A Teoria do Romance

Georg Lukács


I - As formas da grande literatura épica examinada em relação as formas da civilização enquanto fechadas ou problemáticas
3. O épico e o romance


A epopeia e o romance, estas duas principais formas da grande literatura épica, são diferentes entre si não pelas intenções fundamentais dos escritores, mas pelas realidades histórico-filosóficas que estes escritores têm diante de si. O romance é a epopeia da idade em que a totalidade extensiva da vida não é mais dada diretamente, em que a imanência do significado na vida tornou-se um problema, mesmo quando pensamos em termos de totalidade. Seria superficial — e algo tecnicamente artístico — buscar as características únicas e decisivas da definição dos gêneros apenas no critério se são escritos em verso ou prosa.

O verso não é o constituinte último nem da epopeia nem da tragédia, embora seja mesmo um sintoma profundo porque a natureza correta dessas formas é mais belamente e genuinamente revelada. O verso trágico é duro e cortante, isola e cria distancia. Ele reveste os heróis com toda profundidade de sua solidão, que nasce da forma em si; não permite surgir quaisquer relações entre eles que não as de luta e aniquilação; seu lirismo pode ressoar contendo notas de desespero ou excitação sobre o caminho a ser trilhado e sua chegada, pode mostrar o caráter incomensurável do abismo sobre o qual a essência puramente humana está oscilando, entre as almas de personagens trágicas que nunca irromperá, como por vezes permite a prosa; o desespero jamais o desespero se tornara uma elegia, nem a excitação por suas próprias alturas; jamais a alma procurará sondar seu abismo com vaidade psicológica, nem admirar-se no espelho de sua própria profundidade.

O verso dramático, como Schiller escreveu a Goethe, revela toda banalidade que possa existir na invenção artística: ele possui uma profundidade especifica, um tom grave todo seu, diante do qual nada que é verossímil— somente outra expressão para a banalidade dramática — pode sobreviver: se a mentalidade criativa do artista tem algo trivial sobre isto, a oposição entre o peso da linguagem e o conteúdo poderá denunciá-lo.

O verso épico, também, cria distancias, mas na esfera do épico (que é a esfera da vida) distancias significam levezas e felicidades, um afrouxamento dos laços que atam indignamente homens e coisas, uma superação daquela apatia e opressão que impregnam a vida tomada por si mesma, que são dissipadas apenas em raros momentos felizes. As distâncias criadas pelo verso épico transformam tais momentos no verdadeiro patamar da vida. E assim o efeito do verso aqui é oposto devido às suas consequências imediatas— que abolem a banalidade e caminham junto da essência—é o mesmo. O peso para a esfera banal da vida —o épico— tem a leveza banal na tragédia. A garantia objetiva de todo afastamento de toda verossimilhança não significa uma abstração vazia mas o tornar-se essência, somente pode ser dada pela coerência com que estas formas inverossímeis são criadas; apenas se elas são incomparavelmente mais preenchidas, mais plenas, mais repletas com substancia que nós possamos sonhar da vida real, surge a evidência tangível que a estilização trágica foi atingida com sucesso. Toda leveza ou palidez (que é claro, nada tem de conceito banal de inverossímil) revela a ausência da intenção trágica normativa e assim demonstra o prosaico da obra, apesar do requinte psicológico e/ou delicadeza poética dos detalhes.

