. Por outro lado, os méritos do liberalismo são importantes e evidentes demais para que haja necessidade de atribuir-lhe outros, totalmente imaginários. Faz parte desses últimos a presumida capacidade espontânea de autocorreção que frequentemente lhe é atribuída. Se partirmos desse pressuposto, torna-se totalmente inexplicável a tragédia em primeiro lugar dos povos submetidos à escravidão ou semiescravidão, ou deportados, dizimados e eliminados; trata-se de uma tragédia, que longe de ser impedida ou bloqueada pelo mundo liberal, se desenvolveu em estreita conexão com ele. Inconsistente no plano historiográfico, a hagiografia usual é também um insulto à memória das vítimas. Em contraposição às difundidas remoções e transfigurações o livro que agora chega ao final apresenta-se como uma “contra-história”: dizer adeus à hagiografia é a condição preliminar para desembarcar no terreno da história.”


Notas de rodapé:

(1) Calhoun, 1992, p. 529. (retornar ao texto)

(2) Calhoun, 1992, p. 528-31, 469. (retornar ao texto)

(3) Calhoun, 1992, p. 30-31. (retornar ao texto)

(4) Calhoun, 1992, p. 30-33. (retornar ao texto)

(5) Calhoun, 1992, p. 474. (retornar ao texto)

(6) Calhoun, 1992, p. 582. (retornar ao texto)

(7) Calhoun, 1992, p. 529, 473. (retornar ao texto)

(15) Locke, 1993c, p. 196 (art. CX). (retornar ao texto)

(16) Davis, 1975, p. 45. (retornar ao texto)

(17) Calhoun, 1992, p. 374. (retornar ao texto)

(18) Cranston, 1959, p. 114-15; Thomas, 1977, p.199, 201. (retornar ao texto)

(32) Calhoun, 1992, p. 473. (retornar ao texto)

(42) Franklin, 1987, p. 646-47. (retornar ao texto)

(43) Foner, 2000, p. 54. (retornar ao texto)

(44) Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 297. (retornar ao texto)

(45) Miller, 1986, p. 294 (= Millar, 1989, p. 239). (retornar ao texto)

(59) Dunn, 1998, p. 463-65. (retornar ao texto)

(60) É a definição de Marx (Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 788). (retornar ao texto)

(61) Tucker, 1993-96, vol. V, p. 21-22. (retornar ao texto)

(72) Zilversmit, 1969, p. 165, 182. (retornar ao texto)

(73) Drescher, 1999, p. 211, 218, 196. (retornar ao texto)

(1) Blackburn, 1997, p. 3. (retornar ao texto)

(2) Blackburn, 1990, p. 5. (retornar ao texto)

(3) Pitt, cit. in Thomas, 1997, p. 237. (retornar ao texto)

(35) Franklin, 1987, p. 652. (retornar ao texto)

(36) Nevins, Commager, 1960, p. 170. (retornar ao texto)

(37) Calhoun, 1992, p. 291. (retornar ao texto)

(38) Davis, 1975, p. 376, 394. (retornar ao texto)

(39) Rice, 1982, p. 151. (retornar ao texto)

(40) Foner, 2000, p. 19. (retornar ao texto)

(41) Thompson, 1988, p. 88. (retornar ao texto)

(42) Colley, 2002, p. 314. (retornar ao texto)

(43) Colley, 2002, p. 314-16. (retornar ao texto)

(44) Defoe, 1982, p. 84-85. (retornar ao texto)

(45) Townsend, 1971, p. 35. (retornar ao texto)

(46) Mandeville, 1988, vol. 1, p. 119. (retornar ao texto)

(47) Colley, 2002, p. 314. (retornar ao texto)

(48) Defoe, 1982, p. 84. (retornar ao texto)

(49) Thompson, 1989, p. 28-29; Arblaster, p. 172; Hughes, 1990, p. 58. (retornar ao texto)

