A Esquerda Ausente
Prefácio

Domenico Losurdo

28 de Maio de 2015


Primeira Edição: Prefácio do último livro de Domenico Losurdo, La izquierda ausente. Crisis, sociedad del espectáculo, guerra (ISBN 9788416288434). O livro pode ser encomendado em: https://tienda.elviejotopo.com/inicio/1226-la-izquierda-ausente-9788416288434.html

Fonte: Resistir.info - https://www.resistir.info/ - Original disponível em https://www.elviejotopo.com/topoexpress/la-izquierda-ausente/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Não poderiam ser encontrados pormenores chocantes sobre episódios de crueldade?
Otto von Bismarck

Ninguém mente tanto como o indignado.
Friedrich Nietzsche

capa

O historiador do futuro não deixará de se surpreender com um fenómeno que caracteriza a nossa sociedade e o nosso tempo. Por um lado, não é difícil ler em livros, revistas e jornais análises realistas e incisivas sobre a condição actual do Ocidente, dos problemas e dramas de nosso presente. Uma crise política acresce à crise económica: segundo autores de prestígio, há um esvaziamento da democracia, que regride perante as grandes fortunas e a "plutocracia". Mas existe uma esquerda no Ocidente capaz de fazer essa análise e essa denúncia e, a partir daí, articular um projecto de luta e transformação política do existente?

No que diz respeito à política internacional, mesmo alguns órgãos de imprensa que frequentemente se destacam pela sua coragem evitam admitir o carácter neocolonial que tiveram as guerras mais recentes desencadeadas pelos Estados Unidos e pela NATO no Médio Oriente. Está à vista de todos, o horror de Gaza e a tragédia que é infligida ao povo palestino pelo domínio e o expansionismo colonial de Israel. E não temos outro remédio a não ser perguntar novamente: existe uma esquerda no Ocidente capaz de se opor à terrível onda que agora semeia morte, destruição e desenvolve os germes de uma conflagração a uma escala muito maior?

Em Março de 2014, Seymour M. Hersh, jornalista americano premiado com o prestigiado Prémio Pulitzer, fez importantes revelações sobre o uso de armas químicas na Síria em 21 de Agosto do ano anterior. Não, os responsáveis por essa infâmia não eram os líderes do país, mas os "rebeldes" apoiados pelas monarquias reaccionárias do Golfo Pérsico, aliados do Ocidente e pela Turquia, um país membro da NATO e protagonista da provocação e encenação, visando criar uma onda de indignação mundial contra os líderes Sírios, justificando a acção devastadora de bombardeiros com os motores já ligados e prontos para entrar em acção.

Em Agosto de 2013, estadistas, jornalistas, reis e rainhas da sociedade do espectáculo rivalizavam no modo mais sinistro de pintar o inimigo a abater. Escusado será dizer que o desmascaramento da mentira teve nos diferentes os órgãos de informação um eco muito menor que a propagação da mesma mentira. Era melhor não dar muita publicidade ao escândalo, para não desacreditar ou comprometer a indústria das mentiras, pois esta será sempre útil na preparação de guerras futuras.

E novamente a esquerda brilhou por sua ausência. Ela não teve coragem de fazer perguntas e levantar dúvidas no momento em que a manipulação foi mais intensa, e não considerou necessário chamar a atenção do público para o desmascaramento da manipulação e, em geral, para a indústria bélica da mentira que apesar de tudo continua a florescer. De facto, a esquerda encolhe-se justamente quando deveria reagir com mais energia aos processos de polarização social e redistribuição massiva do rendimento a favor das grandes fortunas (muitas vezes parasitárias), perante o reaparecimento de guerras coloniais ou neocoloniais e a ameaça de guerras em larga escala; perante a redução e distorção da esfera pública provocada pela "plutocracia" e por uma indústria da mentira mais florescente, poderosa e invasiva do que nunca.

Já se vê com suficiente clareza qual é o paradoxo que requer explicação. Não podemos deixar essa tarefa para o historiador do futuro, porque os dramas e perigos do presente exigem uma consciência e uma responsabilidade aqui e agora. Este livro tenta facilitar isso.

Antes de mais, será necessário fazer um reconhecimento no terreno. É a questão abordada no primeiro capítulo. A crise devastadora que estamos sofrendo embora tenha um alcance planetário, não afecta o planeta inteiro. Os países que no século XX sacudiram o domínio colonial e neocolonial lutam hoje para alcançar o desenvolvimento autónomo nos campos económicos e tecnológicos, e no curso dessa luta eles colhem sucessos importantes. Vemo-lo, acima de tudo, no caso da China e de outros países emergentes. Nada seria entendido do cenário internacional actual se dois processos contraditórios não fossem levados em consideração: a "grande divergência" que durante séculos colocou o Ocidente na posição de superioridade absoluta sobre o resto do mundo tende a ser reduzida até ser cancelada; ao mesmo tempo, nos países capitalistas avançados abre-se um abismo, outra "grande divergência" que separa uma minoria opulenta cada vez mais separada do resto da população.