Na vida, entretanto, o peso significa ausência do sentido presente, a trama sem esperança de conexões casuais sem sentido, o enleio de uma existência estéril muito próxima a terra e muito longe do paraíso, uma forçosa perseverança e incapacidade de livrar-se dos grilhões da trivial materialidade brutal – tudo o que, para as refinadas forças imanentes da vida, é o alvo constante de superação — ou, expresso no conceito de valor da forma: a trivialidade. Uma harmonia preestabelecida diminui com o verso épico que cantará a abençoada totalidade existente da vida; o processo pre-poetico de abarcar toda a vida foi liberto da fábula de todo peso existente de toda trivialidade; em Homero, os botões desta primavera prestes a abrir, não fazem mais que desabrochar. O verso em si, entretanto, pode somente dar um ligeiro impulso a essa floração e cingir a guirlanda da liberdade somente o que se libertou de suas peias. Se a ação do escritor é descortinar o sentido oculto, se seus heróis devem primeiro romper o cárcere e conquistar sua almejada pátria de seus sonhos, em lutas desesperadas — sua liberdade da gravidade terrestre — então o poder do verso, que pode estender um tapete de flores sobre o abismo, não é suficiente para construir uma estrada trafegável sobre ele. A leveza da grande literatura épica é apenas concretamente a Utopia imanente do momento histórico, e o êxtase formador que o verso como um veículo empresta quando carrega terá, então, de roubar da epopeia sua grande totalidade, sua ausência de sujeito, e transformá-la num idílio ou um fragmento de um jogo lírico. A leveza da grande literatura épica é um valor positivo e uma força criadora da realidade somente se romper os grilhões que a acorrentam ao chão. A grande literatura épica nunca é resultado do esquecimento da escravidão dos homens no admirável jogo da imaginação liberta ou numa fuga tranquila para ilhas felizes que não podem ser descobertas nos mapas do mundo dos vínculos triviais. Nos tempos em que tal leveza não é mais dada, o verse é banido da grande épica, ou então se transforma, inopinada e inadvertidamente, no verso lírico. Somente a prosa pode então abraçar com igual vigor as lamúrias e os lauréis, o combate e a coroação, o caminho e a consagração; somente sua desenvolta ductilidade e sua coesão livre de ritmo captam com igual força os elos e a liberdade, o peso dado e a leveza conquistada ao mundo, que passa então a irradiar com imanência o sentido descoberto. Não é casual que a desintegração da realidade convertida em canto na prosa leva, em Cervantes, na leveza contrita da grande épica, enquanto a serena dança dos versos de Ariosto resta mero jogo poético; não é por acaso que Goethe, o poeta épico, moldou em versos seus idílios e elegeu a prosa para a totalidade do seu romance Meister [mestre]. No mundo das distancias, todos os versos épicos transformam-se em poesia lírica (Don Juan e Oniéguin, embora escritos em versos, pertencem à companhia dos grandes romances humoristas), pois, no verso, tudo o que está oculto aparece, e a distancia, que o passo cauteloso da prosa transpõe com sentido que se insinua gradualmente aparece em toda sua nudez, escarnecida, espezinhada ou simplesmente como um sonho esquecido.

Tampouco os versos de Dante, são líricos, embora mais líricos que os de Homero; eles intensificam e concentram o tom da balada em epopeia. A imanência do significado da vida é presente e existente no mundo de Dante, mas apenas e além disso: eles são a imanência perfeita do transcendente.

A distancia no mundo da vida comum é ampliada ao ponto onde não pode ser superada, exceto além de cada mundo perdido imaginado encontra o lugar que é esperado para ele por toda eternidade, cada voz solitária que silencia na terra é reservada ao coro, é levada rumo a harmonia e, mesmo, torna-se harmonia em si.

O mundo das distancias vive expandindo-se e caótico entre a cor de rosa radiante e celestial dos sentidos tornados sensíveis; é visível e sem disfarces a todo instante. Cada habitante daquele lugar no além veio deste mundo, todos são ligados a ele pela força indissolúvel do destino, mas cada um o reconhece, percebe em sua fragilidade e leveza, somente quando percorreu o fim de seu caminho feito significativo; cada figura canta seu destino isolado, o acontecimento isolado em que seu lote distribuído torna-se aparente: uma balada. E somente como a totalidade da estrutura do mundo transcendente é pré-determinada pelo sentido, tudo abraçando a priori de cada destino individual, assim o aumento da compreensão desse edifício, sua estruture e sua beleza— a grande vivencia do peregrino de Dante —envolve tudo na unidade de seu significado, agora revelado. A inspiração de Dante transforma o individuo num componente da totalidade, e assim a balada torna-se uma canção épica. O significado desse mundo torna-se próximo, visível e imanente somente no além. A totalidade, neste mundo, é ligada por ser frágil ou simplesmente ansiada: as passagens em verse em Wolfram Von Eschenbach ou Gottfried Von Strassburg são somente ornamentos poéticos de seus romances, e a qualidade das baladas da Canção dos Nibelungos pode ser disfarçadas pelo significado da composição, mas não complexas quanto alcança a inteira totalidade.