(62) Sieyès, 1985, p. 76. (retornar ao texto) NÃO CONSTA NO ORIGINAL

(63) Williams, 1990, p. 11. (retornar ao texto)

(64) Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 425, nota 144. (retornar ao texto)

(65) Locke, 1993 a, p. 454. (retornar ao texto)

(66) Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76). (retornar ao texto)

(67) Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64-65 (= Bentham, 1983, p. 98). (retornar ao texto)

(68) Jefferson, 1984, p. 1450 e 1485-87 (carta a A. Gallatin, 26 de dezembro de 1820, e a J. Sparks, 4 de fevereiro de 1824). (retornar ao texto)

(69) Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64 (= Bentham, 1983, p. 98). (retornar ao texto)

(70) Wakefield, 1967, p. 52-55. (retornar ao texto)

(71) Laboulaye, 1866, vol. III, p. 541-42. (retornar ao texto)

(72) Smith, 1981, p. 157 (= Smith, 1977, p. 141) (livro I, cap. X, 2). (retornar ao texto)

(73) Thompson, 1989, p. 29 e 186-87. (retornar ao texto)

(74) Mandeville, 1988, vol. I, p. 273 (= Mandeville, 1974, p. 75-76). (retornar ao texto)

(75) Hughes, 1990, p. 59. (retornar ao texto)

(76) Mandeville, 1988, vol. 1, p. 272-73, 87 (=Mandeville, 1974, p. 74-75, 56). (retornar ao texto)

(77) Constant, 1980; Berlin, 1989, p. 185-241. (retornar ao texto)

(78) Mandeville, 1988, vol. I, p. 307 (= Mandeville, 1974, p. 112). (retornar ao texto)

(79) Burke, 1826, vol. VII, p. 413-14. (retornar ao texto)

(80) Marx-Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 420-21 e nota 133. (retornar ao texto)

(81) Locke, 1993 a, p. 454. (retornar ao texto)

(82) Mandeville, 1988, vol. 1, p. 307-308 (= Mandeville, 1974, p. 111-12). (retornar ao texto)

(83) Wallerstein, 1978-95, vol. III, p. 193. (retornar ao texto)

(84) Mandeville, 1988, vol. I, p. 306 (= Mandeville, 1974, p. 110-11). (retornar ao texto)

(85) Smith, 1981, p. 83-84 (= Smith, 1977, p. 67) (livro I, cap. 8). (retornar ao texto)

(86) Smith, 1981, p. 84-85 (= Smith, 1977, p. 68) (livro 1, cap. 8). (retornar ao texto)

(87) Smith, 1981, p. 145 (= Smith, 1977, p. 128-29) (livro 1, cap. X, 2). (retornar ao texto)

(88) Constant, 1830, vol. I, p. 28 e passim. (retornar ao texto)

(90) Townsend, 1971, p. 35. (retornar ao texto)

(91) In Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 643. (retornar ao texto)

(92) Young, cit. in Tawney, 1975, p. 514. (retornar ao texto)

(93) Destutt de Tracy, cit. in Marx-Engels, 1955-89, vol. XXII (retornar ao texto)

(94) Sidney, 1990, p. 89, 103. (retornar ao texto)

(97) Locke, 1971, p. 804-805 (livro IV, cap. XX, 2), 807 (livro IV, cap. XX, 5). (retornar ao texto)

(98) Locke, 1971, p. 760 (livro IV, cap. XVI, 12). (retornar ao texto)

(105) Constant, 1957, p. 155, 150-51 (= Constant, 1969, p. 41, 36). (retornar ao texto)

(106) Tocqueville, 1951, vol. XIII, t. 2, p. 333 (carta a L. de Kergorlay, 27 de fevereiro de 1858). (retornar ao texto)

(107) Tocqueville, 1951, vol. II, t. 1, p. 62. (retornar ao texto)

(108) Tocqueville, 1951, vol. I, 2, p. 185 (DA2, cap. III, 5). (retornar ao texto)

(109) Tocqueville, 1951, vol. 11, t. p. 62. (retornar ao texto)