Compreende-se então que o Ocidente capitalista reaja a esta situação desmantelando o Estado social e aplicando medidas anti-populares de "austeridade", porém tentando ao mesmo tempo, salvar a sua preponderância internacional. Por isso, desencadeia guerras cujo carácter neocolonial é cada vez mais evidente, o que se reflecte inclusivamente nos media. Nestas guerras neocoloniais, a UE e os EUA não hesitam em aliar-se às forças mais reaccionários do Médio Oriente, que escravizam imigrantes, oprimem mulheres, reintroduzem poligamia, etc.

Tudo isso deveria ter provocado a reacção da esquerda. Mas, como se observa no segundo capítulo, o mundo capitalista-imperialista todavia consegue creditar-se a si próprio como «mundo livre». É uma pretensão que desde há séculos faz parte da auto consciência e falsa consciência do Ocidente. Embora hoje, mais do que nunca, devesse ter perdido toda a credibilidade. Desde a ofensiva neoliberal, os "direitos sociais e económicos" definidos pela ONU não só não foram postos em prática como também se deslegitimaram no plano teórico. Quanto aos direitos políticos, a "plutocracia" que gradualmente se impõe no Ocidente esvazia-os de conteúdo. E como que sorrateiramente e de forma indirecta foi reintroduzida a discriminação censitária, que durante séculos excluiu as classes subordinadas da participação na vida política.

Permanecem de pé pelo menos os direitos civis e o Estado de direito? Todas as terças-feiras – informa o New York Times – o presidente dos EUA reúne-se com seus colaboradores para preparar a "lista de mortes" (lista de assassinatos), a lista dos suspeitos de terrorismo que devem ser "eliminados" como se diz na anódina linguagem burocrática, desde que se iniciaram as acções com drones. Nesta lista, podem até haver cidadãos dos EUA. Para onde foi o Estado de direito? E acima de tudo: é compatível a profissão de fé democrática do Ocidente com sua pretensão de exercer uma ditadura à escala planetária, reservando-se o direito soberano de desencadear guerras, sanções devastadoras com ou sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU?

A prosápia do Ocidente às vezes é grotesca. Mas continua a exercer uma influência ideológica tão forte que muitas vezes é capaz de ofuscar a esquerda na Europa e nos EUA. Marx não tinha falta de razão quando observou que o monopólio da produção material é também o monopólio da produção intelectual. Hoje a grande burguesia baseia o seu poder no monopólio da produção de ideias, isto é evidente, mas também, e acima de tudo, no monopólio das emoções: tema central do terceiro capítulo do livro.

Como é actualmente programada e preparada a guerra? Procura-se através da imprensa, rádio, televisão, Internet e redes sociais, manipular completamente ou inventar uma imagem que possa demonstrar a crueldade, ferocidade, falta de humanidade do inimigo a derrubar ou matar. Essa imagem é difundida, obsessivamente repetida, com ela se bombardeiam, por assim dizer, todos os recantos do planeta. Todos aqueles que não alinham incondicionalmente com o Ocidente na guerra que está prestes a desencadear-se são acusados de surdos às razões da ética e de serem cúmplices do Mal. É o terrorismo da indignação, um ultraje que afirma ser moral, mas é realmente Maquiavélico no mau sentido da palavra. É assim que a sociedade espectáculo se torna uma mortífera técnica de guerra.

O terrorismo da indignação também desempenha um papel fundamental nos golpes de Estado, habilmente camuflados de "revoluções coloridas", que promovem a expansão da NATO e do Ocidente em geral. Também nestes casos os distúrbios baseiam-se numa mentira, uma manipulação ou uma provocação capaz de desencadear uma onda de indignação moral necessária para derrubar um regime odiado ou considerado um obstáculo pelos aspirantes a donos do mundo.

O quarto capítulo do livro traça um balanço histórico dos golpes consumados ou falhados ao longo dos séculos XX e XXI: a primeira onda abrange mais ou menos os anos da guerra-fria e o segundo começa quando se perfila o fim da Guerra-fria. Entre os dois períodos não faltam elementos de descontinuidade, mas em ambos é comum a arrogância imperial, que continua a manifestar-se. Desencadeiam-se guerras ou golpes, o Ocidente sanciona-os constantemente arvorando a bandeira do universalismo dos valores do mercado livre, um universalismo que não conhece ou tolera fronteiras estatais e nacionais.

O quinto capítulo chama a atenção para as colossais mudanças produzidas em relação ao passado. Aquele que hoje é o país guia do Ocidente, na segunda metade do século XIX foi o campeão mundial do proteccionismo aduaneiro. E o proteccionismo também afectava as ideias, ainda nos anos da Guerra-fria, os comunistas sofreram perseguições nos EUA por espalharem uma visão que faz um apelo universalista aos proletários e povos oprimidos de todo o mundo. Apesar da sua extraordinária capacidade de atracção em todos cantos do planeta, as autoridades dos EUA proibiram-no qualificando-o de alheio ao autêntico espírito "americano" e ao "americanismo".