O épico dá forma a uma totalidade de vida que é complexa a partir de dentro; o romance procura, dando forma, para descobrir e construir a totalidade oculta da vida. A estrutura dada de objeto (ou seja, a busca, que é apenas uma maneira de expressar o reconhecimento do sujeito que nem a vida objetiva nem sua relação com o sujeito é espontaneamente harmoniosa em si mesma) fornece uma indicação da intenção da forma. Todas as fissuras e rendas que são inerente à situação histórica devem ser esboçadas para o processo de dar forma e não podem ser disfarçado por meios de composição. Assim, a forma fundamental determinante da intenção do romance é objetivada como a psicologia dos heróis do romance: eles são buscadores. O simples fato de buscar implica que nem os objetivos nem o caminho que leva a eles podem ser dados diretamente, ou então, se forem dados em um forma psicologicamente direta e sólida, isso não é evidência de relações realmente existentes ou necessidades éticas, mas apenas de um fato psicológico para o qual nada no mundo dos objetos ou as normas precisam necessariamente corresponder. Em outras palavras, essa "doação" pode ser crime ou loucura; as fronteiras que separam o crime do heroísmo aclamado e loucura da sabedoria de dominar a vida são tentativas, puramente psicológicas, embora no final, quando a aberração se torna terrivelmente manifesta e clara, não há mais confusão.

Nesse sentido, o épico e a tragédia não conhecem crime nem loucura. O que os conceitos consuetudinários da vida cotidiana chamam de crime é, para eles, ou não existe, ou é nada mais do que o ponto, simbolicamente fixo e sensualmente perceptível de longe, em que a relação da alma com o seu destino, o veículo de sua saudade metafísica, torna-se visível. O mundo épico é puramente infantil, no qual a transgressão do estável, as normas tradicionais têm que implicar vingança, que novamente deve ser vingada ad inftnitum, ou então é a perfeita teodiceia em que o crime e o castigo se encontram nas escalas da justiça mundial como pesos iguais e mutuamente homogêneos.

Na tragédia, o crime não é nada ou um símbolo - é um mero elemento da ação, exigida e determinada por leis técnicas, ou é a quebra de formas deste lado da essência, é a entrada através da qual a alma cai em si, da loucura do épico nada sabemos, a menos que seja a linguagem geralmente incompreensível de um ultra mundo que não possui outros meios de expressão. Na tragédia não problemática, a loucura pode ser a expressão simbólica de um fim, equivalente à morte física ou à morte viva de uma alma consumida pelo fogo essencial da individualidade. Tanto o crime e loucura são objetivações da falta de moradia transcendental - o fora de lugar de uma ação na ordem humana das relações sociais, o desamparo de uma alma na ordem ideal de um sistema supra pessoal de valores. Toda forma é a resolução de uma dissonância fundamental da existência; toda forma restaura o absurdo ao seu lugar apropriado como o veículo, a condição necessária do significado. Quando o cumulo do absurdo, a futilidade de aspirações humanas genuínas e profundas, ou a possibilidade do derradeiro o nada do homem tem que ser absorvido na forma literária como um fato veicular básico, e quando o que é em si absurdo tem que ser explicado e analisado e, consequentemente, reconhecido como estando irredutivelmente lá, então, embora algumas correntes dentro de tal forma possam fluir para um mar de realização, a ausência de qualquer objetivo manifesto, a falta determinante de direção da vida como todo, deve ser o constituinte básico a priori, o elemento estrutural fundamental das personagens e evento dentro dele.