(110) Tocqueville, 1951, 1, t. 1, p. 357 (DAI, cap. II, 10). (retornar ao texto)

(111) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 2, p. 21.22 (DA2, cap. 1, 3). (retornar ao texto)

(112) Skinncr, 2001, p. 3 ss.; Pocock, 1980. (retornar ao texto)

(113) Tucker, Cit. in Pocock, 1988, p. 119, 187. (retornar ao texto)

(114) Sidney, 1990, p. 548-49. (retornar ao texto)

(115) Sidney, 1990, p. 312. (retornar ao texto)

(116) Sidney, 1990, p. 9. (retornar ao texto)

(117) Jefferson, 1984, p. 479. (retornar ao texto)

(118) Tucker, cit. in Pocock, 1988, p. 178. (retornar ao texto)

(85) Bentham, cit. in Halévy, 1901-1904, vol. I, p. 91-92. (retornar ao texto)

(86) Mill, 1972, p. 123 (= Mill, 1981, p. 96). (retornar ao texto)

(87) Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 49. (retornar ao texto)

(88) Dockes, 1989, p. 85 nota (é uma afirmação que, com alguma diferença, se encontra tanto em Dupont de Nemours como em Robespierre). (retornar ao texto)

(135) Townsend, 1971, p. 23, 36-41. (retornar ao texto)

(136) Burke, 1826, vol. VI, p. 218 (= Burke, 1963, p. 545). (retornar ao texto)

(137) Franklin, 1987, p. 803 (carta a J. Fothergill de 1764). (retornar ao texto)

(138) Cf. Losurdo, 1996, cap. V, § 10. (retornar ao texto)

(139) Spencer, 1877, p. 414-15. (retornar ao texto)

(140) Spencer, 1981, p. 32-33. (retornar ao texto)

(141) Lecky, 1883-88, vol. 1, p. 275. (retornar ao texto)

(39) Toynbee, 1954, p. 47-48. (retornar ao texto)

(40) Lieber, cit. in Freidel, 1968, p. 317 (retornar ao texto)

(41) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 32 (DAI, cap. I, 2). (retornar ao texto)

(42) Tocqueville, 1951, vol. 1, t. 1, p. 33 (DAI, cap. I, 2). (retornar ao texto)

(43) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 24-25, 31-32 (DAI, cap. I, 1-2). (retornar ao texto)

(44) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 335 (DAI, cap. II, 10). (retornar ao texto)

(45) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 337 (DAI, cap. II, 10). (retornar ao texto)

(46) Tocqueville, 1951, vol. I, t. I, p. 25 (DAI, cap. I, 2). (retornar ao texto)

(47) Tocqueville, 1951, vol. I, t. I, p. 25 (DAI, cap. I, 2). (retornar ao texto)

(48) Parrington, 1969, vol. II, p. 566-67. (retornar ao texto)

(49) Gossett, 1965, p. 243. (retornar ao texto)

(50) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 25 (DAI, cap. I, 2). (retornar ao texto)

(51) Tocqueville, 1951, vol. V, t. 1, p. 73-76, 223-25; cf. também p. 343-44. (retornar ao texto)

(52) Tocqueville, 1951, vol. I, t. I, p. 430. (retornar ao texto)

(69) Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 216. (retornar ao texto)

(70) Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 280. (retornar ao texto)

(71) Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 253. (retornar ao texto)

(72) Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 259. (retornar ao texto)

(73) Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 252. (retornar ao texto)

(4) Burke 1826, vol. 111, p. 153. (retornar ao texto)

(5) Burke 1826, vol. V, p. J55.56 (= Burke, 1963, p. 248). (retornar ao texto)

(6) Burke 1826, vol. 111, p. 54 (=Burke, 1963, p. 91). (retornar ao texto)

(7) Burke, 1958.78, vol. VII, p. 52 53 (carta a W. Weddell, 31 de janeiro de 1792). (retornar ao texto)