Isto deveria fazer-nos desconfiar da ideologia que se impõe hoje no Ocidente. Na verdade, quando uma cultura ou uma civilização determinada pretende ser a personificação permanente dos valores universais, não está exibindo universalismo, mas, ao contrário, um etnocentrismo exaltado que sempre serviu para desencadear guerras coloniais ou neocoloniais em nome da Civilização, uma noção monopolizada pelo agressor.

Porém, podem realmente ser consideradas neocoloniais as guerras entre o final do século XX e o princípio do século XXI que devastaram o Panamá, a Jugoslávia, o Iraque e a Líbia, e continuam a devastar a Síria? A esta pergunta responde o sexto capítulo do livro, que reflecte sobre a história secular da luta entre colonialismo e anticolonialismo e sobre os elementos de continuidade entre o antigo e o novo colonialismo.

Em meados do século XIX, as canhoneiras britânicas subjugaram a China, que não tinha possibilidade de responder ao fogo inimigo. Esta situação foi repetida recentemente (a favor dos EUA e da NATO) no Panamá, nos Balcãs e no Médio Oriente. Os derrotados, embora ocupem o cargo de chefes de Estado, são entregues ao Tribunal Penal Internacional, que em compensação não pode investigar sequer um vulgar soldado americano ou mercenário. A dupla jurisdição é um elemento essencial da tradição colonial.

Hoje, a agressão é praticada em nome dos "valores" e "interesses" ocidentais. É a mesma ideologia que sustentou as guerras coloniais clássicas. Da sua preparação ideológica se encarregavam no passado, os missionários cristãos, que hoje transmitiram o testemunho para as ONG, frequentemente controladas por Washington e por Bruxelas. A continuidade entre o colonialismo e o neocolonialismo é impressionante, ainda que por este motivo, a envergadura das alterações existentes não deva ser subestimada. Algo que foi suficiente para desorientar e silenciar a esquerda ocidental.

Os EUA, contando com os seus aliados europeus para consolidar as posições do Ocidente no Médio Oriente ou noutras partes do mundo está a deslocar para a Ásia e Pacífico a maior parte de seu gigantesco aparelho militar. Começou a contenção e cerco da China. É uma nova Guerra-fria, que por definição está sempre a um passo de se tornar uma guerra quente ou mesmo num holocausto nuclear.

Hoje, mais do que nunca, a luta pela paz é urgente, mas a esquerda que deveria promovê-la está silenciosa porque, entre outras coisas, não entende que é uma nova fase do choque entre colonialismo e anticolonialismo. O país que encarna a causa do anticolonialismo só pode ser a República Popular da China, que nasceu da maior revolução anticolonial da história e continua dando uma contribuição essencial ao movimento anticolonial. Com a teoria da "guerra de aldeia" Mao Zedong explicou como um povo oprimido pode desafiar e derrotar um grande poder. Deng Xiaoping explicou que a luta de libertação nacional não está completa se à independência política não sucede a independência económica.

Depois de analisar os problemas e contradições da actualidade e dar provas da fraqueza e das ausências da esquerda, devemos avançar para uma reflexão mais sistemática sobre as razões dessa fraqueza e dessas ausências.

O capítulo final do livro (o oitavo) é dedicado a esta tarefa e à conclusão. É evidente que mudanças radicais como as produzidas em todo o mundo entre 1989 e 1991 não podem deixar de causar desorientação e confusão. Sim, no Ocidente, a esquerda, moderada ou "radical", não poucas vezes foi a reboque da ideologia dominante. O terrorismo de indignação que prepara o desencadear de guerras neocoloniais intimidou principalmente a esquerda. O papel desempenhado no século XIX pelo "cristianismo imperial" que abriu caminho para a expansão colonial com seus missionários bem-intencionados, corresponde hoje à "esquerda imperial".

No que diz respeito à luta sócio-económica dentro de cada país, acontece que a esquerda, embora saia em defesa do Estado social, promove ao mesmo tempo a difusão de filosofias e ideologias extremamente úteis ao neoliberalismo. A crise económica e política e a deterioração da situação internacional exigem que a esquerda saia deste estado de desorientação e confusão. A isso pretende contribuir este livro de história e crítica do declínio da esquerda e das situações objectivas nos planos internos e internacionais que favoreceram esse declínio.

As análises evidenciadas nas páginas deste livro encontraram uma confirmação trágica: enquanto estava a ser impresso, o Médio Oriente estava a ser balcanizado e devastado por implacáveis guerras de grupos islâmicos, usados pelo Ocidente para atacar regimes de inspiração anticolonialista e laica; o golpe na Ucrânia e o avanço ameaçador da NATO na Europa Oriental provocou a reacção russa; a deslocação dos EUA para a Ásia está a transformá-la numa barril de pólvora. Agravam-se os perigos de guerra sobre os quais este livro insiste. Saberá a esquerda mostrar sinais de vida?


Inclusão 03/11/2019