Onde nenhum objetivo é dado diretamente, as estruturas que a alma, no processo de tornar-se homem, encontra-se à medida que a arena e o substrato de sua atividade entre os homens perdem raízes óbvias nas necessidades ideais supra pessoais; eles são simplesmente existentes, talvez poderosos talvez frágeis, mas eles não carregam a consagração do absoluto dentro deles nem são os recipientes naturais para a interioridade transbordante da alma. Eles formam o mundo de convenção, um mundo de cujo poder abrangente apenas os recessos mais profundos da alma estão isentos, um mundo que está presente em toda parte em uma multiplicidade de muitas formas de compreensão. Suas leis estritas, tanto no devir como no ser, são necessariamente evidentes para o assunto consciente, mas apesar de sua regularidade, é um mundo que não se oferece como significado para o sujeito em busca de objetivo ou como matéria, no imediatismo sensível, para o sujeito ativo. É uma segunda natureza e, como a natureza (primeira natureza), é determinável apenas como a incorporação de necessidades reconhecidas mas sem sentido e, portanto, é incompreensível, incognoscível em sua substância real. No entanto, para a literatura criativa, só a substância tem existência e apenas substâncias que são profundamente homogêneos uns com os outros podem entrar na união combativa de relações compositivas recíprocas.

A poesia lírica pode ignorar a fenomenização da primeira natureza e pode criar uma mitologia proteica da subjetividade substancial a partir da força constitutiva de sua ignorância. Na poesia lírica, existe apenas o grande momento, o momento em que a unidade significativa de natureza e alma ou seu divórcio significativo, a necessária e afirmada solidão da alma torna-se eterno. No momento lírico, a mais pura interioridade da alma, separada de duração sem escolha, levantada acima da multiplicidade obscuramente determinada de coisas, solidifica em substância; enquanto a natureza desconhecida e desconhecida é dirigida de dentro para aglomerar em um símbolo que é iluminado por toda parte. No entanto, esta relação entre alma e a natureza só pode ser produzida em momentos líricos. Caso contrário, a natureza é transformada por causa de sua falta de significado - em uma espécie de sala de madeira pitoresca de símbolos sensuais para literatura; parece ser fixo em sua mobilidade enfeitiçada e só pode ser reduzido a um Significativamente animada calma pela palavra mágica do lirismo. Tais momentos são constitutivos e determinação de forma apenas para a poesia lírica; só na poesia lírica fazem esses flashes diretos e repentinos da substância tornam-se como manuscritos originais perdidos repentinamente tornados legíveis; somente na letra a poesia é o sujeito, o veículo de tais experiências, transformado no único veículo ou seja, a única realidade verdadeira. O drama se desenrola em uma esfera que está além dessa realidade, e nas formas épicas a experiência subjetiva permanece dentro do sujeito: torna-se humor. E a natureza, desprovida de sua vida autônoma "sem sentido", bem como de seu simbolismo significativo, torna-se um pano de fundo, um pedaço de cenário, uma voz acompanhante; perdeu a sua independência e é apenas uma projeção sensorialmente perceptível do essencial - da interioridade.

A segunda natureza, a natureza das estruturas feitas pelo homem, sem substancialidade lírica; suas formas são muito rígidas para se adaptarem à criação de símbolos momento; o conteúdo da segunda natureza, precipitado por suas próprias leis, é demasiado definido para ser capaz de se livrar daqueles elementos que, na poesia lírica, se tornarão ensaístas; além disso, esses elementos são tão à mercê das leis, são tão absolutamente desprovidos de qualquer valência sensorial da existência independente das leis, que sem elas, elas só podem desintegrar-se no nada. Esta segunda natureza não é burra, sensual e ainda sem sentido como o primeiro: é um complexo de sentidos - significados - que se tornou rígido e estranho, e que não desperta mais a interioridade; é um labirinto de habitações mortas há muito tempo; esta a segunda natureza só poderia ser trazida à vida - se isso fosse possível - pelo ato metafísico de despertar as almas que, em uma existência inicial ou ideal, a criaram ou preservaram; pode Nunca seja animado por outra interioridade. É muito parecido com as aspirações da alma de ser tratado pela alma como mera matéria-prima para os humores, ainda que estranha demais para aquelas aspirações que jamais se tornaram sua expressão adequada. Estranhamento da natureza (a primeira natureza), a atitude sentimental moderna à natureza, é apenas uma projeção da experiência do homem fez o ambiente como uma prisão em vez de um lar dos pais.