(8) Washington, 1988, p, 397 (carta a M. J. G. La Fayette, 28 de maio de 1788), 455 (partes do primeiro esboço do discurso de posse do presidente, abril de 1789). (retornar ao texto)

(9) Adams, cit. in Mernam, 1969, p. 132. (retornar ao texto)

(10) Sieyès, 1985, p. 133. (retornar ao texto)

(11) Guillemin, 1958, p. 133. (retornar ao texto)

(12) Guillemin, 1958, p. 194-95. (retornar ao texto)

(13) Constant, 1951, vol. VII, p. 144-45. (retornar ao texto)

(32) Jefferson, 1995, vol. III, p. 1585-86 (carta a J. Madison, 27 de abril de 1809). (retornar ao texto)

(33) Mill, 1972, p. 382 (= Mill, 1946, p. 291). (retornar ao texto)

(34) Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 330. (retornar ao texto)

(35) Mill, 1983, p. 391-93 (livro II, cap. 5). (retornar ao texto)

(36) Mill, 1972, p. 151 (= Mill, 1981, p. 130). (retornar ao texto)

(37) Mill, 1963-91, vol. XV, p. 528 (carta a E. Chadwick, 13 de março de 1857). (retornar ao texto)

(38) Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIX, p. 56 (carta a Marx, 23 de maio dc 1856). (retornar ao texto)

(39) Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 3, p. 496 (carta a (G. de Beaumont, 17 de agosto de 1857). (retornar ao texto)

(40) Tocqueville, 1951, vol. XVIII, p. 424 (carta a A. de Circout, 25 de outubro de 1857). (retornar ao texto)

(41) Macaulay, 1986, p. 301-303. (retornar ao texto)

(42) Macaulay 1850, vol. IV, p. 273-74, 266, 300-301. (retornar ao texto)

(41) Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 751-752, 779-81 e passim. (retornar ao texto)

(42) Noer, 1978, p. 21. (retornar ao texto)

(43) Poliakov, 1987, p. 55. (retornar ao texto)

(44) Cf. Losurdo, 1993, cap. 3, § 9. (retornar ao texto)

(45) Jordan, 1977, p. 393. (retornar ao texto)

(20) Hofstadter, 1960, p. 216. (retornar ao texto)

(21) Cf. losurdo, 1994, cap. 2, §1. (retornar ao texto)

(22) Einaudi, cit. in Favilli, 1984, p. 106-107. (retornar ao texto)

(23) Veja-se em particular Pareto, 1966, p. 224-25; Mackay, 1981, p. VII e XII (no que diz respeito à adesão de Pareto à League). (retornar ao texto)

(24) Mises, 1927, p. 45. (retornar ao texto)

(25) Mises, 1922, p. 469ss. (retornar ao texto)

(26) Mises, 1927, p. 45. S (retornar ao texto)

(28) Hofstadter (org.), 1958-82, vol. III, p. 43-44. (retornar ao texto)

(29) Franklin, 1983, p. 290. (retornar ao texto)

(70) Assim William T. Hagan, reportado com consenso por Hauptman, 1995, p. 5. (retornar ao texto)

(71) Davis, cit. in Wood, 2004, p. 43. (retornar ao texto)

(72) Elkins, 1959. (retornar ao texto)

(73) Wood, 2004, p. 43. (retornar ao texto)

(74) Woodward, 1998, p. 16 (retornar ao texto)

(75) Brown, 1975, p. 30. (retornar ao texto)

(76) MacLean 1994, p. 184 (retornar ao texto)

(77) Fletcher M. Green, cit. in Woodward, 1963, p. 207. (retornar ao texto)

(78) Van den Berghe, 1967, p. 13; Dyer, 1980, p. XIII. (retornar ao texto)

(88) Woodward, 1966, P. 131-34. (retornar ao texto)

(89) Litwack, 1998, p. 463. (retornar ao texto)

(90) Johnson, 1999, p. 19,22-23. (retornar ao texto)

Inclusão: 25/09/2020