Quando as estruturas feitas pelo homem para o homem são realmente adequadas, elas são suas casa necessária e nativa; e ele não conhece a nostalgia que postula e experimenta a natureza como objeto de sua própria busca e descoberta. A primeira natureza, a natureza como um conjunto de leis para cognição pura, a natureza como portadora do conforto para o sentimento puro, não é outra coisa senão a objetivação histórico-filosófica da alienação do homem de suas próprias construções.

Quando o conteúdo da alma dessas construções não pode mais tornar-se diretamente da alma, quando as construções já não aparecem como o aglomerado e concentrado de interioridades que podem a qualquer momento ser transformado de volta em uma alma, então eles deve, a fim de subsistir, alcançar um poder que domina os homens cegamente, sem exceção ou escolha. E assim os homens chamam de "lei" o reconhecimento do poder que os mantém escravizados, e eles conceitualizam como "lei" seu desespero em sua onipotência e universalidade: conceituá-lo em uma sublime e exaltada lógica, uma necessidade que é eterna, imutável e além do alcance do homem.

A natureza das leis e a natureza dos humores provêm do mesmo lugar da alma: eles pressupõem a impossibilidade de uma substância atingida e significativa, a impossibilidade de encontrar um objeto constitutivo adequado ao sujeito constitutivo. Em sua experiência da natureza, o sujeito, que sozinho é real, dissolve todo o mundo exterior de humor, e ele próprio torna-se humor em virtude da inexorável identidade da essência entre a contemplativa sujeito e seu objeto. O desejo de conhecer um mundo limpo de todos os desejos e todos desejosos transforma o sujeito em uma incorporação subjetiva, construtiva e construtiva de Funções cognitivas. Isto está fadado a ser assim, pois o sujeito é constitutivo apenas quando age de dentro, ou seja apenas o sujeito ético é constitutivo. Só pode evitar ser vítima de leis e humores se a arena de suas ações, o objeto normativo de suas ações, é feita das coisas de pura ética: se o certo e o costume são idênticos à moral: se não mais da alma tem que ser colocado nas estruturas feitas pelo homem para fazê-los servir como esfera de ação apropriada do homem do que pode ser liberado, por ação, dessas estruturas. Sob tais condições, a alma não precisa para reconhecer quaisquer leis, pois a própria alma é a lei do homem e o homem verá a mesma face da mesma alma sobre toda substância contra a qual ele possa ter que provar a si mesmo. Sob Em tais condições, seria insignificante e fútil tentar superar a estranheza dos mundo humano pelo poder que desperta o humor do sujeito: o mundo do homem que importa é o onde a alma, como homem, deus ou demônio, está em casa: então a alma encontra tudo de que precisa, não tem que criar ou animar qualquer coisa fora de si mesmo, pois a sua existência é preenchida como excesso de encontrar, reunir e moldar tudo o que é dado como cognato à alma.

O indivíduo épico, o herói do romance, é o produto do distanciamento do mundo exterior. Quando o mundo é internamente homogêneo, os homens não diferem qualitativamente um do outro; há, claro, heróis e vilões, homens e criminosos piedosos, mas mesmo o maior herói é apenas uma cabeça mais alta que a massa de seus companheiros, e a dignidade do sábio palavras faladas são ouvidas até pelas mais tolas. A vida autônoma da interioridade é possível e necessário apenas quando as distinções entre os homens fizeram um abismo intransponível; quando os deuses estão em silêncio e nem os sacrifícios nem o dom extasiante de línguas podem resolver seus enigmas; quando o mundo dos atos se separa dos homens e, por causa dessa independência, torna-se oco e incapaz de absorver o verdadeiro significado das ações em si, incapaz de tornando-se um símbolo através dos atos e dissolvendo-os, por sua vez, em símbolos; quando interioridade e aventura são para sempre divorciados uns dos outros.

O herói épico é, estritamente falando, nunca um indivíduo. É tradicionalmente pensado que uma das características essenciais da epopeia é o fato de que seu tema não é o destino pessoal, mas o destino de uma comunidade. E com razão, para a completude, a redondeza do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um todo que é muito orgânico para qualquer parte dele para se tornar tão fechado dentro de si, tão dependente de si mesmo, como para se encontrar como uma interioridade - isto é, tornar-se uma personalidade. A onipotência da ética, que postula cada alma como autônoma e incomparável, ainda é desconhecida em tal mundo. Quando a vida encontra um significado imanente em si, as categorias do orgânico determinam tudo: uma estrutura individual e fisionomia é simplesmente o produto de um equilíbrio entre a parte e o todo, determinando-se mutuamente; nunca é o produto da autocontemplação polêmica pela personalidade perdida e solitária. O significado que um evento pode ter em um mundo que é assim arredondado é, portanto, sempre um quantitativo; a série de aventuras em que o evento se expressa tem peso na medida em que é significativo para um grande complexo orgânico de vida - uma nação ou uma família.

Heróis épicos têm que ser reis por razões diferentes dos heróis da tragédia (embora essas razões também são formais). Na tragédia, o herói deve ser um rei simplesmente por causa da necessidade para varrer todas as pequenas causalidades da vida do caminho ontológico do destino – porque a figura socialmente dominante é a única cujos conflitos, mantendo a ilusão sensual de uma existência simbólica, crescem apenas a partir do problema trágico; porque apenas tal figura pode cercado, mesmo quanto às formas de sua aparência externa, com a atmosfera necessária de isolamento significativo.

O que é um símbolo na tragédia se torna uma realidade no épico: o peso dos laços ligando um destino individual a uma totalidade. Destino do mundo, que na tragédia é apenas o número de zeros que precisam ser adicionados ao i para transformá-lo em um milhão, é o que realmente dá aos eventos do épico seu conteúdo; o herói épico, como portador de seu destino, não é solitário, porque este destino o conecta por fios indissolúveis à comunidade cujo destino é cristalizado em si mesmo.

Quanto à comunidade, é orgânica - e, portanto, intrinsecamente significativa - totalidade concreta; é por isso que a substância da aventura em um épico é sempre articulada, nunca estritamente fechado; esta substância é um organismo de riqueza interior infinita, e neste é idêntico ou semelhante à substância de outra aventura.

A forma dos épicos como Homero começam no meio e não terminam no final é uma reflexão da total indiferença da mentalidade verdadeiramente épica a qualquer forma de construção arquitetônica, e a introdução de temas estranhos - como o de Dietrich von Born na Canção dos Nibelungos - nunca pode perturbar esse equilíbrio, pois tudo no épico tem uma vida própria e deriva sua completude de seu próprio interior significado. O estranho pode calmamente estender a mão para o centro; mero contato entre coisas concretas criam relações concretas, e as estranhas, por causa de sua percepção distância e sua riqueza ainda não realizada, não põe em perigo a unidade do todo e ainda tem existência orgânica óbvia.

Dante é o único grande exemplo em que vemos a arquitetura claramente conquistando o orgânico, e, portanto, ele representa uma transição histórico-filosófica do puro épico para o romance. Em Dante ainda existe a perfeita distância imanente e completude de o verdadeiro épico, mas suas figuras já são indivíduos, conscientemente e energicamente colocando em oposição a uma realidade que está se tornando fechada para eles, indivíduos que, através desta oposição, tornam-se personalidades reais. O princípio constituinte de Dante totalidade é altamente sistemática, abolindo a independência épica da parte orgânica unidades e transformá-las em partes autonomamente hierarquicamente ordenadas. Tal individualidade, é verdade, é encontrada mais nas figuras secundárias do que no herói. A tendência de cada parte-unidade para manter sua vida lírica autônoma (uma categoria desconhecida e incognoscível no épico antigo) aumenta em direção à periferia à medida que a distância do centro se torna maior.

A combinação dos pressupostos do épico e do romance e sua síntese para uma epopeia é baseada na estrutura dual do mundo de Dante: o rompimento entre a vida e a é superada e cancelada pela coincidência de vida e significado em um presente, na verdade transcendência experiente. Para a natureza orgânica livre de postulados dos épicos mais antigos, Dante opõe-se a uma hierarquia de postulados cumpridos. Dante - e apenas Dante - não teve que dotar seu herói com visível superioridade social ou com um destino heroico que determinou o destino da comunidade - porque a experiência vivida de seu herói era a unidade simbólica do destino humano em geral.


Inclusão 05/09/2018